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Ontologia para historiadores: Do trauma à nostalgia

Ontology for Historians: From Trauma to Nostalgia

Resumo

O artigo propõe uma apresentação da noção de “ontologia histórica” tal como elaborada por Michel Foucault e desenvolvida por Ian Hacking. Essa apresentação será feita a partir do estudo de dois conceitos concretos, que dizem respeito à relação entre história e memória, e se tornaram de grande importância para o debate teórico dos historiadores brasileiros: trauma e nostalgia. A partir de um diálogo com a obra da historiadora Lorraine Daston e levando em conta os seus débitos em relação aos trabalhos de Georges Canguilhem e Michel Foucault, o artigo mostra como aquelas duas categorias meta- históricas permitem articular ontologia histórica, epistemologia histórica e metafísica aplicada. A partir da historicidade daquelas duas categorias, argumenta-se que a história da medicina e a história das doenças podem contribuir para uma compreensão alargada sobre o sentido do trauma e da nostalgia na vida social, subjetiva e intelectual na modernidade.

Palavras-chave:
Ontologia histórica; trauma; nostalgia

Abstract

The article proposes an interpretation of the notion of “historical ontology” as elaborated by Michel Foucault and developed by Ian Hacking. It does so by following the history of two concrete concepts, which concern the relationship between history and memory, and have become of great importance for the theoretical debates of Brazilian historians: trauma and nostalgia. Based on a dialogue with the work of historian Lorraine Daston and a consideration of her debts to the works of Georges Canguilhem and Michel Foucault, the article shows how those two metahistorical categories foster the articulation of historical ontology, historical epistemology, and applied metaphysics. By acknowledging the historicity of the categories of trauma and nostalgia, I argue that the history of medicine and the history of diseases can contribute to a broader understanding of the meaning of trauma and nostalgia in social, subjective, and intellectual life in modernity.

Keywords:
Historical ontology; trauma; nostalgia

Dia após dia
Noite e dia sem cessar
Tanta dor, tanta agonia
Eu assim não vou ficar
Eu quero o cheiro das manhãs da minha terra
Ver o Sol nascer na Serra
E o vento norte soprar
Eu quero mesmo é ficar bem juntinho dela
Na praia de Atalaia
Mirando as ondas do mar.

É difícil encontrar em Aracaju quem nunca tenha escutado esses versos de Cheiro da terra,1 1 CATALUZES. Cheiro da terra. [s.l.]: [Lançamento independente], 1983, 3:29 min. canção brejeira do malhadorense Cláudio Miguel, a mais famosa do grupo Cataluzes. Quase tão difícil, talvez, quanto encontrar quem nunca tenha experimentado de alguma maneira o sentimento que ela traduz, a nostalgia.

Cheiro da terra é uma música do primeiro LP do grupo, Viagem cigana2 2 CATALUZES. Viagem cigana. [s.l.]: independente, 1983, 35 min. , de 1983. Mas o tema é recorrente na obra do Cataluzes. O saudosismo do lugar, como correlato à nostalgia, foi gravado nas letras e mesmo na forma de algumas composições, como o fado Porto de veias, do álbum Sangue d’alma,3 3 CATALUZES. Sangue d’alma. [s.l.]: independente, 2001, 42 min. de 2001, e a ideia do retorno aparece até como título de álbum – Voltar à aldeia,4 4 CATALUZES. Voltar à aldeia. Rio de Janeiro: Fina Flor, 2012, 42 min. de 2012. É nele que encontramos um dos nomes da doença, “banzo”, que foi primeiro associada à melancolia, depois tratada como uma forma de nostalgia particular dos negros. A música Banzo malungo5 5 CATALUZES. Banzo malungo. Rio de Janeiro: Fina Flor, 2012, 2:52 min. canta a dor do desterro forçado, do corpo negro marcado a ferro e fogo, repetidamente castigado, brutalizado pelo trabalho nas plantações e nas minas.

A vinculação entre nostalgia e espaço, os efeitos mórbidos provocados pelo deslocamento, era uma marca da medicina romântica, que pensava conjuntamente homem e natureza, assim como corpo e alma. Inicialmente proposta como diagnóstico para o mal que afetava soldados suíços que haviam partido para campanhas de guerra em terras mais baixas – onde a pressão atmosférica parecia afetar os pulmões, a digestão, o sono e a passagem regular do sangue pelo cérebro, provocando uma série de sintomas que culminavam numa ideia fixa de retorno para casa (STAROBINSKI, 2016STAROBINSKI, Jean. A tinta da melancolia: Uma história cultural da tristeza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.) –, séculos depois, no Brasil escravista, a nostalgia chegou a ser considerada um fagelo continental, com sérios prejuízos para a agricultura do jovem Império (MACEDO, 1844MACEDO, Joaquim Manuel de. Considerações sobre a nostalgia. Tese (Doutorado em Medicina) – Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1844.), tornando-se merecedora da atenção de médicos e cirurgiões.

No final do século XVIII e na primeira metade do XIX, encontramos tanto estudos apoiados na tradição livresca quanto observações sobre os sintomas da nostalgia nos escravizados doentes, sempre pincelados com a indignação moral contra os maus tratos impostos pelos traficantes e senhores, mas nunca exigindo o fim da escravidão. Eram textos que discordavam quanto à etiologia da doença e sua classificação nosológica, mas concordavam em jamais recomendar a “volta à aldeia” como prática terapêutica, ainda que ela se tivesse mostrado muito eficaz na Suíça. Mais comum era a recomendação de que os senhores adotassem medidas profláticas, higiênicas e morais, como a manutenção, quando possível, de hábitos alimentares e a autorização para realização, no cativeiro, de festas e práticas religiosas de acordo com os costumes trazidos do continente africano. Assim, desterro, violência, trabalho, música e dança se misturaram nos discursos médicos sobre a “nostalgia dos escravos”, e nos versos dançantes do Cataluzes: “Atravessei os mares de caravela / Trago no corpo a marca do ventre dela / Fui marcado a ferro nas ruas do cais / Derramei o sangue nos canaviais / Carregando o peso da saudade / Conversei com minha divindade”.6 6 CATALUZES. Banzo malungo. Rio de Janeiro: Fina Flor, 2012, 2:52 min.

Comecei a refletir mais seriamente sobre essas questões a partir da coincidência de uma releitura do livro Ontologia Histórica, de Ian Hacking (2009)HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009., no mesmo momento em que a revista História da Historiografia lançava um pequeno dossiê sobre a nostalgia organizado por André de Lemos Freixo, Marcelo Santos de Abreu e Sérgio da Mata (2017)FREIXO, André de Lemos; ABREU, Marcelo Santos de; DA MATA, Sérgio. A nostalgia como problema metahistórico: Uma introdução. História da Historiografia, v. 10, n. 23, p. 138-141, abr. 2017.. Frequentemente saudoso de casa, mas desconfado da ideia de “inclinações naturais” (FREIXO; ABREU; DA MATA, 2017FREIXO, André de Lemos; ABREU, Marcelo Santos de; DA MATA, Sérgio. A nostalgia como problema metahistórico: Uma introdução. História da Historiografia, v. 10, n. 23, p. 138-141, abr. 2017., p. 141), demorei a me desembaraçar (e talvez ainda não o tenha feito completamente) da intensidade das primeiras frases do texto de apresentação: “A nostalgia faz parte do repertório básico de experiências humanas. Ela pode ser encontrada nas mais diferentes épocas e lugares, a despeito do esforço, não menos recorrente, de se lhe emprestar certo colorido local” (FREIXO; ABREU; DA MATA, 2017FREIXO, André de Lemos; ABREU, Marcelo Santos de; DA MATA, Sérgio. A nostalgia como problema metahistórico: Uma introdução. História da Historiografia, v. 10, n. 23, p. 138-141, abr. 2017., p. 140). O texto dos três colegas historiadores, intitulado A nostalgia como problema metahistórico: Uma introdução, apresentava suas traduções dos ensaios de Arnold Gehlen (2017)GEHLEN, Arnold. A felicidade evadida: Uma interpretação da nostalgia. História da Historiografia, v. 10, n. 23, p. 142-152, abr. 2017., A felicidade evadida: Uma interpretação da nostalgia, e de Svetlana Boym, Mal-estar na nostalgia, publicadas na seção Texto e documento historiográfico da revista. As significativas diferenças entre os dois autores traduzidos dão ainda mais credibilidade à intenção declarada daquele trabalho coletivo, um convite à consideração de novas possibilidades “não só teóricas, mas políticas” (FREIXO; ABREU; DA MATA, 2017FREIXO, André de Lemos; ABREU, Marcelo Santos de; DA MATA, Sérgio. A nostalgia como problema metahistórico: Uma introdução. História da Historiografia, v. 10, n. 23, p. 138-141, abr. 2017., p. 140) do estudo da nostalgia.

Em 2016, Trump tornou os EUA nostálgicos de um passado que nunca existiu, com sua campanha Make America Great Again. Em 2021, o aplicativo Deep Nostalgia,7 7 Iniciativa ligada ao portal My Heritage, dedicado à elaboração de árvores genealógicas digitais. Ver: MY HERITAGE. Deep Nostalgia. Disponível em: https://www.myheritage.com.br/deep-nostalgia. Acesso em: 5 ago. 2022. que animava fotos antigas, tornou-se viral, com mais de 60 milhões de downloads nos primeiros dias de lançamento. Também no ano passado, eu comprei uma radiola e tirei a poeira dos discos de vinil que estavam guardados na casa dos meus pais. Acontecimentos de importância desigual e de importância nenhuma, mas que reforçam aquela impressão da nostalgia como um componente básico da nossa humanidade, em todas as épocas e lugares. Porém, no momento da sua invenção, no século XVII, a nostalgia foi apresentada como uma doença frequentemente mortal e associada não ao tempo, mas ao espaço – bem diferente, portanto, da sua apresentação mais corriqueira como o sentimento histórico moderno que ela de fato veio a se tornar e que hoje também serve de matéria para a reflexão teórica dos historiadores interessados pelas questões de memória.

Sem dúvida a abordagem da nostalgia na antropologia filosófica de Gehlen (2017)GEHLEN, Arnold. A felicidade evadida: Uma interpretação da nostalgia. História da Historiografia, v. 10, n. 23, p. 142-152, abr. 2017. e a reflexão de Boym (2017)BOYM, Svetlana. Mal-estar na nostalgia. História da Historiografia, v. 10, n. 23, p. 153-165, abr. 2017., que os apresentadores da tradução situam “no campo de reflexão sobre o suposto fechamento do horizonte de expectativas na contemporaneidade” (FREIXO; ABREU; DA MATA, 2017FREIXO, André de Lemos; ABREU, Marcelo Santos de; DA MATA, Sérgio. A nostalgia como problema metahistórico: Uma introdução. História da Historiografia, v. 10, n. 23, p. 138-141, abr. 2017., p. 140), fornecem muitos elementos para a reflexão teórica sobre o tema, mas considerei, também, que a iniciativa dos pesquisadores brasileiros era, em si, um acontecimento merecedor da atenção daqueles interessados pela teoria da história, no mínimo como um bom indício das preocupações que mobilizavam os debates em nosso campo. Naquele pequeno texto de introdução, a nostalgia é definida, junto com o trauma, como uma “modalidade (...) de presença do passado” (p. 139) com estatuto de “problema metahistórico” (no próprio título). Essa foi a minha deixa para pensar, em perspectiva ontológica, a história de longa duração que vai do nascimento e morte da nostalgia como fato médico, passa por sua condução à história dos sentimentos e chega, por fim, à Teoria da História. Para deixar mais clara essa proposta de análise da nostalgia, retomarei as pesquisas de Ian Hacking sobre aquele outro fenômeno de memória que mais tem atraído o interesse atual dos teóricos da história brasileiros, o trauma. Mas primeiro, uma questão de ordem.

Ontologia, histórica?

“Ontologia” é uma palavra com a qual por vezes esbarramos ao longo da formação em história, nos lugares onde há alguma interação curricular com a filosofia, ou quando desenvolvemos inclinação para certos temas de teoria da história. No verbete escrito para a Encyclopædia Universalis, Paul Ricœur oferece uma simples definição: “Ontologia quer dizer: doutrina ou teoria do ser”.8 8 RICŒUR, Paul. Ontologie. In: Encyclopædia Universalis. Disponível em: https://www.universalis.fr/encyclopedie/ontologie/. Acesso em: 5 ago. 2022. E, embora ele nos informe sobre a longa tradição vinda da Grécia Antiga - ganhando novo fôlego no século XVIII, com Kant - que associou ontologia e metafísica, a maior parte do seu texto é dedicada às investigações que, ao longo do século XX, foram capazes de oferecer um sentido não metafísico à questão do ser. De fato, os estudantes de história têm boas chances de encontrar a palavra quando direcionam seu interesse para a história das ciências. Eles notarão, por exemplo, a importância da questão sobre o estatuto ontológico da realidade dos objetos científicos nas obras de flósofos-historiadores como Alexandre Koyré e Gaston Bachelard (RHEINBERGER, 2010RHEINBERGER, Hans-Jörg. The concept of “phenomenotechnique”. In: An epistemology of the concrete: Twentieth-Century Histories of Life. Londres: Duke University Press, 2010, p. 25-36.).

Em A vida: A experiência e a ciência, de 1985, Foucault (2005a)FOUCAULT, Michel. A vida: A experiência e a ciência. In: FOUCAULT, Michel; MOTTA, Manoel Barros da Motta (Org.). Ditos e Escritos. V. II – Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005a, p. 352-366. situa aqueles autores no interior de uma tradição filosófica francesa dedicada ao saber, à racionalidade e ao conceito, que teria “tomado parte, durante a Guerra, e de modo muito direto, no combate, como se a questão do fundamento da racionalidade não pudesse ser dissociada da interrogação sobre as condições atuais de sua existência” (FOUCAULT, 2005aFOUCAULT, Michel. A vida: A experiência e a ciência. In: FOUCAULT, Michel; MOTTA, Manoel Barros da Motta (Org.). Ditos e Escritos. V. II – Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005a, p. 352-366., p. 354). Nessa passagem, Foucault claramente se refere ao engajamento de Georges Canguilhem e Jean Cavaillès na Résistance contra a ocupação nazista. Ainda segundo Foucault (2005a, p. 355)FOUCAULT, Michel. A vida: A experiência e a ciência. In: FOUCAULT, Michel; MOTTA, Manoel Barros da Motta (Org.). Ditos e Escritos. V. II – Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005a, p. 352-366., foi essa mesma tradição que, no curso dos anos 1960, desempenhou “um papel decisivo em uma crise que não era apenas a da universidade, mas a do status e do papel do saber”.

Foi o próprio Foucault (2005b, p. 347)FOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: FOUCAULT, Michel; MOTTA, Manoel Barros da Motta (Org.). Ditos e Escritos. V. II – Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b, p. 335-351., em O que são as Luzes?, publicado em 1984, quem primeiro falou em uma “ontologia histórica de nós mesmos”. Vale notar que esse texto foi escrito exatamente no bicentenário da resposta dada por Kant à pergunta Was ist Aufklärung?, feita pelo periódico alemão Berlinische Monatsschrif. Tenho insistido sobre a centralidade desses últimos textos de Foucault para a compreensão do seu projeto filosófico. Eles foram concluídos poucos meses antes da morte do flósofo, como uma espécie de balanço da sua ação e último esforço de fixação de uma interpretação da sua própria obra. Para Foucault (2005a, p. 356)FOUCAULT, Michel. A vida: A experiência e a ciência. In: FOUCAULT, Michel; MOTTA, Manoel Barros da Motta (Org.). Ditos e Escritos. V. II – Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005a, p. 352-366., se aquela fliação, que é também a sua, pôde, “seguindo sua lógica própria, encontrar-se tão profundamente ligada ao presente”, é porque ela soube transmitir, via história das ciências, essa questão da Aufklärung, “essencial para a filosofia contemporânea”.

A partir daquele texto de Foucault, a expressão “ontologia histórica” foi retomada por Ian Hacking (2009)HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009., que fez dela seu programa de pesquisa e título de livro. Sem dedicar muita atenção às declarações de Heidegger, que considera “tanto bizarras quanto profundas” – lembro “das Ding dingt”, que o poeta Augusto de Campos (1998)CAMPOS, Augusto de. Coisas e anjos em Rilke. Folha de São Paulo, São Paulo, 20 dez. 1998. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fisp/mais/fis20129811.htm Acesso em: 5 ago. 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/fisp/mais/...
traduziu como “a coisa coiseia” ou “as coisas coisam” –, Hacking retém uma velha conotação de ontologia que diz respeito aos objetos em geral – “não apenas de coisas, mas de tudo que individuamos e sobre o que nos permitimos falar”. E, finalmente, ele diz, “se estamos interessados no vir a ser da própria possibilidade de alguns objetos, o que é isso se não histórico?” (HACKING, 2009HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009., p. 14). Logo em seguida, esclarece o sentido da proposta buscada em Foucault:

A ontologia tem sido insípida e desinteressante, mas retirei esse título de um autor a quem ninguém considera árido (...). Em seu notável ensaio [O que são as Luzes?], Michel Foucault refere-se duas vezes à “ontologia histórica de nós mesmos”. Esse poderia ser o título de um estudo, disse ele, que dissesse respeito à “verdade por meio da qual constituímos a nós mesmos como objetos de conhecimento”, ao “poder por meio do qual constituímos a nós mesmos como sujeitos que agem sobre outrem”, e à “ética por meio da qual constituímos a nós mesmos como agentes morais”. Ele chama a esses os eixos do conhecimento, do poder e da ética (HACKING, 2009HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009., p. 14).

Hacking (2009, p. 15)HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009. chama a atenção para o fato de que “Foucault regularmente historicizava Kant”. Esse procedimento, autorizado por Bachelard, permitiu que Foucault interpretasse a Aufklärung como um acontecimento histórico complexo do século XVIII, no qual se havia enraizado um tipo de interrogação filosófica, marcadamente kantiano e permanentemente mobilizado no estilo francês de história das ciências, “que problematiza simultaneamente a relação com o presente, o modo de ser histórico e a constituição de si próprio como sujeito autônomo” (FOUCAULT, 2005bFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: FOUCAULT, Michel; MOTTA, Manoel Barros da Motta (Org.). Ditos e Escritos. V. II – Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b, p. 335-351., p. 344-345). Lendo Kant dessa maneira, Foucault propôs mesmo uma redefinição da investigação ontológica. Essa “ontologia histórica de nós mesmos”, ele diz, “deve desviar-se de todos esses projetos que pretendem ser globais e radicais” (FOUCAULT, 2005bFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: FOUCAULT, Michel; MOTTA, Manoel Barros da Motta (Org.). Ditos e Escritos. V. II – Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b, p. 335-351., p. 348). Em vez disso, a ontologia histórica deve ensejar “uma série de pesquisas históricas tão precisas quanto possível” (FOUCAULT, 2005bFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: FOUCAULT, Michel; MOTTA, Manoel Barros da Motta (Org.). Ditos e Escritos. V. II – Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b, p. 335-351., p. 345).

O primeiro daqueles eixos – a “verdade por meio da qual constituímos a nós mesmos como objetos de conhecimento” – aparentemente é o que se pode associar de modo mais imediato à fliação de historiadores das ciências da qual Foucault faz parte. Mas foram as pesquisas históricas de Foucault sobre o normal e o patológico na medicina e nos saberes “psi”, apoiadas pelo conceito canguilhemiano de “normalização”, que prepararam a articulação entre o eixo do conhecimento e o eixo do poder, o “poder por meio do qual constituímos a nós mesmos como sujeitos que agem sobre outrem”. Essa articulação é a própria marca, na obra de Foucault, de uma atitude9 9 A ideia de “atitude” na filosofia francesa sem dúvida daria um belo objeto de história intelectual. Em O que são as Luzes?, Foucault (2005b, p. 341-342) apresenta uma noção de atitude que serve à sua proposta de redefinição da modernidade: “Referindo-me ao texto de Kant, pergunto-me se não podemos encarar a modernidade mais como uma atitude do que como um período da história. Por atitude, quero dizer um modo de relação que concerne à atualidade; uma escolha voluntária que é feita por alguns; enfim, uma maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir, que, tudo ao mesmo tempo, marca uma pertinência e se apresenta como uma tarefa. Um pouco, sem dúvida, como aquilo que os gregos chamavam de êthos” . que, mais do que a fidelidade ou infidelidade à doutrina kantiana, situa o estilo francês de história das ciências, a epistemologia histórica, em relação ao problema filosófico moderno. Daí o conjunto de pesquisas históricas precisas que Foucault buscou empreender ao longo da sua trajetória filosófica, que ele opõe às diversas figurações que os temas antropológico ou humanista assumiram desde o século XVIII até o presente:

Prefiro as transformações muito precisas que puderam ocorrer, há vinte anos, em um certo número de domínios que concernem a nossos modos de ser e pensar, às relações de autoridade, às relações de sexos, à maneira pela qual percebemos a loucura ou a doença, prefiro essas transformações mesmo parciais, que foram feitas na correlação da análise histórica e da atitude prática, às promessas do novo homem que os piores sistemas políticos repetiram ao longo do século XX (FOUCAULT, 2005bFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: FOUCAULT, Michel; MOTTA, Manoel Barros da Motta (Org.). Ditos e Escritos. V. II – Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b, p. 335-351., p. 348).

Essas pesquisas históricas sobre transformações precisas, Foucault (2005b, p. 345)FOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: FOUCAULT, Michel; MOTTA, Manoel Barros da Motta (Org.). Ditos e Escritos. V. II – Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b, p. 335-351. as orienta na direção daquilo que chama de “limites atuais do necessário”, isto é, “na direção do que não é, ou não é mais, indispensável para a constituição de nós mesmos como sujeitos autônomos”. Temos aí a articulação com o terceiro eixo, o da ética, que, em Foucault, é também uma forma de historicizar e revalorar o problema kantiano: em vez de descobrir os limites que o conhecimento deve renunciar a transpor, transformá-lo numa questão positiva: buscar entender, “no que é apresentado como universal, necessário, obrigatório”, aquilo que de fato é “singular, contingente e fruto das imposições arbitrárias”, enfim, entender aquilo que é histórico em nós mesmos, e com um objetivo prático: “transformar a crítica exercida sob a forma de limitação necessária em uma crítica prática sob a forma de ultrapassagem possível” (FOUCAULT, 2005bFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: FOUCAULT, Michel; MOTTA, Manoel Barros da Motta (Org.). Ditos e Escritos. V. II – Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b, p. 335-351., p. 347). Foucault define essa atitude de modernidade como um ethos filosófico que seria possível caracterizar como “crítica permanente do nosso ser histórico no presente” e “criação permanente de nós mesmos em nossa autonomia” (FOUCAULT, 2005b, p. 345-346FOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: FOUCAULT, Michel; MOTTA, Manoel Barros da Motta (Org.). Ditos e Escritos. V. II – Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b, p. 335-351.). Diz, assim, que essa forma atual da crítica é “genealógica em sua finalidade e arqueológica em seu método”:

Arqueológica – e não transcendental – no sentido de que ela não procurará depreender as estruturas universais de qualquer conhecimento ou de qualquer ação moral possível; mas buscará tratar como acontecimentos históricos os discursos que articulam o que pensamos, dizemos e fazemos. E essa crítica será genealógica no sentido de que ela não deduzirá da forma do que somos o que para nós é impossível fazer ou conhecer; mas ela deduzirá da contingência que nos fez ser o que somos a possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos e pensamos (FOUCAULT, 2005bFOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: FOUCAULT, Michel; MOTTA, Manoel Barros da Motta (Org.). Ditos e Escritos. V. II – Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b, p. 335-351., p. 348).

A relação com a obra de Foucault também permite aproximar a ontologia histórica de Hacking da “metafísica aplicada”, tal como apresentada pela historiadora das ciências Lorraine Daston (2000)DASTON, Lorraine. Introduction: The Coming Into Being of Scientific Objects. In: DASTON, Lorraine (Ed.). Biographies of Scientific Objects. Chicago: University of Chicago Press, 2000, p. 1-14. em The coming into being of scientific objects, introdução do livro coletivo Biographies of scientific objects. Por “biografia” de um objeto científico, Daston quer dizer o modo pelo qual “domínios inteiros de fenômenos – sonhos, átomos, monstros, cultura, mortalidade, centros de gravidade, valor, partículas citoplasmáticas, o self, tuberculose – vêm a ser e desaparecem como objetos de investigação científica”. Metafísica aplicada, diferente da metafísica pura, não estuda o que é e sempre foi em qualquer lugar, mas tem por objeto o “mundo dinâmico que emerge e desaparece do horizonte de trabalho dos cientistas”10 10 Trad. livre do autor: “how whole domains of phenomena – dreams, atoms, monsters, culture, mortality, centers of gravity, value, cytoplasmic particles, the self, tuberculosis – come into being and pass away as objects of scientific inquiry. (…) applied metaphysics studies the dynamic world of what emerges and disappears from the horizon of working scientists”. (DASTON, 2000DASTON, Lorraine. Introduction: The Coming Into Being of Scientific Objects. In: DASTON, Lorraine (Ed.). Biographies of Scientific Objects. Chicago: University of Chicago Press, 2000, p. 1-14., p. 1). Assim, explica Daston (2000, p. 1)DASTON, Lorraine. Introduction: The Coming Into Being of Scientific Objects. In: DASTON, Lorraine (Ed.). Biographies of Scientific Objects. Chicago: University of Chicago Press, 2000, p. 1-14., a realidade se torna uma questão de “grau”: os fenômenos, não obstante sua existência real em sentido coloquial, tornam-se mais ou menos intensamente reais a depender do seu tratamento pelo conhecimento científico.11 11 Paráfrase do autor a partir de: “reality is a matter of degree, and that phenomena that are indisputably real in the colloquial sense that they exist may become more or less intensely real, depending on how densely they are woven into scientific thought and practice”.

Daston sabe o quanto essa perspectiva difere das abordagens tradicionais da pesquisa no campo da história das ciências. Sua proposta, de fato, pretende posicionar-se de modo ortogonal ao plano do debate entre realistas – aqueles que encaram os objetos científicos como descobertas, coisas que apenas aguardam para serem trazidas à luz – e os construtivistas – que defendem que os objetos científicos são eminentemente históricos e não reais. “A metafísica aplicada”, diz Daston (2000, p. 3, grifos no original)DASTON, Lorraine. Introduction: The Coming Into Being of Scientific Objects. In: DASTON, Lorraine (Ed.). Biographies of Scientific Objects. Chicago: University of Chicago Press, 2000, p. 1-14., “afirma que os objetos científicos podem ser simultaneamente reais e históricos”.12 12 Trad. livre do autor: “Applied metaphysics stands orthogonal to the plane of this debate: it posits that scientific objects can be simultaneously real and historical”. Aquela descrição das posturas realista e construtivista é bastante ampla e não descarta a existência de outros posicionamentos em relação à questão do estatuto ontológico dos objetos científicos. Agradeço a María Laura Martinez que, após atenta e generosa leitura de uma das primeiras versões deste artigo, chamou minha atenção para o fato de que Bruno Latour, por exemplo, apesar de construtivista, definiu-se como um “hiper” realista. Por outro lado, a proposta de Daston é sintomática da sua proximidade com a abordagem filosófica ou epistemológica da história das ciências desenvolvida a partir da França. Podemos notar o mesmo reconhecimento da realidade histórica dos objetos científicos já em autores da primeira metade do século XX, como Hélène Metzger (2022, p. 172), para quem os objetos científicos são reais, embora não naturais, posto que “criados pela teoria”, e Gaston Bachelard, cujo conceito de “fenomenotécnica” ainda é a principal contribuição da epistemologia histórica francesa aos debates contemporâneos sobre a relação entre pensamento científico e tecnologia na ciência moderna (RHEINBERGER, 2010). Assim, o livro Biographies of scientific objects seria, nas palavras de Daston (2000, p. 14)DASTON, Lorraine. Introduction: The Coming Into Being of Scientific Objects. In: DASTON, Lorraine (Ed.). Biographies of Scientific Objects. Chicago: University of Chicago Press, 2000, p. 1-14., “uma tentativa de reviver a ontologia para historiadores”.13 13 Trad. livre do autor: “an attempt to revive ontology for historians”.

Essa postura diante dos objetos científicos é reveladora da filiação de Daston ao estilo historiográfico conhecido como epistemologia histórica, que ela define como a história das

categorias que estruturam nosso pensamento, que modelam nossa concepção da argumentação e da prova, que organizam nossas práticas, que certificam nossas formas de explicação e que dotam cada uma dessas atividades de uma significação simbólica e de um valor afetivo (DASTON, 2017bDASTON, Lorraine. Uma história da objetividade científica. In: Historicidade e objetividade. São Paulo: LiberArs, 2017b, p. 69-78., p. 71-72).

Apesar de ter povoado a historiografia com novos temas e objetos, como a autoridade moral da natureza, as virtudes epistêmicas e economias morais ou a scientific persona, ainda é a história da objetividade que permite melhor esclarecer os marcadores do programa epistemológico-histórico de Daston, além de ajudar a estabelecer sua genealogia. No verbete History of science da International Encyclopedia of the Social & Behavioral Sciences, Daston afirmou que sua tentativa de escrever a história de uma entidade aparentemente sem história como a objetividade – falava especificamente do livro Objectivity, em parceria com Peter Galison (DASTON; GALISON, 2007DASTON, Lorraine; GALISON, Peter. Objectivity. Princeton: Princeton University Press, 2007.) – era tributária “dos estudos notáveis de Georges Canguilhem (...) e, especialmente, de Michel Foucault (...), que desafaram a universalidade e permanência de categorias modernas fundamentais como normalidade e sexualidade”14 14 Trad. livre do autor: “they are also at least indirectly indebted to the remarkable studies of Georges Canguilhem (…) and, especially, Michel Foucault (…) that challenged the universality and permanence of fundamental modern categories like normalcy and sexuality”. (DASTON, 2015DASTON, Lorraine. History of Science. In: WRIGHT, James D. (Ed.). International Encyclopedia of the Social & Behavioral Sciences. V. 21. Amsterdam: Elsevier, 2015, p. 241-247., p. 246). São bem conhecidos os diálogos reais que explicam as semelhanças entre Canguilhem e Foucault. Em Science studies e história da ciência, Daston (2017a, p. 121)DASTON, Lorraine. Science Studies e história da ciência. In: Historicidade e objetividade. São Paulo: LiberArs, 2017a, p. 109-126. já havia falado sobre esse tema, também em tom de reconhecimento de uma dívida intelectual:

Foucault foi treinado pelo historiador da ciência francês Georges Canguilhem, de modo que havia uma espécie de harmonia preestabelecida entre os tópicos que ele originalmente se propôs a historicizar tão radicalmente – a loucura, a história natural, o biopoder – e as preocupações tradicionais dos historiadores da biomedicina. Mas as ondas de choque desencadeadas pelas tentativas planejadas por Foucault de escrever a história do a-histórico – a sexualidade, o eu, a própria verdade – chegaram muito além das ciências humanas e das ciências da vida. Tópicos como prova, experiência e objetividade, que os historiadores haviam previamente atribuído às contemplações atemporais dos flósofos, de repente pareciam adequados para uma abordagem histórica. Além disso, o modo foucaultiano de investigação histórica dessas abstrações etéreas era minuciosamente concreto, combinando-se com a nova consciência disciplinar dos historiadores da ciência. Eram uma leitura atenta, uma escavação arquivística e uma investigação minuciosa sobre práticas específicas, não argumentos filosóficos ou análises sociológicas, que forneceriam a história invisível de objetos que haviam se tornado inevitáveis, fornecendo a evidência para a história do autoevidente.

Essas questões nos interessam por duas razões. Em primeiro lugar, porque em Ontologia Histórica Hacking (2009, p. 23)HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009. se posicionou em relação à proposta de Daston de uma metafísica aplicada: “Muito recentemente (bem depois deste ensaio estar, para a maioria das intenções e propósitos, terminado), recebi a última produção do Instituto Max Planck de Berlim, com o revelador título de Biographies of scientific objects”. A principal diferença entre os dois programas, segundo Hacking, diz respeito à cautela de Daston. Enquanto Biographies of scientific objects reúne estudos sobre objetos que passam a ser e desaparecem como objetos de investigação científica, a ontologia histórica “diz respeito a objetos, ou a seus efeitos, que não existem em qualquer forma reconhecível até que sejam objetos de estudos científicos” (HACKING, 2009HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009., p. 23). Além disso, Hacking reafirma seu interesse em manter a ligação direta com os três eixos foucaultianos do conhecimento, do poder e da ética, algo que não se manifesta em todos os projetos desenvolvidos no Instituto de Berlim. Ainda assim, diz Hacking (2009, p. 24)HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009., “a ontologia histórica é uma espécie de metafísica aplicada, da mesma forma como a ontologia tradicional era uma espécie de metafísica tradicional”.

A segunda razão diz respeito à posição de Hacking em relação à epistemologia histórica de Daston. Para ele, trata-se, de fato, de uma “metaepistemologia histórica”, na medida em que Daston não refuta uma teoria do conhecimento – como, na opinião de Hacking, seria o objetivo de Bachelard, crítico do realismo ingênuo dos positivistas lógicos –, mas, de fato, “estuda conceitos epistemológicos como objetos que evoluem e sofrem mutação” e “examina as trajetórias dos objetos que representam certos papeis no pensamento sobre conhecimento e crença”. Se a ontologia histórica é uma espécie de metafísica aplicada, a (meta)epistemologia histórica, apreendida dessa maneira, “encaixa-se no conceito generalizado de ontologia histórica” (HACKING, 2009HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009., p. 24).

“Mas chega de generalidades”, talvez dissesse Daston. É hora de mostrar exatamente o que é possível fazer com esses termos tão pomposos – ontologia, metafísica, epistemologia. Admitindo a legitimidade da nostalgia como problema “meta-histórico”, e inspirado por Hacking e seus estudos sobre o trauma, mostrarei como a história da medicina e a história das doenças podem contribuir para uma compreensão alargada acerca da historicidade desses fenômenos de memória transformados em problemas teóricos pela historiografia contemporânea. As páginas seguintes apontam para uma “história do a-histórico”, para a “história invisível de objetos tornados inevitáveis”, para as evidências de uma “história do autoevidente”. É minha forma de responder positivamente ao convite à consideração das novas possibilidades abertas pelo tema da nostalgia (e, por extensão, do trauma), mantendo-me fiel se não ao programa, pelo menos à atitude de modernidade do ontologista histórico.

História do trauma

Com Hacking, a ontologia histórica foucaultiana é tanto generalizada quanto limitada. Retendo muito mais o método arqueológico do que a finalidade genealógica, Hacking multiplica os tópicos que dizem respeito aos modos históricos de “constituir” a nós mesmos, mas admite não ter a ambição política e o engajamento na luta que marcam a obra de Foucault. Apesar disso, seus exemplos de “entidades que passam a ser” (HACKING, 2009HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009., p. 17) estão quase sempre situados no entrecruzamento dos eixos do conhecimento, do poder e da ética. E, por aqui também, entramos num universo de objetos e pesquisas históricas tão precisos quanto possível sobre os nossos modos de ser, fazer e pensar – “veja o trauma psíquico, por exemplo” (HACKING, 2009HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009., p. 30).

Hacking sabe que, à primeira vista, e principalmente quando comparado aos objetos estudados por Foucault, o trauma parece uma ideia “local demais para ter importância para o ontologista histórico, que deveria estar preocupado com conceitos gerais e organizadores e as instituições e práticas nas quais eles se materializam” (HACKING, 2009HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009., p. 30). Mas esse é justamente o caso, ele defende. Na apresentação do seu programa de investigação, o exemplo do trauma psíquico permite mostrar com precisão como “o entendimento histórico de um conceito empírico (...) pode ser essencial para o entendimento do modo como constituímos a nós mesmos” (HACKING, 2009HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009., p. 31).

Na teoria da história, mas também em história contemporânea e história do tempo presente, por mais espacialmente ampla que seja a pesquisa – e existem muitos estudos interessantes que problematizam o trauma descentralizando a Europa (FREDRIGO; GOMES, 2020FREDRIGO, Fabiana de Souza; GOMES, Ivan Lima (Org.). História e trauma: Linguagens e usos do passado. Vitória: Milfontes, 2020.) –, há sempre o reconhecimento da Segunda Guerra Mundial e do Holo causto como acontecimentos-limite, em função do paradigma metodológico de associação entre evento traumático e testemunho. Há, no entanto, um fator determinante para a concentração cronológica mais ou menos nos últimos cem anos dos objetos desses estudos sobre as expressões artísticas ou literárias do trauma. Ela não diz respeito à afuência dessas formas de registro no espaço público, não se reduz a uma questão quantitativa acerca das fontes disponíveis, portanto, mas à impossibilidade mesmo de existência, antes do século XX, de uma testemunha-autora com “senso de eu” produzido pelo trauma.

Hacking (2009, p. 30)HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009. explica essa impossibilidade citando A arqueologia do saber: “Não se pode falar de qualquer coisa em qualquer época; não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta abrir os olhos, prestar atenção, ou tomar consciência, para que novos objetos logo se iluminem e, na superfície do solo, lancem sua primeira claridade.” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., p. 50). O trauma psíquico não é a descoberta feita pelo pensamento científico de um fenômeno que diz respeito à natureza humana. O trauma possui uma história, que não é apenas a da sua elucidação conceitual, etiológica e terapêutica, mas a história de como sua mutação no interior do discurso médico na virada do século XIX para o XX provocou uma transformação radical no nosso senso de nós mesmos e nos efeitos que ele produz. Assim, do mesmo modo como a autobiografia como gênero só se tornou possível no século XVIII (LEJEUNE, 2008LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: De Rousseau à Internet. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.; COSTA LIMA, 1986COSTA LIMA, Luiz. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.), a partir da conformação do eu individual e da subjetividade modernos, a existência desses objetos que chamamos de “representação do trauma”, “narrativa de trauma” ou “literatura de trauma” era historicamente impossível antes daquela transformação do nosso senso de eu operada a partir da historicidade dos discursos médicos sobre o trauma na virada do século XIX para o XX.

Hacking começou a escrever a história do trauma, mais precisamente, da conexão entre trauma e memória, no livro Rewriting the Soul, de 1995. Trata-se, em primeiro lugar, de explicar como “trauma”, uma palavra originalmente utilizada por cirurgiões para se referir a uma lesão do corpo, geralmente em decorrência de batalhas, passou a significar, no começo do século passado, uma ferida da mente. Esse acontecimento, segundo Hacking, é coetâneo da emergência, na França, da ideia de múltipla personalidade, quando se formavam as ciências da memória (HACKING, 1995HACKING, Ian. Rewriting the Soul: Multiple Personalities and the Sciences of Memory. Nova Jersey: Princeton University Press, 1995., p. 183). Dessa forma, ao contrário do que se costuma imaginar, não coube a Freud a honra e o risco de psicologizar o trauma, embora ele de fato tenha feito subir o seu grau de realidade. Designada então como traumatismo moral, a ideia de trauma psicológico já estava em circulação na França em 1885, quando Freud chegou a Paris para estudar com Charcot, e se consolidou como fato científico em 1887, quando Janet publicou suas primeiras observações sobre o assunto na Revue philosophique, em artigo intitulado L’anesthésie systematisée et la dissociation des phénomènes psychologiques (HACKING, 1995HACKING, Ian. Rewriting the Soul: Multiple Personalities and the Sciences of Memory. Nova Jersey: Princeton University Press, 1995., p. 197).

A história do trauma psicológico ou psíquico pode ser linearmente retraçada, diz Hacking, a partir dos estudos sobre os danos cerebrais, que designam um trauma físico ou neurológico. No final do século XIX, esse tipo de trauma era considerado como a consequência de um choque na cabeça que, mesmo sem causar lesões orgânicas (como se pôde observar nos exames cadavéricos de histéricos), era capaz de produzir sintomas como a perda de memória. O passo seguinte foi supor que, se não havia uma lesão orgânica na origem da amnésia histérica, sua causa, assim como a de outros sintomas associados ao trauma, deveria ser mental, e não física. “A ideia ou memória do choque”, afirma Hacking (1995, p. 184)HACKING, Ian. Rewriting the Soul: Multiple Personalities and the Sciences of Memory. Nova Jersey: Princeton University Press, 1995., “mais do que o próprio choque físico, poderia produzir os efeitos. Assim, uma ideia dolorosa ou um choque psicológico poderia causar histeria”.15 15 Trad. livre do autor: “The idea or memory of the shock, rather than the actual physical shock, could produce the effects. Tus a painful idea or psychological shock could cause hysteria”. O próximo passo é a terapêutica: como reparar não um cérebro, mas uma mente lesionada? Novamente, uma sequência bastante linear de raciocínio: “Quando um choque físico produz amnésia, frequentemente o paciente não se lembra do choque físico. Assim, o choque psicológico que produz a histeria pode não ser lembrado por um paciente histérico”16 16 Trad. livre do autor: “When physical shock produces amnesia, the patient often does not remember the physical shock. Hence the psychological shock that produces hysteria may not be remembered by a hysterical patient”. (HACKING, 1995HACKING, Ian. Rewriting the Soul: Multiple Personalities and the Sciences of Memory. Nova Jersey: Princeton University Press, 1995., p. 184). Dessa maneira, outros sintomas, como a paralisia, desapareciam à medida que a memória era restaurada, por meio, por exemplo, de hipnose.

A sequência de acontecimentos históricos e associações de ideias que levou à psicologização do trauma é detalhadamente descrita por Hacking em Rewriting the soul (1995). De volta a Ontologia histórica (2009), encontramos indicações de outros textos que podem ajudar a compreender a história do trauma psíquico, com destaque para Trauma: A Genealogy, de Ruth Leys (2000)LEYS, Ruth. Trauma: A Genealogy. Chicago: University of Chicago Press, 2000., e The Harmony of illusions, de Allan Young (1995)YOUNG, Allan. The Harmony of Illusions: Inventing Post-Traumatic Stress Disorder. Princeton: Princeton University Press, 1995.. Não é necessário reconstruir seus argumentos aqui, mas vale a pena citar o comentário de Hacking (2009, p. 31)HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009. sobre a “provocativa tese de Young”. Partindo da observação em hospitais de veteranos da Guerra do Vietnã, Young (1995)YOUNG, Allan. The Harmony of Illusions: Inventing Post-Traumatic Stress Disorder. Princeton: Princeton University Press, 1995. conclui que o estresse pós-traumático passou a concentrar, no discurso médico, as características antigamente atribuídas às neuroses, depois que esse conceito foi abolido do DSM III, em 1980. Mas dizer aos psiquiatras americanos que eles não podem mais falar em neurose não é o mesmo que extirpar sua existência do pensamento médico. Assim, todas as antigas características do neurótico passaram a ser atribuídas ao traumatizado, desde que fosse satisfeita uma exigência: o neurótico de outrora deveria, agora, ter tido uma experiência traumática. Hacking (2009, p. 31)HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009. não deixa de notar, entretanto, que “esse requisito definidor é satisfeito facilmente, porque em nenhuma vida humana adulta há ausência de acontecimentos que podem agora ser contados como ‘traumáticos’ – relatados, contados, vivenciados, como traumáticos”.

Em Ontologia histórica, Hacking (2009, p. 31)HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009. não está mais preocupado com a história do trauma nos campos da psicologia e da psiquiatria, mas com “o modo como o conceito de trauma figura na constituição de eus”. Assim, ele passa a refletir sobre o trauma a partir dos três eixos da ontologia histórica foucaultiana. Em primeiro lugar, aquele argumento que já mencionei, o fato de que, a partir da virada do século XIX para o XX, e não antes, graças a uma confuência de conceitos, teorias e práticas no campo médico, passaram a existir – no sentido forte da palavra – pessoas que se reconheciam como tendo um tipo de comportamento e senso de eu definidos pelo conceito de trauma. Esse aspecto liga-se muito diretamente com o eixo ético, já que, para Hacking (2009, p. 32)HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009., no “nível moral, acontecimentos, atuais ou lembrados, vivenciados como trauma, absolvem”. Uma infância traumática, por exemplo, explica e justifica certos comportamento e ações de uma pessoa de quem se pode dizer sofrer de um transtorno de personalidade antissocial. Em suma, diz Hacking (2009, p. 32)HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009., “lembranças traumáticas criam um novo ser moral”.

Já no campo do poder, Hacking (2009, p. 32)HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009. diz haver “uma pilha de possibilidades”, mas ele se interessa particularmente pelo “poder anônimo do próprio conceito de trauma que atua em nossas vidas”. O exemplo citado, como não raro acontece em sua obra, é bastante particular: uma instituição canadense, com a qual o próprio Hacking contribuía financeiramente, passou a fornecer fundos e assistência para vítimas do furacão Mitch na América Central. Segundo a ONG, seu trabalho estaria voltado para o aconselhamento pós-trauma das crianças e famílias, argumento destacado no pedido por novas e maiores doações, e que chamou a atenção de Hacking (2009, p. 32)HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009.:

O conceito de trauma psicológico tem sido sempre apresentado como libertador. Não precisamos discordar para ver os efeitos de poder que ele produz. Aquelas crianças e famílias de uma região devastada pelas enchentes na Nicarágua irão, pela primeira vez, viver em um mundo em que elas vivenciam a si mesmas não apenas como destroçadas pelas enchentes, mas como tendo sofrido um trauma. (...) As crianças que haviam sido alistadas em exércitos rebeldes no norte de Uganda recebem aconselhamento por causa dos efeitos potenciais do estresse pós-traumático (...). Há protestos contra essa intervenção, com alguns efeitos na área, e preferências expressas por modos nativos de lidar com a crueldade, a violência, o sequestro e o sofrimento físico que não requerem as organizações ocidentais recentes de ideias e emoções.

Essa abordagem de Hacking não nega a realidade do fenômeno do trauma psíquico, nem dos efeitos também muito reais e devastadores que certos acontecimentos podem ter sobre a vida social e subjetiva dos indivíduos. Seu interesse reside justamente no modo pelo qual a criação de um fenômeno a partir de conhecimentos produzidos no campo da traumatologia e dos estudos sobre a memória, bem como de práticas e instituições a ele associados, puderam fornecer não apenas um senso de quem são os outros, mas também um novo senso de quem se é e por que se é como é (HACKING, 2009HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2009., p. 32). Defender que não se pode dizer qualquer coisa em qualquer época significa reconhecer o impacto da crueldade e da violência na obra de Artemisia Gentileschi, ao mesmo tempo que se toma a precaução historiográfica de não nos referirmos a Susana e os anciãos ou a Judite decapitando Holofernes como “representações do trauma”. Para os historiadores contemporâneos interessados nesse aspecto da relação entre história e memória, mais do que a ocorrência, durante a vida de uma pessoa em uma época qualquer do passado, de um acontecimento que poderíamos arbitrariamente classificar como traumático, é a transformação em obra literária ou artística de um certo senso de eu marcado pela noção de trauma – que exige o acontecimento, como lembra Young (1995)YOUNG, Allan. The Harmony of Illusions: Inventing Post-Traumatic Stress Disorder. Princeton: Princeton University Press, 1995. – que constitui de fato um objeto de pesquisa.

História das doenças: A nostalgia

Ou talvez tenhamos o direito de falar em experiências traumáticas quando nos referimos a acontecimentos que marcaram a vida de escritores e artistas dos séculos XVII e XVIII, mas apenas do mesmo modo como podemos nos referir ao “sadismo de Nero”, para retomar uma sugestão metodológica de Jean Starobinski (2016)STAROBINSKI, Jean. A tinta da melancolia: Uma história cultural da tristeza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., ou seja, usando sadismo como um equipamento moderno, um vocábulo de que dispomos, e não como uma realidade que preexistiria ao emprego da palavra. Durante muito tempo trabalhando na articulação ou dividido entre história da medicina e história literária, Starobinski escreveu um estudo clássico sobre a nostalgia, indispensável para quem se interessa pelo tema. A lição da nostalgia começa justamente com uma questão de método que se coloca para a história dos sentimentos e das mentalidades:

Os sentimentos cuja história queremos retraçar só nos são acessíveis a partir do momento em que se manifestaram, verbalmente ou por qualquer outro meio expressivo. Para o crítico, para o historiador, um sentimento só pode ser objeto de estudo depois que aparece num texto. Nada de um sentimento é captável aquém do ponto em que ele é nomeado, em que se designa e se exprime. Portanto, não é a própria experiência afetiva que se oferece a nós, mas apenas a parte da experiência afetiva que passou por um enunciado pode solicitar o historiador (STAROBINSKI, 2016STAROBINSKI, Jean. A tinta da melancolia: Uma história cultural da tristeza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., [n.p.]).

Starobinski segue comentando a importância, para aquele tipo de história, da inscrição de um sentimento em um nome. Entre as consequências dignas de atenção dessa verbalização, ele destaca o fato de que esse novo nome “contribui para fixar, propagar, generalizar a experiência afetiva de que é o indício”, ideia que resume citando La Rochefoucauld: “Há pessoas que jamais teriam se apaixonado se não tivessem ouvido falar de amor” (STAROBINSKI, 2016STAROBINSKI, Jean. A tinta da melancolia: Uma história cultural da tristeza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., [n.p.]). Embora Starobinski esteja mais preocupado com o problema da linguagem e da história das ideias, sua tese não está muito distante do ponto de partida de uma ontologia histórica que tomasse a nostalgia como objeto, inclusive em suas críticas aos psicólogos que, desprovidos de sentido histórico, e ainda afetados pelas reminiscências metafísicas da alma na mente, são “demasiado propensos a reencontrar em qualquer tempo e em qualquer lugar os comportamentos que aprenderam a reconhecer e com os quais construíram a teoria” (STAROBINSKI, 2016STAROBINSKI, Jean. A tinta da melancolia: Uma história cultural da tristeza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., [n.p.]).

Quando Johannes Hofer inventou a palavra e a coisa, em 1688 (STAROBINSKI, 2016STAROBINSKI, Jean. A tinta da melancolia: Uma história cultural da tristeza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., [n.p.]), numa feliz combinação entre os termos nóstos (“retorno”) e algos (“dor”), o recurso ao grego clássico não apenas concedeu dignidade à nova entidade nosológica, como conferiu-lhe certo ar de antiguidade. A saudade de casa, que Homero fez, na Odisseia, mais forte do que a promessa de imortalidade, é um componente fundamental da literatura Ocidental, de Ovídio e Virgílio a Baudelaire, Racine, Goethe e além – quem não se lembra de Gonçalves Dias, cuja terra tem palmeiras, onde canta o sabiá? A partir do século XVII, no entanto, o relato sobre o exílio de Ulisses, cativo de Calipso, passou a ser lido através das novas lentes construídas pela medicina e anacronicamente se tornou, para os modernos, a imagem literária paradigmática da nostalgia. Hofer, além de cunhar um belo nome capaz de unificar uma multiplicidade de designações locais – o mal de corazón, na Espanha, o mal du pays, na França, o Heimweh, na Suíça e na Alemanha, a toská na Rússia, o lítost entre os tchecos, além, claro, da saudade –, afirmou, pela medicina, o caráter universal da nostalgia, valorizado tanto pela literatura moderna quanto pela antropologia filosófica contemporânea.

Como objeto de um saber e de intervenção médica, a nostalgia deveria ser tratada como um fenômeno natural, ainda que patológico, um produto do físico e do moral do homem como resultado de uma perturbação da sua relação com o meio. Tema de debates acalorados ao longo dos séculos XVII e XVIII acerca da sua etiologia, classificação e terapêutica e acerca da sua proeminência entre indivíduos do sexo masculino ou feminino, estudado por medicinas de estilos galênico, mecanicista, barroco e romântico, por vezes entendido como efeito deletério da mudança do peso dos ares sobre a circulação sanguínea ou da memória sobre a economia das paixões e sobre a fisiologia do cérebro, consequência do excesso ora de sensibilidade ora de intelecto, a nostalgia esteve inscrita de modo consistente nos manuais de medicina pelo menos até a segunda metade do século XIX. Vale a pena citar novamente, e de forma mais demorada, o belo texto clássico de Starobinski:

Graças à tese de Johanes Hofer, o Heimweh fazia sua estreia na nosologia séria. Esse mal provinciano iria se tornar uma entidade universalizável; estudantes iriam dissertar a seu respeito, defender novas teses sobre suas causas e efeitos. O nostálgico sentiu-se então no direito de esperar a opinião esclarecida da universidade, e não mais os conselhos arriscados dos camaradas e dos empíricos. Mais ainda, essa doença, até então limitada às almas simples (soldados mercenários, moças do campo transplantadas para a cidade), aproveitará a aprovação da universidade para se difundir e atacar até mesmo os indivíduos cultos; conhecendo-a, procurando preveni-la, eles passam a temê-la, volta e meia se prevalecem dela e a transmitem aos outros por seus próprios temores. (...) No fim do século XVIII, começam-se a temer os longos afastamentos do próprio país porque se fica sabendo que a nostalgia ameaça, e chega-se a morrer de nostalgia porque os livros declaram que a nostalgia é uma doença frequentemente mortal. Para o médico que vê morrer em Paris um pequeno habitante de Savoia, o diagnóstico que se impõe é esse (STAROBINSKI, 2016STAROBINSKI, Jean. A tinta da melancolia: Uma história cultural da tristeza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., [s.p.]).

A “geo-história dos saberes” (LIRA, 2018LIRA, Larissa Alves de. Geo-história dos saberes. Boletim Paulista de Geografia, v. 98, p. 96-110, 2018.) pode ser um importante recurso para o exame da nostalgia pelo ontologista histórico, articulando os eixos foucaultianos do conhecimento, do poder e da ética. Ao longo do século XVIII, a nostalgia se tornou tanto uma doença quanto um tema de estilo romântico. Ela vinculou-se às paixões, sendo a tristeza profunda reconhecida como um sintoma, e, pela lei de associação de ideias, que interessou flósofos como Locke, Malebranche e Rousseau, passou a ser considerada um fenômeno de memória, agindo tanto sobre a sensibilidade quanto sobre o intelecto. Dessa maneira, se, no pensamento médico europeu do final do século XVII e início do XVIII, a nostalgia parece ser “universalizável” em função da relação proposta entre geografia e fisiologia – um velho problema, como Febvre (1922)FEBVRE, Lucien. La Terre et l’Évolution humaine: Introduction géographique à l’Histoire. Paris: La Renaissance du Livre, 1922. nos mostrou um século atrás, em La Terre et l’évolution humaine –, a associação posterior à memória, com sua economia entre ideias e paixões, fez com que os debates ocorridos em nosso continente acerca do diagnóstico da doença colocassem em discussão a humanidade dos povos negros africanos.

Em 1798, o cirurgião espanhol Francisco Barrera y Domingo, residindo em Havana, Cuba, publicou suas Refexiones Historico Fisico Naturales Medico Quirurgicas. Barrera y Domingo (2008, p. 792)BARRERA Y DOMINGO, Francisco. Refexiones historico fisico naturales medico quirurgicas. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11, n. 4, supl., p. 791- 804, dez. 2008. diz que se lançou às observações sobre as “enfermidades de que padecem os miseráveis negros” com o objetivo de colocar seu trabalho “ao uso da pátria, e principalmente da sociedade humana”.17 17 Trad. livre do autor: “enfermedades que padecen los miserables negros”; “contemplarlos al uso de la Patria, y principalmente de la sociedad humana”. Seu trabalho é apresentado como “observações”, um gênero epistêmico nascido na virada do século XVI para o XVII, cuja relação de homonímia com a prática cognitiva servia para designar, em diferentes campos de conhecimento, a prevalência de uma forma de “experiência aprendida” sobre a teoria e os sistemas racionalistas. É difícil, dada a distância, perceber o quanto há de ironia nas escusas que Barrera y Domingo apresenta por, sendo cirurgião, decidir tratar de tema médico já clássico, que ocupava grandes autoridades em importantes academias. Mas não há dúvida de que ele acredita possuir um tipo de conhecimento diferente, obtido pela observação dos doentes nas enfermarias das fazendas, e que o habilita a dizer coisas mais verdadeiras e relevantes em matéria de nostalgia. Aliás, também dessa matéria ele sente necessidade de desculpar-se, apelando para o potencial econômico dos seus estudos: posto que os negros são “um dos ramos mais opulentos do comércio”, é espantoso que sejam “cuidados nas navegações como se fossem uma manada de carneiros ou muito pior”18 18 Trad. livre do autor: “uno de los mas lucrosos ramos de su opulento comercio”; “no cuidan más de ellos en sus navegaciones que si fuera una manada de carneros y aun mucho peor”. (BARRERA Y DOMINGO, 2008BARRERA Y DOMINGO, Francisco. Refexiones historico fisico naturales medico quirurgicas. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11, n. 4, supl., p. 791- 804, dez. 2008., p. 793).

O segundo motivo para as observações de Barrera y Domingo (2008, p. 792)BARRERA Y DOMINGO, Francisco. Refexiones historico fisico naturales medico quirurgicas. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11, n. 4, supl., p. 791- 804, dez. 2008. é moral: ele diz respeito à posição do autor diante do “espetáculo da escravidão de tão pobrezinhos negros”.19 19 Trad. livre do autor: “espectáculo de la esclavitud, de tan pobrecitos negros”. Assim, apresenta como exemplos de seu espírito e do seu trabalho caritativos as “observações das principais enfermidades de que padecem os negros da África, logo que são embarcados pelos estrangeiros, para serem vendidos nas Américas, principalmente nas colônias espanholas”20 20 Trad. livre do autor: “observaciones, de las principales enfermedades que padecen los negros de Africa, luego que los embarcan los extranjeros, para venderlos en las Américas, principalmente a todas las colonias españolas”. (BARRERA Y DOMINGO, 2008BARRERA Y DOMINGO, Francisco. Refexiones historico fisico naturales medico quirurgicas. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11, n. 4, supl., p. 791- 804, dez. 2008., p. 792). De fato, e isso é muito interessante, Barrera y Domingo (2008, p. 793)BARRERA Y DOMINGO, Francisco. Refexiones historico fisico naturales medico quirurgicas. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11, n. 4, supl., p. 791- 804, dez. 2008. dedica a primeira parte de seu estudo “às doenças mais comuns que, por falta de liberdade, acometem os negros na grande navegação da África à América”. Essas doenças, entre as quais a nostalgia viria em primeiro lugar, consistem em estados de degradação da “máquina corpórea”, complicada por alguma “afecção da alma” ou “sensorial”.21 21 Trad. livre do autor: “A las enfermedades mas comunes que por falta de la libertad, acometen a los negros en la larga navegación de África a la América”; “consisten en un estado depravado de toda máquina corporea, o de una parte considerable de ésta, complicada con alguna afección de el alma o de el sensorio”.

Desde o século XVII, a nostalgia foi uma doença associada ao deslocamento, mas por conta das questões envolvendo os efeitos das mudanças de clima ou altitude sobre a fisiologia. Em suas observações, no entanto, o cirurgião associa a nostalgia não apenas ao deslocamento espacial, mas à falta de liberdade que a determina, estando ligada, portanto, a questões naturais tanto quanto “morais”, na linguagem da época. Assim, afirma taxativamente que é a “cobiça humana” a responsável pelas novas enfermidades que acometem os negros. Vemos delinear-se uma imagem da nostalgia como doença da alma com manifestações físicas: as vibrações das fbras medulares do cérebro em que estão impressos os vestígios da pátria são agravadas pelo sofrimento provocado pelas crueldades da escravidão. Mudança das estações, climas, alimentos e ar aparecem ao lado do sentimento das injúrias sofridas como causas principais para a “perversão da disposição do sangue e dos espíritos”22 22 Trad. livre do autor: “pervertir la disposición de la sangre y de los espíritus”. (BARRERA Y DOMINGO, 2008BARRERA Y DOMINGO, Francisco. Refexiones historico fisico naturales medico quirurgicas. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11, n. 4, supl., p. 791- 804, dez. 2008., p. 798). Para prová-lo, o cirurgião começa sua investigação sobre a “causa da enfermidade nostálgica” pelo que chama de “método geográfico”. Analisa o clima do Congo e de Angola, oferece uma explicação sobre a limpeza do ar segundo o paradigma de época na história natural e explica mecanicamente como, diferentemente do ar nos campos, o ar carregado dos navios comprime o corpo do negro africano.

Entre os primeiros sintomas, observáveis já nos navios, Barrera y Domingo (2008, p. 800)BARRERA Y DOMINGO, Francisco. Refexiones historico fisico naturales medico quirurgicas. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11, n. 4, supl., p. 791- 804, dez. 2008. destaca o fato de que os negros africanos não querem mais comer, nem dançar, não toleram mais os jogos, são tomados por uma tristeza profunda “que se apodera do seu entendimento (ainda que pouco)”, consequência de um rancor oculto e desejo irrealizável de vingança contra as injúrias dos brancos. Entre os que possuem uma língua conhecida ou que foram já “civilizados”, é possível notar como sintoma também “uma paixão furiosa de querer retornar ao seu país, por algum objeto amado que lá deixaram, como mãe, pai, filho etc.”.23 23 Trad. livre do autor: “que se apodera de su entendimiento, (aunque poco)”; “pasión furiosa de querersen volver a su país, por algún objeto amado, que halla dejaron, vgr. Madre, padre, o hijo, & ”. Tudo isso, ele continua, faz com que o diagnóstico e o tratamento da doença sejam extremamente difíceis, ainda mais para o médico arrogante, que trata o negro “muito pior do que se fosse um jumento”24 24 Trad. livre do autor: “mucho peor que si fuera un jumento”. (BARRERA Y DOMINGO, 2008BARRERA Y DOMINGO, Francisco. Refexiones historico fisico naturales medico quirurgicas. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11, n. 4, supl., p. 791- 804, dez. 2008., p. 801).

De origem humilde e numa posição marginal, Barrera y Domingo tenta, a todo momento, afirmar a importância de seu trabalho como cirurgião de escravos. Mas suas críticas aos médicos acadêmicos, resumidas na defesa do valor da experiência sobre os sistemas e conhecimento livresco, estão longe de serem limitadas ao campo científico. À explicação iatromecânica que fazia da nostalgia entre os soldados suíços o produto de uma desordem circulatória provocada pela mudança atmosférica, Barrera y Domingo respondia, no caso da nostalgia dos escravos, com um descenso moral, a “mutação de um país de delícias à estreiteza de um barco mercante” ou, na imagem proposta por Adrián López Denis (2008, p. 784)LÓPEZ DENIS, Adrián. Nostalgia y esclavitud en la era de las revoluciones. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11, n. 4, supl., p. 779-790, dez. 2008., “no descenso dos cumes do prazer aos abismos da dor”.25 25 Trad. livre do autor: “un descenso de las cimas del placer a los abismos del dolor (la mutación de un país de delicias, a la estrechez de un barco mercante)” (grifos no original). Ao fazê-lo, o cirurgião espanhol em terras cubanas abria discussão com uma tese de Bufon, exposta em sua História Natural e amplamente aceita entre os naturalistas e médicos da época, segundo a qual os negros africanos seriam incapazes de apreciar as maravilhas da natureza de seus países devido às suas indolência e estupidez – incapazes, portanto, de adoecer de nostalgia. Barrera y Domingo (2008)BARRERA Y DOMINGO, Francisco. Refexiones historico fisico naturales medico quirurgicas. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11, n. 4, supl., p. 791- 804, dez. 2008. não discorda das limitações intelectuais dos negros, mas os considera possuidores de sentimentos que os habilitam a perceber, ainda que de modo infantil, a beleza dos seus países, bem como criar laços familiares e afetivos, o que bastaria para provocar a enfermidade.

Essa ideia também pode ser encontrada na tese Considerações sobre a nostalgia, apresentada por Joaquim Manoel de Macedo (o autor de A moreninha) à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1844. Num momento de articulação do campo da psicologia, Macedo (1844, p. 7)MACEDO, Joaquim Manuel de. Considerações sobre a nostalgia. Tese (Doutorado em Medicina) – Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1844. estuda a nostalgia como uma variedade da lipemania, que, seguindo Esquirol, ele define como “uma moléstia cerebral caracterizada por delírio parcial, sem febre, entretido por uma paixão triste, debilitante ou opressiva”. Embora pertencente a um gênero epistêmico bem diferente – em muitos aspectos oposto às observações de Barrera y Domingo –, a tese de Macedo também é determinada “pela consciência do dever”. O médico e escritor brasileiro tomava como objeto uma enfermidade “sempre cruel, e não poucas vezes fatal, que tem ceifado vítimas sem conta, e quiçá em nosso país haja sido fagelo surdo. (...) Pesa-nos no espírito a profunda convicção de que a agricultura do país haja por fatal inimiga a nostalgia” (MACEDO, 1844MACEDO, Joaquim Manuel de. Considerações sobre a nostalgia. Tese (Doutorado em Medicina) – Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1844., p. 1-2).

Com efeito, na insuficiência de forças que deem incremento e possam fazer abundar essa fonte da riqueza nacional, das terras da África nos tem vindo braços para o cultivo das nossas: aceitos pela necessidade (se real ou imaginaria não nos cabe aqui ponderar); mas trazidos só pelo interesse, o sofrimento mais acerbo começa para muitos dos Africanos desde o momento em que são arrancados a suas praias. Separados de famílias embora desamoráveis, sotopostos uns aos outros nos imundos porões de pequenos barcos, mal nutridos, e pior tratados, testemunhando os padecimentos e a morte de alguns de seus sócios no infortúnio, e finalmente desembarcando para entrar na vida do cativeiro, que ainda mesmo quando temperada pela benevolência de um bom senhor é sempre a vida do cativeiro, como hesitar em crer que o tempo da liberdade e a terra da pátria devem estar presentes a seu espirito com todo o fogo das saudades, que lhes serão muitas vezes fatais?.. para negá-lo fora mister negar-lhes também uma alma, que sente e que lembra (MACEDO, 1844MACEDO, Joaquim Manuel de. Considerações sobre a nostalgia. Tese (Doutorado em Medicina) – Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1844., p. 2).

Não é um pensamento abolicionista que encontramos em Macedo, mas a denúncia das mazelas morais associadas à escravidão, uma postura mais condizente com o estilo de pensamento romântico da época. Para ele, se a “espantosa mortandade que entre nós se observa nos Africanos” tem seu tanto de dívida com a nostalgia, esta, por seu turno, também se deve, em parte, “a defeitos mais ou menos graves de proceder dos senhores para com os escravos” (MACEDO, 1844MACEDO, Joaquim Manuel de. Considerações sobre a nostalgia. Tese (Doutorado em Medicina) – Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1844., p. 20). Sem recomendar as práticas terapêuticas mais adequadas, que seriam a liberdade e o retorno ao país de origem, Macedo propõe medidas higiênicas e morais para evitar uma epidemia de nostalgia. Dirigindo-se aos agricultores e legisladores brasileiros, alerta que “o africano recém-chegado conserva as lembranças de sua terra ainda muito vivas, e por consequência, muito suscetíveis de infamar-se”. Além disso, “não afeito aos trabalhos da agricultura, não aclimatado ainda, e ainda ressentido dos sofrimentos de uma longa viagem”, está sobremaneira predisposto a padecer da nostalgia. Assim, ele diz, “é um erro de cálculo, e de interesse, não o tratar com docilidade e favor, carregá-lo de trabalhos pesados e exercer sobre ele o mesmo rigor que convêm nos antigos escravos”. Era importante, da mesma maneira, evitar castigos que impunham isolamento, pois a solidão é uma das causas da lipemania (MACEDO, 1844MACEDO, Joaquim Manuel de. Considerações sobre a nostalgia. Tese (Doutorado em Medicina) – Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1844., p. 20).

Se Barrera y Domingo e Macedo lograram articular fisiologia, moral e política, mostrando a relação entre escravidão e nostalgia, também é verdade que a causa principal da doença continuou sendo associada às alterações climáticas. Tratava-se, então, de evitar o agravo dessa situação pela adição da crueldade desnecessária ou extemporânea aos efeitos fisiológicos inevitáveis do desterro. Assim, a passagem à existência, pelo discurso médico, do negro africano nostálgico foi tanto um modo de reconhecer aos escravos uma alma que sente, lembra e sofre, merecedora portanto de caridade e compaixão, quanto uma maneira de garantir a perpetuação e efetividade econômica da escravidão, desde que os senhores não fossem muito cruéis, que tomassem o cuidado de não exagerar na carga de trabalho imposta – especialmente com os recém-chegados –, não separassem as famílias vindas da África etc. Reencontramos, através da nostalgia, a articulação entre os eixos do conhecimento, do poder e da ética que guiam o olhar do ontologista histórico: no século XVIII, a entidade nosológica desembarca nas Américas, torna-se um objeto de práticas e saberes médicos e constitui um novo tipo de existência, a do negro africano nostálgico; a produção de conhecimentos sobre a nostalgia e sua incidência entre os escravizados se torna uma questão útil para a manutenção de um exercício de poder e de um sistema econômico; por fim, os estudos etiológicos sobre a nostalgia permitem uma tomada de posição moral conciliadora diante das mazelas da escravidão.

De volta à Europa, em 23 de maio de 1838, encontramos Balzac (citado por STAROBINSKI, 2016STAROBINSKI, Jean. A tinta da melancolia: Uma história cultural da tristeza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., [s.p.]), que, sofrendo de nostalgia em Milão, escreve à Sra. Hanska: “Cara, sinto saudades da terra (...). Vou e volto sem alma, sem poder dizer o que tenho, e se eu continuasse assim por duas semanas estaria morto”. No mesmo ano, a Sra. Aupick (citada por STAROBINSKI, 2016STAROBINSKI, Jean. A tinta da melancolia: Uma história cultural da tristeza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., [s.p.], grifos no original) comenta as desventuras de Baudelaire pelos mares do Sul: “O comandante, temendo que ele estivesse sofrendo dessa doença cruel, a nostalgia, cujos efeitos são por vezes tão nefastos, o instou vivamente a acompanhá-lo a Saint- Denis”. Assim como viria a acontecer com o trauma no final do século XIX, por volta de 1830 a nostalgia passou a ser estudada pelos médicos franceses como parte dos esforços de classificação das maladies de mémoire, as doenças de memória, como a amnésia e a hipermnésia. Tratava-se, então, de pensar as formas de conexão normais e anormais entre passado e presente, “cruciais para a noção moderna de nossa relação com o tempo, bem como da nossa relação com a história e o progresso”, como notou Michael S. Roth (1992, p. 272)ROTH, Michael S.. The Time of Nostalgia: Medicine, History, and Normality in Nineteenth-Century France. Time and Society, v. 1, n. 2, p. 271-286, 1992., no artigo The Time of Nostalgia: Medicine, History and Normality in Nineteenth-Century France.

A mobilidade imposta pela vida moderna, com a concentração populacional nas cidades industriais, aumentou a preocupação dos médicos com a nostalgia, especialmente com seu impacto sobre as pessoas de espírito supostamente mais simples, que precisavam deixar suas vilas no interior do país em busca de trabalho. É nessa época que surge a tese de que as mulheres seriam mais suscetíveis à doença, tanto pela ainda maior simplicidade de seus espíritos, segundo os médicos, quanto pelos infortúnios e amarguras que recaíam sobre elas nas grandes cidades. Os casos eram menos comuns entre as mulheres que deixavam a casa dos pais por motivos de casamento – especialmente se o casamento fosse voluntário e produzisse um lar feliz –, mas significativamente maiores entre aquelas que deixavam suas cidades por motivos de trabalho. Musset (citado por ROTH, 1992ROTH, Michael S.. The Time of Nostalgia: Medicine, History, and Normality in Nineteenth-Century France. Time and Society, v. 1, n. 2, p. 271-286, 1992., p. 277), em sua tese de medicina intitulada Essai sur la nostalgie, de 1830, fez o seguinte relato:

A nostalgia, quando combinada com uma afição moral séria, é quase sempre fatal. Eu vi muitas vítimas [de nostalgia] entre jovens garotas do interior que foram trabalhar como criadas nas cidades e tiveram o infortúnio de ceder à tentação. Essas pobres garotas não ousam mais retornar para seu lar e, no entanto, o desejo de revê-lo é ainda mais forte quando são banidas para sempre; pois seus pais raramente consentem em vê-las novamente e não há amargura que elas não sejam obrigadas a engolir em suas cidades. Abandonadas por todos, vítimas das mais terríveis dores, elas não demoram a se render ao mais violento desespero e a vir para os hospitais, para encerrar sua infeliz existência enquanto repetem incessantemente: “Meus pais não querem mais me ver, eu nunca vou retornar para a minha terra”.26 26 Trad. livre do autor: “Nostalgia, when it is combined with a serious moral afiction, is almost always fatal. I have seen many victims [of nostalgia] among young girls of the countryside who went as servants in cities and who had the misfortune to give in to seduction. Tese poor girls no longer dare to return to their home [pays], and, however, the desire to see it again is even stronger when they are banished from it forever; because their parents rarely consent to see them again, and there are no bitter pills which they are not forced to swallow in their villages. Abandoned by everyone, prey to the most terrible pain, they do not delay in surrendering to the most violent despair, and come to hospitals to terminate their unhappy existence while endlessly repeating: my parents no longer want to see me, I will never return to my pays”.

Por um breve período, no contexto médico francês, a nostalgia passou a ser considerada uma forma de relação patológica com o tempo – mais especificamente, com o presente – mas, já a partir de 1850, os médicos começaram a prever a erradicação da doença, graças ao avanço da modernidade. As transformações provocadas pelos novos meios de comunicação e de transporte, que encurtaram a distância até o local de desejo do nostálgico, foram pouco a pouco minimizando a questão, de tal maneira que, para o pensamento médico do período, é como se a modernidade tivesse resolvido por conta própria um dos problemas que ela havia criado (ROTH, 1992ROTH, Michael S.. The Time of Nostalgia: Medicine, History, and Normality in Nineteenth-Century France. Time and Society, v. 1, n. 2, p. 271-286, 1992., p. 279). Essa percepção era emoldurada pela vinculação tipicamente moderna, e muito forte no campo da medicina social, entre os progressos científico-tecnológico e espiritual. Morin (citado por ROTH, 1992ROTH, Michael S.. The Time of Nostalgia: Medicine, History, and Normality in Nineteenth-Century France. Time and Society, v. 1, n. 2, p. 271-286, 1992., p. 278), no artigo De la nostalgie aux points de vue philosophique et médical, publicado na revista La France Médicale et Pharmacéutique em 1856, afirmava otimista: “Felizmente, a nostalgia diminui dia após dia; descendo aos poucos sobre as massas, a instrução vai desenvolver a inteligência da população, tornando-as cada vez mais capazes de lutar contra a doença”.27 27 Trad. livre do autor: “Happily, nostalgia diminished day by day; by descending little by little among the masses, instruction will develop the intelligence of people, making them more and more capable of struggling against the disease”. Em 1870, poucos médicos ainda consideravam a nostalgia como uma doença, e, em 1879, o Dictionnaire encyclopédique des sciences médicales (WIDAL, citado por ROTH, 1992ROTH, Michael S.. The Time of Nostalgia: Medicine, History, and Normality in Nineteenth-Century France. Time and Society, v. 1, n. 2, p. 271-286, 1992., p. 278) decretava: “O mal du pays, já raro em nosso tempo, está destinado a desaparecer diante do progresso da higiene e da civilização”.28 28 Trad. livre do autor: “Le mal du pays, already rare in our time, is destined to disappear before the progress of hygiene and civilization”.

Se a nostalgia aparece para nós como um sentimento histórico moderno, é porque essa confança no progresso foi pouco a pouco minando, primeiro, sua incidência e, depois, seu grau de realidade como doença, também à medida que novas entidades – como a tuberculose – passaram a reivindicar sua cota de mortos entre os nostálgicos. A principal transformação da nostalgia nesse período, de doença relacionada ao espaço a forma subjetiva de relação com o tempo, deve tanto ao sentimento de aceleração trazido pela modernidade quanto ao crescente interesse médico pelos fenômenos normais e patológicos da memória, que levaram à criação e à reclassificação dos distúrbios mentais. Foi assim que o pensamento médico desassociou a nostalgia da casa dos pais ou da vila da infância, e fez com que ela se remetesse ao tempo em que havia conexão com a família ou com o local de origem, formulando, dessa maneira, seu caráter espaço-temporal. Nesse ponto, a nostalgia começou a ser revalorada, e alguns médicos chegaram mesmo a temer que o progresso trazido pela modernidade estivesse roubando parte da nossa humanidade, ao fazer desaparecer um sentimento que, perigoso em estado exacerbado, possuía uma origem nobre, ligada ao afeto pela família, pelos amigos, pelo lugar onde havíamos nascido (ROTH, 1992ROTH, Michael S.. The Time of Nostalgia: Medicine, History, and Normality in Nineteenth-Century France. Time and Society, v. 1, n. 2, p. 271-286, 1992., p. 279). Abria-se o caminho que a medicina e os saberes “psi” percorreriam até que a nostalgia deixasse de significar um estado patológico da memória, para se transformar numa forma de conexão entre tempo e desejo.

Em seu artigo, Roth ainda chama a atenção para o fato de que críticos românticos da modernidade, como Michelet, compartilharam com os médicos franceses o temor pelo triunfo do progresso sobre nossa capacidade de conexão com o passado, com nossos ancestrais, com nosso local de origem. Essa atitude era ao mesmo tempo patológica e produtora: “A nostalgia temporal não permite o retorno para casa; não há cura para a pessoa que só consegue encontrar vida entre os mortos. No caso de Michelet, a história é o sintoma que fornece satisfação ao nostálgico”29 29 Trad. livre do autor: “Temporal nostalgia does not allow for the return home; there is no cure for the person who can only find life among the dead. In the case of Michelet, history is the symptom providing satisfactions for the nostalgic”. (ROTH, 1992ROTH, Michael S.. The Time of Nostalgia: Medicine, History, and Normality in Nineteenth-Century France. Time and Society, v. 1, n. 2, p. 271-286, 1992., p. 282). Assim, nostalgia e historiografia entrecruzaram-se na obra de Michelet, que ressuscitava a Revolução de 1789 para o reencontro da França com sua identidade após a Revolução de 1830, num esforço de reconciliação do presente com o passado. Mas foi apenas quando estabelecemos uma nova forma de relação com a tecnologia e a modernização, iniciada pela Segunda Guerra Mundial, que a nostalgia se tornou de fato uma experiência não patológica do tempo, simultaneamente subjetiva e compartilhada por um grupo social. Marco Duranti (2006)DURANTI, Marco. Utopia, Nostalgia and World War at the 1939-40 New York World’s Fair. Journal of Contemporary History, v. 41, n. 4, p. 663-683, Oct. 2006. explorou a questão em Utopia, Nostalgia and World War at the 1939-40 New York World’s Fair. De “O mundo do amanhã” (World of Tomorrow), tema da exposição em 1939, passou-se a “Paz e Liberdade” (Peace and Freedom) no ano seguinte. Escreveu Duranti (2006, p. 665)DURANTI, Marco. Utopia, Nostalgia and World War at the 1939-40 New York World’s Fair. Journal of Contemporary History, v. 41, n. 4, p. 663-683, Oct. 2006.: “A nostalgia, assim como a utopia, era uma resposta tanto às concepções modernas de progresso quando às práticas de guerra. A nostalgia representava ‘um anseio pela impossibilidade de retorno mítico, pela perda de um mundo encantado, com fronteiras e valores bem claros’”.30 30 Trad. livre do autor: “Nostalgia, like utopia, was a response to both modern conceptions of progress and modern practices of warfare. Nostalgia represented a ‘mourning for the impossibility of mythical return, for the loss of an enchanted world with clear borders and values’” (o trecho assinalado com aspas simples é uma citação de Svetlana Boym).

O que marca a diferença entre os programas de pesquisa de Starobinski e Hacking é o fato de que, mais do que a inscrição de um sentimento em um nome, que permite fixar, propagar e generalizar a experiência nostálgica, a ontologia histórica se interessa pelo modo como o entendimento histórico do conceito de nostalgia, considerando todas as transformações pelas quais ele passou em diferentes meios científicos e intelectuais, permite compreender os vários modos de constituição de nós mesmos e dos outros. Séculos atrás, dizer-se nostálgico ou dizer de uma pessoa que ela tinha nostalgia, era algo bastante funesto. Entre os séculos XVII e XIX, a nostalgia, pelo que nos dizem os arquivos médicos, ceifou vidas incontáveis e justificou a internação de muitos indivíduos em hospitais e asilos psiquiátricos. Ela impediu que pessoas se afastassem durante muito tempo de seus países, com medo do terrível mal que poderia se abater sobre sua saúde. Hoje, a nostalgia vende quinquilharias, serve de motivo para festivais, desenvolve tecnologias, produz arte e literatura, organiza campanhas políticas, gera um senso de identidade coletiva entre imigrantes, exilados e refugiados.

Quase dois séculos depois de Balzac e Baudelaire temerem por suas vidas simplesmente por estarem longe de casa, e de Joaquim Manoel de Macedo tratar a doença como um fagelo nacional por causa dos prejuízos econômicos que ela impunha à agricultura do país, nossa experiência da nostalgia é radicalmente diferente. Transformações tanto no pensamento médico quanto na relação das sociedades com a distância e o tempo levaram a uma banalização da nostalgia, que perdeu seu tom ameaçador. A partir daí, surgiram novas formas de relação com a antiga doença espacial, agora sentimento histórico, classificadas por Svetlana Boym (2017, p. 164)BOYM, Svetlana. Mal-estar na nostalgia. História da Historiografia, v. 10, n. 23, p. 153-165, abr. 2017. como “nostalgia restauradora” e a “nostalgia refexiva”. A nostalgia contemporânea, ela diz, “pode ser uma criação poética, um mecanismo individual de sobrevivência, uma prática da contracultura, um veneno, ou uma cura”.

Apesar disso, a conclusão de Boym (2017, p. 164)BOYM, Svetlana. Mal-estar na nostalgia. História da Historiografia, v. 10, n. 23, p. 153-165, abr. 2017. é que “não há muita novidade sobre a nostalgia contemporânea”, pois sua estrutura “ainda é, em muitos sentidos, aquilo que costumava ser, a despeito das mudanças de moda e avanços na tecnologia digital”. Um pouco como a minha nova radiola, que tem bluetooth e entrada USB, mas ainda toca os mesmos discos empoeirados que havia guardado na casa dos meus pais, em Aracaju. Mas há algo de inteiramente novo do ponto de vista ontológico, do ponto de vista da constituição de novos eus. Refro-me ao modo pelo qual a historicidade do conceito de nostalgia, incluindo seu nascimento e morte no campo médico, faz com que nós não sejamos nostálgicos hoje do mesmo modo como se era no passado.

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    CATALUZES. Cheiro da terra. [s.l.]: [Lançamento independente], 1983, 3:29 min.
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    CATALUZES. Viagem cigana. [s.l.]: independente, 1983, 35 min.
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    CATALUZES. Sangue d’alma. [s.l.]: independente, 2001, 42 min.
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    CATALUZES. Voltar à aldeia. Rio de Janeiro: Fina Flor, 2012, 42 min.
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    CATALUZES. Banzo malungo. Rio de Janeiro: Fina Flor, 2012, 2:52 min.
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    CATALUZES. Banzo malungo. Rio de Janeiro: Fina Flor, 2012, 2:52 min.
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    Iniciativa ligada ao portal My Heritage, dedicado à elaboração de árvores genealógicas digitais. Ver: MY HERITAGE. Deep Nostalgia. Disponível em: https://www.myheritage.com.br/deep-nostalgia. Acesso em: 5 ago. 2022.
  • 8
    RICŒUR, Paul. Ontologie. In: Encyclopædia Universalis. Disponível em: https://www.universalis.fr/encyclopedie/ontologie/. Acesso em: 5 ago. 2022.
  • 9
    A ideia de “atitude” na filosofia francesa sem dúvida daria um belo objeto de história intelectual. Em O que são as Luzes?, Foucault (2005b, p. 341-342)FOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: FOUCAULT, Michel; MOTTA, Manoel Barros da Motta (Org.). Ditos e Escritos. V. II – Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b, p. 335-351. apresenta uma noção de atitude que serve à sua proposta de redefinição da modernidade: “Referindo-me ao texto de Kant, pergunto-me se não podemos encarar a modernidade mais como uma atitude do que como um período da história. Por atitude, quero dizer um modo de relação que concerne à atualidade; uma escolha voluntária que é feita por alguns; enfim, uma maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir, que, tudo ao mesmo tempo, marca uma pertinência e se apresenta como uma tarefa. Um pouco, sem dúvida, como aquilo que os gregos chamavam de êthos” .
  • 10
    Trad. livre do autor: “how whole domains of phenomena – dreams, atoms, monsters, culture, mortality, centers of gravity, value, cytoplasmic particles, the self, tuberculosis – come into being and pass away as objects of scientific inquiry. (…) applied metaphysics studies the dynamic world of what emerges and disappears from the horizon of working scientists”.
  • 11
    Paráfrase do autor a partir de: “reality is a matter of degree, and that phenomena that are indisputably real in the colloquial sense that they exist may become more or less intensely real, depending on how densely they are woven into scientific thought and practice”.
  • 12
    Trad. livre do autor: “Applied metaphysics stands orthogonal to the plane of this debate: it posits that scientific objects can be simultaneously real and historical”. Aquela descrição das posturas realista e construtivista é bastante ampla e não descarta a existência de outros posicionamentos em relação à questão do estatuto ontológico dos objetos científicos. Agradeço a María Laura Martinez que, após atenta e generosa leitura de uma das primeiras versões deste artigo, chamou minha atenção para o fato de que Bruno Latour, por exemplo, apesar de construtivista, definiu-se como um “hiper” realista. Por outro lado, a proposta de Daston é sintomática da sua proximidade com a abordagem filosófica ou epistemológica da história das ciências desenvolvida a partir da França. Podemos notar o mesmo reconhecimento da realidade histórica dos objetos científicos já em autores da primeira metade do século XX, como Hélène Metzger (2022, p. 172)METZGER, Hélène. O historiador das ciências deve fazer-se contemporâneo dos cientistas dos quais ele fala? Revista de Teoria da História, Goiânia, v. 25, n. 1, p. 165-173, 2022., para quem os objetos científicos são reais, embora não naturais, posto que “criados pela teoria”, e Gaston Bachelard, cujo conceito de “fenomenotécnica” ainda é a principal contribuição da epistemologia histórica francesa aos debates contemporâneos sobre a relação entre pensamento científico e tecnologia na ciência moderna (RHEINBERGER, 2010RHEINBERGER, Hans-Jörg. The concept of “phenomenotechnique”. In: An epistemology of the concrete: Twentieth-Century Histories of Life. Londres: Duke University Press, 2010, p. 25-36.).
  • 13
    Trad. livre do autor: “an attempt to revive ontology for historians”.
  • 14
    Trad. livre do autor: “they are also at least indirectly indebted to the remarkable studies of Georges Canguilhem (…) and, especially, Michel Foucault (…) that challenged the universality and permanence of fundamental modern categories like normalcy and sexuality”.
  • 15
    Trad. livre do autor: “The idea or memory of the shock, rather than the actual physical shock, could produce the effects. Tus a painful idea or psychological shock could cause hysteria”.
  • 16
    Trad. livre do autor: “When physical shock produces amnesia, the patient often does not remember the physical shock. Hence the psychological shock that produces hysteria may not be remembered by a hysterical patient”.
  • 17
    Trad. livre do autor: “enfermedades que padecen los miserables negros”; “contemplarlos al uso de la Patria, y principalmente de la sociedad humana”.
  • 18
    Trad. livre do autor: “uno de los mas lucrosos ramos de su opulento comercio”; “no cuidan más de ellos en sus navegaciones que si fuera una manada de carneros y aun mucho peor”.
  • 19
    Trad. livre do autor: “espectáculo de la esclavitud, de tan pobrecitos negros”.
  • 20
    Trad. livre do autor: “observaciones, de las principales enfermedades que padecen los negros de Africa, luego que los embarcan los extranjeros, para venderlos en las Américas, principalmente a todas las colonias españolas”.
  • 21
    Trad. livre do autor: “A las enfermedades mas comunes que por falta de la libertad, acometen a los negros en la larga navegación de África a la América”; “consisten en un estado depravado de toda máquina corporea, o de una parte considerable de ésta, complicada con alguna afección de el alma o de el sensorio”.
  • 22
    Trad. livre do autor: “pervertir la disposición de la sangre y de los espíritus”.
  • 23
    Trad. livre do autor: “que se apodera de su entendimiento, (aunque poco)”; “pasión furiosa de querersen volver a su país, por algún objeto amado, que halla dejaron, vgr. Madre, padre, o hijo, & ”.
  • 24
    Trad. livre do autor: “mucho peor que si fuera un jumento”.
  • 25
    Trad. livre do autor: “un descenso de las cimas del placer a los abismos del dolor (la mutación de un país de delicias, a la estrechez de un barco mercante)” (grifos no original).
  • 26
    Trad. livre do autor: “Nostalgia, when it is combined with a serious moral afiction, is almost always fatal. I have seen many victims [of nostalgia] among young girls of the countryside who went as servants in cities and who had the misfortune to give in to seduction. Tese poor girls no longer dare to return to their home [pays], and, however, the desire to see it again is even stronger when they are banished from it forever; because their parents rarely consent to see them again, and there are no bitter pills which they are not forced to swallow in their villages. Abandoned by everyone, prey to the most terrible pain, they do not delay in surrendering to the most violent despair, and come to hospitals to terminate their unhappy existence while endlessly repeating: my parents no longer want to see me, I will never return to my pays”.
  • 27
    Trad. livre do autor: “Happily, nostalgia diminished day by day; by descending little by little among the masses, instruction will develop the intelligence of people, making them more and more capable of struggling against the disease”.
  • 28
    Trad. livre do autor: “Le mal du pays, already rare in our time, is destined to disappear before the progress of hygiene and civilization”.
  • 29
    Trad. livre do autor: “Temporal nostalgia does not allow for the return home; there is no cure for the person who can only find life among the dead. In the case of Michelet, history is the symptom providing satisfactions for the nostalgic”.
  • 30
    Trad. livre do autor: “Nostalgia, like utopia, was a response to both modern conceptions of progress and modern practices of warfare. Nostalgia represented a ‘mourning for the impossibility of mythical return, for the loss of an enchanted world with clear borders and values’” (o trecho assinalado com aspas simples é uma citação de Svetlana Boym).

Agradecimentos

O argumento central do artigo foi apresentado durante a disciplina “História das doenças: a nostalgia”, oferecida, em 2021, junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UFG, como parte das minhas atividades de pós-doutorado (PNPD/CAPES). Sou muito grato ao pequeno, mas animado, grupo de pesquisadores que acompanhou as aulas e compartilhou das minhas inquietações acerca da historicidade desses fenômenos de memória transformados em problemas teóricos pela historiografia contemporânea. Meus agradecimentos, também, à equipe da revista Varia Historia, pelas importantes sugestões para a versão final do artigo.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    18 Jun 2022
  • Revisado
    05 Ago 2022
  • Aceito
    11 Ago 2022
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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