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Favela como face extrema da segregação

Slums as an extreme face of segregation

Resumo

A estrutura socioespacial da metrópole de São Paulo vem apresentando modificações nos últimos 40 anos. Favelas têm sido uma presença constante no tecido urbano, na capital e nos municípios metropolitanos. Este artigo pretende mostrar a evolução da estrutura social e socioespacial na metrópole nas últimas décadas do século XX e primeiras décadas do século XXI, através do uso da variável sócio-ocupacional e sua espacialização, por análise fatorial de correspondência e de clusters, a partir de dados censitários de 1980, 1991, 2000 e 2010, e a favelização resultante. Apesar das mudanças, a marca mais nítida da estrutura socioespacial metropolitana é ainda “mancha de óleo”, em que o modelo centro-periferia ainda é predominante. A análise indica que os espaços superiores ficaram mais exclusivos e homogêneos, enquanto outros, mais heterogêneos. Nos limites da metrópole, se observam processos de elitização com condomínios fechados e moradia de camadas médias, ao lado de espaços de pobreza extrema, como favelas e loteamentos precários. Nos anos 2020, a pandemia trouxe novas variáveis para um tecido urbano estruturalmente inadequado. E, através de dados de favelas dos censos, da pesquisa do IBGE de 2019 e do Map Biomas, percebe-se o espantoso crescimento das favelas na capital e nos municípios metropolitanos.

Palavras-chave:
Segregação; Desigualdades socioespaciais; Favelas

Abstract

The socio-spatial structure of the metropolis of São Paulo has been undergoing modifications in the last 40 years. Slums have been a presence in the urban fabric, in the capital and in metropolitan municipalities. This article intends to show the evolution of the social and socio-spatial structure in the metropolis in the last decades of the 20th century and the first of the 21st by the construction of the socio-occupational variable and its spatialization, by analysis factorial correspondence and clusters, based on census data from 1980, 1991, 2000 and 2010 and the spread of slums that follows its structure. The sharpest mark of the metropolitan socio-spatial structure is the “oil stain”, where the center-periphery model operates. The analysis indicates that the upper spaces became more exclusive and homogeneous, while others, more heterogeneous. A process of elitism is be observed within the metropolis, with closed condominiums and housing for the middle classes, and spaces of extreme poverty, like slums and precarious allotments. In the 2020s, the pandemic brought new variables to a structurally inadequate urban fabric. Through the data of slums censuses, the 2019 IBGE research and Map Biomas, there is an alarming increase in slums in the capital and metropolitan municipalities.

Keywords:
Segregation; Sociospatial inequalities; Slums

Introdução

O artigo apresenta como questão norteadora a mudança da estrutura socioespacial metropolitana, ligando-a à presença e à evolução das favelas na metrópole de São Paulo. Como a desigualdade crescente, expressa pelos assentamentos precários, se manifesta na trama espacial da metrópole? Como esta face da segregação espacial se evidencia no tecido metropolitano e como tem evoluído?

O texto é dividido em quatro partes, além de um item sobre material e métodos. Na primeira parte, discutimos alguns elementos conceituais, através de revisão da literatura. Na segunda parte, relativa a material e métodos, detalhamos, por item, fontes de dados e metodologia de utilização. Na terceira parte, caracterizamos a evolução da estrutura social e socioespacial da metrópole entre 1980 e 2010. Através da utilização de dados dos censos demográficos, tentamos resumir as mudanças na estrutura socioespacial da metrópole nos últimos anos do século XX e primeiros anos do século XXI. Em seguida, esboçamos algumas hipóteses sobre as mudanças na década seguinte, utilizando dados secundários e projeções populacionais. Na seção final, a quarta parte, mostramos o crescimento de uma das faces da pobreza − a favela − no tecido metropolitano, através de dados dos Censos Demográficos de 2000 e 2010, estimativas da Fundação Seade e da pesquisa preliminar do IBGE de 2019, além de informações territoriais do Map Biomas.

Algumas considerações sobre a segregação residencial

Muitos trabalhos têm abordado o tema da mudança na estrutura do trabalho e seu reflexo na segregação residencial (Sassen, 1991Sassen, S. (1991) The Global City: New York, London, Tokyo. Princenton: Princenton University Press.). Essa autora sustentou que as transformações do sistema capitalista teriam concentrado as atividades de comando nas grandes cidades, com o esvaziamento de atividades secundárias, ligadas à produção fordista. As estruturas sociais dessas metrópoles sofreram, assim, processo de polarização social. Esta hipótese foi formulada para Nova York, Londres e Tóquio, mas posteriormente replicada a muitas outras metrópoles. Estaria ocorrendo um “novo padrão de urbanização”, resultante da reestruturação produtiva que ocorreu em âmbito global. Esta reestruturação produtiva teria dualizado ainda mais a estrutura social nos países periféricos, além de aumentar a pobreza urbana e a segregação espacial.

“Os dois principais símbolos da nova configuração seriam os condomínios fechados cercados e as favelas, entendidos como a expressão desse novo padrão, mais excludente e polarizado que o anterior. Ou seja, os condomínios e as favelas estariam exprimindo a crescente aproximação geográfica entre locais de moradia dos ricos e dos pobres, ou dos dominantes e dominados, ou, ainda, dos cidadãos e não cidadãos” (Lago, 2006, pLago, L. C. (2006). ‘A dinâmica espacial em curso nas metrópoles brasileiras: algumas questões para discussão. In H. S. M. Costa (Ed.), Novas periferias metropolitanas: a expansão metropolitana em Belo Horizonte: dinâmicas e especificidades no Eixo Sul (pp. 47-55). Belo Horizonte: Fernando Pedro da Silva C/Arte.. 47).

A tendência ao aprofundamento da polarização social nas grandes cidades teria originado a cidade dual (Mollenkofp & Castells, 1991Mollenkofp, J., & Castells, M. (1991). Dual city. New York: The Russel Foundation.) e a cidade fractal (Soja, 2000Soja, E. (2000). Postmetropolis: critical studies of cities and regions. Oxford: Blackwell Publishers.). Mattos (2005, pMattos, C. (2005). Crescimento metropolitano na América Latina. In C. Campolina Diniz, & M. B. Lemos (Eds.), Economia e território (pp. 341-364). Belo Horizonte: Editora da UFMG.. 349) generaliza para a “[...] pós-metrópole a emergência de novas metropolaridades, desigualdades e marginalização étnica e racial, em meio a uma extraordinária riqueza”.

Marques (2015, pMarques, E. (2015). Os espaços sociais da metrópole nos anos 2000. In E. Marques (Ed.), A metrópole de São Paulo no século XXI: espaços, heterogeneidades e desigualdades. São Paulo: Editora UNESP.. 176) comenta que esta hipótese tem sido objeto de crítica. Segundo esse autor,

[...] é preciso apontar inicialmente que certas partes das hipóteses descritas anteriormente resistiram melhor ao tempo do que outras. Por um lado, o surgimento de um grupo social de super-ricos e de um mercado para a promoção imobiliária orientada para atividades de comando dos negócios parece ser consensual.

De outro lado, a polarização social tem sido criticada, já que os efeitos locais dos processos globais têm variado e as dinâmicas urbanas apresentam diversas histórias. Preteceille & Ribeiro (1999)Preteceille, E., Ribeiro, L.C.Q. (1999). Tendências da organização social em metrópoles globais e desiguais: Paris e Rio de Janeiro nos anos 80. EURE, 25(76), 79-102., comparando a evolução dos indicadores para o Rio de Janeiro e Paris, não encontraram, nestas cidades, aumento de polarização social, assim como Leal Maldonado (2000)Leal Maldonado, J. (2000). Economia, emprego e desigualdade social em Madri. In L. C. Queiroz Ribeiro (Ed.), O futuro das metrópoles: desigualdade e governabilidade (pp. 177-204). Rio de Janeiro: Revan FASE., para Madri, e Hamnett (1994)Hamnett, C. (1994). Social polarization in global cities: theory and evidences. Urban Studies (Edinburgh, Scotland), 31(3), 401-424. http://doi.org/10.1080/00420989420080401.
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, para Ramstad, na Holanda. Nos países de alta renda, camadas populacionais mais afluentes têm reavaliado a vida urbana, demandando mais moradia central. van Ham et al. (2021)van Ham, M., Tammaru, T., Ubareviéciençe, R., & Janssen, H. (2021). Urban socio-economic segregation and income inequality: a global perspective. London: Springer. http://doi.org/10.1007/978-3-030-64569-4.
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mostraram que entre 1981 e 2011 os níveis de segregação em Londres permaneceram estáveis, mas a geografia social da cidade mudou. Enquanto nos anos 1980, os ricos viviam na periferia e os pobres no centro, em 2011, este padrão se inverteu. Hulchansky (2010)Hulchansky, D. (2010). The three cities in Toronto: Income polarization among Toronto’s neghbourhoods, 1970-2005. Toronto: University of Toronto. mostra um padrão similar em Toronto.

O livro editado por van Ham et al. (2021)van Ham, M., Tammaru, T., Ubareviéciençe, R., & Janssen, H. (2021). Urban socio-economic segregation and income inequality: a global perspective. London: Springer. http://doi.org/10.1007/978-3-030-64569-4.
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, Urban Socio-Economic Segregation and Income Inequality, a Global Perspective reúne revisões desta temática em 24 grandes cidades na África, Ásia, Austrália, Europa, América do Norte e América do Sul, tentando sumarizar este debate e sua verificação nos diversos locais do globo. Aponta que níveis de segregação são mais altos em cidades de países com renda menor, mas o crescimento da desigualdade e da segregação é mais rápido em cidades de países com renda alta. Em muitas cidades, a força de trabalho está se profissionalizando, com maior participação deste grupo ocupacional. Em muitos locais, trabalhadores de maior renda estão se mudando para o centro ou para áreas da costa mais atraentes, e os trabalhadores de menor renda se mudam para os limites externos da urbe. Nas cidades localizadas em países de renda baixa, trabalhadores de alta renda se concentram em condomínios fechados.

A segregação residencial em São Paulo, historicamente, segue um modelo centro-periferia. O município de São Paulo nunca foi capital nacional. Aliás, até meados do século XIX, era um pequeno centro regional de pouca relevância. No fim do século XIX, a cidade começou a se desenvolver, primeiro como centro de negócios para a economia cafeeira do estado de São Paulo e, mais tarde, após a Primeira Grande Guerra, como centro da nascente indústria brasileira. Recebeu grandes levas de migrantes internacionais da Itália, Japão, Síria e Europa Oriental, assim como forte migração interna das regiões pobres do País. Entre 1940 e 1980, os fluxos migratórios nacionais foram explosivos, levando o crescimento demográfico da cidade a taxas maiores que 5% ao ano. Estes fluxos foram apenas em parte absorvidos pelos mercados urbanos e industriais, gerando alto desemprego e um vasto exército de trabalhadores precários e informais. Apesar das melhorias nas condições de infraestrutura tanto na capital como na metrópole, a população pobre habitava vastas periferias segregadas e, até pouco tempo atrás, bastante homogêneas. O aumento da população se alocava principalmente na periferia do município, pelo menos até os anos 2000, quando o anel central teve taxas de crescimento superiores ao anel periférico. Entre 2010 e 2020, o incremento demográfico foi pequeno, de pouco mais de 600 mil pessoas, mas, deste total, 70% residiam na periferia paulistana.

A estrutura urbana foi marcada por grande segregação, com as camadas sociais mais ricas morando nas porções centrais, mais equipadas, e a população pobre em assentamentos irregulares e favelas. Hoje, estas periferias são também locais de condomínios fechados abrigando classes sociais mais altas e são objeto do mercado imobiliário para classes de renda média baixa. Mas a desigualdade não se alterou substancialmente. A estrutura pode não ser tão clara como nos anos 1980/1990, mas segue injusta e segregada. De outro lado, percebe-se uma melhora das condições de infraestrutura, com praticamente todos os domicílios municipais tendo acesso a energia elétrica, água de rede pública e coleta de lixo.

Percebem-se, ainda, alguns fenômenos novos nessa periferia, que se constituem em espaços mais heterogêneos. Com condomínios horizontais e verticais, e produção formal de moradias para população de renda baixa, no momento abrigam fortes bolsões de pobreza. Estas periferias novas são desprovidas de infraestrutura e apresentam condições de vida muito precárias. A composição social dos espaços periféricos mescla enclaves de riqueza com áreas extremamente carentes.

Material e métodos

No item 4, foram utilizadas informações dos Censos Demográficos de 1991, 2000 e 2010, e estimativas populacionais da Fundação Seade para 2021. O resultado da população dos municípios brasileiros saiu após o envio deste artigo para a publicação. Os saldos migratórios e vegetativos utilizados na Tabela 2 foram também estimados através de informações das estatísticas vitais da Fundação Seade, baseadas em dados enviados periodicamente pelos cartórios.

Tabela 2
- Região Metropolitana de São Paulo: saldos total, vegetativo e migratório por sub-região, 2000-2010 e 2010-2020

Tanto a estrutura social como a estrutura socioespacial são resultado de pesquisa do Observatório das Metrópoles (Bogus & Pasternak, 2015Bogus, L., & Pasternak, S. (2015). Mudanças recentes na estruturação socioespacial da Região Metropolitana de São Paulo. In L. Bogus, & S. Pasternak (Eds.), São Paulo: transformações da ordem urbana (pp. 111-157). Rio de Janeiro: Letra Capital.), realizada com a metodologia comum a todas as metrópoles que compõem a rede de pesquisa. Esta metodologia constrói uma hierarquia sócio-ocupacional a partir de variáveis censitárias de ocupação, renda e escolaridade, através da variável CAT (categoria sócio-ocupacional), proxy de classe social.

A elaboração do esquema de estratificação social do Observatório das Metrópoles considerou os seguintes critérios para a construção das categorias sócio-ocupacionais: (i) capital × trabalho; (ii) trabalho não manual × trabalho manual; (iii) trabalho de comando × trabalho subordinado; (iv) trabalho público × trabalho privado; (v) trabalho formal × trabalho informal, além das diferenças de escolaridade e entre setores da economia. (Ribeiro, 2022, pRibeiro, M. (2022). Proposta Novas Categorias Sócio-Ocupacionais do Observatório das Metrópoles. Relatório Técnico. Rio de Janeiro: Observatório das Metrópoles.. 5).

A última versão dessa estratificação apresentou 24 categorias sócio-ocupacionais, agregadas em oito agrupamentos: dirigentes, profissionais de nível superior, pequenos empregadores, ocupações médias, trabalhadores do terciário especializado, trabalhadores do secundário, trabalhadores do terciário não especializado e trabalhadores agrícolas. A análise fatorial por correspondência possibilitou a construção de clusters com perfil sócio-ocupacional semelhante, caracterizando zonas com certa homogeneidade social.

Para perceber a estrutura socioespacial ao longo das décadas analisadas, foi organizada uma base com as frequências de cada categoria sócio-ocupacional por área de ponderação dos Censos de 1980, 1991, 2000 e 2010. Em seguida, foi feita uma análise fatorial e de cluster, a partir das quais construíram-se as tipologias socioespaciais. Esse procedimento gerou tipos de áreas, considerando a composição das categorias sócio-ocupacionais ali presentes. O peso relativo de cada categoria em relação às médias de cada ano indicava o tipo de área. Assim, uma área seria chamada de superior, por exemplo, se apresentasse um peso relativo de ocupados das categorias superiores alto em relação à média geral. Em 1980, foram usados setores censitários como unidade espacial para a análise fatorial e de cluster. A partir de 1991, a unidade mínima de análise permitida pelo uso dos Censos foi a área de ponderação (AED). Em 2010, novamente a unidade espacial através da qual o IBGE fornecia dados sobre ocupação modificou-se, impossibilitando a comparação com as AEDS de 2000. Optou-se, assim, pela utilização dos distritos, que se mantiveram entre 2000 e 2010. Dessa forma, a RMSP foi analisada com seus 164 distritos. As AEDS de 1991 e de 2000, embora não coincidissem, eram submúltiplas dos distritos, possibilitando dessa forma a compatibilização mediante simples agregação das AEDS nos anos respectivos. Os perímetros distritais vêm se mantendo desde 1991. Os mapas apresentados no item 4 mostram os resultados desses mapeamentos, indicando a tipologia de áreas em cada ano censitário.

No item 5, dados censitários e estimativas da Fundação Seade, além de informações veiculadas por periódicos, possibilitaram a formulação de algumas hipóteses sobre a estrutura urbana recente.

O item 6 utiliza dados censitários de 1991, 2000 e 2010, e a pesquisa preliminar do IBGE em 2019, para estimativa das favelas neste ano (IBGE, 2020Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. (2020). Aglomerados subnormais 2019: classificação preliminar e informações de saúde para enfrentamento à COVID-19. Rio de Janeiro: IBGE. Recuperado em 14 de setembro de 2021, de https://biblioteca.ibge.gov.br/ visualizacao/livros/liv101717_notas_tecnicas.pdf
https://biblioteca.ibge.gov.br/ ...
), além de dados do MapBiomas (2021)MapBiomas. (2021). Área urbanizada nos últimos 36 anos. Recuperado em 10 de novembro de 2021, de https://mapbiomas-br-site.s3.amazonaws.com/MapBiomas_Infra_Urbana_Novembro_2021_04112021_OK_Alta.pdf
https://mapbiomas-br-site.s3.amazonaws.c...
. Segundo o texto do próprio IBGE,

[...] a estimativa dos domicílios ocupados tem como ponto de partida os dados do Censo Demográfico de 2010. Para algumas áreas, ocorreram atualizações de campo e, para outras, foram feitas estimativas menos precisas, sempre usando as melhores informações disponíveis.

Embora a nota do IBGE comente que o objetivo primário desta estimativa é subsidiar a operação do Censo Demográfico de 2020, somente o próprio Censo, no qual todos os domicílios serão visitados, irá oferecer uma estimativa mais precisa. Entretanto, é o dado mais recente no nível da metrópole. E, como também comenta a nota metodológica do IBGE, “[...] este trabalho tem por objetivo garantir a comparação dos dados de aglomerados subnormais do Censo Demográfico de 2010 com os resultados do Censo Demográfico de 2020”. As informações do MapBiomas possibilitaram o cálculo das áreas ocupadas por favelas e das densidades demográficas.

Estrutura socioespacial até a primeira década dos anos 2000

São Paulo é a maior metrópole da América do Sul, com cerca de 12 milhões de habitantes e quase 22 milhões no território metropolitano. A chamada Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) tem 39 municípios, incluindo a capital (Figura 1). Estes 39 municípios costumam, para efeitos de análise, ser agregados em cinco sub-regiões e mais o polo.

Figura 1
- Região Metropolitana e sub-regiões. Fonte: EMPLASA (2019)Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano S/A – EMPLASA. (2019). Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado da Região Metropolitana de São Paulo (PDUI). São Paulo. Recuperado em 14 de setembro de 2021, de https://multimidia.pdui.sp.gov.br/rmsp/docs_pdui/rmsp_docs_pdui_0018_diagnostico_final.pdf
https://multimidia.pdui.sp.gov.br/rmsp/d...
.

A expansão da periferia como local de moradia dos trabalhadores e a substituição do transporte por trilhos pelo rodoviário marcaram um padrão centro-periferia, com o forte incremento populacional dos municípios do entorno da capital. No município polo, São Paulo, a elite deixa o centro antigo e se desloca para o sudoeste. Mudanças no padrão produtivo, ligadas à fuga de indústrias da capital e a uma tecnologia poupadora de menor uso da força de trabalho, já indicavam transformações na metrópole nos anos 1980 e 1990, embora em 2010 a RMSP ainda concentrasse 20% do PIB brasileiro. O perfil metropolitano mudou, com regiões, como o ABCD, apresentando forte perda de população operária e outras assumindo o papel de cidades-dormitório da população pobre. O padrão antigo de moradia popular, com compra parcelada em terreno periférico e casa autoconstruída, mudou ao longo das últimas décadas.

Estas transformações urbanas guardam relação direta com as mudanças econômicas em curso da RMSP, particularmente com a evolução do PIB e a expansão do setor de serviços, com perda de importância relativa do setor industrial, desde os anos 1970. Nos anos 2000, este processo se aprofunda, com o valor adicionado da indústria reduzindo-se de 17,6% para 12,1% do PIB da RMSP entre o primeiro trimestre de 20002 e o primeiro trimestre de 2022, ao passo que o setor de serviços expande seu valor adicionado de 63,9% do PIB metropolitano para 67%, no mesmo período (Fundação Seade, 2022Fundação Seade. (2022). Mapa da indústria paulista. São Paulo.).

O crescimento demográfico da metrópole paulista tem diminuído a cada década: se, nos anos 1990, atingia 1,68% ao ano, no início do século atual o ritmo baixou para 0,97% e a estimativa para os anos 2010 é de 0,71%. O aumento populacional entre 2000 e 2010 (1.814.921) se deu quase que integralmente devido ao saldo vegetativo. O saldo migratório para a Região Metropolitana de São Paulo foi negativo, de quase 300 mil pessoas, sobretudo devido ao saldo migratório negativo no município de São Paulo, que foi de quase 321 mil pessoas no intervalo 1991-2000. Praticamente todo o saldo migratório negativo foi devido à saída de migrantes do município de São Paulo. Três sub-regiões mostraram saldos migratórios negativos: Sudeste, Oeste e Polo (Tabela 2). Dentro da região metropolitana, na década de 2000-2010, o saldo migratório mostrou-se ainda positivo em algumas regiões: Sudoeste, Norte e Leste. Na região Sudeste, região do Grande ABCD, apresenta-se negativo em Diadema, Ribeirão Pires, Santo André e São Bernardo do Campo, refletindo a desindustrialização nestes municípios. Na região Oeste, chama a atenção a perda migratória de Osasco, de mais de 60 mil, de Carapicuíba, de cerca de 26 mil, e a de Barueri, de 7 mil pessoas. O saldo positivo na região Norte tem maior número absoluto em Mairiporã e Franco da Rocha, municípios-dormitório. Na região Leste, Mogi das Cruzes apresenta praticamente a metade do seu incremento devido ao saldo migratório.

A dinâmica populacional nesses segmentos da metrópole se reflete nas taxas de crescimento estimadas entre 1991 e 2021, ou seja, nos últimos 30 anos. As taxas da metrópole vêm diminuindo década a década, assim como as taxas em todas as regiões. Dá-se o mesmo com as taxas do estado de São Paulo. Se, na década de 2000, a parcela migratória representava 11,12%, na década seguinte essa proporção se reduziu para 10,55%, embora o saldo seja ainda fortemente positivo, de 359 mil pessoas. Na região Metropolitana, o incremento populacional na década de 2010 é menor, em números absolutos, que o da década anterior, com sensível diminuição inclusive do saldo vegetativo. Nos outros segmentos espaciais da metrópole paulista, os saldos migratórios continuam com os mesmos sinais que na década anterior: Sudeste, Oeste e Polo com saldos negativos, e Sudoeste, Norte e Leste com saldos positivos (Tabela 2).

As cidades metropolitanas também apresentam grande crescimento populacional, servindo, não raro, como cidades-dormitório. As taxas de incremento populacional dos outros municípios metropolitanos têm sido, desde os anos 1980, superior à da capital. Entre 2000 e 2010, a taxa da capital foi de 0,76% anual, enquanto a dos outros municípios alcançou 1,25%. E, no intervalo 2010-2021, as projeções indicam 0,72% e 1,43%, respectivamente. O padrão periférico se dá também em direção à periferia metropolitana. A região Norte da metrópole (Caieiras, Cajamar, Francisco Morato, Franco da Rocha e Mairiporã) é a que apresenta taxa mais alta de crescimento entre 1991 e 2021, de 2,64% anuais. Isto tem ocorrido desde os anos 1990. De outro lado, a região Sudeste, onde se encontra o ABCD, mostra os menores índices de crescimento, sem contar o polo. O peso do município central no estado de São Paulo está se reduzindo de 30,57% em 1991 para 26,54% em 2021. Além da região Norte, montanhosa e de difícil urbanização, a região Sudoeste (Cotia, Embu, Embu-Guaçu, Itapecerica da Serra, Juquitiba, São Lourenço da Serra, Taboão da Serra e Vargem Grande Paulista) também apresenta taxa de crescimento populacional elevada, de 2,30% ao ano no intervalo 1991-2021. São cidades-dormitório, com grande proporção de população pobre, como Cotia (2,93% de crescimento demográfico nos últimos 30 anos), Vargem Grande Paulista (4,17% entre 1991 e 2021) e São Lourenço da Serra (2,49% no mesmo período).

Em relação à estrutura sócio-ocupacional, notou-se, na década de 1980, um aumento dos profissionais de nível superior, das camadas médias, um pequeno aumento dos dirigentes e uma redução dos trabalhadores do secundário. Durante a década de 1990, os profissionais de nível superior continuam aumentando sua proporção no total de ocupados, enquanto as ocupações médias mostram redução, devido à grande diminuição dos empregados de escritório. No “mundo popular”, continua a redução dos trabalhadores do secundário, mas nota-se um aumento dos trabalhadores do terciário não especializado. A enorme expansão das universidades privadas explica o aumento dos profissionais de nível superior. A desconcentração das atividades produtivas, para além dos limites metropolitanos, fez com que a diminuição dos trabalhadores do secundário se acentuasse. O aumento da pobreza metropolitana, por sua vez, ajuda a entender o incremento de prestadores de serviço não especializado. O aumento de importações causado pela abertura econômica desorganiza ainda mais a base industrial paulista, pouco preparada para a concorrência internacional.

Já na primeira década do século XXI, nota-se que a proporção de dirigentes diminui quase 40%. Fusão de empresas? Mudança de localização espacial das camadas superiores? Percebe-se também que, embora em 2010 a maioria dos dirigentes residisse na capital, em 2010 27% desta categoria morava nos municípios periféricos. Condomínios fechados espraiando-se na metrópole, em municípios mais “bucólicos”, mostravam a nova escolha residencial das camadas mais abastadas, fugindo da poluição, do barulho e da violência da capital. Os trabalhadores do secundário continuam a se reduzir, enquanto os do terciário especializado aumentam. Os trabalhadores do terciário não especializado, que apresentavam proporção subindo entre 1991 e 2000, reduziram-se, espelhando provavelmente as políticas de distribuição de renda e de formalização do trabalho.

Concluindo, a estrutura sócio-ocupacional de São Paulo até 2010 se mantém, basicamente, apresentando, porém: (i) terciarização, com forte incremento dos trabalhadores do terciário, especializado e não especializado; (ii) profissionalização, com aumento dos profissionais de nível superior; (iii) perda de ocupações de escritório; (iv) perda dos trabalhadores da indústria moderna e tradicional, e (v) perda dos dirigentes, sobretudo a partir dos anos 1990. A estrutura socioespacial, de 1991 e 2000, em que a unidade mínima de análise foi a AED (Área de Expansão Demográfica), apresentou as modificações observadas na Tabela 3.

Tabela 3
- RMSP: população ocupada e número de áreas de expansão demográfica, por tipo de áreas, 1991 e 2000

Percebe-se uma mudança no tipo de área preponderante entre 1991 e 2000, de tipo operário para tipo médio, além de um aumento das áreas do tipo popular. Chama a atenção, também, a diminuição do número de áreas superiores, acompanhada da perda de população deste tipo de área.

A impressão geral da tipologia socioespacial de São Paulo corresponde ainda a um padrão “mancha de óleo”, na qual os tipos superiores se localizam nas áreas mais centrais, circundados por tipos hierarquicamente inferiores: primeiramente os médios, depois os operários e, por fim, os populares e os agrícolas.

As tipologias de áreas do espaço intrametropolitano em 2000 apresentavam um grau razoável de heterogeneidade social. As áreas do tipo superior tinham 31% de categorias superiores (empregadores + dirigentes + profissionais superiores), 37% de ocupações médias e 32% de trabalhadores manuais (operários, prestadores de serviços e comerciários). Percebe-se a heterogeneidade dentro destas, embora em 1991 essa heterogeneidade fosse um pouco maior (24% de categorias superiores, 38% de médias e 38% de trabalhadores manuais). Nota-se também que as áreas superiores concentravam 54% das categorias superiores em 2000, enquanto em 1991 essa concentração representava 61%. Mas os empregadores concentram-se mais: 71% dos grandes empregadores em 2000 residem nas chamadas áreas superiores. Observa-se também que houve aumento significativo de todas as categorias sócio-ocupacionais em áreas do tipo popular (com exceção dos grandes empregadores). Nas áreas médias de 2000, aumentou de forma significativa a presença de categorias superiores. As áreas operárias no ano 2000 apresentam menor proporção de ocupações médias que em 1991 e maior proporção de trabalhadores manuais.

As principais tendências da estrutura sócio-ocupacional foram rebatidas espacialmente. O perfil médio de cada tipologia apresentou ganho de profissionais de nível superior e de prestadores de serviços, e perda de ocupações de escritório, grandes empregadores e trabalhadores do secundário. Mas a intensidade dos ganhos e perdas foi distinta nos diversos tipos de área. Um detalhamento destas áreas pode ser visto em Bogus & Pasternak (2015, pBogus, L., & Pasternak, S. (2015). Mudanças recentes na estruturação socioespacial da Região Metropolitana de São Paulo. In L. Bogus, & S. Pasternak (Eds.), São Paulo: transformações da ordem urbana (pp. 111-157). Rio de Janeiro: Letra Capital.. 111-157). As Figuras 2 e 3 mostram a espacialização destas tipologias.

Figura 2
- RMSP, com indicação das principais tipologias de áreas, 1991, base AEDs. Fonte: Bogus & Pasternak (2015, pBogus, L., & Pasternak, S. (2015). Mudanças recentes na estruturação socioespacial da Região Metropolitana de São Paulo. In L. Bogus, & S. Pasternak (Eds.), São Paulo: transformações da ordem urbana (pp. 111-157). Rio de Janeiro: Letra Capital.. 138).
Figura 3
- RMSP, com indicação das principais tipologias de áreas, 2000, base AEDS. Fonte: Bogus & Pasternak (2015, pBogus, L., & Pasternak, S. (2015). Mudanças recentes na estruturação socioespacial da Região Metropolitana de São Paulo. In L. Bogus, & S. Pasternak (Eds.), São Paulo: transformações da ordem urbana (pp. 111-157). Rio de Janeiro: Letra Capital.. 139).

As áreas superiores sofreram um processo de elitização relativa. Chama-se elitização a combinação de aumento relativo das categorias superiores, aliado à perda considerável de trabalhadores manuais. E é relativa porque houve perda no topo da pirâmide, ou seja, perda de grandes empregadores e dirigentes do setor privado. As áreas médias também acusam um grande incremento de profissionais de nível superior e uma nítida terciarização, com forte aumento dos prestadores de serviços. Há também aumento relativo dos trabalhadores do terciário não especializado, principalmente pelo aumento de ambulantes e trabalhadores domésticos.

Os espaços operários se popularizam, com perda dos operários das indústrias tradicional e moderna, e ganho dos operários dos serviços auxiliares e dos trabalhadores do terciário não especializado. São espaços que se popularizam. De outro lado, os espaços populares mostram também perda de trabalhadores do secundário e entrada de ocupações médias.

Entre 2000 e 2010, a análise fatorial por correspondência binária, seguida pela classificação hierárquica dos conglomerados resultantes, teve que se reduzir ao uso dos 164 distritos da RMSP. Identificaram-se sete tipos de áreas socialmente homogêneas. As Figuras 4 e 5 mostram a espacialização das tipologias pelos distritos em 2000 e 2010, e a Tabela 4 compara o número de distritos e o total populacional em cada tipologia.

Figura 4
- RMSP, com indicação das principais tipologias, 2000, base distritos. Fonte: Bogus & Pasternak (2015, pBogus, L., & Pasternak, S. (2015). Mudanças recentes na estruturação socioespacial da Região Metropolitana de São Paulo. In L. Bogus, & S. Pasternak (Eds.), São Paulo: transformações da ordem urbana (pp. 111-157). Rio de Janeiro: Letra Capital.. 150).
Figura 5
- RMSP, com indicação das principais tipologias, 2010, base distritos. Fonte: Bogus & Pasternak (2015, pBogus, L., & Pasternak, S. (2015). Mudanças recentes na estruturação socioespacial da Região Metropolitana de São Paulo. In L. Bogus, & S. Pasternak (Eds.), São Paulo: transformações da ordem urbana (pp. 111-157). Rio de Janeiro: Letra Capital.. 151).
Tabela 4
- RMSP: população ocupada e número de distritos, por tipo de área, 2000 e 2010

Tanto em 2000 como em 2010, o tipo “modal” é o chamado operário popular, que agrega 60 distritos com 7,2 milhões de pessoas em 2000 e 63 distritos, com 9,6 milhões de ocupados em 2010. Neste tipo, as categorias médias são 29% em 2010 e 21% em 2000, enquanto os trabalhadores do terciário alcançavam 19% em 2010 e 20% em 2000. Os trabalhadores do secundário representavam 33% em 2000, caindo para 22% em 2010. O segundo tipo predominante é o popular operário, também com camadas médias e trabalhadores do secundário e terciário. A principal diferença entre os dois tipos refere-se à composição dos trabalhadores secundários: enquanto no tipo operário popular, a proporção de operários da indústria moderna é majoritária, no tipo popular operário, os grupos majoritários são os operários da construção civil e os trabalhadores do terciário não especializado.

As áreas superiores, que eram 12 em 2000, passaram a 22 em 2010. Nota-se que estas áreas estão todas no município da capital. Percebe-se uma expansão das áreas superiores tanto no eixo sul (Santo Amaro e Campo Grande) como em direção ao norte (Santana), ao leste (Tatuapé) e a oeste (Barra Funda, Lapa e Vila Leopoldina). Além do aumento das áreas superiores e do aumento da população residente nestas áreas, nota-se que todos os distritos do polo que eram superiores em 2000 assim continuam, e foram acrescidos mais 11 distritos, na capital. As áreas médias se retraíram de 34 em 2000 para 22 em 2010. Algumas áreas médias tornaram-se superiores. Estas áreas médias também se concentram no polo. As áreas operárias médias, 37 em 2000, passam a 25 em 2010. Muitas delas se transformaram em áreas operárias populares em 2000, mostrando uma “popularização” do cluster operário. De certa forma, essa “popularização” do cluster operário na década liga-se à desindustrialização e à transformação da periferia metropolitana numa vasta área-dormitório para a população de baixa renda, agora não mais operária, mas ligada a serviços.

A reorganização da estrutura social reflete as transformações da estrutura produtiva, com terciarização da metrópole, cujo espaço já não reflete diretamente sua base industrial. A indústria, quando sobrevive, se locomove para o interior do estado e para outras regiões brasileiras. A Grande São Paulo se terceiriza e políticas de expansão do ensino superior explicam a enorme proporção de profissionais de nível superior no tecido metropolitano. Mas vale lembrar que esta profissionalização não se traduz em salários melhores. Cabe a pergunta: dentro deste quadro, será que o modelo centro-periferia ainda prevalecia, com as camadas superiores morando no centro e a periferia concentrando as camadas populares?

Embora morar na periferia nos anos 2000 seja distinto dos anos 1970, já que água, esgoto, energia elétrica e coleta de lixo são praticamente universais na metrópole, o que se percebe é que grupos sociais mais bem posicionados na hierarquia social ainda residiam sobretudo no município polo em 2010, enquanto os espaços dos municípios periféricos ainda eram qualificados como populares ou operários populares. Além disso, os 11 distritos que subiram na hierarquia (de médio para superiores) alocam-se todos na capital.

A mancha de óleo ainda persistia. Os espaços da elite concentram-se no setor sudoeste do município central, com alguns enclaves nas outras parcelas metropolitanas. Assim, embora já com modificações, o modelo centro-periferia ainda é explicativo. A análise indica que os espaços superiores se tornam mais exclusivos em 2010, enquanto os espaços operários e populares se misturam, ao final da década. Assim, os espaços superiores ficam mais homogêneos, enquanto todos os outros, inclusive os médios, ficam mais heterogêneos. Nos limites da metrópole, se observaram tanto processo de elitização (com condomínios fechados e mesmo moradia para camadas médias) quanto núcleos de pobreza extrema, como favelas e loteamentos muito precários

Estrutura urbana recente: anos 2010-2023

Dados da Tabela 1 já demonstraram uma perda do vigor do crescimento populacional metropolitano: se na década de 90 a RMSP crescia a taxa de 1,68% anual, já entre 2000 e 2010 esta taxa de reduz para 0,97% ao ano. A estimativa para o intervalo 2010-2021 foi de 0,71% ao ano. Apenas duas regiões − Norte e Sudoeste − têm taxa de crescimento populacional maior que 1. São, justamente, as duas sub-regiões com maior proporção de domicílios com até um salário-mínimo de renda mensal: a Norte com 27,59% dos domicílios com até um salário mínimo e a Sudoeste com 25,76% dos domicílios na mesma condição. Para o total da RMSP, em 2010, a proporção de domicílios com até um salário-mínimo foi de 20,87%). As sub-regiões Sudeste e Oeste apresentam saldo migratório negativo no período 2010-2020 (Tabela 2). Mas, sem dúvida, o forte saldo migratório negativo apresentado pela metrópole nos anos 2010 deve-se ao saldo negativo do município de São Paulo.

Tabela 1
- Região Metropolitana de São Paulo: população, por sub-regiões e taxas de crescimento, 1991-2021

A metrópole cresce mais fortemente nas direções Norte e Sudoeste, ou seja, cresce sobretudo pela moradia de população empobrecida, que busca nos terrenos mais baratos a oportunidade de achar algum local para residir. Sem acesso à habitação produzida pelo mercado ou pelo Estado, e mesmo com dificuldade de construir sua própria casa, a população procura soluções alternativas para um abrigo a baixo custo. Diversos autores (Sigolo, 2014Sigolo, L. M (2014). O boom imobiliário na metrópole paulistana: o avanço do mercado formal de moradia em direção á periferia e a nova cartografia da segregação socioespacial (Tese de doutorado). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo.; Borges de Oliveira, 2022Borges de Oliveira, I. F. (2022). Formas de producción del habitat popular em América Latina: de la autoconstrucción a la producción de mercado, transformaciones e implicaciones em la producción del espacio. In C. Pradilla (Ed.), La producción de la ciudad latino-americana durante el neoliberalismo (pp. 409-437). Mexico: UNAN.) comentam que o espaço periférico, antes formatado de forma homogênea pela tríade autoconstrução-casa própria-loteamento periférico, hoje apresenta grande heterogeneidade, com presença acentuada de produção mercantil, para camadas de renda média baixa e mesmo média. E, já a partir dos anos 1970, a ocupação extensiva das cidades já competia com outro modo de ocupação, no qual a pobreza vai alocar em pedaços que sobram do mercado, áreas de proteção ambiental em geral, constituindo favelas, tanto em zonas mais centrais como no habitat popular (Borges de Oliveira, 2022, pBorges de Oliveira, I. F. (2022). Formas de producción del habitat popular em América Latina: de la autoconstrucción a la producción de mercado, transformaciones e implicaciones em la producción del espacio. In C. Pradilla (Ed.), La producción de la ciudad latino-americana durante el neoliberalismo (pp. 409-437). Mexico: UNAN.. 419).

Dados recentes de um estudo sobre o município de São Paulo, realizado pelo Insper (Borges Costa et al., 2023Borges Costa, A., Alves, E. L., & Fereira da Silva, J. R. (2023). Ordenamento territorial e incentivos do PDE: análise da produção habitacional formal em São Paulo. In FORUM SP22: Propostas para a Revisão do Plano Diretor e a Implementação da Política Urbana de São Paulo. São Paulo: IAB SP.) mostram que a moradia popular, sobretudo a Habitação de Interesse Social (HIS) e a Habitação de Mercado Popular (HPM), com preço e financiamento regulados pelo governo, alocaram-se sobretudo na periferia mais distante, numa distância entre 8 e 13 km da Praça da Sé. Os empreendimentos destinados ao mercado em geral, com preço e financiamento definidos pelo mercado, se concentraram, em média, a uma distância de 3 a 7 km do marco zero da cidade, a Praça da Sé. Ou seja: aumentou a produção de habitação popular, mas ela continua periférica, dentro do município de São Paulo e nos outros municípios empobrecidos da metrópole.

Em 2020, a pandemia ainda trouxe novas variáveis para um tecido urbano já estruturalmente inadequado. Aumento do desemprego, abandono de lajes comerciais, fechamento de postos de serviços e lojas trouxeram maior desigualdade e pobreza.

Lajes corporativas voltarão a ser ocupadas de forma plena? É difícil prever. Em alguns locais na capital, como na Vila Olímpia e no corredor Berrini, percebe-se um esvaziamento. Em dezembro de 2019, a vacância dos imóveis corporativos na Vila Olímpia era de 10,5% do total. Em 2020, o índice subiu para 24,5% e, no fim de 2021, chegou a 29,4% (dados do Secovi, publicados na Folha de São Paulo, 7 de março de 2022, p. B3; Jornal Folha de São Paulo, 2022bJornal Folha de São Paulo. (2022b, 7 de março). Vila Olimpia e Berrini vivem esvaziamento pós pandemia (Caderno Cotidiano, p. B3). São Paulo.). Esses índices retornarão aos níveis da pré-pandemia? E as inúmeras pequenas lojas, bares e restaurantes da área, agora fechados? O incentivo ao home office continuará e será tendência, modificando essas partes da cidade? Na Avenida Paulista, em dezembro de 2019, a taxa de vacância para imóveis corporativos era de 10,7%. Subiu para 14,4% no início de 2020 e 17% no fim de 2021. A transformação de imóveis corporativos em prédios de uso misto pode ser uma solução, que certamente mudará o perfil da cidade.

Artigo do The Economist, publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 11 de fevereiro de 2022, comenta que as cidades costumam se recuperar das crises (Jornal O Estado de São Paulo, 2022Jornal O Estado de São Paulo. (2022, 11 de fevereiro). Grande São Paulo tem 132 mil imóveis em áreas de risco alto e muito alto (p. A18). São Paulo.). Após o grande incêndio de Londres destruir a maior parte da cidade em 1666, normas de segurança contra fogo foram criadas. Trocou-se madeira por tijolo, as paredes ficaram mais grossas, as ruas mais largas. Quando o cólera se espalhou pelos EUA, em 1895, Nova York e outras cidades criaram redes de esgoto e parques públicos, assim como em Paris e outras cidades da Europa. As áreas urbanas atualmente enfrentam outro tipo de problema. Como o retorno em massa aos escritórios ainda é incerto e o home office se estabeleceu como alternativa, a pandemia suscitou debates em torno do futuro das áreas comerciais. Regiões dos principais centros financeiros sofrem com as consequências do êxodo dos escritórios. A maior parte do trabalho que era realizado neles migrou para as casas, ou para centros de co-working próximos aos domicílios dos empregados. A pandemia se arrastou por 2022. Qual será o futuro dos distritos comerciais urbanos? Segundo os autores do artigo do The Economist, no mundo todo escritórios desocupados representam 12% do total. Em Londres, 18% estão vazios. Em Nova York, são quase 16%. Tradicionalmente formando a maior parte das carteiras de imóveis comerciais nos EUA, os escritórios representaram menos de um quinto das transações em 2021. Escritórios vazios também impactam o sistema de transporte, provocam queda de receitas ficais, fechamento de pontos de apoio, como lanchonetes, bares e restaurantes, menos movimentação no comércio do entorno. Ruas vazias, placas de aluga-se e vende-se. Restaurantes, cafés e cabelereiros fecharam as portas.

Os bairros comerciais estão adotando estratégias de defesa, como torná-los mais mistos. Em Cingapura, planejaram-se mais ciclovias e ruas exclusivas de pedestres. Paris planeja transformar os estacionamentos de La Défense em trecho final de entrega de produtos. Aqui no Brasil, em fevereiro de 2022, o Senado aprovou uma lei que permite que dois terços dos condôminos de um prédio podem decidir sobre a mudança de perfil do edifício. O setor imobiliário defende poder transformar os prédios corporativos em mistos. O projeto de lei ainda vai para a Câmara e, se aprovado, precisa de sanção presidencial. Trata-se de medida que pode representar uma renovação das áreas comerciais e uma mudança oportuna no perfil urbano. Há tempos os urbanistas pregam as vantagens de uma cidade com maior mistura de usos.

De outro lado, com o aumento de pobreza e da desigualdade social, marcas físicas desta degradação urbana aparecem ainda mais fortemente. À estrutura metropolitana já complicada em 2019 agregam-se mais moradores em situação de rua. Dados do Censo de População de Rua (São Paulo, 2020São Paulo. Prefeitura. (2020). Assistência e Desenvolvimento Social. Pesquisa Censitária da População em Situação de Rua; caracterização socioeconômica da população em situação de rua e relatório temático de identificação das necessidades desta população na cidade de São Paulo. São Paulo: Qualitest.), feito entre outubro e dezembro de 2021, mostraram que 31.884 pessoas eram sem-teto na cidade de São Paulo, com aumento de 31% em relação ao censo anterior, de 2019, feito na pré-pandemia (Folha de São Paulo, 24 de janeiro de 2022, p. B1; Jornal Folha de São Paulo, 2022aJornal Folha de São Paulo. (2022a, 24 de janeiro)- Hiperverticalização chega às favelas de São Paulo, onde lajes se sobrepõem (Caderno Cotidiano, p. B1). São Paulo.). Em algumas avenidas paulistanas, o canteiro central é uma fila de tendas sem fim. A ocupação de áreas de risco aumentou também em todos os municípios da Grande São Paulo. Publicação do Instituto Geológico, sem considerar a capital, coloca que mais de 132,3 mil imóveis estão em áreas de risco classificadas como alto ou muito alto risco, sobretudo em Embu, Franco da Rocha, Francisco Morato, Caieiras, na sub-região Norte. Além destes, municípios com número absoluto de imóveis em áreas de alto e muito alto risco são Santo André (17,5 mil imóveis), Guarulhos (15,7 mil), São Bernardo do Campo (15,1), Mauá e Mogi das Cruzes (ambos com 10,4 mil), Itapevi (8,2 mil) e Itaquaquecetuba (7,4 mil) (Jornal O Estado de São Paulo, 1 fevereiro de 2020, p. A19).

E, como já foi dito, desde os anos 1970, a população pobre tem buscado, na falta de uma moradia financiada pelo Estado ou mesmo na dificuldade da compra de um lote, mesmo periférico, e posterior autoconstrução, soluções alternativas. E a favela é a que aparece com maior intensidade, surgindo como expressão física máxima da segregação.

A metrópole e as favelas

Os habitantes da favela crescem tanto na capital como nos outros municípios metropolitanos. A metrópole cresce de forma fragmentada, com condomínios fechados, shoppings, hipermercados de um lado, e, de outro, favelas e ocupações, utilizando áreas rejeitadas pela atividade imobiliária formal. E mesmo a atividade imobiliária formal vem se modificando, com lançamentos verticais variando entre studios e apartamentos de luxo, próximos às estações de metrô. Favelas se dispersam nos municípios metropolitanos, deixando de ser característica apenas da cidade polo. Se, em 2010, 24 dos 39 municípios metropolitanos apresentavam favelas, em 2019 o número subiu para 31. Os domicílios metropolitanos cresceram, entre 2010 e 2019, a uma taxa anual de 1,11%, enquanto as casas em favelas cresceram 4,23% ao ano, no mesmo período. A expansão vertical nas favelas de algumas cidades da metrópole é visível. A última estatística de verticalização nesse tipo de assentamento é de 2010, mas um olhar já mostra que estão cada vez mais ocupadas por pequenos prédios. E a verticalização reduz o acesso à insolação e ventilação naturais, sobretudo nos pavimentos térreos. Em 2010, 62,29% dos domicílios favelados na metrópole tinham dois pavimentos ou mais.

A Região Metropolitana de São Paulo apresentava, em 2010, a maior concentração de favelas do Brasil, com 1.703 aglomerados (27% do total de favelas brasileiras) e população favelada de mais de 2 milhões de pessoas (19% da população favelada brasileira). Apenas as cidades de São Paulo, Guarulhos, Osasco e Diadema possuíam, no ano 2000, 938 favelas – cerca de um quarto das favelas do País. Em 2010, estes quatro municípios contavam com 1.348 aglomerados, 21% do total de aglomerados no Brasil. Em 2019, estes mesmos quatro municípios (São Paulo, Guarulhos, Osasco e Diadema) contabilizaram 640.988 casas em favelas, 74% das casas faveladas da metrópole. Por sua vez, a Região Metropolitana de São Paulo, com um total de 866.177 unidades habitacionais favelas, representa 16,89% das unidades em favelas no Brasil, em 2019.

Conforme mostra a Tabela 5, a proporção de domicílios favelados nos municípios periféricos vem aumentando desde 1991. Assim, esta proporção era de 5,95% em 1991, alcança 9,23% em 2000, chega a 9,58% em 2010 e a 11,35% em 2019. A taxa de crescimento na capital foi enorme: 18% do crescimento absoluto das casas no Município de São Paulo foi devido ao crescimento das unidades em favela no período 2010-2019 e 24% na década 2000-2010. Nos municípios periféricos, o crescimento de domicílios entre 2010 e 2019 é integrado pelo aumento de 95.533 unidades faveladas, o que representa 21,24% do crescimento do parque domiciliar ocorrendo em assentamentos favelados. Embora a favelização esteja atingindo os municípios da periferia metropolitana, na última década a concentração relativa aumentou na capital. Se, em 1991, 61% das unidades de moradia em favela estavam na capital, esta proporção desce para 55% em 2000. Mas torna a subir para 60% em 2010 e para 61% em 2019. Na década de 1990, a taxa de crescimento dos domicílios favelados nos municípios periféricos era quase o dobro da taxa do município da capital. Na primeira década deste século, ocorreu o inverso: a taxa dos periféricos, de 2,49% ao ano, foi 64% da taxa da capital. Nos anos 2010, novamente a taxa dos periféricos cresceu para 3,78% anuais, mais de 80% da taxa de crescimento dos domicílios favelados na capital.

Tabela 5
- Região Metropolitana de São Paulo: Domicílios totais e favelados, 1991 a 2019

Entre os 39 municípios metropolitanos, incluindo São Paulo, 24 apresentam favelas no seu tecido urbano. Em alguns municípios da metrópole, o percentual de domicílios favelados é grande, superior a 10%: Mauá (20,04% em 2010 e 22,85% em 2019), Diadema (20,97% em 2010 e 20,55% em 2019), São Bernardo do Campo (20,04% em 2010 e 18,15% em 2019), Taboão da Serra (11,02% em 2010 e 11,95% em 2019), São Paulo (11,42% em 2010 e 12,91% em 2019) e Embu (13,14% em 2010 e 14,92% em 2019).

Dados do Levantamento do IBGE para o Censo de 2020 sobre favelas, realizado em 2019 (IBGE, 2020Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. (2020). Aglomerados subnormais 2019: classificação preliminar e informações de saúde para enfrentamento à COVID-19. Rio de Janeiro: IBGE. Recuperado em 14 de setembro de 2021, de https://biblioteca.ibge.gov.br/ visualizacao/livros/liv101717_notas_tecnicas.pdf
https://biblioteca.ibge.gov.br/ ...
), mostra o grande crescimento dos domicílios favelados na metrópole: se, em 2000, o número de casas faveladas na Região Metropolitana de São Paulo era 416.143, em 2019 esse número subiu para 866.177, representando 12,26% do total de domicílios (Tabela 7).

Tabela 7
- Região Metropolitana de São Paulo: taxas de crescimento da população, domicílios e áreas faveladas, 2000 a 2019, por sub-região

A maior proporção de domicílios faveladas ocorre na sub-região Sudeste, com mais de 15% de suas unidades de moradia em favela. No Polo, a proporção alcança 12,91%. Mas o percentual de casas em favelas é significativo e crescente em todas as sub-regiões da metrópole (Tabela 6), mostrando o incremento deste tipo de assentamento no tecido metropolitano.

Tabela 6
- Região Metropolitana de São Paulo: Domicílios totais e favelados, 2000 a 2019

Segundo dados do MapBiomas (2021)MapBiomas. (2021). Área urbanizada nos últimos 36 anos. Recuperado em 10 de novembro de 2021, de https://mapbiomas-br-site.s3.amazonaws.com/MapBiomas_Infra_Urbana_Novembro_2021_04112021_OK_Alta.pdf
https://mapbiomas-br-site.s3.amazonaws.c...
, entre 1985 e 2020, houve um aumento de 100 mil hectares em áreas consideradas como favelas no Brasil. Essa superfície equivale a 3,1 vezes a cidade de Salvador, na Bahia. Para o estado de São Paulo, a expansão da área urbanizada formal foi de 327.601 hectares e de 9.020 hectares para a área informal, ou seja, 2,7% do incremento de área no período foi pelo crescimento da área favelada.

A área ocupada pelas favelas na metrópole de São Paulo cresceu, entre 2000 e 2010, de 10.108,9 hectares para 10.682,0 hectares. Em 2019, foi estimada em 11.377,5 hectares. Como a população favelada da metrópole aumentou 3,93% ao ano entre 2000 e 2019, e a área aumentou à taxa bem menor, de 0,59% anual, há indicação de crescente adensamento e verticalização nas favelas metropolitanas. O aumento de área de 1.196,59 hectares em 19 anos representa um acréscimo de 11,75% na área identificada no início do século, em 2000.

Embora a sub-região Norte não apresente a maior proporção de domicílios favelados, possui a maior taxa de crescimento domiciliar nos últimos 19 anos: 11,22% ao ano no período. Mostra também o maior crescimento em área favelada, de 1,08% anual. Lembrando, era a sub-região com maior proporção de domicílios pobres em 2010, com 60% dos domicílios com renda domiciliar mensal até dois salários-mínimos. A área ocupada por favelas na sub-região Norte foi de 424,22 hectares em 2000, passando a 520,25 hectares em 2019, um aumento de 96 hectares em 19 anos, 23% da área em 2000. Trata-se de uma região montanhosa, com parte considerável localizada em área de proteção ambiental, sujeita a deslizamentos e de difícil urbanização.

As densidades demográficas nos assentamentos favelados estão aumentando em todos os segmentos espaciais. No Polo e no Sudeste, apresentam densidade superiores 300 hab/ha, tornando complicado o processo de urbanização sem remoção de famílias. Na sub-região Norte, a densidade ainda é menor e as favelas parecem ser mais recentes, embora a topografia seja um empecilho (Tabela 8).

Tabela 8
- Região Metropolitana de São Paulo: densidades demográficas nas favelas, 2000 a 2019, por sub-região

Sumarizando, a estrutura metropolitana mostra agora ainda mais sinais de fragilidade, com aumento de favelas em todas as sub-regiões, sobretudo na sub-região Norte, onde a taxa de aumento domiciliar das casas em assentamentos subnormais/favelas foi maior que 15%. Na capital paulistana, lajes corporativas parcialmente abandonadas, comércios fechados, presença de sem-teto e aumento das favelas (quase 13% das casas da cidade estão em área favelada) atestam as piores condições do tecido urbano, apesar dos esforços dedicados à urbanização de favelas. Alguns dados mostram os resultados desses esforços: no Censo Vizinhança USP, publicado em 2022, com dados dos levantamentos de duas favelas próximas ao campus oeste (San Remo e Sem-Terra) e duas favelas junto à USP Leste (Keralux e Jardim Guaraciaba), percebeu-se que, nas favelas vizinhas à USP Leste, 98,7% dos domicílios estavam ligados à rede de água da SABESP e 84,7% à rede pública de esgotamento sanitário (USP, 2023Universidade de São Paulo – USP. Instituto de Estudos Avançados. (2023). Censo de Vizinhança USP. São Paulo. Recuperado em 14 de setembro de 2021, de https://censovizinhanca.iea.usp.br/
https://censovizinhanca.iea.usp.br/...
). Na vizinhança do campus no Butantã, a favela San Remo tem 92,3% dos seus domicílios ligados à rede pública de água e 72,6% à rede de esgotamento sanitário, enquanto a Sem-Terra, para os dois índices, mostra a proporção de 79,6% dos domicílios. Já o Censo de 2010 apontava uma grande melhora sanitária nos domicílios favelados da cidade de São Paulo, com 94% usando água da SABESP e 67,4% com esgotamento sanitário pela rede pública. É provável que as favelas recentes, menos estruturadas, apresentem unidades domiciliares e infraestrutura mais precárias. Alguns trabalhos, analisando as favelas recentes na metrópole, mostraram que entre estas favelas recentes a precariedade era dominante: 43% das favelas eram constituídas majoritariamente por madeira, e 72% do material predominante nos telhados era fibrocimento (Senger, 2019, pSenger, S. (2019). Favelas recentes na metrópole de São Paulo: um olhar sobre o surgimento e a territorialidade (Dissertação de mestrado). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo.. 48). Senger trabalhou com 117 favelas em 2017 que não existiam em 2010, localizadas, prioritariamente, nas áreas mais periféricas da conurbação urbana de São Paulo.

A zona que mais apresentou concentração de favelas recentes foi a Leste, sobretudo em Mauá, Itaquaquecetuba, Ferraz de Vasconcelos e Suzano. Nota-se também uma considerável concentração de novos núcleos na região oeste da capital e municípios próximos − Carapicuíba, Embu das Artes, Osasco e Taboão da Serra, totalizando 27 novas favelas nestas localidades. Outra observação relevante se refere aos 19 aglomerados de favelas que surgiram a norte, localizando-se muito próximos ao limite com a Serra da Cantareira, tanto no município de São Paulo como em Guarulhos. (Senger, 2019, pSenger, S. (2019). Favelas recentes na metrópole de São Paulo: um olhar sobre o surgimento e a territorialidade (Dissertação de mestrado). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo.. 44).

Vale a pena notar também o aumento da densidade demográfica das favelas em todas as regiões da metrópole, o que vai ser desafiante para projetos de urbanização, demandando novo aporte de unidades construídas e verticalizadas. Uma nova onda de favelamento nos anos 2020 está recriando favelas precárias de madeira. Dados preliminares indicam o aumento desse fenômeno na capital paulista: novos assentamentos ressurgem, primeiro com barracas de lona, depois, de madeira, e só posteriormente são substituídos por casas de alvenaria. Em 2020, a pandemia trouxe novas variáveis para um tecido urbano já estruturalmente inadequado. Aumento do desemprego, abandono de lajes comerciais e fechamento de postos de serviços e lojas trouxeram maior desigualdade e pobreza. O aumento das favelas e dos moradores de rua refletem esta desigualdade crescente, que já vigorava antes da pandemia e por esta foi exacerbada. A favela emerge como uma das faces mais perversas da segregação.

Considerações finais

Os dados apresentados permitem apontar aumento significativo das favelas em toda a Região Metropolitana de São Paulo, tanto no polo como nos municípios periféricos. O estudo da estrutura socioespacial até 2010 indicou que o padrão “mancha de óleo” ainda persiste, com espaços da elite se concentrando na porção sudoeste do município central e alguns enclaves em outros segmentos territoriais. Mas o modelo centro-periferia ainda é explicativo, com espaços populares nos limítrofes do polo e nos municípios periféricos. E as favelas, expressão espacial dessa segregação da pobreza, alocam-se preferencialmente nos espaços populares, rejeitados pelo mercado imobiliário e onde encontram terrenos para ocupar. Se o total de domicílios favelados nos municípios periféricos foi de 189.209 em 2000, esse total subiu para 241.672 em 2010 e para 336.254 em 2019. Em 2010, 24 dos municípios metropolitanos tinham favelas; em 2019, este número sobe para 31. Ou seja, a favela é fenômeno que aparece em praticamente todos os municípios da metrópole.

Em muitos municípios metropolitanos, o percentual de casas faveladas é superior a 10%, e subiu entre 2010 e 2019. Por exemplo: em Mauá, 20,04% das unidades domiciliares eram faveladas em 2010, aumentando para 22,85% em 2019; em Embu, 13,14% em 2010 e 14,92% em 2019. Observa-se também conurbação de áreas de favelas entre municípios periféricos: áreas de ocupação irregular encontram-se nos limites municipais. As áreas populares crescem inclusive pelo crescimento e adensamento de favelas, e pelo surgimento de novas, mais precárias, reforçando o processo de segregação anterior. Embora a pesquisa do IBGE de 2019 mostre, com razoável grau de segurança, o crescimento e a localização espacial das favelas, devemos lembrar que apenas os dados definitivos do Censo vão permitir um dimensionamento mais apurado e também a caracterização desses domicílios e da população que lá habita.

Declaração de disponibilidade de dados

O artigo se concentra em contribuições teóricas ou metodológicas e não há bases de dados relacionadas, de forma que foi dispensado o depósito no SciELO DATA, conforme política editorial da revista.

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Seção Especial: Desigualdades Urbanas e Segregação (Editoras responsáveis: Joana Barros, Agnes Silva de Araujo e Flavia F Feitosa)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2023
  • Aceito
    03 Abr 2024
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