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TRANScidade: a caminhografia urbana no centro de Pelotas/RS

TRANScity: the urban walkgraphy in the center of Pelotas/RS

Resumo

O artigo explora a concepção de "TRANScidade" por meio da prática de caminhografia urbana no centro de Pelotas/RS, com o objetivo de proporcionar uma nova perspectiva do centro da cidade, redefinindo-o como um "corpocidade-TRANS" inovador. A abordagem é guiada pela teoria queer e suas micro resistências inerentes, que desafiam as normas preestabelecidas ao mapear a vida cotidiana urbana e desestabilizar certezas, abrindo espaço para novas nuances e engajamentos urbanos. Nesse sentido, filosofia da diferença atua como intermediária, orientando a transformação dos conceitos convencionais da experiência urbana. A investigação revela diversas facetas TRANS no centro da cidade, onde a dispersão revolucionária coexiste com o centro histórico tradicional, a troca extensiva se mescla ao comércio intensivo e a estruturação duradoura se entrelaça com o fluxo de passageiros. O artigo é embasado nas "escritas coletivas" e nos registros gerados durante as explorações à pé. A cartografia resultante desse percurso emana poder e intensidade, demonstrando um alto grau de TRANScidade. Isso TRANScende o conhecimento atual e o propósito exato das abordagens puramente físicas e funcionais aplicadas à gestão urbana, mas ecoa vividamente na pulsação da cidade, com uma intensidade que repercute nas vibrações da vida e da morte urbanas.

Palavras-chave:
TRANS; Caminhografia; Centralidade; Pelotas/RS; Corpocidade

Abstract

The article explores the concept of "TRANScity" through the practice of urban walkgraphy in the center of Pelotas/RS. The aim is to provide a new perspective on the city center, redefining it as an innovative "TRANS-city-body". The approach is guided by queer theory and its inherent micro resistances, challenging pre-established norms by mapping everyday urban life and destabilizing certainties, creating space for new urban nuances and engagements. The philosophy of difference acts as an intermediary, guiding the transformation of conventional concepts of urban experience. The investigation reveals various TRANS facets in the city center, where revolutionary dispersion coexists with the traditional historical center, extensive exchange blends with intensive commerce, and enduring structuring intertwines with passenger flow. The article is grounded in "collective writings" and records generated during pedestrian explorations. The resulting cartography from this journey exudes power and intensity, demonstrating a high degree of TRANScity. This TRANScends current knowledge and exact purpose, going beyond the purely physical and functional approaches applied to urban management, but resonates vividly in the city's pulse, with an intensity that echoes in the vibrations of urban life and death.

Keywords:
TRANS; Walkgraphy; Centrality; Pelotas/RS; Corpocity

Disparador (introdução)

Um grupo de estudantes e pesquisadores, arquitetos e urbanistas, artistas, geógrafos etc. resolvem percorrer o centro da cidade de Pelotas/RS, para conhecê-lo, senti-lo, experimentá-lo em caminhografias urbanas1 1 Este artigo é parte das reflexões e resultados provenientes do projeto de pesquisa "Caminhografia Urbana", financiado pelo CNPq e FAPERGS. Destaca-se a participação da caminhografia realizada na disciplina de "Caminhografia Urbana" do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PROGRAU) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Ver mais em: https://wp.ufpel.edu.br/caminhografiaurbana/. , na intenção de cindir com identidades fixas e hegemônicas que se tem sobre essa dita “centralidade urbana”. Desafiando a lógica da domesticação na arquitetura e na cidade, tal como analisado por Fernando Fuão (2023)Fuão, F. (2023). Arquitetura e Domesticação I. Arquitextos, ano 23 (272.00). Recuperado em 31 janeiro, 2024, de https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/23.272/8703
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, buscamos intervir na relação entre natureza e sociedade de maneira que respeite nossas práticas e valores, a fim de superar esse paradigma.

Muitas pesquisas vêm concentrando seus esforços em análises de centralidade, de centros históricos e culturais, numa perspectiva espacial que privilegia a forma urbana (Lamas, 1993Lamas, J. M. R. G. (1993). Morfologia urbana e desenho da cidade. Sl: Fundação Calouste Gulbenkian.), em detrimento das demais questões presentes nesses locais, fixando pontos e áreas nos mapas e nas sociedades. Isso acontece por décadas, desde os primeiros estudos com base na morfologia urbana até os mais recentes que se utilizam de novas ferramentas de inteligência tecnológica, sempre com exceções. Exceções, muitas vezes, minorizadas pelo campo teórico e crítico da Arquitetura e Urbanismo.

Observamos que, ao lidar com o planejamento urbano ou projetar espaços urbanos, os arquitetos e urbanistas frequentemente priorizam o objetivo em detrimento do subjetivo. Não se trata aqui de oposições entre subjetividade e objetividade, entre aproximação e distanciamento, mas de posições, de composições e coexistências na contemporaneidade que permitam a movimentação nas relações. Sentir a cidade de longe – por mapas distantes – ou de perto – caminhando –, são posicionamentos e perspectivas necessárias e que podem sobrepor-se imanentemente.

Baruch Spinoza [1677]/(2009, p. 12) introduz a ética da imanência afirmando que: “Por causa de si compreendo aquilo cuja essência envolve a existência, ou seja, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existente”. Gilles Deleuze (2002)Deleuze, G. (2002). Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta., em seus estudos sobre Spinoza, conta que tudo o que existe compõe um plano de imanência composto por conexões e relações. Cada plano, ou mapa, traz as suas escolhas e desejos, seleções, movimentos etc. – variações. Todos esses problemas e soluções habitam um mesmo plano de imanência, mapas “do longe” e caminhografias “do perto”, e é a partir desse plano que conseguimos orientar o caos-centro-cidade neste artigo.

Ainda, para a filosofia, e para a Arquitetura e Urbanismo, pensar é seguir essa linha de fuga das múltiplas realidades da mesma existência. Pensar sobre o centro da cidade é como pensar nas ondas do mar ou nas areias do deserto, sempre em movimento, mas sustentados por um plano de imanência – o centro.

Em conformidade com Deleuze & Parnet (1998, pDeleuze, G. & Parnet, C. (1998). Diálogos. São Paulo: Escuta.. 47), a linha de fuga é interpretada como uma desterritorialização, um conceito que, segundo os autores, os franceses podem não compreender completamente. Enquanto reconhecem o ato de fugir como algo inerente a todos, acreditam erroneamente que fugir implica em afastar-se do mundo, associando-o a elementos místicos ou artísticos, ou até mesmo como uma atitude covarde ao escapar de compromissos e responsabilidades. Contrariamente, Deleuze & Parnet afirmam que fugir não representa uma renúncia às ações, sendo, na verdade, uma prática extremamente ativa. Eles destacam que fugir é o oposto do imaginário, envolvendo não apenas o ato de se distanciar, mas também de induzir a fuga de algo, como um sistema que se desmantela, traçando assim uma linha, ou várias linhas, configurando toda uma cartografia.

Centro é substantivo masculino, é o ponto que está no meio da figura geométrica perfeitamente traçada. O centro da cidade é em conceito mais geral reconhecido como o centro urbano, uma região que ativa a cidade, onde se concentram atividades econômicas e culturais; quando experimentamos o centro da cidade de Pelotas, descobrimos que ele é múltiplo e coexistente em muitas camadas e planos.

Quando caminhamos pelo "centro da cidade", a filosofia, a geografia e o urbanismo avançam em conjunto, convergindo em um único contexto, traçando mapas enquanto percorrem, experimentam, contemplam e interagem com o corpo, que se encontra imerso e vibrátil.

Sobre essas coexistências no centro da cidade é que nos propusemos a pesquisar; sobre as relações com os sentidos e sentimentos perpassados pelo corpocidade quando caminhográfa. Trazendo à tona questões que nos impulsionaram: Como? E o que encontramos na caminhada por esse lugar-centro já continuamente descrito pela história da arquitetura e do urbanismo oficiais? O objetivo foi descobrir e criar, através da caminhografia urbana, uma outra leitura desse centro da cidade, de um novo-velho corpocidade-TRANS2 2 A palavra TRANS foi grafada em letras maiúsculas no decorrer de todo o texto, como palavra que nomeia um ser individual e específico, particularizando-o dentro da sua espécie e distinguindo-o dos restantes. Precisamos “gritá-la” para os arquitetos e urbanistas. .

No processo da caminhografia urbana pelo centro de Pelotas, foram dizibilizadas outras nuances de TRANScidade que coexistem entre o atual e o ideal, vivenciadas e agenciadas com a filosofia Deleuze-Guattariana (conceitos de lisos-estriado, intensivo-extensivo e máquina de guerra-Estado), evidenciando: a dispersão revolucionária+centro histórico tradicional, a troca extensiva+comércio intensivo e o estriado duradouro+fluxo de passageiros.

Centro-Corpocidade-TRANS (revisão da literatura)

Muito já foi dito sobre a cidade, no entanto, é necessário desafiar as ideias estabelecidas e colaborar na reflexão conjunta sobre o centro, o conceito de corpocidade e o TRANS, estabelecendo conexões e promovendo diálogos coletivos. Ao exercitar o pensamento sobre centro-corpocidade-TRANS, é essencial unir expressão e conteúdo, intervindo ativamente na discussão, experimentando-a e conectando-a diretamente à produção de subjetividades. Tais subjetividades desenvolvem-se em contínua mutação e em fluxo ininterrupto de sensações, formas de existência, maneiras de viver e assim por diante.

A filosofia, a partir de Foucault (2000)Foucault, M. (2000). As palavras e as coisas. 8a. ed. São Paulo: Martins Fontes., descentraliza o sujeito moderno decretando a sua morte; o sujeito autônomo e livre, controlado, que constrói o mundo e a identidade, não existe mais. Cai por terra a tríade representação-significado-objeto e emergem os processos de subjetivação, no sentido do “si”. Toda essa genealogia do poder, agora diluído, também acontece no centro da cidade, movimentando todas essas estruturas centralizadoras e disciplinadoras – as quais são físicas, como as ruas, as praças, os edifícios, ou simbólicas, como as normas sociais, os valores culturais e a mídia.

Félix Guattari & Suely Rolnik (1999)Guattari, F. & Rolnik, S. (1999). Micropolítica: Cartografias do Desejo. Petrópolis: Vozes. apontam para o descentramento do sujeito, já morto anteriormente por Michel Foucault, não mais uma cidade representada por um sujeito autônomo, centrado e idealizado, mas uma trama de signos e objetos organizados para formar um gosto, uma moda, um lugar etc. O fluxo contínuo de sensações, sensibilidades, vivências, modas, costumes etc. – coletivos e individuais – constituem a produção da subjetividade, engendrada da trama urbana do centro da cidade: individual, coletiva e institucional.

Segundo as concepções de Félix Guattari, a produção de subjetividade se configura como um processo dinâmico e em constante TRANSformação. Guattari propõe uma visão da subjetividade como algo fluido e em constante mutação, distanciando-se da ideia de uma entidade estática. De acordo com suas reflexões, a subjetividade não é predefinida, mas é ativamente construída em interação com o meio ambiente, as relações sociais e as influências culturais. Em suas palavras, "a subjetividade não é um domínio isolado, mas sim um domínio coletivo que atravessa e constitui todos os setores da existência" (Guattari, 1992Guattari, F. (1992). Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Ed. 34.). Assim, Guattari destaca a interdependência entre fatores individuais e coletivos na formação da subjetividade, enfatizando a importância das interações sociais, culturais e políticas nesse processo contínuo de construção identitária.

Nessa criação, precisamos expor algumas noções sobre: centro, corpocidade e TRANS.

Centro

O centro e a centralidade sempre foram conceitos muito discutidos e aplicados em análises urbanas, principalmente de metrópoles e de cidades em crescimento, tanto na Arquitetura e Urbanismo, como na Geografia. Numa primeira aproximação, o centro é o centro econômico, histórico, político, administrativo, geralmente localizado no núcleo ou na área central. Nos mais variados estudos, o centro é definido a partir de níveis de concentração de pessoas, equipamentos e atividades econômicas.

Graficamente, o centro é demarcado por um ponto ou por uma circunferência que delimita uma superfície e determina a abrangência desse centro numa relação de escala. Historicamente, muitas cidades têm no seu centro espécies de vazios para encontro de pessoas, como praças, largos, áreas comerciais e mercados, sendo originalmente monocêntricas, com as primeiras construções localizadas ao redor desse vazio.

A partir do período do Império Romano, com o crescimento das cidades, os centros urbanos se multiplicaram. Atualmente, impulsionados pela máquina do neoliberalismo econômico, esses centros passaram por sucessivas adaptações, mutações e encadeamentos, levados a cabo por movimentos econômicos, desde a cidade industrial até os dias atuais (Mumford, 1998Mumford, L. (1998). A Cidade na História. 4a. ed. São Paulo: Livraria Martins Fontes. Osservatorio Nomade. (s.d.). Recuperado em 31 janeiro, 2024, de https://www.osservatorionomade.net/.
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).

Nesse contexto neoliberal, os centros urbanos estão sendo TRANSformados em espaços de consumo e entretenimento, com as lojas de varejo, os restaurantes e os bares tornando-se cada vez mais presentes. Tais mudanças têm um impacto significativo na sociedade, uma vez que podem afetar a mobilidade, a segurança, a qualidade de vida e a identidade das cidades.

Raquel Rolnik (1988)Rolnik, R. (1988). O que é cidade? (coleção primeiros passos). São Paulo: Editora Brasiliense. descreve as cidades como um imã, um centro, uma centralidade que demarca um lugar de poder e produz símbolos e imaginários. Essa atração e repulsão pelo centro ocorre desde a Ágora da Grécia antiga, perpetuando-se em centros econômicos, religiosos, culturais e cívicos. Atualmente, com as novas tecnologias digitais, o centro se complexificou e vem se esfacelando enquanto símbolo, materialidade e lugar, mas ainda é quase inabalável enquanto poder repressor (Rolnik, 1988Rolnik, R. (1988). O que é cidade? (coleção primeiros passos). São Paulo: Editora Brasiliense.).

Os centros das cidades caracterizam-se teoricamente pelas dinâmicas, atratividades, fluxos; geralmente, resultando em densidades mais intensas do que nas periferias do centro (Castells, 2000Castells, M. (2000). A Questão Urbana. 4. ed. São Paulo: Ed. Paz e Terra.). Também o termo-medida centralidade determina a oferta ou a combinação de serviços atratores, seja um centro comercial, financeiro, cultural, administrativo etc.

De acordo com William Ribeiro da Silva (2012)Silva, W. R. Da (2012). Cento e Centralidade: Uma discussão conceitual. Formação (Online), 1(8). Recuperado em 31 janeiro, 2024, de https://doi.org/10.33081/formacao.v1i8.1209
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, a perspectiva da teoria de estrutura urbana apresenta o centro como fixo e possuidor de poder de concentração, como defendido pela Escola de Chicago (Ecologia Urbana). Em contrapartida, a Escola Francesa clássica justifica a existência do centro a partir de sua gênese histórica e das características peculiares de cada território, rompendo com a noção de um modelo central padrão. A partir dos anos 60, essas teorias evoluíram em direção à reestruturação urbana e Henri Lefebvre [1970]/(1999) propôs uma abordagem que relaciona as formas urbanas com os indivíduos, descentralizando as centralidades tradicionais.

Para Lefebvre [1970]/(1999)Lefebvre, H. [1970]/(1999). A Revolução Urbana. Belo Horizonte: UFMG. Livrarioteka. (s.d.). Facebook. Recuperado em: https://www.facebook.com/Livrarioteka.
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, a noção de urbano representa uma acumulação de todos os conceitos, elementos naturais, produtos industriais, técnicas, riquezas e realizações culturais. Essa abrangência engloba não apenas os objetos tangíveis, mas também as formas de vida, situações, modulações e rupturas do cotidiano. Nessa perspectiva, a urbanidade TRANScende as meras dimensões físicas e incorpora a complexidade das interações humanas e culturais, configurando-se como um fenômeno rico e multifacetado.

Vários estudos, como as obras de Michel de Certeau [1980]/(2009)Certeau, M. de. [1980]/(2009). A invenção do cotidiano – 2. Morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes. e Jane Jacobs [1961]/(2000)Jacobs, J. [1961]/(2000). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: WMF Martins Fontes., têm investigado a relação entre o centro urbano e outras manifestações urbanas, explorando como as práticas cotidianas das pessoas, a produção social do espaço e a vitalidade das áreas urbanas influenciam a dinâmica do centro da cidade. Abordando aspectos sociais, econômicos e culturais, essas pesquisas destacam a interconexão entre o centro e as TRANSformações urbanas mais amplas, apresentando uma visão mais abrangente das experiências urbanas contemporâneas.

Fernando Fuão, em “@capital”, amplia e problematiza a prioridade dos estudos de Arquitetura e Urbanismo nas metrópoles, capitais e centros, em detrimento das periferias. “Estar imerso na capital é estar imerso no mundo do capital” (Fuão, 2022, pFuão, F. (2022). @capital. Pixo - revista de arquitetura, cidade e contemporaneidade, volume 6 (número 20), 20-51. Recuperado em 31 janeiro, 2024, de https://doi.org/10.15210/PIXO.V6I20.21992
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.23). Esquecemos do local, do bairro, da vizinhança e pensamos num centro catalisador, onde tudo deve voltar-se para ele. O centro como a clareira moderna, centro-luz, periferia-escuridão.

Mas será que, na contemporaneidade, ou sempre, dentro do centro, existem outras manifestações? Talvez, além de ler o centro da cidade em escalas ​​intra e interurbanas, as experiências também possam acontecer em variação TRANSurbana, não sendo somente uma questão de forma urbana, mas de TRANSformação.

Corpocidade

Partimos do conceito de corpo pensado por Gille Deleuze, a partir do corpo-texto, e da criação de conceitos que deveriam ser o cerne da filosofia, composto pelo seu emaranhado de ramificações, atravessamentos e complexidades. Deleuze vai partir de três ideias para a noção de corpo, na obra “O Anti- Édipo” (Deleuze & Guattari, 1976Deleuze, G. & Guattari, F. (1976). O anti-édipo. Rio de Janeiro: Imago.): a primeira diz respeito ao corpo biológico, ou corpo-humano, como um padrão de funcionamento a ser seguido e imitado – o bom funcionamento do corpo saudável; a segunda, com origem também no humano, considera o corpo como tudo que tem uma organização e estrutura de funcionamento, qualquer coisa pode ser um corpo ou fazer parte dele; e a terceira, mais extensiva, considera o corpo como a ocupação de um lugar, tomado no tempo e no espaço, nos sentidos e sensações: uma cama, um dormitório, uma casa, uma cidade. A ideia ganhou corpo. O projeto ganhou corpo. O bairro ganhou corpo. Agora o corpo é consistente, tomou o seu lugar no mundo. Todas essas três ideias-conceito coexistem.

Em "Lógica do Sentido" (1974), DeleuzeDeleuze, G. (1974). Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva. expande a concepção de corpo para abranger todas as suas manifestações concretas, produção e funcionamento. Uma cidade em pleno funcionamento atua como um ímã, exercendo atração e repulsão, magnetizando outros corpos que se conectam a ela, tais como bairros, periferias e ocupações. O corpo completo, que engendra, magnetiza e se desdobra, manifesta-se de forma singular e compartilhada, sempre acompanhado por um corpo sem órgãos.

O corpo sem órgãos é o limite dos órgãos. Ele é o primeiro que ocupa o lugar, o nascimento de uma nova e coexistente forma de vida. É da ordem do desejo, do que ainda está por vir ou acabar. É da ordem da abertura para novos mundos indeterminados e possíveis. O questionamento inspirado por Spinoza (2009)Spinoza, B. [1677]/(2009). Ética. Belo Horizonte: Autêntica. e formulado por Gilles Deleuze (2002)Deleuze, G. (2002). Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta.: O que pode um corpo? O que o corpocidade suporta?

A pista é criar uma corpocidade mais ética do que estética, que experimenta, caminha, não julga ou idealiza o centro da cidade. Voltar os nossos sentidos ao ordinário (Certeau , 2009Certeau, M. de. [1980]/(2009). A invenção do cotidiano – 2. Morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes.) no cotidiano da cidade, como Paola Jacques (2008)Jacques, P. B. (2008). Corpografias Urbanas. Arquitextos, ano 8 (093.07). Recuperado em 31 janeiro, 2024, de https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.093/165
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nomeia a corpografia urbana que é feita pelo/no corpo em movimento na cidade, na busca de micro resistência à espetacularização da contemporaneidade. Corpocidade, talvez um Corpocidade sem órgãos.

A cartografia do "corpocidade" encontra maior afinidade com as disciplinas da geografia e filosofia do que com a história tradicional, marcada por uma estrutura linear de início, meio e fim. Sua conexão é mais estreita com princípios de multiplicidade, simultaneidade e não linearidade. Dessa forma, torna-se viável revisitar o mapa do centro da cidade, incorporando novas sensações, significados, planos, projetos, assim como explorar novas regiões ou universos. Novas TRANScidades.

A cidade e o centro da cidade, segundo Fuão “é o locus da domesticação humana” (2023, p. 1), da sociedade disciplinar – foucaultiana, a sociedade de controle – deleuziana, indo além do bem e do mal, indo além das essencialidades e afirmando o comum, contrapondo modelos, estruturas e formas de produção imortais e violentas. Biopolítica da potência. Nietzschiana da multidão, do nomadismo e da hibridização. Capaz, na sequência traduzida por Alemar Rena, como a possibilidade de formar “assim o uno em multiplicidade e devir” (Rena, 2014, pRena, A. S. A. (2014). Além do bem e do mal: a vontade de potência e a multidão. Lugar Comum (UFRJ), v. 1. Recuperado em 31 janeiro, 2024, de https://revistas.ufrj.br/index.php/lc/issue/view/2083
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. 228).

O urbanista não pode mais ser somente o planejador domesticador, precisa cortar a ordem do falus. Da ordem de falar e mapear a cidade. TRANScidade.

TRANS

Duas ideias de espaço que não são da mesma natureza, o espaço liso e o espaço estriado, mas apresentam correlações e correspondências nada simétricas. Deleuze & Guattari, com origem no músico Pierre Boulez3 3 Pierre Boulez (1925-2016) foi um maestro, pedagogo musical, ensaísta e compositor francês de música erudita. Foi uma personalidade influente no cenário musical e intelectual francês contemporâneo. , que denomina o espaço-tempo liso como aquele que se ocupa sem contar, ao mesmo tempo que o espaço-tempo estriado é o que se conta a fim de ocupar (Deleuze & Guattari , 1997Deleuze, G. & Guattari, F. (1997). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v.5. São Paulo: Ed. 34.). Liso e estriado são um dos poucos conceitos de Deleuze-Guattari diretamente aproximados às grandezas espaço-tempo, tão caras para a ciência e, consequentemente, para Arquitetura e Urbanismo; enquanto no espaço liso temos uma maior potência de desorganização, o espaço estriado é repartido em intervalos. O liso abre-se para longos percursos, o estriado fecha-se em superfícies repartidas mais determinadas.

Vivemos em cidades, sobre superfícies e durações lisas e estriadas, coexistentes e entrecruzadas como nas nuances de deslocamento do centro da cidade de Pelotas. Liso e estriado convivem por toda a parte, a todo momento nas caminhografias. O estriado é dispositivo governo e Estado (métrico), o liso é revolucionário (sentido). Um produz o outro e reproduz o outro, infinitamente, sempre na potência do escorrimento do espaço liso sobre e pelo estriado. Tudo fazendo parte de um jogo urbano, um jogo com o tabuleiro do centro da cidade. O liso TRANSforma-se em estriado e vice-versa.

O prefixo TRANS, do latim, significa “além de”, “para além de”, “o outro lado” ou “o lado oposto”. Também é um termo multilíngue, não sofre variações nas línguas europeias românicas e germânicas (inglês, espanhol, alemão, italiano, francês etc.). Trata-se de um termo “guarda-chuva”, que carrega as palavras TRANSa (tranca, trança), TRANSporte, TRANSbordar, TRANSpassar, TRANSe, TRANSeunte, TRANSferência, TRANSferir, TRANSito, TRANSladar, TRANSação, TRANScorrer, TRANScender, TRANScrever, TRANSformar, TRANSgredir, TRANSigir, TRANSexual, TRANSgênero, TRANSviado, TRANSparência, TRANSpirar, TRANSplantar, TRANSgênico e gordura-TRANS (Cunha , 2010Cunha, A. G. da. (2010). Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 4a. Rio de Janeiro: Lexicon.).

O TRANS é porta para Fernando Fuão, quando analisa a etimologia da palavra porta, “Portar, sair de um lugar ao outro, é por; TRANSportar é sempre posição, um porte, para além” (Fuão, 2016, pFuão, F. (2016). A porta. In: Fuão, F.; Vieceli, A. P. (org.). A Porta, a ponte, o buraco, um orelhão (Querências de Derrida: moradas da arquitetura e filosofia, 5, p. 18-91). Porto Alegre: UFRGS.. 24). As manifestações de cidade, também são formas de controle em suas manifestações, no que entra e sai, no que pode ser TRANSformado. A porta cidade é, na maioria das vezes, orifício, fresta, rasgo que relaciona as distâncias, os mapas, as cartografias etc. Não se abre somente para as forças revolucionárias e opressoras da cidade, mas pode ser TRANScendente, como, por exemplo: os cheiros, os gostos, o frio, o calor, os ventos, o wi-fi etc.

Para Jean Baudrillard (1990), oBaudrillard, J. (1990). La transparencia del mal: ensayo sobre los fenómenos extremos. Barcelona: Anagrama. TRANS, na contemporaneidade, vai além da TRANSexualidade, manifesta-se na simultaneidade das coisas, assim como nas cidades e no urbanismo e seus simulacros. Tudo e a cidade perderam sua ideia original, não tem mais essência e identidade - moral e valores, quando libertados, evocam uma espécie de confusão e desordenamento, caleidoscópico.

Judith Butler (2003)Butler, J. (2003): Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., precursora da teoria queer, “o estranho”, ou daquele que está fora das normas, em que o TRANSgênero é um devir, a partir de Gilles Deleuze; o corpo que teima em repetir-se, mas é TRANS, é movente. Guacira Louro, estudando Butler, conta que: ​​“é um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer como referência; um jeito de pensar e de ser que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade, do 'entre-lugares', do indecidível” (Louro, 2016, pLouro, G. L. (2016). Um corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica.. 7-8).

Paul Beatriz Preciado (2013)Preciado, P. B. (2013). ¿La muerte de la clínica? (vídeo de conferência). Recuperado em 31 janeiro, 2024, de https://www.youtube.com/watch?v=4aRrZZbFmBs
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vai aproximar todo esse pensamento à morte da clínica, relacionando ao texto de Michel Foucault “O nascimento da Clínica", que inaugura e configura normas e poderes disciplinares relacionados às técnicas médicas e de higienização nas cidades – as quais, afetadas pela revolução sexual, pelo aparato neoliberal, agora se organizam muito mais pelo mercado e a mídia, do que pela própria ciência. Tudo está sendo redesenhado pela ciência, pela tecnologia e pelo mercado; segundo Preciado (2014), oPreciado, P. B. (2014). Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual. São Paulo: n-1. corpo e a sexualidade mutante – TRANS – tomam o lugar da fábrica na revolução industrial – fabricação, automação dos sujeitos –, trazendo à tona os minorizados, gays, mulheres, negros etc; resistindo, lutando e criando formas de re-produção de vida em um cruzamento corpoTRANScidade. A caminhógrafa4 4 A caminhógrafa por todo o texto é mulher, mãe da terra, feminina, aquela que renova a humanidade e a vida. A caminhografia urbana é devir-mulher e TRANS. Percebe-se nos grupos de caminhografia urbana uma predominância feminina, LGBTQIA+ e minorias. do centro da cidade dá dizibilidade e desfaz o poder neoliberal contemporâneo. A pergunta é: Como a cidade pode funcionar de outro modo? Quais as suas novas nuances?

Caminhografia no Centro de Pelotas/RS (metodologia)

A caminhografia urbana é um método que surge na academia, através do encontro da cartografia deleuziana (1995) e do caminhar por TRANSurbância (Careri, 2002Careri, F. (2002). Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: Gustavo Gili.). Enquanto o cartografar registra, joga e cria os processos, o caminhar movimenta e desloca esses registros – fotográfico, fílmico, narrado etc. – no tempo e espaço, com os pés no chão, passo-a-passo, em trajetos e esperas para produzir mapas (Rocha & Santos, 2023Rocha, E. & Santos, T. B. Dos (2023). Como é a caminhografia urbana? Registrar, jogar e criar na cidade. Arquitextos, n. 281, ano 24, Recuperado em 31 janeiro, 2024, de https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/24.281/8923.
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).

Conforme Deleuze e Guattari (1995), aDeleuze, G. & Guattari, F. (1995). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v.1. São Paulo: Ed. 34. concepção do mapa é caracterizada por sua natureza aberta, conectável em todas as suas dimensões, passível de desmontagem, reversibilidade e sujeita a modificações constantes. O mapa, segundo os autores, é uma entidade maleável, suscetível a ser rasgada, revertida e adaptada em diversas formas. Sua criação pode ser realizada por indivíduos, grupos ou formações sociais, e sua aplicação vai além de uma mera representação geográfica, podendo ser desenhado em uma parede, concebido como obra de arte, construído como uma ação política ou utilizado como instrumento de meditação. Essa concepção ampla e flexível do mapa destaca sua capacidade de TRANScender limitações convencionais e abraçar uma variedade de significados e usos.

TRANSurbância é a caminhada que busca romper com as fronteiras, ao inserir o corpo num entre-lugar, dentro-fora, interior-exterior, público-privado, de modo a atravessar lugares conhecidos e desconhecidos, ressenti-los e descobri-los – a travessia. Cartografando o mapa sobreposto de infinitas cidades na escala 1x1 (Careri, 2002Careri, F. (2002). Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: Gustavo Gili.). Afastando-se da prática nômade situacionista e aproximando-se da experiência atual, contemporânea e latino-americana vivida, em cuja composição entram as novas tecnologias, estratégias mercadológicas, políticas, corpos etc. sobrepostos aos mapas da cidade em suas diferentes aproximações. Neste processo, assim como TRANSpõe e sobrepõe Fernand Deligny (2015)Deligny, F. (2015). O Aracniano e outros ensaios. São Paulo: n-1. em seus mapas de várias crianças autistas, adultos, cuidadores, médicos etc., sobrepondo-se a imagem base e descortinando a presença do corpocidade-TRANS.

Para caminhografar o centro da cidade, precisamos andar sobre ele; no mínimo, sujar nossos pés ou sapatos. O antropólogo Tim Ingold conta-nos sobre a importância da sensação tátil proporcionada pelos pés, sendo o calçado já um equipamento tecnológico de separação entre os pés e o chão, afirmando que não devemos andar pelas ruas em “pernas de pau” (Ingold, 2015Ingold, T. (2015). Estar Vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Rio de Janeiro: Vozes.). Na sociedade moderna, vivemos uma falta de chão, caminhamos em movimentos mecânicos e determinados, então, é preciso redescobrir o caminho e criar mapas.

Segundo Ingold (2015), aIngold, T. (2015). Estar Vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Rio de Janeiro: Vozes. falta de ancoragem da sociedade moderna, evidenciada pela redução da experiência pedestre à mera operação de uma máquina de andar, e a correspondente elevação da cabeça acima dos pés como o domínio da inteligência criativa, não está apenas profundamente enraizada na estrutura da vida pública nas sociedades ocidentais. Essa perspectiva também tem exercido influência sobre o pensamento predominante nas disciplinas da antropologia, psicologia e biologia. Essa ausência de conexão com o solo, de acordo com Ingold, não se limita apenas à esfera social, mas permeia as correntes de pensamento em diversas disciplinas, afetando a compreensão da experiência humana em múltiplos domínios.

O mapa final gerado pela caminhografia urbana busca marcar o ordinário, o que foge às regras. Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995) apontam para um mapa, uma cartografia, que é mais processual que resultado final, que está em constante formação – movente –, onde as leituras hegemônicas e centralizadoras são substituídas pelas nuances, pistas de um devir do porvir. Sempre em sobreposição de camadas, intensidades e sensações no plano de imanência. Cada vez mais, do campo da dúvida, do questionamento, do que da certeza, mas ainda assim na busca por um mapa aberto e modificável que registre os TRANScorridos e as TRANScorrências.

Pelotas é uma cidade média ao sul do Rio Grande do Sul, com uma população de mais de 320.000 habitantes, com 96% da população residindo na zona urbana5 5 Estimativa do IBGE para 2022. ; a quarta cidade mais populosa do Rio Grande do Sul, localizada às margens do Canal São Gonçalo, que liga a Lagoa dos Patos à Lagoa Mirim. Pelotas é cercada pela água, mas de costas para ela. Nos últimos tempos, a cidade de Pelotas vem experimentando forças dissidentes quando abre suas ruas e centralidades para os estudantes universitários, para sua origem afro-latino-americana, para os imigrantes e todas as suas diversidades (Santos, 2021Santos, T. B. (2021). Seres Lentos e Vida Urbana: caminhografia pelas ruas de Montevideo, Porto Alegre e Pelotas. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) Universidade Federal de Pelotas.).

O centro oficialmente demarcado pelo plano diretor de PelotasPelotas. (2024). Plano Diretor: Mapas. Recuperado em 31 janeiro, 2024, de https://www.pelotas.com.br/servicos/gestao-da-cidade/plano-diretor-mapas.
https://www.pelotas.com.br/servicos/gest...
6 6 Ver mais em: https://www.pelotas.com.br/servicos/gestao-da-cidade/plano-diretor-mapas. é composto por sete macrorregiões administrativas (uma delas a do Centro), 20 mesorregiões de planejamento (quatro delas ficam no Centro) e 109 microrregiões (sendo 16 localizadas no Centro) (Figura 1). Segundo informações levantadas com técnicos da prefeitura, houve dificuldade em demarcar essas 16 microrregiões do centro, a divisão foi realizada pelas características próprias e que se diferenciam, seja por características de usos, delimitação de loteamentos, questões históricas etc.

Figura 1
a) Mapa com a demarcação das 7 macrorregiões administrativas, b) Mapa com demarcação das 16 microrregiões do centro. Fonte: Editado no GeoPelotas (2023)Arcgis Hub. GeoPelotas - Prefeitura Municipal de Pelotas. Recuperado em 31 janeiro, 2024, de https://geopelotas-pmpel.hub.arcgis.com/.
https://geopelotas-pmpel.hub.arcgis.com/...
, Disponível em: https://geopelotas-pmpel.hub.arcgis.com/.

Dentre essas 16 microrregiões planejadas para a caminhografia do grupo, algumas eram nomeadas por títulos já conhecidos: Comércio Intensivo, Doquinhas, Porto, Catedral, Estação, Baixada, Luz, CohabPel, Colina do Sol, Parque Gonzaga e Vila Castilhos; outros desconhecidos, onde nossos pés não haviam pisado ou nossa memória ativada não reconhecia: Caieira, Cerquinha, Treptow, Pedro Moacyr e Vazio Urbano. Esse era o menor grão capturado pelo plano diretor.

Durante o 2o. semestre do ano de 2022, entre os meses de agosto de novembro, foram realizadas 10 caminhografias urbanas, entre as 14 e as 18 horas, fizesse chuva ou sol, pela chamada macrorregião do Centro da cidade de Pelotas. Tínhamos sempre um ponto de encontro inicial (disparador) e um ponto final (para o desfecho do dia), algumas caminhadas mais longas — lineares, outras mais curtas — perambulando, nunca ultrapassando 3,5 km (Figura 2).

Figura 2
Mapas de planejamento para as 10 caminhografias realizadas no centro da cidade de Pelotas, ano de 2022, divididas em Registrar - 3 caminhografias, Jogar - 4 caminhografias e Criar - 3 caminhografias. Todas com as marcações do ponto de saída e chegada, sem rota definida. Fonte: Editado no My Maps Google (2023).

A turma da disciplina de Caminhografia Urbana, integrante do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PROGRAU) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel)UFPel. (2022). Caminhografia Urbana_PROGRAU_2022. Universidade Federal de Pelotas. Recuperado em 31 janeiro, 2024, de https://wp.ufpel.edu.br/caminhografiaurbana/prograu-2022/.
https://wp.ufpel.edu.br/caminhografiaurb...
, composta por mestrandos, doutorandos e professores, experimentou as caminhografias urbanas. Em algumas ocasiões, essa experiência envolveu a participação de membros das comunidades por onde passamos.

As caminhografias foram divididas em três blocos: registrar (desenhar, fotografar e filmar), jogar (falar com desconhecido, coletar, esquecer e trocar alguma coisa de lugar no caminho) e criar (artistar, projetar e pensar)7 7 Parte do material coletado pode ser acessado em: https://wp.ufpel.edu.br/caminhografiaurbana/prograu-2022/. .

Éramos 16 caminhógrafas8 8 Renata Braga Zschornack, Jordana da Silva Berchon, Gabriel Delpino da Silveira, Otávio Gigante Viana, Monique Grechi, Mariana Leal da Silva, Raquel Maciel Hernandes, Ricardo Pavéglio Sommer, Paula Pedreira Del Fiol, Eduardo Rocha, Aracele Rocha Mahfuz, Mariana Tavares Lafolga, Priscilla Teixeira da Silva, Gabriele Vargas da Silva, João Vicente Machado Schmitz e Zaira Julca. , entre arquitetas, engenheiras, artistas e turismólogas, estudantes de pós-graduação e graduação, às vezes na companhia de moradoras ou curiosas. Cada participante carregava consigo um caderno de campo para fazer anotações, bem como câmeras ou celulares para capturar fotos e vídeos. Todo esse conteúdo era, então, incorporado a um repositório da disciplina a cada semana. Ao final de cada trecho caminhografado, foi produzida e lida uma escrita coletiva9 9 Todas as escritas coletivas estão disponíveis em: em: ​​https://photos.app.goo.gl/fqYUCM7ztAoKgdJR6 . (in loco) e realizada uma discussão sobre aquele dia (Figura 3).

Figura 3
Caminhografia, intervenção, conversa e escrita coletiva. Fonte: Do autor (2022)Google Photos. (2022). 2022_Escrita Coletiva. Recuperado em 31 janeiro, 2024, de https://photos.app.goo.gl/fqYUCM7ztAoKgdJR6.
https://photos.app.goo.gl/fqYUCM7ztAoKgd...
.

A escrita coletiva foi realizada ao término de cada caminhografia, promovida de modo a dar expressão aos sentimentos que buscavam manifestação. Durante esse processo, uma prancheta com papel em branco e caneta era passada de mão em mão de maneira aleatória, possibilitando que cada participante escrevesse espontaneamente o que lhe ocorria naquele momento pós-caminhada. Tratava-se de uma escrita livre, de natureza contínua, por vezes desprovida de sentido aparente, fragmentada e reconstruída de forma TRANSbordante. Ao concluir a redação coletiva, produzida por várias mãos e mentes, procedia-se à leitura em voz alta do texto, seguida por uma breve discussão acerca dos lugares explorados durante a caminhografia.

As caminhografias foram divididas em três blocos: registrar (desenhar, fotografar e filmar), jogar (falar com desconhecido, coletar, esquecer e trocar alguma coisa de lugar no caminho) e criar (artistar, projetar e pensar)10 10 Parte do material coletado pode ser acessado em: https://wp.ufpel.edu.br/caminhografiaurbana/prograu-2022/. .

No primeiro bloco, “registrar”, as caminhógrafas apenas sentiam os lugares caminhados e inscreviam aquilo que pedia passagem. No segundo bloco, “jogar”, todos interagiam com os lugares. Paola Jacques, a partir de Gilles Deleuze, conta de um jogo do nomos (liso, fluído, nômade) contra a polis (estriado, lei, sedentário), o fora e o dentro das cidades, sobrepostos e invadidos (Jacques, 2012Jacques, P. B. (2012). Elogio aos errantes. Salvador: EDUFBA.). E, no último e terceiro bloco, “criar”, iniciou-se um processo de projetação e criação na cidade, mais propositivo e interventivo, daquilo que sentimos necessidade no corpocidade-TRANS (Deleuze, 1997Deleuze, G. (1997). O Ato da Criação. São Paulo: Folha de São Paulo.).

O artigo, e as nuances que emergem na discussão, tem como base as “escritas coletivas” e os registros produzidos durante o caminhar, toda a cartografia concebida durante o caminhar emana potências e intensidades com alto grau de TRANScidade. Daquilo que não sabemos ainda o que é, nem para que veio, mas está gritando em altos brados na pulsação - pulsão - de vida-morte da cidade.

Nuances do Centro da Cidade (resultados e discussão)

A análise proporcionada pelos mapas da caminhografia urbana permite perceber nuances, desafiando ideias prontas e pré-concebidas do que é o centro e centralidade tradicionais, frequentemente associados a comércio, história e fluxos intensos. Isso ocorre de modo a coexistir e TRANSgredir normas de ordenamento previstas no plano diretor da cidade, no traçado de mapas digitalizados em órgãos institucionais, como secretarias (​​secretarium/secretum). Essas são as descobertas iniciais, nesse confronto caminhográfico pelo centro da cidade de Pelotas, na sobreposição dos mapas, arranhados, TRANSmutados no que denominamos TRANScidade.

Num primeiro momento, podemos contar que não percebemos nas caminhografias a subdivisão, as linhas fronteiriças de demarcação da macro, das quatro mezo e nem das 16 microrregiões do centro. Também, de forma geral, nas escritas coletivas e imagens coletadas pelo grupo, percebemos a tendência e a sensibilidade mais intensa para as heterogeneidades, do que para homogeneidades, tudo sempre numa escala de matizes difícil de ser medida, mas sentida pelas caminhógrafas. Podemos afirmar que os registros e recorrências aqui analisados encontram-se numa escala de intensidade da indefinição ao revolucionário, ou seja, dos escambos mais revolucionários aos comércios populares menos subversivos, uma espécie de para-formal11 11 “Para-formal, [...], diz respeito a um conceito de fronteira, que ao contrário da oposição entre formal e informal, é o que busca experimentar a fresta ou o interstício entre categorias, que aqui também se denomina como "cenas urbanas para-formais " (Allemand et al., 2015, p. 3). . Tudo tramado pelas caminhografias pelas retículas do centro cidade, durante o inverno e a primavera do ano de 2022.

Mesmo as caminhadas tendo sido organizadas e subdivididas entre os limites das microrregiões do centro, nunca identificamos ou conseguimos definir seus limites exatos. Habitavam sempre um certo entre-lugar, TRANS-lugar centro, que se “tricotava”, remendava e desfiava pelo ato de caminhar, gerando mapas e corpos complexos de serem desenhados, por estarem inscritos nos corpos sempre em TRANSformação na experiência com o centro da cidade. Nas fronteiras e limites urbanos é onde as TRANSformações podem ocorrer, na interseção entre as divisões administrativas e a vida cotidiana.

O artifício de análise foi desenhado desde um jogo de palavras, de sentido e de sensações, uma espécie de sinônimo-antônimo, não exatamente de opostos ou de in-compatíveis no cotidiano da experiência da caminhografia urbana no do território do centro da cidade de Pelotas, mas como um jogo de desconstrucionismo da linguagem derridiana – phármakon (Derrida, 2005Derrida, J. (2005). A farmácia de Platão. 3. ed. São Paulo: Editora Iluminuras.). Droga e remédio, dito e não dito. É TRANS na dissimulação da textura, tessitura do centro cidade no caminhar e cartografar.

Esses blocos de sensação e interações entre liso (nômade), estriado (sedentário), extensivo e intensivo, não se tratando de uma oposição, mas sim de posição estriado e liso-extensivo ou estriado e liso intensivo. Estriado e liso como lugares de atualização de virtuais ou quando um espaço/lugar se quebra em outro (Deleuze & Guattari, 1997Deleuze, G. & Guattari, F. (1997). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v.5. São Paulo: Ed. 34.). Nômades e sedentários, de tempos em tempos. É ponto de corte e por onde pedem passagem as linhas de fuga. É um mergulho no “eu estou”, “eu sou”. Nas linhas de fuga é que podem surgir as novas ideias, a criação (Deleuze & Guattari, 1995Deleuze, G. & Guattari, F. (1995). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v.1. São Paulo: Ed. 34.).

Segundo Deleuze e Guattari (1997), oDeleuze, G. & Guattari, F. (1997). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v.5. São Paulo: Ed. 34. contraste entre o espaço liso e o espaço estriado, representando respectivamente o espaço nômade e o espaço sedentário, assim como o espaço vinculado à máquina de guerra em comparação com o espaço instituído pelo aparelho de Estado, não compartilham a mesma natureza. Em algumas instâncias, é possível estabelecer uma oposição simples entre esses dois tipos de espaço. No entanto, em outras, é necessário apontar uma diferença mais complexa, onde os termos das oposições não coincidem completamente. Ainda em outros momentos, é crucial reconhecer que esses dois espaços só ganham existência mediante as misturas entre si: o espaço liso incessantemente se TRANSforma, sendo traduzido e TRANSvertido em um espaço estriado, enquanto o espaço estriado é continuamente revertido, devolvendo-se a um espaço liso.

Nuance, uma gradação sutil entre as coisas, tonalidade, ordens que não estão totalmente em oposição, mas num entretom de variações e intensidades que podem compor e encontrar a vida no centro da TRANScidade. Dispersão que revoluciona o centro da cidade, capaz de recompor/decompor esse centro ordenado/desordenado, em outras/novas ordens e possíveis movimentos.

Todo o material imagético e escrito foi insistentemente organizado e desorganizado em tabelas, álbuns temáticos, misturados, e resultaram em algumas nuances – impressões – que destacamos a seguir.

Dispersão revolucionária+Centro histórico tradicional

A cidade de Pelotas, como muitas outras no Brasil, na América Latina e no mundo, é conhecida pelo seu centro histórico tradicional, repleto de imagens e imaginários, de palacetes, catedrais, teatros, praças, monumentos que são acessíveis através da aculturação, do poder simbólico cultural-econômico de uma elite dominante que tem forte e quase total influência nas decisões de governo. Habitus como um sistema que estrutura e é estruturante, que unifica práticas e ideologias (Bourdieu , 2001Bourdieu, P. (2001). O Poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.).

No coração do centro de Pelotas, encontramos a Praça Coronel Pedro Osório, os imponentes casarões dos charqueadores, os icônicos teatros Guarany e Sete de Abril, a prefeitura, os bancos, a renomada biblioteca "pública" e o mercado "público". É exatamente ali onde historiadores confirmariam que reside o verdadeiro epicentro da cidade. No entanto, o centro histórico é, primordialmente, um polo econômico, representando toda uma gama de atividades comerciais.

Toda essa arquitetura e urbanismo está envolta no chamado ecletismo historicista, uma espécie de edifícios "bolo de noiva", a representação da modernidade entre os anos de 1870 e 1931 (Santos, 2007Santos, C. A. Á. (2007). Ecletismo na fronteira meridional do Brasil: 1870-1931. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo – Área de Conservação e Restauro) Universidade Federal da Bahia.), que urbanamente seguiam modelos da metrópole carioca, na esteira haussmaniana, de salubrinismo, do "bota-abaixo", era ou é preciso desinfectar o centro da cidade, como pode-se comprovar na inserção e nas mudanças de usos das praças na cidade de Pelotas (Rocha, 1999Rocha, E. (1999). A Praça no Espaço Urbano: limites, caminhos e centralidade no desenho das cidades da região sul do Rio Grande do Sul. Monografia (Especialização em Patrimônio Cultural) Universidade Federal de Pelotas.). Tudo precisa ser "potável"12 12 Em que as substâncias tóxicas e os fatores e organismos patogênicos têm níveis seguros ou aceitáveis para consumo humano, ou foram reduzidos a isso, e é, portanto, saudável (diz-se de água). . Adota-se um ecletismo caipira europeu, consolidado num modelo de cidade reticulada e esquadrinhada ao modelo espano-português colonizador (Yunes, 1995Yunes, G. S. (1995). Cidades reticuladas: a persistência do modelo na formação urbana do Rio Grande do Sul. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.).

Na cidade de Pelotas, existe uma proteção especial, uma chamada Zona de Proteção do Patrimônio Cultural (ZPPC) que demarca e protege os sítios do primeiro e do segundo loteamentos da cidade, lugares que também abrigam edificações tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), mas que durante a caminhografia foram desapercebidos, não lembrados e “desimportados” pelas caminhógrafas.

Todo esse centro histórico tradicional patrimonializado encontra-se, em sua maioria, em estado de abandono, de fim, de morte das arquiteturas. Percebe-se isso enquanto se caminha, desde as pequenas marcas – ou sintomas – como vidros quebrados, a natureza brotando nas fachadas e calçadas, os restos, rachaduras, poeira. Todos esses abandonos fazem parte do centro da cidade e, de alguma forma, homogeneizam o centro, dispersam os sentidos para o conjunto do centro. Todo esse abandono – melancólico – faz parte do sentimento do centro e da própria cidade de Pelotas (Figura 4). Esse abandono TRANSmuta-se em medo, adoção de grades e algumas ruas vazias, mesmo em lugares históricos ditos “reciclados”, “revitalizados” e “restaurados”.

Figura 4
Coleção de imagens “Centro histórico tradicional”. Fonte: Do autor (2022).

O centro histórico, o umbigo do centro (cabeça), é atravessado por inúmeras forças que vêm de um centro periférico, um centro desconhecido e deixado à margem. Essa margem teima em adentrar o centro e revolucionar através de forças e potências imanentes (Figura 5). Essa revolução molecular, causada pelo corpocidade-TRANS, o estranho, como as manifestações do grafite e da pichação, as ocupações de moradores de baixa renda, crianças, animais e o selvático.

Figura 5
Coleção de imagens “Dispersão revolucionária”. Fonte: Do autor (2022).

Conforme Rocha e Machado (2019), aRocha, E. & Machado, V. (2019). Caminhar em Roma: A Experiência de Inscrever-se no Selvático da Cidade. Paralelo 31, edição 13. Recuperado em 31 janeiro, 2024, de https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/paralelo/article/view/18686.
https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/ind...
concepção de "selvático" TRANScende a ideia tradicional de um habitante da selva ou alguém distante da civilização, abarcando contemporaneamente territórios abandonados que atravessam a cidade e o urbanismo. Para o grupo Stalker13 13 Stalker é um coletivo de arquitetos e pesquisadores vinculados à Universidade Roma Tre, que se uniram no meio da década de 1990. Em 2002, o Stalker fundou a rede de pesquisa Osservatorio Nomade (ON), composta por arquitetos, artistas, ativistas e pesquisadores que trabalham experimentalmente e se envolvem em ações para criar espaços e situações autogerenciadas. Ver mais em: https://www.osservatorionomade.net/. , a negentropia e o selvático são dois termos oriundos, respectivamente, da linguagem científica e do humanismo, empregados para reconstruir a noção de "paisagem". Essa reconstrução ocorre a partir de espaços gerados pela criatividade da natureza e da comunidade, por meio de reações não-lineares e espontâneas capazes de instigar o surgimento de ecossistemas evoluídos.

Esse centro é maior que o centro histórico, já na delimitação do plano diretor, no qual o centro histórico é apenas uma pequena área que nem está no centro geográfico e, talvez, nem tenha mais tanta importância. Trata-se de um centro que está ramificado em novas áreas, expandido, nucleado, puxado pelo consumo e pelas revoluções moleculares. Essas revoluções podem ser formas inovadoras de enfrentar problemas e descobrir soluções que já estão ali no interior do funcionamento do corpocidade. Félix Guattari diz que a revolução molecular é “sim o momento de fazer com que os corpos, todos os corpos, consigam livrar-se das representações e dos constrangimentos do “corpo social”, bem como da postura, das atitudes e dos comportamentos estereotipados” (Guattari, 1981, pGuattari, F. (1981). Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. Trad. Suely Rolnik. São Paulo: Brasiliense.. 43). Não é sobre homem que se TRANSforma em mulher e vice-versa, nem mesmo entre masculino e feminino, da Dispersão revolucionária e do Centro histórico tradicional, mas de um devir outro, TRANS.

São como o corpo queer, TRANScidade, que TRANSpassa a lógica capitalista e neoliberal que vem organizando oficialmente e legalmente a cidade, talvez libertando o oprimido, a partir dessas pequenas revoluções. Embaralhando uma química social estruturada e homogeneizante, tensionando os limites, zonas e conceitos fechados do urbanismo tradicional.

Troca extensiva+Comércio intensivo

O termo "centro histórico" é designado e incorporado no plano diretor como uma microrregião caracterizada por "comércio intensivo". Duas forças distintas, impulsionadas pela extensão e pelas leis vigentes, conferem nome a diferentes áreas no centro da cidade, e, em última análise, contribuem para a própria formação dos conceitos de centro e centralidade em sua origem.

Curiosamente, nas caminhografias realizadas, não identificamos imagens nem alusões ao conceito de "comércio intensivo", apesar de termos percorrido áreas notáveis como o calçadão e o centro comercial da cidade. Em contrapartida, observamos numerosas representações que descrevemos como "troca revolucionária".

A “troca extensiva" é substância potente para a revolução molecular da cidade. São estratégias e dispositivos, como: a troca de livros realizada pela do “Kilombo Urbano Ocupação Canto de Conexão”14 14 Sobre o “Kilombo Urbano Ocupação Canto de Conexão”, ver mais em: https://arqpop.org.br/project/banco-de-materiais-de-construcao-kilombo-urbano-ocupacao-canto-de-conexao/ , na calçada da microrregião do Porto, onde é possível pegar ou deixar um livro na mesinha que fica na frente do edifício da ocupação; ou da “Livrariaoteka da Rochali”15 15 Sobre a “Livrarioteka da Rochali” ver mais em: https://www.facebook.com/Livrarioteka , que encontramos na microrregião da Caieira, na casa da Dona Rose, que cede a sua sala de estar para que as crianças da vizinhança tenham acesso à leitura; os brics, que reciclam móveis e roupas usadas; as vendas de garagem; as feiras orgânicas de pequenos produtores rurais; os vendedores de porta em porta, que conhecem cada comprador pelo nome; os ambulantes, que lentamente fazem seu passeio pelas ruas do centro da cidade; e o carroceiro que atravessa todas essas microrregiões e macrorregiões, levando os restos dos outros – de nós – que podem ser reciclados, TRASformados (Figura 6).

Figura 6
Coleção de imagens “Troca extensiva”. Fonte: Do autor (2022).

A “troca extensiva” – mais abstrato –, igualmente junto ao "comércio intensivo” – mais singular –, fazem parte de dimensões que englobam umas às outras; uma se prolonga até a vizinhança da outra e assim sucessivamente e, dependendo da força, é capaz de desprender-se e torna-se um corpo próprio e novo, a partir da teoria spinoziana do corpo, sempre conservando algum princípio, em solidariedade do intensivo com o extensivo, do nômade com o sedentário, e vice-versa (Deleuze & Guattari, 1997Deleuze, G. & Guattari, F. (1997). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v.5. São Paulo: Ed. 34.). Zigue-zague.

Estriado duradouro+Fluxo de passageiros

O estriado quer manter o “fluxo de passageiros” em menores trajetos, em automóveis, ônibus, veículos rápidos e “eficientes”. Calçadas que nos levam de uma quadra a outra, que nos fazem circular ao redor de quadras como zumbis urbanos. Carros enfileirados em vagas de estacionamento, na borda dessas calçadas, criando filas, filas indianas que não mais enfileiram os índios em trilhas no meio da mata, mas dentro das cidades, nas ruas que viraram vias. A linha do trem abandonado que persiste no centro da cidade. Para atravessar a rua: “pedestre aperte o botão e aguarde o sinal” (Figura 7).

Figura 7
Coleção de imagens “Fluxo de passageiros”. Fonte: Do autor (2022).

Ao mesmo tempo, o mapa da caminhografia abre-se para o jogo do liso, daquele e daquela cidade que estranha a domesticação e coloca a cidade em tensão, daquele ser ou situação visível. Sim, fotografamos muito essas situações de “lentidão” na máquina de Estado chamada cidade. Como se a urbe latina invadisse a polis grega. Cidade invadida pelo Rural.

A cidade ocupada em deslocamento, o tabuleiro do centro em constante jogo do liso sobre o estriado e vice-versa, criou, durante a caminhografia, algumas “novas” espécies de mobilidade. As “esperas comunitárias” seriam espaços estriados-lisos, percebidos em muitas escritas urbanas (pixos, graffitis, placas etc.), no esburacamento das ruas, alagamentos, arquiteturas fraturadas e vazios encontrados por toda a extensão/intensão do centro da cidade (Figura 8).

Figura 8
Coleção de imagens “Estriado duradouro”. Fonte: Do autor (2022).

Nos jogos jogados durante as caminhografias, sempre existiu a intenção de barrar esse fluxo de Estado e domesticação, mudar seus rumos. Seja em alguma intervenção da arte, na troca de lugar das coisas, na coleta e até mesmo no projeto de uma instalação.

O tempo-espaço liso e o tempo-espaço estriado haviam-se fundido em uma só cidade, no ato da TRANSformação; a porta está sendo aberta pelo corpocidade, em TRANSe, agora numa TRANScidade.

TRANScidade (considerações finais)

A caminhografia acontece no encontro intenso com o estranho, o corpocidade-TRANS. Quando caminhamos e registramos o centro da cidade, acabamos por perceber a potência da TRANScidade para novas estruturas a serem repensadas pelo urbanismo, o urbanismo na contemporaneidade, ou até mesmo a sua implosão enquanto dogma de domesticação.

Construir a partir da TRANScidade talvez não seja um zigue-zague — deleuziano —, um andar a zonzo — situacionista —, mas sim a descoberta de um novo caminhar e cartografar — caminhografar — latinoamericano, brasileiro, gaúcho e fronteiriço. Não mais colonizado e datado, mais atualizado e local. Um “eu vou apezito”, como se diz aqui na fronteira do Brasil com o Uruguay. Gaúcho na contemporaneidade, com seu GPS, os celulares, o wi-fi, o mate — colonizando e descolonizando — TRANScolonizando as tecnologias, as vivências, os saberes, os sentidos, inserindo os corpos no constante movimento sedentário-nômade, infinitamente. Criando mapas e planos de imanência em sua plena potência radical do que é afetado e o que afeta — o mar que queremos navegar —, fazendo-se como multiversos do que não pode ser pensado, porém, deve ser pensado.

Nos registros da caminhografia pelo centro da cidade, realizados pelos acadêmicos nativos e turistas, estudantes e pesquisadores, arquitetos e urbanistas, artistas, geógrafos etc. em formação, na caminhada em bando, percebemos a tendência do olhar ao estranho, ao que foge à norma e ao ainda não domesticado. Denotando a caminhografia urbana o potencial como máquina de guerra revolucionária, nunca uno, sempre conectável e produtora de linhas de fuga.

Ainda consideramos pequena e potente a prática da caminhografia urbana com a criação, bastante confundida e sobreposta ao jogo, e o registro, talvez como deva ser na experiência corpocidade. A caminhografia traz a experiência do registrar, jogar e criar, fundidas naquele espaço-tempo, indissociáveis na produção dos mapas, embora acreditemos em sua potência para futuras criações de projetos, planejamentos e planos urbanos mais consistentes nas atividades dos arquitetos e urbanistas.

A TRANScidade está aí, à nossa frente, aos nossos pés protegidos pelos sapatos. Precisamos despi-los um pouco, sentindo no pé-terra a cidade em que vivemos (Figura 9).

Figura 9
“Por quê pessoas TRANS vivas te incomodam tanto?”, lambe encontrado na região central da cidade de Pelotas. Fonte: Do autor (2022).

Declaração de disponibilidade de dados

O conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste artigo está disponível no SciELO DATA e pode ser acessado em https://doi.org/10.48331/scielodata.2IQSA9

Agradecimentos

A todos os pesquisadores, estudantes, bolsistas e comunidades que participaram das caminhografias entre 2011 e 2022.

Aos financiamentos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do RS (FAPERGS) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), para a pesquisa Caminhografia Urbana (https://wp.ufpel.edu.br/caminhografiaurbana/).

Obrigado ao amigo Fernando Fuão pela leitura e conselhos: "Tá cheio de passagens belíssimas e elucidações”.

  • 1
    Este artigo é parte das reflexões e resultados provenientes do projeto de pesquisa "Caminhografia Urbana", financiado pelo CNPq e FAPERGS. Destaca-se a participação da caminhografia realizada na disciplina de "Caminhografia Urbana" do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PROGRAU) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Ver mais em: https://wp.ufpel.edu.br/caminhografiaurbana/.
  • 2
    A palavra TRANS foi grafada em letras maiúsculas no decorrer de todo o texto, como palavra que nomeia um ser individual e específico, particularizando-o dentro da sua espécie e distinguindo-o dos restantes. Precisamos “gritá-la” para os arquitetos e urbanistas.
  • 3
    Pierre Boulez (1925-2016) foi um maestro, pedagogo musical, ensaísta e compositor francês de música erudita. Foi uma personalidade influente no cenário musical e intelectual francês contemporâneo.
  • 4
    A caminhógrafa por todo o texto é mulher, mãe da terra, feminina, aquela que renova a humanidade e a vida. A caminhografia urbana é devir-mulher e TRANS. Percebe-se nos grupos de caminhografia urbana uma predominância feminina, LGBTQIA+ e minorias.
  • 5
    Estimativa do IBGE para 2022.
  • 6
  • 7
    Parte do material coletado pode ser acessado em: https://wp.ufpel.edu.br/caminhografiaurbana/prograu-2022/.
  • 8
    Renata Braga Zschornack, Jordana da Silva Berchon, Gabriel Delpino da Silveira, Otávio Gigante Viana, Monique Grechi, Mariana Leal da Silva, Raquel Maciel Hernandes, Ricardo Pavéglio Sommer, Paula Pedreira Del Fiol, Eduardo Rocha, Aracele Rocha Mahfuz, Mariana Tavares Lafolga, Priscilla Teixeira da Silva, Gabriele Vargas da Silva, João Vicente Machado Schmitz e Zaira Julca.
  • 9
    Todas as escritas coletivas estão disponíveis em: em: ​​https://photos.app.goo.gl/fqYUCM7ztAoKgdJR6 .
  • 10
    Parte do material coletado pode ser acessado em: https://wp.ufpel.edu.br/caminhografiaurbana/prograu-2022/.
  • 11
    “Para-formal, [...], diz respeito a um conceito de fronteira, que ao contrário da oposição entre formal e informal, é o que busca experimentar a fresta ou o interstício entre categorias, que aqui também se denomina como "cenas urbanas para-formais " (Allemand et al., 2015Allemand, D. S., Rocha, E., & Pinho, R. B. (2015). Descobrindo a cidade "para-formal ": controvérsias e mediações no espaço público. V!RUS, São Carlos, n. 10. Recuperado em 31 janeiro, 2024, de http://www.nomads.usp.br/virus/virus10/?sec=4&item=1⟨=pt
    http://www.nomads.usp.br/virus/virus10/?...
    , p. 3).
  • 12
    Em que as substâncias tóxicas e os fatores e organismos patogênicos têm níveis seguros ou aceitáveis para consumo humano, ou foram reduzidos a isso, e é, portanto, saudável (diz-se de água).
  • 13
    Stalker é um coletivo de arquitetos e pesquisadores vinculados à Universidade Roma Tre, que se uniram no meio da década de 1990. Em 2002, o Stalker fundou a rede de pesquisa Osservatorio Nomade (ON), composta por arquitetos, artistas, ativistas e pesquisadores que trabalham experimentalmente e se envolvem em ações para criar espaços e situações autogerenciadas. Ver mais em: https://www.osservatorionomade.net/.
  • 14
    Sobre o “Kilombo Urbano Ocupação Canto de ConexãoArqpop. (s.d.). Banco de Materiais de Construção Kilombo Urbano Ocupação Canto de Conexão. Arqpop. Recuperado em 31 janeiro, 2024, de https://arqpop.org.br/project/banco-de-materiais-de-construcao-kilombo-urbano-ocupacao-canto-de-conexao/.
    https://arqpop.org.br/project/banco-de-m...
    ”, ver mais em: https://arqpop.org.br/project/banco-de-materiais-de-construcao-kilombo-urbano-ocupacao-canto-de-conexao/
  • 15
    Sobre a “Livrarioteka da Rochali” ver mais em: https://www.facebook.com/Livrarioteka
  • Como citar: Rocha, E. (2024). TRANScidade: a caminhografia urbana no centro de Pelotas/RS. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, v. 16, e20230084. https://doi.org/10.1590/2175-3369.016.e20230084

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Editor responsável: Rodrigo Firmino

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2023
  • Aceito
    27 Nov 2023
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