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DECRESCIMENTO ECONÔMICO COMO ALTERNATIVA AO RISCO ECOLÓGICO GLOBAL

Resumo

A recente crise sanitária global causada pelo novo coronavírus (Covid-19) revela-se como uma crise ecológica. Isso se deve, em última instância, ao efeito colateral do risco ambiental global reflexivo. Busca-se, neste artigo, analisar a conexão entre os fenômenos de pandemia, do risco ecológico na modernidade e da teoria do decrescimento. Alternativamente ao desenvolvimento (in)sustentável, busca-se propor o decrescimento como estratégia econômica, social e ambientalmente sustentável, que permite uma maior resiliência aos riscos ecológicos ou, ainda, a supressão de suas causas. A problemática de pesquisa envolve como é possível pensar em sustentabilidade ambiental num sistema de desenvolvimento atrelado ao crescimento econômico. Conclui-se que será provável o surgimento e disseminação de novas espécies zoonóticas caso não haja uma reavaliação do atual padrão da economia humana. Isso se deve à manutenção da lógica de crescimento econômico que, inserida na concepção de desenvolvimento sustentável, faz que a sustentabilidade ambiental seja fagocitada pela economia. Para elaboração do texto, adotou-se o método indutivo como metodologia de pesquisa e a pesquisa documental bibliográfica como técnica de pesquisa.

Palavras-chave:
crise sanitária; decrescimento; risco ecológico

Abstract

The recent global health crisis caused by the new coronavirus (COVID-19) has proved to be an ecological crisis. This is ultimately due to the side effect of the reflexive global environmental risk. This article seeks to analyze the connection between the pandemic, ecological risk in modernity and the degrowth theory. As an alternative to (un)sustainable development, we seek to propose degrowth as an economically, socially and environmentally sustainable strategy for greater resilience to ecological risks or even suppression of their causes. The research problem involves how it is possible to think about environmental sustainability in a development system harnessed to economic growth. It is concluded that the emergence and dissemination of new zoonotic species will be likely if there is not a reassessment of the current pattern of human economy. This is due to the maintenance of the logic of economic growth which, as part of the concept of sustainable development, means that environmental sustainability is engulfed by the economy. In the preparation of the text, the inductive method was adopted as a research methodology and the bibliographic documentary research as a research technique.

Keywords:
public health crisis; degrowth; ecological risk

Resumen

La reciente crisis sanitaria mundial provocada por el nuevo coronavirus (Covid-19) se revela como una crisis ecológica. Eso se debe, en última instancia, al efecto secundario del riesgo ambiental global reflexivo. Este artículo pretende analizar la conexión entre los fenómenos de pandemia, el riesgo ecológico en la modernidad y la teoría del decrecimiento. Se trata de proponer, como alternativa al desarrollo (in)sostenible, el decrecimiento como estrategia económica, social y ambientalmente sostenible, que permite una mayor resiliencia frente a los riesgos ecológicos o incluso la supresión de sus causas. El problema de investigación se refiere a cómo es posible pensar en la sostenibilidad ambiental en un sistema de desarrollo vinculado al crecimiento económico. Se concluye que la aparición y propagación de nuevas especies zoonóticas será probable si no se reevalúa el modelo actual de economía humana. Eso se debe al mantenimiento de la lógica del crecimiento económico que, inserta en la concepción del desarrollo sostenible, hace que la sostenibilidad ambiental sea fagocitada por la economía. Para la elaboración del texto se adoptó el método inductivo como metodología de investigación y la investigación documental bibliográfica como técnica de investigación.

Palabras clave:
crisis sanitaria; decrecimiento; riesgo ecológico

Introdução

A conjuntura atual de crise sanitária sentida em todo mundo causada pelo Sars-CoV-2, agente originador do novo coronavírus (Covid-19), foi capaz de descortinar e apontar adversidades para as quais as atenções não estavam voltadas antes da disseminação do novo vírus. Este artigo tem por objetivo analisar a conexão existente entre o fenômeno de pandemia global e sua caracterização como um risco ambiental global. Além disso, busca-se discutir possíveis soluções para que a humanidade diminua o grau de ameaças civilizatórias e possa prolongar sua existência.

A hipótese a ser averiguada é a de que a teoria do decrescimento se apresenta como proposta teórica e prática para redução da exposição humana ao risco ambiental. Para isso, adota-se o método indutivo como metodologia de pesquisa, tendo em vista que a combinação das constatações encadeadas permite chegar a conclusões genéricas aplicáveis, ainda que parcialmente. Isso porque o método indutivo parte de dados particulares, analisando fenômenos em sua individualidade para chegar a uma “verdade” geral. Em conjunto ao método de pesquisa, utilizou-se da técnica de pesquisa bibliográfica para construção deste texto, abrangendo fontes obtidas de arquivos públicos, fatores estatísticos e bibliografias que tratam direta e indiretamente do tema em questão.

O texto está estruturado em três tópicos. O primeiro destina-se a apresentar uma síntese do panorama global da crise sanitária causada pelo vírus Sars-Cov-2. Apesar de ter ocorrido uma suavização temporária da degradação ambiental em decorrência do isolamento social mundial, as atividades antrópicas têm provocado desequilíbrios ecológicos em níveis cada vez mais irreversíveis. O próprio surgimento da variante Covid-19 é resultado da intensificação do acometimento humano sobre a natureza, uma vez que o vírus é uma zoonose, classe de doenças cujo aparecimento e disseminação é determinado também pelas condições ambientais. Assim, o quadro geral de crise emergente de saúde pública global revela-se, em última instância, como crise ecológica global.

Num segundo momento, busca-se demonstrar que o novo coronavírus é uma fração da crise ecológica, resultado do risco ambiental. A partir da teoria da sociedade de risco do sociólogo alemão Ulrich Beck, argumenta-se que a nova classe de riscos na modernidade é caracterizada pela reflexividade do risco, bem como por sua deslocalização, tendente globalização e incalculabilidade. Subsidiado na definição de “desenvolvimento”, “sustentabilidade” e “desenvolvimento sustentável”, o argumento é que a atual crise sanitária pode ser interpretada como um risco ambiental global produzido em decorrência dos processos de modernização e industrialização voltados ao crescimento econômico ilimitado.

Por fim, o terceiro tópico concentra-se na apreciação da hipótese apresentada. A partir das análises de “desenvolvimento”, “sustentabilidade” e “desenvolvimento sustentável” anteriormente aprofundadas, propõe-se a teoria do decrescimento como alternativa teórica e prática para enfrentar os riscos ambientais na modernidade. Aponta-se que o desenvolvimento sustentável, tradicionalmente vinculado ao crescimento econômico, fagocita a sustentabilidade ambiental na noção de “desenvolvimento sustentável” e não questiona os padrões econômicos clássicos.

Conclui-se que o surgimento e a disseminação de novas espécies zoonóticas serão recorrentes, caso o atual padrão de crescimento econômico não seja reavaliado. Em suma, a modernidade exige recursos para além da capacidade natural de regeneração, tendo em conta a aceleração do fluxo baixa-alta entropia. Assim, a degradação e desequilíbrio ecológicos alcançam patamares de ponto de não retorno. Nesse contexto, o risco ambiental surge reflexivamente como consequência e produto da modernidade, de tal maneira que o desenvolvimento sustentável não atende satisfatoriamente à compatibilização entre os atuais ritmos de produção e a manutenção do equilíbrio natural. Diante desse quadro, o decrescimento ressurge como alternativa ao risco ecológico da modernidade.

1 Crise pandêmica-sanitária no contexto do desequilíbrio socioambiental

O cenário de pandemia que se apresentou em dezembro do ano de 2019, e que seguirá repercutindo efeitos nos próximos anos, é um campo fértil para explorar variados temas nas mais diversas áreas. Profissionais da saúde, das ciências biológicas, econômicas e sociais depararam-se com um contexto no qual a construção do conhecimento se interliga para ter a dimensão das perturbações trazidas pelo novo coronavírus e o grau de prudência necessário para enfrentá-las.

Uma dessas dimensões atingidas pela pandemia da Covid-19 é a ecológica ambiental. Em decorrência da paralisação das atividades industriais, da redução do número de veículos nos centros urbanos e do isolamento social durante boa parte do ano de 2020 em vários locais do mundo, alterações no meio ambiente foram percebidas. A melhora na qualidade do ar nos grandes centros urbanos foi o primeiro aspecto a ser observado. Um relatório elaborado pela IQAir, plataforma digital que fornece informações sobre a qualidade do ar em tempo real, coletou dados por três semanas nas dez maiores cidades mundiais em isolamento social e os comparou às estatísticas do mesmo período nos anos de 2019, 2018, 2017 e 2016. Deli, Londres, Los Angeles, Milão, Mumbai, Nova York, Roma, São Paulo, Seoul e Wuhan foram as cidades avaliadas.

Dos dez grandes centros, nove apresentaram reduções de PM 2,5 (unidade de medida que analisa a quantidade de partículas finas no ambiente) comparadas ao mesmo período em 2019. Cidades com níveis historicamente elevados de poluição experimentaram substantiva melhora na qualidade do ar, sendo a poluição reduzida a 60% no caso de Deli e 44% em Wuhan, localidade que testemunhou seu mais limpo ar registrado durante o isolamento social. Em São Paulo, a poluição do ar reduziu em 32% comparativamente ao mesmo período em 2019 ( IQAIR, 2020IQAIR. Covid-19 air quality report 2019: coronavirus pandemic lockdowns result in unprecedented reductions in deadly particle pollution. Goldach: IQAir, 2020. Disponível em: https://www2.iqair.com/sites/default/files/documents/REPORT-COVID-19-Impact-on-Air-Quality-in-10-Major-Cities_V5.pdf?_ga=2.243813445.1303574224.1587559320-489020689.1587559320. Acesso em: 9 set. 2020.
https://www2.iqair.com/sites/default/fil...
).

Outro ponto de destaque é o Dia de Sobrecarga da Terra, data que marca o dia do ano em que a demanda da humanidade por recursos naturais e serviços ecológicos ultrapassa a capacidade do planeta de regenerar seus ecossistemas naquele mesmo ano. O dia “D” foi alcançado em 22 de agosto de 2020, mais tarde do que o esperado, principalmente em razão da redução do ritmo das atividades industriais. Em 2019, o ponto crítico foi alcançado em 29 de julho, a data mais recuada desde o início das medições do déficit ecológico na década de 1970 ( O DIA DA SOBRECARGA…, 2019O DIA DA SOBRECARGA da Terra em 2019 assinala-se a 29 de julho, a data mais recuada desde que o défice ecológico começou no início da década de 1970. Earth Overshoot Day, jun. 2019. Disponível em: https://www.overshootday.org/newsroom/press-release-june-2019-portuguese/. Acesso em: 11 set. 2020.
https://www.overshootday.org/newsroom/pr...
; WWF BRASIL, 2020WWF BRASIL. Dia da sobrecarga da terra: overshoot day. 2020. Disponível em: https://www.wwf.org.br/overshootday.cfm. Acesso em: 11 set. 2020.
https://www.wwf.org.br/overshootday.cfm...
).

No entanto, essas circunstâncias não devem ser avaliadas numa perspectiva otimista, tendo em vista que os benefícios testemunhados resultaram de um contexto excepcional. O ritmo atual estimado de aquecimento global é de 0,2℃ por década, podendo chegar a 1,5℃ entre 2030 e 2052 ( IPCC, 2019IPCC – PAINEL INTERGOVERNAMENTAL SOBRE MUDANÇAS CLIMÁTICA. Aquecimento global de 1,5°C. Brasília, DF: IPCC, 2019. Disponível em: https://www.ipcc.ch/site/assets/uploads/2019/07/SPM-Portuguese-version.pdf. Acesso em: 23 set. 2020.
https://www.ipcc.ch/site/assets/uploads/...
). Além disso, a capacidade de regeneração natural do planeta está cada vez mais afetada pelas atividades antrópicas, dada a escalada vertiginosamente crescente do consumo e extração de recursos naturais.

O novo coronavírus, doença zoonótica (isto é, que é transmitida por animais não humanos), denunciou dilemas ambientais envolvendo o vínculo entre a humanidade e o meio ambiente natural os quais, apesar de já percebidos pela comunidade internacional, são designados ao nível secundário de debate em detrimento da premência dos desafios econômicos e sanitários. O Frontiers 2016 Report: Emerging Issues of Environmental Concern 1 1 “Relatório Fronteiras 2016 Acerca das Questões de Emergência Ambiental” (tradução livre). , do United Nations Environment Programme (UNEP), contribui para compreensão da relação entre a pandemia e o meio ambiente natural. O relatório dedicou uma sessão exclusiva para tratar de zoonoses e identificou “doenças zoonóticas emergentes” como aquelas que aparecem recentemente na população ou eram preexistentes, mas que aumentaram rapidamente seu contágio e alcance geográfico ( UNEP, 2016UNEP – UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. UNEP Frontiers 2016 report: emerging issues of environmental concern. Nairobi: UNEP, 2016. Disponível em: https://environmentlive.unep.org/media/docs/assessments/UNEP_Frontiers_2016_report_emerging_issues_of_environmental_concern.pdf. Acesso em: 11 set. 2020.
https://environmentlive.unep.org/media/d...
) 2 2 Destaca-se que as referências indicadas ao longo do texto atinentes ao UNEP ou ao PNUMA se referem à mesma instituição. As siglas utilizadas para fins de citação pelo sistema Autor-data respeitam a língua em que o documento foi escrito, ora em português (PNUMA), ora em inglês (UNEP). Porém, trata-se de documentos da mesma instituição, ainda que alguns não estejam traduzidos para o português. .

O surgimento de zoonoses está diretamente associado a distúrbios ecológicos, como a intensificação da agricultura, a aproximação de assentamentos humanos a zonas de vegetação nativa e, principalmente, às mudanças climáticas. Esse fator é um dos importantes influenciadores na amplificação das zoonoses, pois as condições climáticas são as responsáveis por tornar o ambiente propício ou não para sobrevivência, reprodução e distribuição do patógeno ( UNEP, 2016UNEP – UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. UNEP Frontiers 2016 report: emerging issues of environmental concern. Nairobi: UNEP, 2016. Disponível em: https://environmentlive.unep.org/media/docs/assessments/UNEP_Frontiers_2016_report_emerging_issues_of_environmental_concern.pdf. Acesso em: 11 set. 2020.
https://environmentlive.unep.org/media/d...
), possibilitando que a doença tome proporções epidêmicas.

Sousa et al. ( 2018SOUSA, T. C. M. et al. Doenças sensíveis ao clima no Brasil e no mundo: revisão sistemática. Pan American Journal of Public Health, v. 42, n. 85, p. 1-10, jun. 2018. Disponível em: https://www.scielosp.org/pdf/rpsp/2018.v42/e85/pt . Acesso em: 11 out. 2020.
https://www.scielosp.org/pdf/rpsp/2018.v...
), ao analisarem 65 doenças sensíveis ao clima (DSC), obtiveram o seguinte resultado: as DSC mais frequentes foram as respiratórias, seguidas por dengue, malária e doenças cardiovasculares. Confirmando as alegações da UNEP, em análise dos locais de estudo de incidência das doenças sensíveis ao clima, os impactos sobre a espécie humana “[…] não ocorrem com distribuição geográfica homogênea, devido aos diferentes resultados previstos pelas mudanças climáticas, além de distintas características socioeconômicas” (SOUSA, et al., 2018SOUSA, T. C. M. et al. Doenças sensíveis ao clima no Brasil e no mundo: revisão sistemática. Pan American Journal of Public Health, v. 42, n. 85, p. 1-10, jun. 2018. Disponível em: https://www.scielosp.org/pdf/rpsp/2018.v42/e85/pt . Acesso em: 11 out. 2020.
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, p. 6).

O relatório de 2016 indicava que em torno de 60% das doenças infecciosas em humanos são zoonóticas e que uma nova variedade infecciosa surge em humanos a cada quatro meses ( UNEP, 2016UNEP – UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. UNEP Frontiers 2016 report: emerging issues of environmental concern. Nairobi: UNEP, 2016. Disponível em: https://environmentlive.unep.org/media/docs/assessments/UNEP_Frontiers_2016_report_emerging_issues_of_environmental_concern.pdf. Acesso em: 11 set. 2020.
https://environmentlive.unep.org/media/d...
). Nos últimos anos, as doenças emergentes que mais ocuparam as páginas dos principais veículos de imprensa foram zoonoses: Ebola, Zika vírus, gripe aviária, síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS) e a SARS (síndrome respiratória aguda grave que também é causa de outras espécies de coronavírus). O mais recente registro da UNEP, lançado em julho de 2020 especialmente pelo contexto pandêmico atual, intitulado Preventing the next pandemic: zoonotic diseases and how to break the chain of transmission 3 3 “Prevenindo a próxima pandemia: doenças zoonóticas e como quebrar a corrente de transmissão” (tradução livre). apresenta uma avaliação técnico-científica acerca das zoonoses e reafirma alguns dos alertas já qualificados em 2016.

De maneira geral, a troca de microrganismos entre seres humanos e animais é natural e importante para o equilíbrio saudável da vida ( UNEP, 2020UNEP – UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. Preventing the next pandemic: zoonotic diseases and how to break the chain of transmission. Nairobi: UNEP, 2020. Disponível em: https://unsdg.un.org/resources/preventing-next-pandemic-zoonotic-diseases-and-how-break-chain-transmission Acesso em: 20 nov. 2020.
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). O problema reside no desequilíbrio dessa interação, resultado preponderantemente de ações antrópicas. De acordo com o novo relatório, ainda que certas condições físicas possam potencializar o risco de infecção por zoonoses (como idade, fisiologia, histórico de exposição, infecção simultânea por outro patógeno), os principais contribuintes para o aumento das chances de contágio por zoonose resultam da intensificação do comércio global e das atividades industriais ( UNEP, 2020UNEP – UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. Preventing the next pandemic: zoonotic diseases and how to break the chain of transmission. Nairobi: UNEP, 2020. Disponível em: https://unsdg.un.org/resources/preventing-next-pandemic-zoonotic-diseases-and-how-break-chain-transmission Acesso em: 20 nov. 2020.
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).

A avaliação do Preveting the next pandemic especifica que os maiores condutores antropogênicos das doenças zoonóticas emergentes são: (a) intensificação da agricultura e da pecuária insustentáveis (o que tende a gerar animais geneticamente similares e, consequentemente, aumentar a suscetibilidade de infecção da população animal); (b) uso insustentável de recursos naturais em razão da aceleração da urbanização; (c) aumento da demanda por consumo de alimentos de origem animal; (d) a agressiva exploração de animais selvagens; (e) transporte de animais (legal e ilegal); e, por fim, (f) mudanças climáticas ( UNEP, 2020UNEP – UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. Preventing the next pandemic: zoonotic diseases and how to break the chain of transmission. Nairobi: UNEP, 2020. Disponível em: https://unsdg.un.org/resources/preventing-next-pandemic-zoonotic-diseases-and-how-break-chain-transmission Acesso em: 20 nov. 2020.
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).

Especificamente quanto à Covid-19, a organização internacional informa que as diversas espécies de coronavírus são de origem semelhante. Até o presente momento, a tese sustentada é que as mais de duzentas espécies do vírus foram encontradas em morcegos, de modo que a transmissão se deu entre morcegos e seres humanos, entre morcegos, ou entre outros animais e seres humanos, ocasionando uma transmissão interespécie. Outros dois fatores preponderantes do caso Sars-Cov-2 é a intensificação da agricultura e o aumento da demanda por proteína animal, bem como o consumo e a comercialização de animais em locais conhecidos por wet markets 4 4 “Mercados úmidos” (tradução livre). , isto é, mercados informais onde se comercializam animais (vivos ou não) transmissores do patógeno:

These coronavirus disease outbreaks followed rapid intensification of agricultural practices and systems, and dramatic changes in the ways animals were kept or farmed, many of which were made without proper precautionary measures being taken. As mentioned previously, this was a demand driven process, associated with increasing wealth, allowing people to consume more animal source food. […]. SARS-CoV and SARS-CoV-2 may be associated with wildlife harvest, trade practices and the intensification of wildlife farming in East Asia ( UNEP, 2020UNEP – UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. Preventing the next pandemic: zoonotic diseases and how to break the chain of transmission. Nairobi: UNEP, 2020. Disponível em: https://unsdg.un.org/resources/preventing-next-pandemic-zoonotic-diseases-and-how-break-chain-transmission Acesso em: 20 nov. 2020.
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, p. 25) 5 5 “Esses surtos da doença de coronavírus seguiram a rápida intensificação de práticas e sistemas agrícolas, e as dramáticas mudanças na forma em que os animais eram mantidos ou criados, muitos dos quais foram feitos sem que as devidas medidas de precaução fossem tomadas. Como mencionado previamente, esse foi um processo impulsionado pela demanda, associado ao aumento da riqueza, permitindo às pessoas consumirem mais alimentos de origem animal. […]. O SARS-Cov e o SARS-Cov-2 podem estar associados à captura de animais selvagens, às práticas comerciais e à intensificação da agricultura de animais selvagens na Ásia Oriental” (UNEP, 2020, p. 25, tradução livre). .

A partir da rede de fatores que contribui para a transmissão de zoonoses, não só o aumento da transmissão entre animais e seres humanos é esperável, como também o desenvolvimento de novas variedades patogênicas. O relatório do UNEP conta com estratégias para prevenção de próximos surtos de zoonoses, tendo em vista que entende ser inevitável o aparecimento de novas doenças ( UNEP, 2020UNEP – UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. Preventing the next pandemic: zoonotic diseases and how to break the chain of transmission. Nairobi: UNEP, 2020. Disponível em: https://unsdg.un.org/resources/preventing-next-pandemic-zoonotic-diseases-and-how-break-chain-transmission Acesso em: 20 nov. 2020.
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). Encontrar alternativas que contemplem a coexistência sustentável entre atividades humanas e o meio ambiente é uma das políticas recomendadas para o controle e prevenção de zoonoses ( UNEP, 2020UNEP – UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. Preventing the next pandemic: zoonotic diseases and how to break the chain of transmission. Nairobi: UNEP, 2020. Disponível em: https://unsdg.un.org/resources/preventing-next-pandemic-zoonotic-diseases-and-how-break-chain-transmission Acesso em: 20 nov. 2020.
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).

De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), o vírus Sars-CoV-2 (Covid-19) está impactando a humanidade com maior intensidade comparativamente aos efeitos causados pelas zoonoses anteriormente identificadas, pois a espécie humana está oferecendo a ele maiores condições para sua disseminação ( PNUMA, 2020PNUMA – PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O MEIO AMBIENTE. Causas do COVID-19 incluem ações humanas e degradação ambiental, apontam estudos. Nairobi: PNUMA, 2020. Disponível em: https://www.unenvironment.org/pt-br/noticias-e-reportagens/reportagem/causas-do-covid-19-incluem-acoes-humanas-e-degradacao-ambiental. Acesso em: 14 set. 2020
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). As informações técnicas resgatadas apontam para um consenso de que há uma relação direta e proporcional entre o surgimento e disseminação de zoonoses e as alterações no meio ambiente natural provocadas por atividades antrópicas: quanto maior o desequilíbrio ambiental, maior o risco e a ameaça de doenças paras as quais a ciência desconhece a cura.

A Covid-19 foi capaz de destacar o risco ambiental ao qual a humanidade está sujeita na modernidade. O quadro geral que se apresenta é de uma conjuntura de crise emergente de saúde pública global que, em última instância, se revela como crise ecológica global. Isso se deve ao descontrole das atividades antrópicas, sobretudo do ritmo da produção industrial e do comportamento social que busca no consumo exacerbado a satisfação de necessidades irreais. As consequências do risco desdobram-se em inúmeros efeitos que aproximam a espécie humana de eventos calamitosos para os quais não há precedentes de enfrentamento.

2 Risco ambiental: tema-problema da modernidade

A modernidade proporcionou melhora da qualidade de vida da humanidade de modo impensável para as sociedades pré-modernas. Desenvolvimentos extraordinários na medicina, estratégias sanitárias e de prevenção de doenças, possibilidades de maior conforto no lar, a comodidade do automóvel, a facilidade da rede mundial de computadores. Inúmeras inovações podem ser mencionadas com o advento e progressão do mundo moderno. Porém, o modo de operação atual alcançou níveis de exigência ecológica insustentáveis.

Baumann ( 2001BAUMANN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.) descreveu os novos tempos como uma ‘modernidade líquida’ (em comparação com os três estados físicos da matéria). A modernidade contemporânea é marcada por sua fluidez, ou seja, não se atém a nenhuma forma específica. O tempo é mais precioso que o espaço, pois este último pode ser alterado convenientemente a qualquer momento. É também na modernidade líquida que o tempo se reduziu a instantaneidade. Ser moderno significa estar em movimento e ser incapaz de apreciar a satisfação do alcance dos objetivos. A satisfação deve-se à corrida da conquista, e não à conquista em si. Segundo Baumann ( 2001BAUMANN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.), o mais moderno, e, portanto, o melhor que pode ser feito está sempre no futuro.

Por isso, a modernidade líquida distingue-se de todas as outras formas históricas de transformação e convívio humano em razão da “[…] compulsiva e obsessiva, contínua irrefreável e sempre incompleta modernização; a opressiva e inerradicável, insaciável sede de destruição criativa […] de ‘limpar o lugar’ em nome de um ‘novo e aperfeiçoado’ projeto […]” ( BAUMANN, 2001BAUMANN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001., p. 36). Assim, a humanidade perdeu-se do limite do aperfeiçoamento do progresso.

Do outro lado da linha de montagem do aprimoramento constantemente necessário da indústria e do consumo está o sociólogo alemão Ulrich Beck ( 2011BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.), que desenvolveu outra análise da contemporaneidade a que deu nome de Sociedade de Risco. Em suma, a sociedade contemporânea seria caracterizada pela acumulação do risco: ameaças nucleares, terroristas, financeiras, militares, bioquímicas, informacionais e ambientais aglomeram-se numa curta fração de tempo. De início, vale destacar que o “risco” 6 6 Beck ( 2011) estabelece uma diferenciação de sentido entre “ameaça” e “risco”. Ambas são espécies de incertezas futuras. Porém, o risco é um conceito moderno que pressupõe decisões humanas e futuros humanamente produzidos. Já a ameaça trata da insegurança que acompanha a espécie humana desde sua formação primitiva relacionada à sobrevivência. Apesar da diferenciação em tipos ideais, ameaça e risco entrecruzam-se na realidade. para Beck ( 2011BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p. 362-363) é entendido como a “ antecipação da catástrofe” que pressupõe decisões humanas. Já a “modernização” é o

[…] salto tecnológico de racionalização e a transformação do trabalho e da organização, englobando para além disto […] as mudanças dos caracteres sociais e das biografias padrão, dos estilos e formas de vida, das estruturas de poder e controle, das formas política de opressão e participação, das concepções de realidade e das normas cognitivas. […] processo que abrange e reconfigura toda a trama social, na que se alteram, em última instância as fontes de certeza das quais se nutre a vida ( BECK, 2011BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p. 23).

A sociedade de risco é teoricamente formulada pela concatenação de conceitos definidos ao longo de sua obra. A socialização e reflexividade do risco, bem como sua globalização e incalculabilidade, fazem parte do conjunto de aspectos que possibilitam a compreensão do quadro de risco e ameaça na modernidade.

A modernização, fenômeno alterador das fontes de certeza da ciência, das estruturas sociais e das concepções de realidade, modificou o círculo no qual o risco e a ameaça são sentidos. O círculo foi ampliado, não se restringindo a setores específicos da sociedade (grupos enquadrados como agentes apartados de uma pretensa normalidade e regularidade), antes considerados outros 7 7 Com relação aos “ outros” tradicionalmente marginalizados, vale ressaltar que Beck traz uma perspectiva europeia do século XX para identificar tais grupos. Os “Outros”, para Beck, são exemplificados pelos judeus, refugiados, comunistas e imigrantes. Pela perspectiva brasileira, essa visão sobre quem seriam os “ outros” deve ser ampliada para incluir grupos também afetados pelos efeitos da modernidade, como comunidades ribeirinhas, quilombolas e comunidades tradicionais. ( BECK, 2011BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.).

Entretanto, desde Chernobyl e as ameaças nucleares que marcaram a segunda metade do século XX, restou evidente que os efeitos do risco (sobretudo riscos ambientais) podem atingir a todos em maior ou menor grau. Por essa razão, Beck entende que riscos na modernidade são democratizados 8 8 Para Beck ( 2011), na medida em que os riscos na modernidade se intensificam, a sociedade de risco desenvolve uma tendência à unificação em razão da globalização das ameaças. Diferentemente da sociedade de classe, a sociedade de risco força a humanidade a colaborar em razão de sua dinâmica evolutiva transfronteiriça. Diante do fator equalizador do risco, sociedades de risco não podem ser avaliadas pelos pressupostos da sociedade de classes. O risco na modernidade são ameaças apesar da classe. Contudo, essa análise não anula o fato de o risco ser distribuído de maneira desigual em razão da classe social. A distribuição do risco é historicamente atrelada à classe social. Portanto, o problema de distribuição de riquezas está intimamente relacionado ao problema de distribuição de risco. ( BECK, 2011BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.).

A democratização do risco pressupõe sua deslocalização. Assim, a segunda marca dos riscos modernos é sua globalização. Dada a complexificação do mercado, a internacionalização das indústrias, as novas possibilidades de compra abertas aos consumidores e a intensificação da agressão ao meio ambiente, os riscos já não podem mais ser reduzidos a perigos de curto alcance ou restritos a uma pequena área geográfica. Pelo contrário, existe uma tendência de se alastrarem pelo globo e, cedo ou tarde, ultrapassarem fronteiras geográficas. “Nesse sentido, com um novo tipo de dinâmica social e política […], faz surgir ameaças globais supranacionais […]” ( BECK, 2011BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p. 15-16). Na modernidade, o risco adquire natureza de incerteza global.

Em sentido semelhante, Anthony Giddens ( 1991GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991.) já abordava, no início dos anos 1990, que a globalização do risco pode ser identificada em duas escalas: intensidade e expansão. Intensidade porque leva em consideração o grau de severidade do risco e expansão em razão da quantidade de ocorrências secundárias que afetam a todos ou, pelo menos, a grande parte da população mundial.

Outra característica do risco da modernidade é sua incalculabilidade, fator ligado ao conhecimento científico acerca do risco. Beck ( 2011BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p. 262-263) defende a tese de que a crescente incalculabilidade é acompanhada da crescente estimabilidade. “Assim, os efeitos reais tornam-se em última medida cada vez mais incalculáveis porque os efeitos possíveis se tornam cada vez mais estimáveis no processo de pesquisa […]”. Essa relação entre incalculabilidade e estimabilidade decorre do próprio processo de produção de conhecimento ocorrido nas ciências e sua capacidade de controle:

A autoimagem predominante da teoria da ciência indica: as ciências não podem pronunciar qualquer enunciado axiológico com a autoridade de sua racionalidade. Elas oferecem cifras, informações, explicações por assim dizer “neutras”, que devem servir aos mais diversos interesses como base […] para tomada de decisões. Porém: quais cifras elas selecionam, a quem ou a que elas atribuem as causas, como elas interpretam os problemas da sociedade e que tipo de solução elas trazem à tona – são tudo menos decisões neutras. Em outras palavras: as ciências desenvolveram suas capacidades de controle prático independente e para além de enunciados axiológicos explícitos. Suas possibilidades práticas de exercer influência residem no como da construção científica de resultados ( BECK, 2011BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p. 265-266).

Essa abordagem crítica não significa dizer que o conhecimento científico na modernidade seja o responsável direto pelos resultados que culminam na criação de ameaças, mas sim que as ciências detêm o poder de criar ou reproduzir segurança ou insegurança. Nesse contexto em que o risco ambiental é criado pela infusão de conhecimento humano na natureza ( GIDDENS, 1991GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991.), transformando-a em “natureza artifício” 9 9 A expressão “natureza artifício” vem de Ost ( 1995). Em “ A natureza à margem da lei” o autor discute o vínculo e o limite da relação entre o homem e a natureza, argumentando que com a modernidade, o sentido de vínculo e de limite dessa relação se perdeu. No tocante ao vínculo, o tipo de relação que se estabeleceu entre homem e natureza foi pautada na substituição do natural pelo plastificado. Nesse sentido, o que se deu foi uma crise do vínculo, pois a tecnociência moderna compreende a natureza para depois imitá-la, aperfeiçoá-la, transformá-la e, por fim, cria-se o artifício, o autônomo, a supranatureza. Esse vínculo”[…] se antropomorfizou, sendo a natureza reduzida aos interesses exclusivos da espécie humana […]” (OST, 1995, p. 30). , a contribuição do conhecimento científico para redução do risco e da ameaça passa pela análise de a partir de que ponto o tratamento dos sintomas pode ser substituído pela supressão das causas do risco ( BECK, 2011BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.).

Por essa razão, no que tange ao risco na modernidade, perguntar como é tão importante quanto o que: o que é pesquisado, o que é industrialmente produzido e frequentemente modernizado, como é pesquisado, como as respostas dessas pesquisas são apresentadas, como é produzido ou se pretende produzir, como é possível reverter os efeitos colaterais do processo de industrialização. Por isso que, diante do impasse entre supressão de causas ou tratamento de sintomas, a incalculabilidade do risco persiste. É possível prever o risco, porém não é possível prever sua dimensão.

Finalmente, a reflexividade consiste na grande diferenciação dos riscos civilizatórios em relação às ameaças vivenciadas pela humanidade em momentos históricos anteriores. Os riscos na modernidade podem ser definidos como efeitos colaterais que causam outros efeitos colaterais. Isto é, os riscos não são atores de uma realidade caótica, mas sim resultado proveniente de futuros humanamente produzidos e de decisões políticas, jurídicas, econômicas e sociais passadas e presentes as quais, por sua vez, produzem cenários de insegurança. Segundo Beck ( 2011BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.), os riscos atuais são, portanto, consequência e produto da modernidade ou, ainda, são dotados de um efeito reflexivo convertido em tema-problema da modernidade.

O risco ambiental nesta quadra histórica é constituído por elementos relativamente inéditos. A atual crise sanitária causada pelo vírus Sars-Cov-2, entendida como um recorte da crise ecológica global, atende a todas as características de risco (ambiental) da modernidade produzida em decorrência dos processos de modernização e industrialização do mundo. A pandemia global é uma ameaça à sobrevivência humana, que, no entanto, não pode ser tratada como fato imprevisível, na medida em que as causas desse específico risco não foram adequadamente solucionadas. Logo, é preciso analisar soluções ecológicas para a modernidade, com vistas a prevenir novas crises ecológicas de magnitude global.

3 Decrescimento econômico: uma proposta de enfrentamento ao risco ecológico global

A nova classe de riscos e ameaças na modernidade é caracterizada por um ineditismo sem precedentes. São eventos reflexivos globalmente sentidos de previsão estimável, de danos incalculáveis e de urgência latente. As vicissitudes da modernidade industrializada traçaram um novo perfil do risco, trazendo à tona debates acerca de quais soluções podem ser adotadas para que o risco seja reduzido. Entre as soluções propostas difundidas na segunda metade do século XX está o discurso do desenvolvimento sustentável, tendo em vista seu pressuposto de que seria possível continuar produzindo e consumindo no atual ritmo e, simultaneamente, precaver-se de uma nova crise sanitária. No entanto, diante do aumento do metabolismo da economia humana 10 10 Expressão de Alier ( 2011, p. 47). , aposta-se no decrescimento como fundamento teórico e estratégia prática para evitar que a humanidade seja exposta a novos riscos ambientais.

O decrescimento, pautado na bioeconomia ou economia ecológica, ressurge 11 11 De acordo com Latouche ( 2009), o decrescimento surge nos anos 1960 e é desenvolvido sobretudo por Ivan Illich e Cornelius Castoriadis a partir de seus questionamentos acerca da sociedade de consumo e suas bases imaginárias: o progresso, a ciência e a técnica”. como alternativa prática e teórica diante da crise ecológica e como uma “[…] tomada de consciência sobre um processo que se instaurou no coração do processo civilizatório que atenta contra a vida no planeta vivo e qualidade de vida humana” ( LEFF, 2010LEFF, E. Discursos sustentáveis. São Paulo: Cortez, 2010., p. 58). Por outro lado, o desenvolvimento sustentável responde positiva e simultaneamente ao crescimento econômico e à sustentabilidade ambiental, sendo encarado ora como única alternativa viável, ora como discurso retórico convincente do ponto de vista mercadológico, mas pouco eficiente quando se trata de cumprir seus objetivos traçados de respeito e preservação da natureza. Assim, o desenvolvimento do argumento nesta seção propõe o resgate de algumas concepções de sustentabilidade, de desenvolvimento e, por fim, da teoria do decrescimento como contraponto e alternativa possível para enfrentamento do risco ecológico.

O termo “desenvolvimento” foi acoplado à “sustentabilidade” com a publicação do Relatório Brundtland – Nosso Futuro Comum de 1987 12 12 Destaca-se que o termo “sustentabilidade” não é novo. O termo já vinha sendo utilizado por engenheiros florestais e, até a década de 1970, significava “máximo rendimento sustentável”, cujo objetivo era estabelecer critérios para a otimização da exploração de florestas. Além disso, o termo “sustentável” já havia sido utilizado em 1972 pelos elaboradores do Relatório Limites do Crescimento para o Clube de Roma (ou o Relatório Meadows) para caracterizar a condição de estabilidade ecológica e econômica sustentável em longo prazo, evento distintos das propostas do Relatório Brundtland ( VEIGA, 2015). , momento no qual o desenvolvimento sustentável é conceituado pela primeira vez ( VEIGA, 2015VEIGA, J. E. Para entender o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Editora 34, 2015.). Consequentemente, tem-se que o termo “sustentabilidade” não é sinônimo de “desenvolvimento sustentável” ou de “sustentabilidade ambiental”, uma vez que quando empregado como substantivo (a sustentabilidade), além de não se referir exclusivamente ao “desenvolvimento”, pode relacionar-se a diversos outros campos (sustentabilidade agrícola, cultural, política corporativa, organizacional, humana etc.) ( VEIGA, 2015VEIGA, J. E. Para entender o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Editora 34, 2015.).

Já a sustentabilidade ambiental (especificamente) está relacionada a valores, principalmente os de ordem intergeracional e de responsabilidade ambiental. A expressão anuncia um plano mundial sustentável, significando, em última instância, oportunizar às próximas gerações acesso aos recursos naturais. Da mesma maneira que a modernidade está para a antecipação do risco, a sustentabilidade ambiental está para a antecipação do futuro. Ou seja, o fundamento da sustentabilidade está mais no futuro do que no presente, já que a geração presente tem uma responsabilidade ética ambiental com o porvir.

O desenvolvimento sustentável, estabelecido pelo Relatório Brundtland como um projeto econômico e social que atende às necessidades do presente sem comprometer as necessidades das gerações futuras ou, ainda, como um processo de transformação no qual a exploração de recursos naturais, a orientação dos investimentos e do desenvolvimento tecnológico se harmonizam ( CMMAD, 1991CMMAD – COMISSÃO MUNDIAL SOBRE O MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Relatório Brundtland – Nosso Futuro Comum. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 1991.), é assimilado como algo inerentemente benéfico e necessário à humanidade.

Definido como um objetivo a ser alcançado e implantado por todos os países em longo prazo, o desenvolvimento sustentável pressupõe, por um lado, o conceito de necessidade, que é determinado social e culturalmente. Por outro, apresenta como objetivo a manutenção dos padrões de consumo, desde que conforme os limites das possibilidades ecológicas a que todos podem razoavelmente aspirar, sendo, portanto, compatível com o crescimento econômico ( CMMAD, 1991CMMAD – COMISSÃO MUNDIAL SOBRE O MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Relatório Brundtland – Nosso Futuro Comum. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 1991.).

De fato, há uma construção que evidencia a necessária conjunção entre desenvolvimento sustentável e crescimento econômico. Ignacy Sachs ( 2008SACHS, I. Desenvolvimento: includente, sustentável e sustentado. Rio de Janeiro: Garamond, 2008., por exemplo, resume esse ponto de vista que acompanha o posicionamento do Relatório Brundtland. O economista aponta que o adjetivo “sustentável” junto à noção de desenvolvimento é um avanço conceitual, de modo que o desenvolvimento sustentável exige mais do que crescimento econômico. Há uma tríade de elementos essenciais que devem ser obedecidos: sustentabilidade social, ambiental e viabilidade econômica compõem o desenvolvimento sustentável e suportam o imperativo ético da solidariedade intergeracional.

Apenas as soluções que atendam aos três critérios podem ser denominadas soluções de desenvolvimento. Por essa perspectiva, não há possibilidade de pensar em desenvolvimento sem considerar a sustentabilidade e o crescimento econômico. Para Sachs ( 2008SACHS, I. Desenvolvimento: includente, sustentável e sustentado. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.), o crescimento econômico não basta por si só e não garante o desenvolvimento, mas é estratégia de função instrumental indispensável. Assim, o desenvolvimento sustentável seria irrealizável sem se considerar o crescimento econômico.

No entanto, acredita-se que, para lidar com os riscos da modernidade, é preciso outra configuração social e econômica concentrada nas causas do risco, para além do tratamento de seus sintomas. Isso porque, na lógica do “desenvolvimento sustentável, a concepção tradicional de”desenvolvimento” 13 13 Compreende-se que há outras concepções de “desenvolvimento”. O economista Amartya Sen ( 2000) defende que o desenvolvimento não está ligado inteiramente à questão econômica, mas sim com liberdade de escolha, de poder desenvolver-se de acordo com as próprias volições. O autor aponta que riqueza é importante, porém, é uma necessidade limitada e não traduz qualidade de vida. Desenvolvimento tem relação com o aprimoramento das liberdades, de oportunidades e processos que permitam o exercício dessa liberdade. Daí que renda elevada e crescimento econômico não são sinônimos de desenvolvimento ( SEN, 2000). Porém, o objeto de estudo deste artigo envolve a concepção tradicional de desenvolvimento, frequentemente empregada como sinônimo de crescimento econômico, pois, como afirma Veiga ( 2015), antes da década de 1960 não parecia necessário separar desenvolvimento de crescimento econômico, uma vez que os países considerados desenvolvidos eram os que tinham maior economia em razão do processo de industrialização, ao passo que os países em desenvolvimento eram os de processo de industrialização incipiente, resultando em baixo crescimento econômico. Portanto, são recentes os esforços teóricos para compreensão do desenvolvimento em separado do crescimento econômico. Porém, isso não quer dizer que a concepção tradicional de desenvolvimento tenha sido superada e é essa concepção, associada ao processo de industrialização, a base crítica trabalhada no contexto moderno de sociedade de risco. se sobrepõe à da “sustentabilidade ambiental”. Dessa maneira, o ideário desenvolvimentista industrial que sustenta a sociedade de risco se mantém, tendo em vista que as alterações do equilíbrio ecológico do planeta são tratadas como externalidades ambientais ao processo econômico.

No modo de produção atual, o desenvolvimento sustentável atua como estratégia discursiva de poder cooptada pelo interesse econômico, e não uma alternativa à degradação ambiental compromissada com a ética ecológica ( LEFF, 2010LEFF, E. Discursos sustentáveis. São Paulo: Cortez, 2010.). Nesse sentido, o desenvolvimento sustentável torna-se insustentável e amplifica a ameaça do risco, na medida em que não questiona a lógica do crescimento pelo crescimento e não transforma o ciclo reflexivo do risco ambiental.

Ao contrário do que possa indicar, o decrescimento não argumenta por uma interrupção do crescimento econômico 14 14 Entre os estudiosos favoráveis ao decrescimento é entendido que simplesmente interromper o processo produtivo não levaria à real sustentabilidade, mas ocasionaria uma crise sem precedentes ( GEORGESCU-ROEGEN, 2012; LATOUCHE, 2009; LEFF, 2010). . Na verdade, pressupõe um afastamento do modelo social marcado pela produção e consumo desmedidos e pela ilimitação biofísica do crescimento econômico. No centro das argumentações pela aposta no decrescimento está a bioeconomia, a qual assume a termodinâmica como limite ao progresso constante.

Nicholas Georgescu-Roegen ( 2012GEORGESCU-ROEGEN, N. O decrescimento: entropia, ecologia, economia. São Paulo: Senac, 2012.), economista dissidente 15 15 Georgescu-Roegen, apesar de ter sido prestigiado no meio acadêmico por seu conhecimento notável em matemática, estatística e economia, foi ignorado por compor suas análises econômicas junto aos fundamentos da ecologia, área desqualificada pelos economistas na década de 1960, época em que o crescimento econômico desvinculado do meio ambiente era tido como único propulsor da prosperidade ( GEORGESCU-ROEGEN, 2012; CECHIN, 2010). Por contestar o excessivo formalismo da economia, bem como a epistemologia mecanicista, bastante acentuada no mundo acadêmico das ciências econômicas na segunda metade do século XX, diz que “A interpretação da Lei da Entropia de GR situa-se no lado do movimento dos pensamentos holísticos (organicistas e antimecanicistas)” ( GEORGESCU-ROEGEN, 2012, p. 35). , crítico do distanciamento da teoria econômica dos fundamentos básicos das ciências naturais, foi o principal responsável pela bioeconomia. Contrário às teorias econômicas majoritárias do século XX, cujo padrão era representado no sistema econômico fechado e isolado 16 16 Diz-se “fechado e isolado” pois o modelo ideal de sistema econômico a que se refere não troca matéria com o meio. Analisado pela lei da entropia, o processo econômico-industrial não é um sistema fechado linear simplesmente alimentado com matéria e energia que elimina resíduo na elaboração do produto, mas um fenômeno que interage com o meio ambiente natural e é limitado por ele. A partir disso, o sistema econômico seria, na verdade, um sistema aberto, que troca matéria-energia com o meio, diferentemente dos modelos apresentados nos manuais de economia e criticado por Georgescu-Roegen ( 2012). , Nicholas defendeu que o crescimento econômico progressivo e constante é limitado pelas leis da natureza. Além disso, argumentava que a produção industrial não é infinitamente durável. Segundo o autor, acreditar que a exploração recorrente de recursos naturais não trará riscos ecológicos “[…] é uma ilusão do pensamento linear, da mitologia do progresso e do desenvolvimento” ( GEORGESCU-ROEGEN, 2012GEORGESCU-ROEGEN, N. O decrescimento: entropia, ecologia, economia. São Paulo: Senac, 2012., p. 21-22).

A natureza transformou-se em requisito para o funcionamento das engrenagens no sistema industrial, de modo que a cultura do crescimento progressivo ignorou a termodinâmica presente no processo econômico, retirando o universo natural vivo de seu ciclo de auto equilíbrio e autodomínio. A segunda lei da termodinâmica (ou entropia) mede o grau de dissipação de matéria e energia envolvida no processo produtivo. É uma medida de desordem que avalia o quanto a matéria e a energia se tornam inutilizáveis: quanto mais alta a entropia, maior a desordem e maior a energia dissipada (inútil). Quanto menor a entropia, mais útil a matéria-energia e menor o impacto no ambiente ( GEORGESCU-ROEGEN, 2012GEORGESCU-ROEGEN, N. O decrescimento: entropia, ecologia, economia. São Paulo: Senac, 2012.).

O processo produtivo industrial é alimentado pela baixa entropia (matéria-prima retirada da natureza) e a transforma em alta entropia, ciclo esse impulsionado pelo que Georgescu-Roegen ( 2012GEORGESCU-ROEGEN, N. O decrescimento: entropia, ecologia, economia. São Paulo: Senac, 2012., p. 62) chamou de “alegria de viver” da modernidade, pautada no consumo para garantia do bem-estar. Assim, todo processo produtivo limita-se a absorver matéria e energia e devolvê-las ao meio em forma dissipada ( GEORGESCU-ROEGEN, 2012GEORGESCU-ROEGEN, N. O decrescimento: entropia, ecologia, economia. São Paulo: Senac, 2012.).

A função entrópica é um fenômeno natural indicador da direção dos eventos do planeta, já que tanto matéria quanto energia tendem a dissipar-se em determinada quantidade de tempo. É, portanto, um caminho espontâneo da vida natural. A conclusão a que se chega é que o fluxo de matéria e energia nesse ciclo é irrevogável e irreversivelmente transformador de baixa para alta entropia (de recurso natural para energia inutilizável, principalmente em forma de calor).

Ocorre que o modo estabelecido pela economia humana acelerou o fenômeno entrópico e a desordem ecológica, sendo a entropia um limite da natureza imposto ao crescimento econômico. Deve-se ter em mente que, apesar de a abordagem de Georgescu-Roegen ( 2012GEORGESCU-ROEGEN, N. O decrescimento: entropia, ecologia, economia. São Paulo: Senac, 2012.) concentrar-se na análise dialética entre os fundamentos da termodinâmica e o funcionamento do sistema econômico, essa análise não se restringe ao processo produtivo industrial em si, mas representa o impacto irreversível causado na natureza que, em última instância, torna-se reflexivamente risco ambiental:

A partir dessa constatação, podemos afirmar que o aquecimento global – que aparece como o sintoma mais claro da crise ambiental da globalização econômica – é o resultado de um processo crescente de degradação entrópica da natureza – de matéria e energia – gerada por todos os processos de produção industrial e de destruição dos ecossistemas naturais que produzem emissões crescentes de gases do efeito estufa, ao mesmo tempo que diminuem a capacidade da biodiversidade do planeta de absorver o dióxido de carbono […] através do processo de fotossíntese, pelos processos de desmatamento ( LEFF, 2010LEFF, E. Discursos sustentáveis. São Paulo: Cortez, 2010., p. 23-24).

Dessa maneira, o processo econômico-industrial da modernidade é o principal modelo de aceleração entrópica, dada a constante retirada de recursos naturais finitos (baixa entropia) para transformá-los em resíduos de alta entropia. Assim, a luta da humanidade reduz-se, ao fim e ao cabo, à manutenção da baixa entropia do ambiente, ou seja, de recursos naturais:

[…] toda vez que produzimos um automóvel, isso é feito ao preço de uma baixa no número de vidas humanas futuras. É possível que o desenvolvimento econômico fundamentado na abundância industrial seja benefício para nós e para aqueles que puderem desfrutar dele num futuro próximo, mas não deixa de ser contrário ao interesse da espécie humana em sua totalidade se, pelo menos, seu interesse é durar o quanto lhe permita seu dote de baixa entropia ( GEORGESCU-ROEGEN, 2012GEORGESCU-ROEGEN, N. O decrescimento: entropia, ecologia, economia. São Paulo: Senac, 2012., p. 69).

Desse modo, diante da segunda lei da termodinâmica, o desenvolvimento sustentável inseparável do crescimento econômico, por décadas desejado, é insuficiente para lidar com o novo padrão de risco ambiental em razão da falta de instrumentos de análise compatíveis com os valores da sustentabilidade ambiental.

Em termos práticos, o decrescimento é um projeto interdisciplinar que aborda a inevitabilidade das externalidades ambientais por meio da confluência de análises ecológicas, sociais e econômicas ( ALIER, 2011ALIER, J. M. La justicia ambiental y el decrecimiento económico: una alianza entre dos movimientos. Ecología Política – Cuadernos de Debate Internacional, Barcelona, n. 41, p. 45-54, 2011. Disponível em: https://www.ecologiapolitica.info/novaweb2/?p=4233. Acesso em: 26 dez. 2020.
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), fundamentando-se numa análise realista da situação moderna atual. Seu projeto prático envolve oito mudanças interdependentes, compreendidas nos oito “erres”. Além dos já conhecidos reduzir, reutilizar e reciclar, há a necessidade de reavaliar, reconceituar, reestruturar, redistribuir e relocalizar a economia humana ( LATOUCHE, 2009LATOUCHE, S. Pequeno tratado do decrescimento sustentável. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.).

A reavaliação trata de repensar os valores do estilo de vida da modernidade (o ter sobre o ser) e, sobretudo, reconsiderar o desejo de consumir, ou seja, reavaliar se o consumo de determinado produto se prende mais a uma satisfação de status passageira ou a uma necessidade real. Num segundo momento, há que reconceituar valores de uma sociedade do crescimento: as noções dicotômicas de riqueza e pobreza, escassez e abundância, por exemplo, precisam ser ressignificadas, pois a economia clássica transforma abundância natural em escassez, mediante a apropriação e mercantilização da natureza. Reestruturar liga-se à readaptação de todo o aparato produtivo, bem como das relações sociais nele presentes, visando a um processo produtivo orientado pelo decrescimento em razão da reavaliação de valores. Já a redistribuição vai além da distribuição de renda; ocupa-se, também, do acesso igualitário de todos ao patrimônio natural ( LATOUCHE, 2009LATOUCHE, S. Pequeno tratado do decrescimento sustentável. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.). Finalmente, a relocalização pressupõe a produção essencial para a satisfação das necessidades da população local. Além disso, exige uma autossuficiência alimentar, econômica e financeira (nessa ordem) da localidade, preferencialmente com incentivo à produção de orgânicos. A estratégia do decrescimento pressupõe uma alimentação mais orgânica e sazonal, de acordo com o que é produzido localmente e com a menor quantidade de proteína animal possível. Isso porque o decrescimento visa desconstruir a retórica do desenvolvimento globalizado que, na prática, impõe a lógica do mercado mundial na esfera local, impedindo o controle dos impactos causado pelo processo econômico e suprimindo a subjetividade e a capacidade de a localidade se autoprover ( LATOUCHE, 2009LATOUCHE, S. Pequeno tratado do decrescimento sustentável. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.).

Dessa maneira, o decrescimento econômico, alinhado à sustentabilidade ambiental, é uma estratégia capaz de evitar novos cenários pandêmicos globais, na medida em que esses cenários são causados, em essência, por atividades antrópicas que necessitam sobremaneira de recursos ambientais, intensificando o fluxo entrópico.

O decrescimento econômico exige uma transformação social intensa que priorize a biodiversidade e a coexistência ambientalmente sustentável entre a agricultura e a vida selvagem. Concentra-se na redução significativa de resíduos, evita a uniformização do mercado globalizado e procura valorizar uma economia dos serviços ambientais – preferencialmente locais – que contribua para o bem-estar humano em oposição ao bem-ter da economia mundial ( ALIER, 2011ALIER, J. M. La justicia ambiental y el decrecimiento económico: una alianza entre dos movimientos. Ecología Política – Cuadernos de Debate Internacional, Barcelona, n. 41, p. 45-54, 2011. Disponível em: https://www.ecologiapolitica.info/novaweb2/?p=4233. Acesso em: 26 dez. 2020.
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; LATOUCHE, 2009LATOUCHE, S. Pequeno tratado do decrescimento sustentável. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.).

Decrescer é reformulação econômica, social e cultural que passa a considerar a entropia uma lei-limite da natureza. O decrescimento denuncia, portanto, os atuais padrões de intervenção antrópica sobre os recursos naturais: não há como manter o ritmo de desenvolvimento e crescimento econômico e, simultaneamente, pensar em estratégias de solidariedade intergeracional. O desenvolvimento sustentável, elencado como única estratégia de sobrevivência da humanidade contra riscos ambientais, é incompatível com os valores da sustentabilidade ambiental, uma vez que os custos ecológicos do processo de produção industrial e da alegria de viver da modernidade permanecem inquestionáveis.

Compreende-se o decrescimento como estratégia econômica, social e ambientalmente sustentável que permite uma maior resiliência aos riscos ecológicos ou, ainda, a supressão de suas causas. O cenário de crise sanitária, ao se revelar como parte do risco ambiental global, apresenta a reflexividade do risco e abre espaço para que o decrescimento econômico seja discutido a partir de uma lógica que repense valores essenciais direcionados à coexistência com o meio ambiente verdadeiramente sustentável. Exige, outrossim, o compromisso de desaceleração da entropia, não apenas em razão da preservação de bens e serviços ambientais, mas também por uma questão de sobrevivência humana.

Conclusão

Procurou-se demonstrar que o risco ambiental compõe as ameaças na modernidade, marcadas por um relativo ineditismo, tendo em vista que a humanidade precisa lidar com as consequências da tomada de decisões passadas e presentes. O risco advém de uma realidade humanamente construída e com o futuro humanamente pretendido. Em decorrência de sua reflexividade e tendência globalizante (características do risco agressivamente expostas pela Covid-19), as ameaças ecológicas podem ser estimadas, porém suas consequências dificilmente são calculadas por inteiro.

O novo coronavírus serve de aviso para a urgência da aproximação das diversas áreas do conhecimento, sobretudo entre ecologia e economia, tendo em vista que a especificidade da ciência traz consigo uma invisibilidade das conexões científicas, econômicas e sociais. O surgimento e disseminação de uma nova espécie zoonótica não será um fato imprevisível caso não haja uma reavaliação do atual padrão da economia humana, pois, como foi dito, o aparecimento de novas zoonoses está intimamente relacionado a atividades antrópicas: uso insustentável de recursos naturais, exploração de animais selvagens, urbanização acelerada, intensificação da agricultura e do consumo de alimentos de proteína animal, comercialização global de animais, e, sobretudo, mudanças climáticas Todas essas alterações no equilíbrio natural intensificam o risco ambiental para o surgimento de doenças para as quais a humanidade não está preparada.

A partir da análise isolada dos termos “sustentabilidade”, “desenvolvimento” e da própria concepção de “desenvolvimento sustentável”, a aposta no decrescimento ressurge como alternativa a ser considerada para o enfrentamento das ameaças civilizatórias ou, pelo menos, redução do risco ecológico. Isso porque, (a) a concepção tradicional de desenvolvimento atrelada à necessidade do crescimento econômico ainda não foi superada; e (b) o desenvolvimento sustentável, apresentado como projeto desejável, mantém o padrão de consumo e de produtividade industrial compatível com o crescimento econômico.

A questão é que o foco na manutenção do crescimento econômico no paradigma do desenvolvimento sustentável faz que a sustentabilidade ambiental seja fagocitada pela economia. Tem-se, assim, que o desenvolvimento sustentável funciona apenas na medida do discurso de interesse econômico. Por essa razão, o decrescimento, fundado no aporte teórico da bioeconomia e em oito principais etapas práticas interconectadas, ressurge como alternativa teórica e prática para redução da exposição humana ao risco ambiental. O ato de encarar a entropia como lei-limite da natureza irreversivelmente imposta ao processo produtivo transforma o desenvolvimento sustentável em um contrassenso: o irreversível fluxo de matéria e energia de baixa para alta entropia, com o fim de sustentar a alegria de viver da modernidade, é insustentável.

A análise em separado dos fenômenos permite observar uma conexão entre o cenário pandêmico global, o risco ecológico, o desenvolvimento (in)sustentável e a proposta do decrescimento, cujo centro é ocupado pela lei da entropia e pela característica reflexiva do risco. Em suma, a economia humana exige da natureza recursos para além de sua capacidade de reprodução, dada a velocidade do fluxo baixa-alta entropia. Consequentemente, a degradação e o desequilíbrio ecológico alcançam patamares cada vez mais irreversíveis. Nesse contexto, o risco ambiental (traduzido pelo vírus Sars-Cov-2) aparece reflexivamente como consequência e produto da modernidade.

O desenvolvimento sustentável, por sua vez, não questiona os efeitos da economia globalizada. Do mesmo modo, não reage satisfatoriamente a como seria possível continuar produzindo e, simultaneamente, desacelerar o fenômeno entrópico. O decrescimento responde que não é possível manter o ritmo do processo produtivo quando, o que se pretende, é a redução da degradação ambiental e, por último, a redução do risco ecológico. O decrescimento e os princípios éticos da sustentabilidade ambiental são incompatíveis com o crescimento ilimitado e com o comportamento de consumo da sociedade global.

Referências

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  • IQAIR. Covid-19 air quality report 2019: coronavirus pandemic lockdowns result in unprecedented reductions in deadly particle pollution. Goldach: IQAir, 2020. Disponível em: https://www2.iqair.com/sites/default/files/documents/REPORT-COVID-19-Impact-on-Air-Quality-in-10-Major-Cities_V5.pdf?_ga=2.243813445.1303574224.1587559320-489020689.1587559320 Acesso em: 9 set. 2020.
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  • LEFF, E. Discursos sustentáveis. São Paulo: Cortez, 2010.
  • O DIA DA SOBRECARGA da Terra em 2019 assinala-se a 29 de julho, a data mais recuada desde que o défice ecológico começou no início da década de 1970. Earth Overshoot Day, jun. 2019. Disponível em: https://www.overshootday.org/newsroom/press-release-june-2019-portuguese/ Acesso em: 11 set. 2020.
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  • OST, F. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.
  • PNUMA – PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O MEIO AMBIENTE. Causas do COVID-19 incluem ações humanas e degradação ambiental, apontam estudos. Nairobi: PNUMA, 2020. Disponível em: https://www.unenvironment.org/pt-br/noticias-e-reportagens/reportagem/causas-do-covid-19-incluem-acoes-humanas-e-degradacao-ambiental Acesso em: 14 set. 2020
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  • SACHS, I. Desenvolvimento: includente, sustentável e sustentado. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
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  • UNEP – UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. UNEP Frontiers 2016 report: emerging issues of environmental concern. Nairobi: UNEP, 2016. Disponível em: https://environmentlive.unep.org/media/docs/assessments/UNEP_Frontiers_2016_report_emerging_issues_of_environmental_concern.pdf Acesso em: 11 set. 2020.
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  • UNEP – UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. Preventing the next pandemic: zoonotic diseases and how to break the chain of transmission. Nairobi: UNEP, 2020. Disponível em: https://unsdg.un.org/resources/preventing-next-pandemic-zoonotic-diseases-and-how-break-chain-transmission Acesso em: 20 nov. 2020.
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  • VEIGA, J. E. Para entender o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Editora 34, 2015.
  • WWF BRASIL. Dia da sobrecarga da terra: overshoot day. 2020. Disponível em: https://www.wwf.org.br/overshootday.cfm Acesso em: 11 set. 2020.
    » https://www.wwf.org.br/overshootday.cfm
  • Como citar este artigo (ABNT):
    WIENKE, F. F.; BERNARDES, I. P. G. Dilemas socioambientais contemporâneos: o decrescimento como alternativa ao risco ecológico global. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 20, e202110, 2023. Disponível em: http://www.domhelder.edu.br/revista/index.php/veredas/article/view/2110. Acesso em: dia mês. ano.
  • 1
    “Relatório Fronteiras 2016 Acerca das Questões de Emergência Ambiental” (tradução livre).
  • 2
    Destaca-se que as referências indicadas ao longo do texto atinentes ao UNEP ou ao PNUMA se referem à mesma instituição. As siglas utilizadas para fins de citação pelo sistema Autor-data respeitam a língua em que o documento foi escrito, ora em português (PNUMA), ora em inglês (UNEP). Porém, trata-se de documentos da mesma instituição, ainda que alguns não estejam traduzidos para o português.
  • 3
    “Prevenindo a próxima pandemia: doenças zoonóticas e como quebrar a corrente de transmissão” (tradução livre).
  • 4
    “Mercados úmidos” (tradução livre).
  • 5
    “Esses surtos da doença de coronavírus seguiram a rápida intensificação de práticas e sistemas agrícolas, e as dramáticas mudanças na forma em que os animais eram mantidos ou criados, muitos dos quais foram feitos sem que as devidas medidas de precaução fossem tomadas. Como mencionado previamente, esse foi um processo impulsionado pela demanda, associado ao aumento da riqueza, permitindo às pessoas consumirem mais alimentos de origem animal. […]. O SARS-Cov e o SARS-Cov-2 podem estar associados à captura de animais selvagens, às práticas comerciais e à intensificação da agricultura de animais selvagens na Ásia Oriental” (UNEP, 2020, p. 25, tradução livre).
  • 6
    Beck ( 2011BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.) estabelece uma diferenciação de sentido entre “ameaça” e “risco”. Ambas são espécies de incertezas futuras. Porém, o risco é um conceito moderno que pressupõe decisões humanas e futuros humanamente produzidos. Já a ameaça trata da insegurança que acompanha a espécie humana desde sua formação primitiva relacionada à sobrevivência. Apesar da diferenciação em tipos ideais, ameaça e risco entrecruzam-se na realidade.
  • 7
    Com relação aos “ outros” tradicionalmente marginalizados, vale ressaltar que Beck traz uma perspectiva europeia do século XX para identificar tais grupos. Os “Outros”, para Beck, são exemplificados pelos judeus, refugiados, comunistas e imigrantes. Pela perspectiva brasileira, essa visão sobre quem seriam os “ outros” deve ser ampliada para incluir grupos também afetados pelos efeitos da modernidade, como comunidades ribeirinhas, quilombolas e comunidades tradicionais.
  • 8
    Para Beck ( 2011BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.), na medida em que os riscos na modernidade se intensificam, a sociedade de risco desenvolve uma tendência à unificação em razão da globalização das ameaças. Diferentemente da sociedade de classe, a sociedade de risco força a humanidade a colaborar em razão de sua dinâmica evolutiva transfronteiriça. Diante do fator equalizador do risco, sociedades de risco não podem ser avaliadas pelos pressupostos da sociedade de classes. O risco na modernidade são ameaças apesar da classe. Contudo, essa análise não anula o fato de o risco ser distribuído de maneira desigual em razão da classe social. A distribuição do risco é historicamente atrelada à classe social. Portanto, o problema de distribuição de riquezas está intimamente relacionado ao problema de distribuição de risco.
  • 9
    A expressão “natureza artifício” vem de Ost ( 1995OST, F. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.). Em “ A natureza à margem da lei” o autor discute o vínculo e o limite da relação entre o homem e a natureza, argumentando que com a modernidade, o sentido de vínculo e de limite dessa relação se perdeu. No tocante ao vínculo, o tipo de relação que se estabeleceu entre homem e natureza foi pautada na substituição do natural pelo plastificado. Nesse sentido, o que se deu foi uma crise do vínculo, pois a tecnociência moderna compreende a natureza para depois imitá-la, aperfeiçoá-la, transformá-la e, por fim, cria-se o artifício, o autônomo, a supranatureza. Esse vínculo”[…] se antropomorfizou, sendo a natureza reduzida aos interesses exclusivos da espécie humana […]” (OST, 1995OST, F. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995., p. 30).
  • 10
    Expressão de Alier ( 2011ALIER, J. M. La justicia ambiental y el decrecimiento económico: una alianza entre dos movimientos. Ecología Política – Cuadernos de Debate Internacional, Barcelona, n. 41, p. 45-54, 2011. Disponível em: https://www.ecologiapolitica.info/novaweb2/?p=4233. Acesso em: 26 dez. 2020.
    https://www.ecologiapolitica.info/novawe...
    , p. 47).
  • 11
    De acordo com Latouche ( 2009LATOUCHE, S. Pequeno tratado do decrescimento sustentável. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.), o decrescimento surge nos anos 1960 e é desenvolvido sobretudo por Ivan Illich e Cornelius Castoriadis a partir de seus questionamentos acerca da sociedade de consumo e suas bases imaginárias: o progresso, a ciência e a técnica”.
  • 12
    Destaca-se que o termo “sustentabilidade” não é novo. O termo já vinha sendo utilizado por engenheiros florestais e, até a década de 1970, significava “máximo rendimento sustentável”, cujo objetivo era estabelecer critérios para a otimização da exploração de florestas. Além disso, o termo “sustentável” já havia sido utilizado em 1972 pelos elaboradores do Relatório Limites do Crescimento para o Clube de Roma (ou o Relatório Meadows) para caracterizar a condição de estabilidade ecológica e econômica sustentável em longo prazo, evento distintos das propostas do Relatório Brundtland ( VEIGA, 2015VEIGA, J. E. Para entender o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Editora 34, 2015.).
  • 13
    Compreende-se que há outras concepções de “desenvolvimento”. O economista Amartya Sen ( 2000SEN, A. K. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000) defende que o desenvolvimento não está ligado inteiramente à questão econômica, mas sim com liberdade de escolha, de poder desenvolver-se de acordo com as próprias volições. O autor aponta que riqueza é importante, porém, é uma necessidade limitada e não traduz qualidade de vida. Desenvolvimento tem relação com o aprimoramento das liberdades, de oportunidades e processos que permitam o exercício dessa liberdade. Daí que renda elevada e crescimento econômico não são sinônimos de desenvolvimento ( SEN, 2000SEN, A. K. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000). Porém, o objeto de estudo deste artigo envolve a concepção tradicional de desenvolvimento, frequentemente empregada como sinônimo de crescimento econômico, pois, como afirma Veiga ( 2015VEIGA, J. E. Para entender o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Editora 34, 2015.), antes da década de 1960 não parecia necessário separar desenvolvimento de crescimento econômico, uma vez que os países considerados desenvolvidos eram os que tinham maior economia em razão do processo de industrialização, ao passo que os países em desenvolvimento eram os de processo de industrialização incipiente, resultando em baixo crescimento econômico. Portanto, são recentes os esforços teóricos para compreensão do desenvolvimento em separado do crescimento econômico. Porém, isso não quer dizer que a concepção tradicional de desenvolvimento tenha sido superada e é essa concepção, associada ao processo de industrialização, a base crítica trabalhada no contexto moderno de sociedade de risco.
  • 14
    Entre os estudiosos favoráveis ao decrescimento é entendido que simplesmente interromper o processo produtivo não levaria à real sustentabilidade, mas ocasionaria uma crise sem precedentes ( GEORGESCU-ROEGEN, 2012GEORGESCU-ROEGEN, N. O decrescimento: entropia, ecologia, economia. São Paulo: Senac, 2012.; LATOUCHE, 2009LATOUCHE, S. Pequeno tratado do decrescimento sustentável. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.; LEFF, 2010LEFF, E. Discursos sustentáveis. São Paulo: Cortez, 2010.).
  • 15
    Georgescu-Roegen, apesar de ter sido prestigiado no meio acadêmico por seu conhecimento notável em matemática, estatística e economia, foi ignorado por compor suas análises econômicas junto aos fundamentos da ecologia, área desqualificada pelos economistas na década de 1960, época em que o crescimento econômico desvinculado do meio ambiente era tido como único propulsor da prosperidade ( GEORGESCU-ROEGEN, 2012GEORGESCU-ROEGEN, N. O decrescimento: entropia, ecologia, economia. São Paulo: Senac, 2012.; CECHIN, 2010CECHIN, A. A natureza como limite da economia: a contribuição de Nicholas Georgescu-Roegen. São Paulo: Editora Senac/Edusp, 2010.). Por contestar o excessivo formalismo da economia, bem como a epistemologia mecanicista, bastante acentuada no mundo acadêmico das ciências econômicas na segunda metade do século XX, diz que “A interpretação da Lei da Entropia de GR situa-se no lado do movimento dos pensamentos holísticos (organicistas e antimecanicistas)” ( GEORGESCU-ROEGEN, 2012GEORGESCU-ROEGEN, N. O decrescimento: entropia, ecologia, economia. São Paulo: Senac, 2012., p. 35).
  • 16
    Diz-se “fechado e isolado” pois o modelo ideal de sistema econômico a que se refere não troca matéria com o meio. Analisado pela lei da entropia, o processo econômico-industrial não é um sistema fechado linear simplesmente alimentado com matéria e energia que elimina resíduo na elaboração do produto, mas um fenômeno que interage com o meio ambiente natural e é limitado por ele. A partir disso, o sistema econômico seria, na verdade, um sistema aberto, que troca matéria-energia com o meio, diferentemente dos modelos apresentados nos manuais de economia e criticado por Georgescu-Roegen ( 2012GEORGESCU-ROEGEN, N. O decrescimento: entropia, ecologia, economia. São Paulo: Senac, 2012.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2021
  • Aceito
    10 Abr 2023
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