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TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO: HOJE, O MESMO DE ONTEM

Resumo

Este artigo busca analisar a temática do trabalho escravo na contemporaneidade, verificando como ele se perpetua na história brasileira de modo a indicar seu caráter não anacrônico às relações sociais brasileiras. A metodologia adotada para estes fins foi a análise crítico-descritiva da literatura, conjugada com o levantamento das legislações pertinentes e de jurisprudência e decisões judiciais que abordaram o tema. Partindo da historicidade de sua experiência no Brasil Colônia, analisouse como essa vivência e mentalidade da existência de alguém como objeto e não sujeito de direitos mantêm resquícios na atualidade, inclusive em decisões judiciais que justificam sua ocorrência baseada em uma pseudocultura local. Verificou-se em que medida tal abordagem, somada a uma leitura restritiva do conceito de trabalho escravo contemporâneo, desnudam um momento histórico de retrocesso no enfrentamento de tal forma de exploração. E, ao final, indicou-se como o trabalho escravo contemporâneo se manifesta em diversas formas exploratórias do trabalho humano na atualidade, indicando caminhos para a hermenêutica de tal conceito a fim de que seu enfrentamento seja o mais amplo possível como único meio de concretizar a cidadania.

Palavras-chave:
caracterização; contemporaneidade; direitos humanos; historicidade; trabalho escravo contemporâneo

Abstract

This article seeks to review the thematic of current slave labor, verifying how it is perpetuated in the Brazilian history in such a way as to indicate its non-anachronistic character in the Brazilian social relations. Critical-descriptive literature review was adopted, combined with the survey of relevant laws, case laws, and judicial decisions on the theme. Starting from the historicity of the slave labor experience in the Colonial Brazil, we review how this experience and reasoning of the existence of a human being as an object rather than as a subject of rights still remain today, including in judicial decisions that justify its occurrence based on a local pseudoculture. We verified to what extent this approach, along with a restrictive reading of the concept of modern slavery, unveils a historical moment of setback in the fight against this form of exploitation. And, at the end, we pointed out how modern slavery is expressed in several forms of exploiting human labor today, suggesting paths for the hermeneutics of such a concept so that its confrontation is as broad as possible, as the only way to fulfill citizenship.

Keywords:
characterization; contemporaneity; human rights; historicity; modern slavery

Resumen

Este artículo pretende analizar el tema del trabajo esclavo en la contemporaneidad, verificando cómo se ha perpetuado en la historia brasileña de modo a indicar su carácter no anacrónico en las relaciones sociales brasileñas. La metodología adoptada para estos fines fue el análisis crítico-descriptivo de la literatura, combinado con el examen de la legislación pertinente y la jurisprudencia y las decisiones judiciales que han abordado la cuestión. Partiendo de la historicidad de su experiencia en el Brasil Colonial, analizamos cómo esa experiencia y mentalidad de la existencia de alguien como objeto y no como sujeto de derechos aún tiene rastros en la actualidad, incluso en decisiones judiciales que justifican su ocurrencia a partir de una pseudocultura local. Se verificó hasta qué punto tal enfoque, unido a una lectura restrictiva del concepto de trabajo esclavo contemporáneo, revela un momento histórico de regresión en la lucha contra tal forma de explotación. Y, al final, se indicó cómo el trabajo esclavo contemporáneo se manifiesta en diversas formas explotadoras del trabajo humano en la actualidad, indicando caminos para la hermenéutica de dicho concepto para que su confrontación sea lo más amplia posible como única forma de materializar la ciudadanía.

Palabras clave:
caracterización; contemporaneidad; derechos humanos; historicidad; trabajo esclavo contemporáneo

Introdução

Durante o período da ditadura civil-militar, não foram poucos os conglomerados, nacionais e estrangeiros, que, com apoio – inclusive financeiro – do governo federal, promoveram a derrubada da floresta, a formação de latifúndios e toda a sorte de danos ambientais e sociais na Amazônia brasileira, com a exploração indiscriminada de trabalhadores escravizados. À época, já se enunciava uma suposta contradição: empresas que investiam e desenvolviam tecnologia avançada em sua produção, como a Volkswagen, utilizavam-se de trabalho escravo para, de maneira rudimentar, promover a derrubada da floresta e o preparo de pastagens, numa imbricada relação entre capitalismo e escravidão, o “moderno” e o “arcaico”.

Em que pese a coragem daqueles que fizeram as primeiras denúncias durante a ditadura militar, foi somente após a redemocratização e passados alguns anos desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 que, em 1995, o então Presidente Fernando Henrique Cardoso, em pronunciamento à nação transmitido pelo rádio, reconhece formalmente a existência de trabalho escravo contemporâneo no território brasileiro e dá início às primeiras iniciativas de combate a esse ilícito de maneira organizada pelo Estado.

Além do reconhecimento pioneiro da escravidão em território nacional, o pronunciamento anunciava, ainda, a primeira importante medida de combate ao trabalho escravo: a criação do Grupo Interministerial para Erradicação do Trabalho Forçado (GERTRAF), prevendo a realização periódica de ações fiscais envolvendo agentes do Estado com o fito de atender às denúncias de trabalho escravo.

Entre as razões que motivaram essa mudança de postura do Estado brasileiro, está o emblemático caso José Pereira. No ano de 1989, José Pereira junto com outro trabalhador, de apelido Paraná, tentou fugir de uma Fazenda localizada no município de Sapucaia, no sul do Pará onde eram escravizados, junto de outros 60 trabalhadores. Ambos foram interceptados por capangas armados que atiraram contra eles. Paraná foi morto, José Pereira levou um tiro no pescoço, pelas costas, atingindo a região próximo a seu olho, fingiu-se de morto para em seguida pedir socorro em uma Fazenda próxima. Os peticionantes alegaram que o Estado Brasileiro violou suas obrigações, à luz da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e da Declaração Americana sobre os Deveres e Direitos do Homem, com relação as pessoas sob sua jurisdição que sofrem condições análogas à escravidão impostas por outras pessoas, e ao permitir a persistência dessa prática por omissão ou cumplicidade. Em 24 de outubro de 2003, foi firmada a Solução Amistosa, assumindo o Estado Brasileiro uma série de obrigações visando reprimir e prevenir a prática ilícita de trabalho escravo.

Denunciado pela Comissão Pastoral da Terra, em 1994, e apresentado formalmente à Comissão Interamericana de Direitos Humanos pelas organizações da sociedade civil Américas Watch e Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), o caso José Pereira, simbólico na luta contra o trabalho escravo, culminou, em 2003, com o compromisso do Brasil, perante a CIDH, a implementar uma série de medidas legislativas e administrativas no sentido de combater o trabalho escravo contemporâneo em território nacional.

Assim, em 2003, a luta de movimentos sociais, sindicatos e militantes em defesa dos direitos humanos e do combate ao trabalho escravo provoca o Estado brasileiro a dar cumprimento à Solução Amistosa firmada com a CIDH e a iniciar uma política pública de erradicação do Trabalho Escravo com a ampliação e modernização do conceito de trabalho escravo inserido no art. 149 do Código Penal 1 1 O conceito de trabalho escravo originalmente previsto no art. 149 do Código Penal estabelecia: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos”. A Lei n. 10.803/03 promove sua alteração, estabelecendo: “Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1º Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem”. , a construção do primeiro plano nacional de erradicação do trabalho escravo, a criação da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escavo (CONATRAE) e a estruturação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), composto pelo Ministério Público do Trabalho, Auditoria Fiscal do Trabalho e Polícias Federal e Rodoviária Federal.

Durante os primeiros anos do século XXI, ganha destaque na imprensa nacional diversos casos de trabalhadores escravizados que são resgatados dessa condição pela estrutura do Estado por meio do GEFM, alguns casos envolvendo centenas de trabalhadores e sempre em localidades rurais de difícil acesso e alojados em condições precárias no meio da mata. Vai se construindo no imaginário da sociedade brasileira o Trabalho Escravo Contemporâneo como resquício de um Brasil arcaico, atrasado e rural. Enfim, situação excepcional própria dos rincões do “Brasil Profundo”.

Ocorre que, ao contrário do senso comum, o trabalho escravo revela-se uma manifestação arcaica e relacionada aos rincões do espaço rural brasileiro. O trabalho escravo, como forma mais insidiosa de superexploração de trabalhadores, não é um fenômeno anacrônico que ocorre à margem da modernidade capitalista; ao contrário, permanece plenamente integrado e ajustado à lógica do sistema produtivo, mantendo-se convenientemente incólume no atual estágio do capitalismo brasileiro.

Neste artigo, tem-se por objetivo a análise do trabalho escravo na contemporaneidade, especialmente de como a escravidão perpetua na história brasileira, assinalando seu caráter não anacrônico às relações sociais brasileiras. Para tanto, promoveu-se análise bibliográfica crítico-descritiva, apontando legislações que regulamentam a questão do trabalho escravo contemporâneo, bem como jurisprudência e decisões judiciais proferidas pelos tribunais brasileiros nas quais se discutiu a configuração de condição análoga à escravidão.

A discussão aqui proposta parte das raízes das relações de exploração a partir do sistema escravocrata e que se perpetuam na sociedade brasileira até os dias atuais. De maneira que a mentalidade da coisificação das pessoas e sua superexploração, e não como sujeitos de direitos, apresenta vestígios inclusive em decisões judiciais.

Verifica-se em que medida tal visão, quando conjugada com a leitura restritiva do conceito de trabalho escravo contemporâneo, desnudam ameaças constantes de retrocesso no enfrentamento dessa forma de exploração.

Por fim, em notas conclusivas, indica-se como o trabalho escravo contemporâneo se manifesta em diferentes roupagens exploratórias do trabalho humano, apontando caminhos para a hermenêutica a fim de que seu enfrentamento seja amplificado com o intuito de concretizar a cidadania.

1 Os continuísmos que se perpetuam: “o passado nunca foi, o passado continua” 2 2 Frase célebre de Gilberto Freyre no plenário da Assembleia Constituinte de 1946.

A discussão sobre trabalho escravo em pleno século XXI permite a reflexão sobre a própria história brasileira, a construção de suas instituições e a estrutura sobre a qual a sociedade foi fundada. Se, como afirmou Gilberto Freyre, “o passado continua”, o trabalho escravo contemporâneo demonstra de modo cabal o enraizamento de relações violentas de poder e exploração e possibilita melhor compreender o fenômeno e os mecanismos e estratégias necessárias a seu enfrentamento.

Na visão de Florestan Fernandes, o sistema escravocrata consolidou na sociedade brasileira uma desigualdade social abissal, absolutamente entranhada, profunda e de difícil superação (FERNANDES, 2008). No mesmo sentido, a análise de Lilia Moritz Schwarcz ( 2019SCHWARZ, L. M. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 27-28):

[…] a escravidão foi bem mais que um sistema econômico: ela moldou condutas, definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferenças fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência, e criou uma sociedade condicionada pelo paternalismo e por uma hierarquia muito estrita.

As pessoas escravizadas eram submetidas a condições extremas de trabalho, moradia e alimentação, tinham seus corpos, suas vidas e destinos submetidos aos desígnios de seu senhor. Como meio um pouco mais sofisticado de controle, era-lhes negado o acesso à educação formal, seja pela proibição expressa, seja pela simples inexistência de escolas a eles destinadas, situação que se estendia aos libertos e que permaneceu inalterada mesmo após a abolição.

Como afirma Jessé Souza, no Brasil, desde o ano zero, a instituição que englobava todas as outras era a escravidão ( SOUZA, 2017SOUZA, J. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. São Paulo: Leya, 2017.). A forma de família, de economia, de política e de justiça brasileira foi toda baseada nesse instituto.

A escravidão condicionou a sociedade brasileira desde seus primórdios e é fundamental pensar em como se organizava o modelo de exploração escravagista. Construiu-se uma autopercepção de um país pacífico, sem conflitos profundos e, sobretudo, tolerante. Seria isto possível com o legado assumido em decorrência de séculos de escravidão? A leitura mais acurada dos indicadores sociais brasileiros remete a uma realidade chocante de profunda desigualdade social, desequilíbrio gritante de renda e assustadoramente violenta.

O ambiente rural brasileiro da Colônia, Império e depois República foram profundamente marcados e estruturados pelo patrimonialismo, mandonismo e patriarcalismo tão bem representados pelo símbolo da Casa Grande, onde era personificado o papel desempenhado pelo senhor (de escravos) que em seu território materializava a lei e a ordem, e o próprio Estado dentro de seus domínios.

O autoritarismo gestado no passado deu origem à sociedade atual, hierarquizada, machista, racista, patriarcal e profundamente desigual (FERNANDES, 1965).

Na escravidão, caracterizada pela dicotomia humano e sub-humano, o escravizado é funcionalizado à realização dos interesses e desejos econômicos de seu senhor, impede-se que a partir de uma relação fundada em tais condições seja possível construir empatia e alteridade. A sevícia, o castigo, a sujeição absoluta do escravizado são banalizados e não vistos com remorso, culpa ou vergonha, uma vez que praticados contra um(a) “não-gente”, um ser invisível ( SOUZA, 2017SOUZA, J. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. São Paulo: Leya, 2017.).

Impossível em um sistema fundado sob tais premissas que a esses não sujeitos seja (ainda que no futuro) concedida cidadania. Trata-se de fenômeno intimamente imbricado ao atual genocídio da população negra, marcado pela invisibilidade e não punição dos culpados, como no recente caso da chacina de Jacarezinho e tantas outras que fazem parte da história brasileira. São, como defendido neste artigo, situações nada ocasionais, esparsas ou distópicas, mas decorrentes da constituição e estruturação social baseada na escravatura e na distinção entre senhores e escravos, sujeitos e objetos, seres e não seres. Como elementos substanciais da construção histórica brasileira, influenciarão significativamente a compreensão de trabalho escravo na contemporaneidade e, via de consequência, seu necessário enfrentamento.

2 A naturalização da escravidão e as constantes ameaças de retrocesso a seu enfrentamento

O “processo civilizatório” brasileiro, baseado em relações de trabalho extremamente violentas durante quatro séculos, próprias da escravidão, talvez explique a naturalização de condições de trabalhos sub-humanas, assim como o faz com a desigualdade e demais dramas sociais vividos no país.

A submissão de trabalhadores à escravidão contemporânea insere-se no amplo quadro de construção e exercício falho e incompleto da cidadania, bem como à dificuldade de efetivação de um projeto de país inclusivo, justo e plural.

O contexto das transformações do mundo do trabalho neste início de século XXI aponta uma maior precarização, diminuição de direitos, tratamento de conquistas históricas como privilégios e tantos outros discursos que demonstram a força do capital e sua ideologia subjacente. Assim, em um momento em que os direitos são suprimidos e a classe trabalhadora é submetida ao aumento da exploração, iniciativas legislativas e intepretações judiciais tentam delimitar o trabalho escravo não mais no marco da proteção da dignidade do ser humano trabalhador, mas sim, da liberdade de ir vir ( stricto senso) 3 3 Como exemplos, podem ser citados o PL 2464/2015, o PL 3842/2012, o PLS 432/2013 (regulamentação da PEC do Trabalho Escravo) e o PLS 236/2012 (Reforma do Código Penal). .

Se o legado colonial continua a ditar as relações sociais, não são raras as decisões judiciais que naturalizam os elementos caracterizadores do trabalho escravo: alojamentos indignos, ausência ou insuficiência de alimentos, de água potável e de sanitários, entre outras graves violações trabalhistas, tanto em âmbito urbano como em localidades rurais, são constantemente relativizados pelo sistema de justiça. As decisões evocam desde uma pretensa “cultura local” até as precárias condições de moradias das famílias (em regra em favelas, barracos ou ocupações urbanas ou rurais dos escravizados) para justificar a inexistência do ilícito naqueles casos concretos julgados. A dramática condição de extrema vulnerabilidade social e miséria econômica do sujeito deixa de ser a razão de sua submissão à escravidão moderna e passa a justificá-la.

Desse modo, a desigualdade é banalizada, a exclusão é trivializada, a escravidão é naturalizada. A insensibilidade de origem classista toma conta da Justiça e seus operadores, complacentes com a opressão e com a brutal exploração da classe trabalhadora e sua “descivilização”. Trata-se de uma violência desferida contra segmentos populacionais específicos que é encontrada nos argumentos que embasam decisões judiciais absolutórias de trabalho escravo. Não são poucas 4 4 Apenas à título de exemplo, citam-se dois acórdãos: “Na hipótese dos autos, ficou provado, pela farta prova oral colhida na instrução processual, apenas a existência de condições degradantes de trabalho. No alojamento destinado a mais de 40 (quarenta) trabalhadores, existiam apenas redes para dormir, sem banheiros, nem lixeiras ou mesmo armários, para guardar pertences. Além disso, a água consumida pelos trabalhadores, armazenada em tanques e sem utilização de filtros, provinha de açude próximo, servindo para beber e tomar banho. Sem falar que os trabalhadores faziam as suas necessidades fisiológicas e tomavam banho em locais abertos, mais especificamente no”mato”, não sendo, ainda, fornecido papel higiênico ou qualquer material de higiene, nem equipamentos de proteção. No entanto, meras irregularidades ou ilicitudes à legislação trabalhista, tais como essas apresentadas neste caso, não configuram, necessariamente, perpetração de crime de redução à condição análoga à de escravo descrita no art. 149 do Código Penal brasileiro” (BRASIL, 2017). “Em relação às condições de moradia, ditas aviltantes, sem banheiro e tratamento de água e esgoto adequadas, mister que façamos algumas reflexões. Vejamos. É patente que a maior parte da população mundial, mormente dos países periféricos, como é o caso do Brasil, vivencia uma realidade social de privação, seja como morador das periferias nas grandes cidades, seja como habitante da zona rural. Não raro, tomamos conhecimento de que, em pleno século XXI, grandes cidades brasileiras não dispõem de condições ideais de saneamento básico, tais como tratamento de água e esgoto, realidade essa que não muito diferente da que se espera encontrar em locais que estão incrustados no meio do mato, distantes mais de 32 km do povoado mais próximo. (…) Todo trabalho desenvolvido, seja como operário da construção civil, seja como catador de lixo, seja como gari, seja como trabalhador rural, lidando com o cultivo da terra, na agricultura ou mesmo na pecuária, cada trabalhador cumpre um papel relevante para o desenvolvimento econômico da sociedade, se submetendo às condições próprias do exercício da função desempenhada, de acordo com a realidade e o contexto em que se desenvolve. Não se pode querer aplicar à realidade de um trabalhador rural, do nordeste brasileiro, um ambiente de trabalho diverso do que fora apresentado na situação em análise” (BRASIL, 2012). .

A naturalização da escravidão é o pilar estruturante de decisões judiciais. Absolve-se o escravagista porque suas vítimas estão acostumadas a condições precárias de vida e trabalho. Como já enfatizado em outro estudo ( CAVALCANTI, 2016CAVALCANTI, T. M. Neoabolicionismo e direitos fundamentais. São Paulo: LTr, 2016.), trata-se de uma condescendência com a extorsão extrema dirigida ao grupo social inferior: uma naturalização histórica da segregação, da exploração e da agressão ao trabalho humano.

Em pesquisa realizada nas decisões de absolvição criminal proferidas no Tocantins, Brasil, Shirley Silveira Andrade e José Ivan Alves Barros observam que o interesse de classe do magistrado e sua condescendência com situações de exploração do estado de miserabilidade da vítima são elementos que pautam as sentenças absolutórias. Eles citam caso de trabalho escravo ocorrido na Fazenda Floresta, situada naquele Estado:

No dia 17 de junho de 2003, equipe da Delegacia Regional do Trabalho esteve na fazenda Floresta administrada por Joaquim. Foram encontrados 43 trabalhadores rurais roçando pastagens em trabalho degradante. Estavam em barracos de chão batido, cobertos de lona preta e palha, sem condições de higiene, comiam arroz, bebiam água suja do córrego, faziam necessidades ao relento. Alguns estavam há 04 meses sem receber salário. Coagidos a comprar mercadorias nas cantinas da Fazenda. Informalidade dos contratos de trabalhos. Falta de registro na carteira, falta de equipamentos de proteção, ausência de exames médicos. ( ANDRADE, 2013ANDRADE, S. S.; BARROS, J. I. A. Trabalho escravo contemporâneo. Por que tantas absolvições? In: FIGUEIRA, R. R.; PRADO, A. A.; GALVÃO, E. M. (org.). Privação de liberdade ou atentado à dignidade: escravidão contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad X, 2013. p. 143-165., p. 153-154).

A despeito da situação de sub-humanidade das vítimas, facilmente enquadrável como trabalho escravo, o magistrado absolveu os réus sob a alegação de que tal realidade é costume do local:

Lamentavelmente o quadro fático evidenciado nos autos representa a dura realidade do interior do norte do Estado do Tocantins e do sul do Pará: miséria, analfabetismo, trabalhadores rurais à margem das leis trabalhistas. Basta ver fotografias de suas residências para se concluir que não houve redução de direitos, na verdade, nenhum sequer o Estado lhes deu. As condições de trabalho na fazenda são só uma face do contexto de pobreza extrema em que vivem os moradores do Bico do Papagaio-TO ( ANDRADE, 2013ANDRADE, S. S.; BARROS, J. I. A. Trabalho escravo contemporâneo. Por que tantas absolvições? In: FIGUEIRA, R. R.; PRADO, A. A.; GALVÃO, E. M. (org.). Privação de liberdade ou atentado à dignidade: escravidão contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad X, 2013. p. 143-165., p. 153-154).

Em outras palavras, o magistrado entende que só poderá ser vítima do crime de redução à condição análoga à de escravo quem está socialmente acima da linha da pobreza e tem seus direitos respeitados. Para os autores citados, tudo isso é muito fácil de entender. Fazendo menção às lições de Roberto Aguiar, eles dizem que o juiz tende a realizar a aplicação da lei à semelhança de como o legislador a criou: com base nos interesses de seu grupo social. No caso de situações de trabalho escravo, é inegável que o magistrado se insere no mesmo grupo daqueles que estão no polo passivo da demanda ( ANDRADE, 2013ANDRADE, S. S.; BARROS, J. I. A. Trabalho escravo contemporâneo. Por que tantas absolvições? In: FIGUEIRA, R. R.; PRADO, A. A.; GALVÃO, E. M. (org.). Privação de liberdade ou atentado à dignidade: escravidão contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad X, 2013. p. 143-165.).

De qualquer maneira, importante frisar que o trabalho escravo carrega uma carga tão grande de antijuridicidade que sua prática constitui verdadeira agressão à própria ordem democrática. Por essa razão, interpretações que busquem naturalizar tal ilícito e buscar justificativas e respaldo em pretensos elementos culturais ou históricos devem ser analisados criticamente e repelidos com a firmeza da hermenêutica jurídica, posto que em total afronta à ordem constitucional.

3 Trabalho escravo contemporâneo: o mesmo de ontem, hoje

Ao analisar a perpetuação remodelada do colonialismo histórico, Boaventura de Sousa Santos diz que tudo aquilo “que permanece de períodos anteriores é sempre metamorfoseado em algo que simultaneamente o denuncia e dissimula e, por isso, permanece sempre como algo diferente do que foi sem deixar de ser o mesmo” ( SOUSA SANTOS, 2018SOUSA SANTOS, Boaventura. O colonialismo insidioso. Espaço Público, 30 mar. 2018. Disponível em: http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/O%20colonialismo%20insidioso_30Mar%C3%A7o2018.pdf. Acesso em: 13 jul. 2021.
http://www.boaventuradesousasantos.pt/me...
). De fato, atualmente, na modernidade, na sociedade dos direitos humanos, a escravidão é ao mesmo tempo condenada e reproduzida: a mesma exploração de ontem, hoje, porém sob véus que ocultam a realidade.

Se a análise de formação da sociedade brasileira oferece pistas das concepções de estrutura e cultura que possibilitam que ainda nos dias atuais haja, endemicamente, flagrantes de exploração de trabalho escravo em território nacional, por óbvio, não se está a tratar do mesmo trabalho escravo que vigorou no Brasil até sua abolição, em 1888, mas de algo remodelado e ajustado ao atual sistema econômico e suas novas conformações, razão pela qual se lhe acrescenta o adjetivo “análogo” ou “contemporâneo”.

No contexto cultural brasileiro, em uma primeira análise, a compreensão de escravidão sempre remete à ausência de liberdade de ir e vir, aos grilhões, à senzala e correntes. Talvez a influência das artes, desde a pintura neoclássica de Jean Baptiste Debret no século XIX até a teledramaturgia que, especialmente nos anos 70 e 80, produziram novelas e séries de sucesso sobre o tema que, sempre com toda liberdade ficcional, utilizaram sobremaneira de estereótipos e locações que construíram esse imaginário popular.

Não se está a negar, aqui, a verdade inserida em cada um desses elementos. Entretanto, transportar tal imaginário, bem como exigir restrição à liberdade de ir e vir para caracterizar a condição de trabalho escravo, implica, ao menos, duas profundas impropriedades: a primeira consiste em exigir que as características do passado sejam necessárias à configuração do trabalho escravo no presente; e a segunda, em reduzir e limitar a condição histórica de escravo à faceta da liberdade de ir e vir, o que, a rigor, nem sempre se fazia presente.

3.1 A restrição da liberdade de locomoção como elemento prescindível à caracterização do trabalho escravo

A natureza jurídica dos escravizados na América Colonial, apesar de ser controvertida, assenta na possibilidade de exercer sobre tais pessoas ao menos um dos atributos inerentes ao direito de propriedade: a possibilidade de compra e venda. Em outras palavras, a condição de escravo assemelha-se à de mercadoria. Aliás, a Convenção da ONU de 1926, ainda sob a designação de Liga das Nações, definiu, em seu artigo primeiro, a escravidão como “o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade”.

A coisificação do ser humano é algo que vai muito além da limitação de sua liberdade de ir e vir: é o esvaziamento de seu conteúdo existencial, de sua dignidade, de sua condição de ser humano.

Ademais, são diversos os registros históricos de escravizados que não sofriam absoluta restrição da liberdade de locomoção e que, nem por isso, deixavam de ser reconhecidos como escravos. Ou seja, também do ponto de vista historiográfico, a escravidão não diz respeito, necessariamente, ao aprisionamento; refere-se, sim, à apropriação do homem pelo homem: ela sempre apresentou e continua apresentando a essência do trato do semelhante de maneira desumana, reduzindo-o à condição de coisa, de mercadoria ou algo fungível. Na verdade, essa sua característica é o ponto de convergência que permite identificá-la independentemente do espaço, do tempo e dos demais elementos variáveis concernentes a aspectos sociais, culturais, econômicos, políticos, jurídicos etc. A liberdade oposta ao sentido de escravidão não é, portanto, reduzível a sua dimensão de ir e vir, mas muito mais ampla e complexa, tocando diretamente ao atributo de dignidade da pessoa trabalhadora e de sua condição de ser humano.

Rebeca J. Scott, ao reconstruir a odisseia da família Tinchant ao longo de gerações em busca de emancipação durante os séculos de regime escravocrata nas Américas, destaca que a luta de ex-escravizados não se encerrava com a manumissão ou alforria, uma vez que: “Se o estatuto como escravo implicava uma situação de absoluta negação da cidadania, o estatuto como pessoa de cor livre implicava apenas um mesquinho conjunto de direitos […]” ( SCOTT, 2014SCOTT, R. J. Provas de liberdade: uma odisseia na era da emancipação. Campinas: Ed. Unicamp, 2014., p. 220).

A luta contra a escravidão não se circunscrevia, em absoluto, no atributo de ir e vir da liberdade; era sim, antes de tudo, a luta pela reunião em torno do ser humano liberto dos atributos que lhe conferiam dignidade e cidadania como possibilidade de pertencimento a uma comunidade ou sociedade ( COOPER, 2005COOPER, F. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.).

O alvorecer do ideário liberal trazia consigo a discussão sobre o estatuto jurídico dos ex-escravizados, pois a cidadania era elemento indissociável da liberdade e, assim, a transição de escravo à cidadão colocou à prova os princípios políticos do pensamento liberal democrático do século XIX ( COOPER, 2005COOPER, F. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.).

Especialmente no Brasil esse debate é caro, pois uma sociedade em que o capitalismo só é introduzido tardiamente e de precária transição da escravidão para o regime de trabalho livre, o projeto de cidadania jamais fora concluído, apesar de previsto formalmente desde os idos da independência. A Constituição do Império, outorgada por D. Pedro em 1824, reconhece os direitos civis de todos os cidadãos brasileiros, à exceção daqueles escravizados enquanto mantivessem tal condição. Reconhece-se, portanto, que o antônimo de escravidão é cidadania.

Nesse mesmo sentido, mas em perspectiva muito mais atual, o Supremo Tribunal Federal, reconheceu que o conceito atual de trabalho escravo visa a proteção integral do ser humano, de sua dignidade e todos os atributos que lhe informam, tendo como bem jurídico tutelado a organização do trabalho.

Assim, de maneira reiterada, a Suprema Corte tem decidido que a competência para julgamento do crime previsto no art. 149 do Código Penal é da Justiça Federal, pois se trata de crime contra a organização do trabalho, e não de um delito que agride exclusivamente a liberdade pessoal (afinal, se assim o fosse, a competência seria da Justiça Estadual) ( BRASIL, 2006BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Recurso Extraordinário n. 398041/PA. Direito Penal e Processual Penal. Art. 149 do Código Penal. Redução à condição análoga à de escravo. Trabalho escravo. Dignidade da pessoa humana. Direitos fundamentais. Crime contra a coletividade dos trabalhadores. Art. 109, IV da Constituição Federal. Competência. Justiça Federal. Recurso Extraordinário provido. A Constituição de 1988 traz um robusto conjunto normativo que visa à proteção e efetivação dos direitos fundamentais do ser humano. A existência de trabalhadores a laborar sob escolta, alguns acorrentados, em situação de total violação da liberdade e da autodeterminação de cada um, configura crime contra a organização do trabalho. Quaisquer condutas que possam ser tidas como violadoras não somente do sistema de órgãos e instituições com atribuições para proteger os direitos e deveres dos trabalhadores, mas também dos próprios trabalhadores, atingindo-os em esferas que lhes são mais caras, em que a Constituição lhes confere proteção máxima, são enquadráveis na categoria dos crimes contra a organização do trabalho, se praticadas no contexto das relações de trabalho. Nesses casos, a prática do crime prevista o art. 149 do Código Penal (Redução à condição análoga a de escravo) se caracteriza como crime contra a organização do trabalho, de modo a atrair a competência da Justiça federal (art. 109, VI da Constituição) para processá-lo e julgá-lo. Recurso extraordinário conhecido e provido. Recorrente: Ministério Público Federal. Recorrido: Sílvio Caetano de Almeida. Relator Ministro Joaquim Barbosa. Brasília, DF, 30 nov. 2006. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=570361. Acesso em: 13 jul. 2021.
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).

Para além da discussão sobre o juízo competente, o Supremo Tribunal Federal também já se posicionou de maneira contundente, reconhecendo que a restrição de liberdade de ir e vir não é elemento necessário para a caracterização do trabalho escravo contemporâneo.

EMENTA PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIA RECEBIDA. Para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima “a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva” ou “a condições degradantes de trabalho”, condutas alternativas previstas no tipo penal. A “escravidão moderna” é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”. Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade. Denúncia recebida pela presença dos requisitos legais. ( BRASIL, 2012BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Apelação criminal 14784/CE. Penal e processual penal. Crime de redução à condição análoga à de escravo (art. 149 do cpb). Trabalhadores submetidos a condições degradantes de trabalho. Inexistência de restrição à liberdade locomotiva. Não caracterização da conduta criminosa. Mera ilicitude à legislação trabalhista. Atipicidade. Absolvição dos réus. Provimento das apelações. […] O crime de redução à condição análoga à de escravo caracteriza- se pela prática de uma das quatro modalidades descritas no tipo penal desenhado no art. 149 do Código Penal brasileiro, com a dicção dada pela Lei 10.803/2003: a) submissão a trabalhos forçados; b) submissão à jornada exaustiva; c) sujeição a condições degradantes de trabalho; e d) restrição da liberdade de locomoção, em razão de dívida contraída com o empregador. O tipo é misto alternativo ou de ação múltipla, configurando-se o crime mediante qualquer dessas modalidades, não se exigindo, necessariamente, a violência física (STF, Inq. 3564, 2ª Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 19/08/2014) ou a privação de liberdade (STF, Inq. 3412, Pleno, Rel. Min. Rosa Weber, j. 29/03/2012; STJ, HC 239.850, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, n. 14/08/2012). O parágrafo 1º do art. 149 do CPB ainda traz à colação as formas derivadas consistentes no cerceamento do acesso ao transporte, vigilância ostensiva e retenção de documentos. O consentimento da vítima é, a rigor, irrelevante, seja porque está em jogo a dignidade da pessoa humana, que é indisponível, seja porque tal beneplácito será, o mais das vezes, obtido de forma viciada, mediante fraude, coação ou erro. […] A sentença proferida pelo juízo a quo reconheceu a prática criminosa dos réus por entender ter havido sujeição dos trabalhadores a condições degradantes de trabalho, afastando, por conseguinte, a perpetração dos tipos de submissão a trabalho forçado, à jornada exaustiva, e à restrição à liberdade de locomoção. Em princípio, será degradante a condição laboral a falta de instalações sanitárias adequadas e de água potável e alimentação suficiente e adequada. Não se considera, porém, condição degradante de trabalho a mera precariedade das acomodações dos trabalhadores. Na hipótese dos autos, ficou provado, pela farta prova oral colhida na instrução processual, apenas a existência de condições degradantes de trabalho. No alojamento destinado a mais de 40 (quarenta) trabalhadores, existiam apenas redes para dormir, sem banheiros, nem lixeiras ou mesmo armários, para guardar pertences. Além disso, a água consumida pelos trabalhadores, armazenada em tanques e sem utilização de filtros, provinha de açude próximo, servindo para beber e tomar banho. Sem falar que os trabalhadores faziam as suas necessidades fisiológicas e tomavam banho em locais abertos, mais especificamente no “mato”, não sendo, ainda, fornecido papel higiênico ou qualquer material de higiene, nem equipamentos de proteção. Meras irregularidades ou ilicitudes à legislação trabalhista, tais como essas apresentadas neste caso, não configuram, necessariamente, perpetração de crime de redução à condição análoga à de escravo descrita no art. 149 do Código Penal brasileiro. É entendimento pacífico do Tribunal Regional Federal da 5ª Região que a simples submissão a condições degradantes de trabalho não se afigura suficiente para caracterizar o delito de redução à condição análoga à de escravo, sendo necessária a comprovação da restrição à liberdade locomotiva do trabalhador por seu empregador. (ACR 12874, 4ª Turma, Rel. Des. Élio Siqueira, j. 15/03/2016, DJE 31/03/2016; ACR 9449, 2ª Turma, Rel. Des. (conv.) Ivan Lira de Carvalho, j. 16/06/2015, DJE 26/06/2015; ACR 11503, 2ª Turma, Rel. Des. Vladimir Carvalho, j. 21/10/2014, DJE 24/10/2014). Uma das situações em que isso pode ocorrer é com a servidão por dívida. A servidão por dívida consiste na restrição da liberdade do trabalhador em razão de dívida contraída com o empregador. Neste caso em particular, normalmente, o trabalhador depende do empregador para obter comida, roupas, remédios e até mesmo ferramentas necessárias ao desempenho da atividade laborativa. Na espécie em cotejo, como se evidenciaram nos elementos de prova produzidos em juízo, não houve qualquer cerceamento ou embaraço à liberdade de locomoção dos 52 (cinquenta e dois) trabalhadores que laboravam na propriedade rural fiscalizada. Daí inexistir a necessária tipicidade da conduta praticada pelos réus, impondo-se, por via de consequência, as suas respectivas absolvições. Nesta linha de pensar, impende reconhecer a absolvição dos réus FRANCISCO LEORNE CALIXTO JÚNIOR e EXPEDITO CARLOS FONSECA DOS SANTOS, por não constituir as condutas imputadas de mera submissão a condições degradantes de trabalho, sem que tenha havido qualquer restrição à liberdade locomotiva, crime de redução à condição análoga à de escravo (art. 149 do CPB), de acordo com o disposto no art. 386, inciso III, do Código de Processo Penal. Provimento das apelações dos réus. Apelantes: Francisco Leorne Calixto Junior e Expedito Carlos Fonseca dos Santos. Apelado: Ministério Público Federal. Relator Desembargador Federal Leonardo Carvalho. Recife, 14 nov. 2017. Disponível em: http://www.gptec.cfch.ufrj.br/pdfs/tecnologia_escravidao.pdf. Acesso em 13 jul. 2021.
http://www.gptec.cfch.ufrj.br/pdfs/tecno...
).

Assim, a luta contra o trabalho escravo contemporâneo não se limita à tutela de liberdade da própria pessoa, em sua acepção individual e restrita ao aspecto físico; trata-se de delito que nega a condição de ser humano e, portanto, interessa a toda a sociedade e à coletividade de trabalhadores, prescindindo para sua configuração da restrição à liberdade de ir e vir.

3.2 Cidadania como antônimo de escravidão

O trabalho escravo mantém-se como significante, mas com significado diverso. Trata-se de conceito com conteúdo mutável como são todas as definições jurídicas em geral. Não se trata de conceito neutro, imutável e atemporal, mas algo que tem contornos definidos de acordo com o momento histórico em que se localiza.

Nas lições de Antonio Manuel Hespanha, uma mesma categoria permite várias leituras situadas no tempo, espaço e intencionalidade diversas.

O significado da mesma palavra, nas suas diferentes ocorrências históricas, está intimamente ligado aos diferentes contextos, sociais ou textuais, de cada ocorrência. Ou seja, o sentido é eminentemente relacional, ou local. Os conceitos interagem em campos semânticos diferentemente estruturados, recebem influências e conotações de outros níveis da linguagem (linguagem corrente, linguagem religiosa etc.), são diferentemente apropriados em conjunturas sociais ou em debates ideológicos, por detrás da continuidade aparente na superfície das palavras está escondida uma descontinuidade radical na profundidade do sentido. E esta descontinuidade semântica frustra por completo essa pretensão de uma validade intemporal dos conceitos embebidos nas palavras, mesmo que estas permaneçam ( HESPANHA, 2012HESPANHA, A. M. A cultura jurídica europeia: síntese de um milênio. Coimbra: Almedina, 2012., p. 26-27).

Não há neutralidade possível. A categoria – trabalho escravo – perpassa a história do Direito e do próprio Direito Brasileiro. Mas não o faz sem sofrer as influências da sociedade e da época em que se insere.

Assim, a Lei, conferindo nova redação ao art. 149 do Código Penal, estabeleceu quatro modalidades que representam a submissão de trabalhadores à condição análoga à de escravos, conceituando o fenômeno sempre que o trabalhador for submetido a trabalhos forçados e/ou a jornada exaustiva e/ou a condições degradantes de trabalho e/ou, ainda, a servidão por dívida.

O trabalho forçado está associado ao desprezo do elemento volitivo. É o trabalho obrigatório, executado contra a vontade livremente manifestada pelo trabalhador, caracterizando-se pelo vício do consentimento. Essa vontade viciada decorre da coação patronal e tem incidência tanto em momento pré-contratual, na escolha ou na aceitação do trabalho, como também durante a prestação dos serviços, impedindo o encerramento do vínculo. A jornada exaustiva é aquela exercida em condições adversas, em ritmo acelerado e frequência desgastante, e esse intenso labor impede que o trabalhador, ao final do dia, recomponha suas energias de trabalho até o início da jornada seguinte, fadigando-o, proporcionando-lhe má qualidade de vida e, decerto, atingindo-lhe a dignidade. A restrição de locomoção por dívida consiste na criação, por parte do empregador, de mecanismos de endividamento que impossibilitem ou tornem sobremaneira difíceis o encerramento do vínculo e o abandono do local de trabalho. As condições degradantes denotam rebaixamento, indignidade e aviltamento: são, portanto, condições precárias, aviltantes, subumanas; condições que privam o trabalhador de dignidade e que o desconsideram sujeito de direitos ( CAVALCANTI, 2016CAVALCANTI, T. M. Neoabolicionismo e direitos fundamentais. São Paulo: LTr, 2016.).

Como se vê, submeter alguém à escravidão não exige a restrição da liberdade de locomoção, mas o status libertatis, é dizer, a liberdade em sua vertente que se confunde com a própria dignidade, com a própria condição de humanidade. Isso fica claro na exposição de motivos da parte especial do Código Penal (item 51) que, desde 1940, já elucidava que, no art. 149, “o fato de reduzir alguém, por qualquer meio, à condição análoga à de escravo” significa “suprimir-lhe, de fato, o status libertatis, sujeitando-o o agente ao seu completo e discricionário poder”.

A liberdade tolhida pela escravidão relaciona-se ao conceito de autonomia, de autodeterminação, de livre-arbítrio. Sob essa perspectiva, a liberdade ganha a mesma concepção da autonomia individual como atributo que diferencia o homem dos demais seres vivos, possibilitando-lhe construir sua própria individualidade, escolher seu modo de ser, eleger seus próprios projetos de vida, agir conforme seu pensamento ( CAVALCANTI, 2016CAVALCANTI, T. M. Neoabolicionismo e direitos fundamentais. São Paulo: LTr, 2016.).

Trata-se, assim, de um conceito mais moderno e adequado ao enfrentamento da realidade e que desloca o eixo de proteção para a dignidade do trabalhador como ser humano e sujeito de direitos, promovendo sua proteção ampla. Nesse sentido, observa-se que a degradância das condições ambientais de trabalho e a imposição de jornadas exaustivas, por exemplo, são algumas das hipóteses que, no contexto do caso concreto, podem levar à caracterização da exploração como análoga à de escravo sem que o trabalhador tenha cerceado seu direito de ir e vir.

Conclusão

Herança de um passado colonial, o trabalho escravo permanece vivamente no Brasil do século XXI. Ao contrário do que acredita o senso comum e do que defendem as teorias liberais, essa forma de exploração do trabalho humano não é algo anacrônico e distópico, que ocorre à margem do sistema, mas uma das inúmeras maneiras como o capitalismo se manifesta em países periféricos.

Essa modalidade de exploração capitalista (porquanto inserida na quadra histórica do capitalismo) diferencia-se das demais formas de exploração do trabalho humano pelo grau de aviltamento, pela violência que ela encerra, podendo ocorrer de várias maneiras: impedindo o direito de o trabalhador deixar o trabalho, mediante a utilização de vigilância armada de pistoleiros ou milícias; impossibilitando a terminação do vínculo por meio da coação pecuniária decorrente da assunção de dívidas pelo trabalhador, prática conhecida como “sistema barracão”; exigindo do trabalhador o labor em jornadas exaustivas, que vão muito além do que o corpo humano suporta, esgotando-o, fatigando-o; impondo o trabalho em condições degradantes, que expõe a vítima a indesejáveis riscos à saúde e à segurança, atingindo-a diretamente em sua dignidade.

Do arcaico ao moderno, do rural ao urbano, do Brasil colônia ao Brasil república, do humano ao sub-humano, da cidadania à escravidão: esses aparentes antagonismos, encobertos pelo véu da modernidade, guardam semelhanças profundas: o mesmo de ontem, hoje, porém metamorfoseado. O trabalho escravo foi, portanto, ressignificado, mas não deixou de ser ele mesmo. Sua essência permanece íntegra mesmo após sua abolição formal e o advento das etapas mais recentes do capitalismo: a superexploração da pessoa trabalhadora, furtando-lhe a própria condição de ser humano.

Em tempos de sistemáticos rebaixamentos da condição socioeconômica da classe trabalhadora brasileira, é preciso resgatar a promessa constitucional, ainda não integralmente cumprida, mas fervorosamente sonhada, no sentido de garantir dignidade a todos e a todas. Só assim será possível superar a superexploração e abandonar os ranços coloniais para alcançar efetivamente as promessas republicanas.

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    » https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=570361
  • BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Inquérito n. 3412/AL. Penal. Redução a condição análoga a de escravo. Escravidão moderna. Desnecessidade de coação direta contra a liberdade de ir e vir. Denúncia recebida. Para configuração do crime do art 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima “a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva” ou “a condições degradantes de trabalho”, condutas alternativas previstas no tipo penal. A “escravidão moderna” é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”. Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade. Denúncia recebida pela presença dos requisitos legais. Autor: Ministério Público Federal. Investigados: João José Pereira de Lyra e Antônio José Pereira de Lyra. Relator Ministro Marco Aurélio. Redatora do Acórdão Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 30 mar. 2012. Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3076256 Acesso em: 13 jul. 2021.
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  • BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 16ª Região. Recurso Ordinário no processo n. 0143200- 45.2009.5.16.0013. TRABALHO ANÁLOGO À CONDIÇÃO DE ESCRAVO. NÃO CONFIGURAÇÃO. DANO MORAL. EXCLUSÃO. A caracterização do trabalho escravo pressupõe a existência de meios de coação, sejam físicos, psicológicos, morais ou mesmo por dívidas, que impeçam ou dificultem o exercício da liberdade de ir e vir do trabalhador, situação não verificada, haja vista que o reclamante usufruiu irrestritamente do referido direito. Recurso ordinário conhecido e provido. Recorrente: Marcelo Testa Baldochi. Recorrido: Raimundo Alves da Silva. Relator Desembargador Luiz Cosmo da Silva Júnior. São Luiz, 06 set. 2012. Disponível em: https://www.trt16.jus.br/site/conteudo/jurisprudencia/inteiroTeor.php Acesso em 13 jul. 2021.
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  • BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Apelação criminal 14784/CE. Penal e processual penal. Crime de redução à condição análoga à de escravo (art. 149 do cpb). Trabalhadores submetidos a condições degradantes de trabalho. Inexistência de restrição à liberdade locomotiva. Não caracterização da conduta criminosa. Mera ilicitude à legislação trabalhista. Atipicidade. Absolvição dos réus. Provimento das apelações. […] O crime de redução à condição análoga à de escravo caracteriza- se pela prática de uma das quatro modalidades descritas no tipo penal desenhado no art. 149 do Código Penal brasileiro, com a dicção dada pela Lei 10.803/2003: a) submissão a trabalhos forçados; b) submissão à jornada exaustiva; c) sujeição a condições degradantes de trabalho; e d) restrição da liberdade de locomoção, em razão de dívida contraída com o empregador. O tipo é misto alternativo ou de ação múltipla, configurando-se o crime mediante qualquer dessas modalidades, não se exigindo, necessariamente, a violência física (STF, Inq. 3564, 2ª Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 19/08/2014) ou a privação de liberdade (STF, Inq. 3412, Pleno, Rel. Min. Rosa Weber, j. 29/03/2012; STJ, HC 239.850, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, n. 14/08/2012). O parágrafo 1º do art. 149 do CPB ainda traz à colação as formas derivadas consistentes no cerceamento do acesso ao transporte, vigilância ostensiva e retenção de documentos. O consentimento da vítima é, a rigor, irrelevante, seja porque está em jogo a dignidade da pessoa humana, que é indisponível, seja porque tal beneplácito será, o mais das vezes, obtido de forma viciada, mediante fraude, coação ou erro. […] A sentença proferida pelo juízo a quo reconheceu a prática criminosa dos réus por entender ter havido sujeição dos trabalhadores a condições degradantes de trabalho, afastando, por conseguinte, a perpetração dos tipos de submissão a trabalho forçado, à jornada exaustiva, e à restrição à liberdade de locomoção. Em princípio, será degradante a condição laboral a falta de instalações sanitárias adequadas e de água potável e alimentação suficiente e adequada. Não se considera, porém, condição degradante de trabalho a mera precariedade das acomodações dos trabalhadores. Na hipótese dos autos, ficou provado, pela farta prova oral colhida na instrução processual, apenas a existência de condições degradantes de trabalho. No alojamento destinado a mais de 40 (quarenta) trabalhadores, existiam apenas redes para dormir, sem banheiros, nem lixeiras ou mesmo armários, para guardar pertences. Além disso, a água consumida pelos trabalhadores, armazenada em tanques e sem utilização de filtros, provinha de açude próximo, servindo para beber e tomar banho. Sem falar que os trabalhadores faziam as suas necessidades fisiológicas e tomavam banho em locais abertos, mais especificamente no “mato”, não sendo, ainda, fornecido papel higiênico ou qualquer material de higiene, nem equipamentos de proteção. Meras irregularidades ou ilicitudes à legislação trabalhista, tais como essas apresentadas neste caso, não configuram, necessariamente, perpetração de crime de redução à condição análoga à de escravo descrita no art. 149 do Código Penal brasileiro. É entendimento pacífico do Tribunal Regional Federal da 5ª Região que a simples submissão a condições degradantes de trabalho não se afigura suficiente para caracterizar o delito de redução à condição análoga à de escravo, sendo necessária a comprovação da restrição à liberdade locomotiva do trabalhador por seu empregador. (ACR 12874, 4ª Turma, Rel. Des. Élio Siqueira, j. 15/03/2016, DJE 31/03/2016; ACR 9449, 2ª Turma, Rel. Des. (conv.) Ivan Lira de Carvalho, j. 16/06/2015, DJE 26/06/2015; ACR 11503, 2ª Turma, Rel. Des. Vladimir Carvalho, j. 21/10/2014, DJE 24/10/2014). Uma das situações em que isso pode ocorrer é com a servidão por dívida. A servidão por dívida consiste na restrição da liberdade do trabalhador em razão de dívida contraída com o empregador. Neste caso em particular, normalmente, o trabalhador depende do empregador para obter comida, roupas, remédios e até mesmo ferramentas necessárias ao desempenho da atividade laborativa. Na espécie em cotejo, como se evidenciaram nos elementos de prova produzidos em juízo, não houve qualquer cerceamento ou embaraço à liberdade de locomoção dos 52 (cinquenta e dois) trabalhadores que laboravam na propriedade rural fiscalizada. Daí inexistir a necessária tipicidade da conduta praticada pelos réus, impondo-se, por via de consequência, as suas respectivas absolvições. Nesta linha de pensar, impende reconhecer a absolvição dos réus FRANCISCO LEORNE CALIXTO JÚNIOR e EXPEDITO CARLOS FONSECA DOS SANTOS, por não constituir as condutas imputadas de mera submissão a condições degradantes de trabalho, sem que tenha havido qualquer restrição à liberdade locomotiva, crime de redução à condição análoga à de escravo (art. 149 do CPB), de acordo com o disposto no art. 386, inciso III, do Código de Processo Penal. Provimento das apelações dos réus. Apelantes: Francisco Leorne Calixto Junior e Expedito Carlos Fonseca dos Santos. Apelado: Ministério Público Federal. Relator Desembargador Federal Leonardo Carvalho. Recife, 14 nov. 2017. Disponível em: http://www.gptec.cfch.ufrj.br/pdfs/tecnologia_escravidao.pdf Acesso em 13 jul. 2021.
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  • Como citar este artigo (ABNT):
    CAVALCANTI, T. M.; RODRIGUES, R. G. Trabalho escravo contemporâneo: hoje, o mesmo de ontem. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 20, e202203, 2023. Disponível em: http://www.domhelder.edu.br/revista/index.php/veredas/article/view/2203. Acesso em: dia mês. ano.
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    O conceito de trabalho escravo originalmente previsto no art. 149 do Código Penal estabelecia: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos”. A Lei n. 10.803/03 promove sua alteração, estabelecendo: “Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

    § 1º Nas mesmas penas incorre quem:

    I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;

    II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

    § 2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem”.

  • 2
    Frase célebre de Gilberto Freyre no plenário da Assembleia Constituinte de 1946.
  • 3
    Como exemplos, podem ser citados o PL 2464/2015, o PL 3842/2012, o PLS 432/2013 (regulamentação da PEC do Trabalho Escravo) e o PLS 236/2012 (Reforma do Código Penal).
  • 4
    Apenas à título de exemplo, citam-se dois acórdãos:
    “Na hipótese dos autos, ficou provado, pela farta prova oral colhida na instrução processual, apenas a existência de condições degradantes de trabalho. No alojamento destinado a mais de 40 (quarenta) trabalhadores, existiam apenas redes para dormir, sem banheiros, nem lixeiras ou mesmo armários, para guardar pertences. Além disso, a água consumida pelos trabalhadores, armazenada em tanques e sem utilização de filtros, provinha de açude próximo, servindo para beber e tomar banho. Sem falar que os trabalhadores faziam as suas necessidades fisiológicas e tomavam banho em locais abertos, mais especificamente no”mato”, não sendo, ainda, fornecido papel higiênico ou qualquer material de higiene, nem equipamentos de proteção. No entanto, meras irregularidades ou ilicitudes à legislação trabalhista, tais como essas apresentadas neste caso, não configuram, necessariamente, perpetração de crime de redução à condição análoga à de escravo descrita no art. 149 do Código Penal brasileiro” (BRASIL, 2017). “Em relação às condições de moradia, ditas aviltantes, sem banheiro e tratamento de água e esgoto adequadas, mister que façamos algumas reflexões. Vejamos. É patente que a maior parte da população mundial, mormente dos países periféricos, como é o caso do Brasil, vivencia uma realidade social de privação, seja como morador das periferias nas grandes cidades, seja como habitante da zona rural. Não raro, tomamos conhecimento de que, em pleno século XXI, grandes cidades brasileiras não dispõem de condições ideais de saneamento básico, tais como tratamento de água e esgoto, realidade essa que não muito diferente da que se espera encontrar em locais que estão incrustados no meio do mato, distantes mais de 32 km do povoado mais próximo. (…) Todo trabalho desenvolvido, seja como operário da construção civil, seja como catador de lixo, seja como gari, seja como trabalhador rural, lidando com o cultivo da terra, na agricultura ou mesmo na pecuária, cada trabalhador cumpre um papel relevante para o desenvolvimento econômico da sociedade, se submetendo às condições próprias do exercício da função desempenhada, de acordo com a realidade e o contexto em que se desenvolve. Não se pode querer aplicar à realidade de um trabalhador rural, do nordeste brasileiro, um ambiente de trabalho diverso do que fora apresentado na situação em análise” (BRASIL, 2012BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 16ª Região. Recurso Ordinário no processo n. 0143200- 45.2009.5.16.0013. TRABALHO ANÁLOGO À CONDIÇÃO DE ESCRAVO. NÃO CONFIGURAÇÃO. DANO MORAL. EXCLUSÃO. A caracterização do trabalho escravo pressupõe a existência de meios de coação, sejam físicos, psicológicos, morais ou mesmo por dívidas, que impeçam ou dificultem o exercício da liberdade de ir e vir do trabalhador, situação não verificada, haja vista que o reclamante usufruiu irrestritamente do referido direito. Recurso ordinário conhecido e provido. Recorrente: Marcelo Testa Baldochi. Recorrido: Raimundo Alves da Silva. Relator Desembargador Luiz Cosmo da Silva Júnior. São Luiz, 06 set. 2012. Disponível em: https://www.trt16.jus.br/site/conteudo/jurisprudencia/inteiroTeor.php. Acesso em 13 jul. 2021.
    https://www.trt16.jus.br/site/conteudo/j...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Ago 2021
  • Aceito
    10 Abr 2023
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