Open-access O Império contra-ataca. Terras, poder, soberania e embates entre os Maori e os britânicos na Nova Zelândia (c. 1840-1870)

The Empire Strikes Back. Land, Power, Sovereignty, and Disputes Between the Maori and the British in New Zealand (c. 1840-1870)

Resumo

O artigo analisa as disputas por terras e poder no Império Britânico em meados do século XIX, tendo como foco a Nova Zelândia. Anexada na década de 1840, ela foi central nos debates sobre como os britânicos deveriam atuar globalmente. A partir da análise de cartas de Chefes Maori, missionários, colonos e autoridades civis, imperiais e militares guardadas nos The National Archives de Londres, são debatidas as muitas forças políticas, econômicas e militares envolvidas na expansão imperialista. Ao focar em uma pequena e periférica colônia, o artigo explora as estratégias dos nativos para interagir, participar e resistir à chegada e instalação dos britânicos, suas estratégias discursivas, políticas e militares para garantir poderes e terras. Também é apresentado de que forma os interesses particulares e de grupo dos colonos mobilizaram receios e discursos na metrópole para a transformação dos Maori de civilizáveis a bárbaros a serem combatidos pelo Exército Imperial.

Palavras-chave Império Britânico; Nova Zelândia; resistências nativas

Abstract

Focusing on New Zealand, the article analyzes the disputes over land and power in the British Empire in the mid-19th century. Occupied in the 1840s, the colony was central to debates about how the British should act globally. Held in the National Archives of London, correspondence exchanged among Maori chiefs, missionaries, settlers, as well as civil, imperial and military authorities reveal how discussions over the deployment of political, economic and military forces evolved along with imperialist expansion. By concentrating on a small and peripheral colony, the article explores the discursive, political and military strategies natives employed as they interacted, participated, or resisted the arrival and installation of the British, i.e. their strategies aimed at securing power and lands. Also examined here are the ways colonists’ private and group interests mobilized fears and discourses in the metropolis for the Maori transformation from civilizable to barbarians who should be quashed by the Imperial Army.

Keywords British Empire; New Zealand; native resistances

Introdução

O Império Britânico foi a estrutura econômica e política a dominar mais amplamente de forma direta o globo em toda a história. Seu auge ocorreu durante o longo reinado da Rainha Victoria (1837-1901) e essa expansão conciliou o uso intenso de ações políticas, religiosas e militares. Os discursos legitimadores de sua existência e ampliação foram muitos, diversas vezes concorrentes, e se alteraram ao longo do tempo (Passetti, 2016). Desde as tentativas de abertura forçadas de mercados e assimetria de poder com as chancelarias latino-americanas em um campo do espectro, até a partilha da África em outro, foram estabelecidas formas muito distintas de atuação.

Entre os exaltadores do Império, o caso das chamadas “colônias brancas” é tido como emblemático de suas “benesses”. Canadá, Colônia do Cabo, Austrália e Nova Zelândia são recorrentemente citados como exemplos de regiões em que o Império Britânico fincou raízes, “desenvolveu” regiões e criou “nações prósperas e democráticas”. Este artigo tem como foco uma dessas colônias - a neozelandesa - e seu objetivo se centra no questionamento à imagem de uma colonização pacífica no estabelecimento de uma “pequena Inglaterra” - como as próprias fontes da época afirmavam.

Os The National Archives (TNA) de Londres guardam milhares de documentos do colonialismo britânico na Nova Zelândia. Após a seleção e análise daqueles referentes às relações com os Maori e com os colonos, optou-se por apresentar neste artigo alguns exemplares para a análise aqui proposta. Através da análise dos documentos gerados pelo War and Colonies Office, procurou-se verificar de que forma os agentes imperiais civis e militares, em diálogo com os religiosos e os colonos, debateram, disputaram e articularam estratégias para a conquista militar daquele arquipélago diante de obstinadas resistências dos Maori.

Sobre essa documentação oficial do imperialismo britânico, objetivou-se entender de que forma os “olhos do Império” (Pratt, 1999) descreveram, atuaram e construíram um forte discurso sobre potencialidades da colônia e sobre as resistências nativas. Dessa forma, o foco central está nas articulações entre autoridades civis e militares e os colonos, seus interesses privados e de grupo na formulação de um discurso sobre um embate entre o poder britânico, a soberania da Rainha Victoria, os interesses imperiais, o caráter e as resistências nativas organizadas à invasão daquele arquipélago.

Os Chefes Maori são aqui entendidos a partir da História Política Renovada, como partícipes ativos econômica, militar e politicamente durante todo o processo aqui analisado. A análise procura demonstrar como a política neozelandesa era muito mais extensa e intensa do que qualquer tipo de leitura estrita poderia indicar. Apesar de não serem reconhecidos institucionalmente, os Chefes negociavam diretamente, procuravam interferir nos desígnios da colônia, disputavam entre si e demonstravam compreensão bastante refinada sobre o processo no qual se encontravam.

Como aquela era uma típica zona de contato da expansão imperial (Pratt, 1999), é preciso indicar que os escritos das fontes oficiais não devem ser considerados como portadores de verdade e que os filtros culturais de seus redatores modelaram a forma como entendiam o que os nativos entendiam da situação. Não se trata aqui de uma pesquisa de antropologia histórica, mas as reflexões levantadas pela crítica pós-colonial e pelas pesquisas, entre outros, de Gananath Obeyesekere (1992), Marshall Sahlins (2001) e Anne Salmond (2003) são cruciais para um olhar crítico sobre as fontes.

Os arquivos britânicos guardam algumas cartas assinadas pelos Chefes, escritas por eles, por secretários ou tradutores em intenso esforço para a negociação e para a apropriação do vocabulário político inglês. Aqui apresentamos esses poucos documentos e também muitos outros, escritos pelos britânicos, registros das negociações cotidianas com os Maori desenvolvidas oralmente. O protagonismo nativo aparece diversas vezes nesses escritos da administração colonial britânica.

As histórias do imperialismo britânico estiveram, durante muito tempo, marcadas pelas análises em torno de suas conquistas militares, interesses econômicos ou das disputas diplomáticas entre as potências europeias. Este artigo se foca sobre o protagonismo político e econômico dos Maori nas relações com os colonos e com o Estado britânico e como as diferentes forças do imperialismo (civis, militares, religiosas e dos colonos), muitas vezes em disputa e conflito interno, se articularam para a construção de um discurso em torno de ameaças à soberania britânica, a seus interesses econômicos e de seus súditos para atrair o Exército Imperial para campanhas militares de conquista territorial em uma região periférica do sistema imperial.

O artigo está estruturado em quatro blocos. Ele se inicia com um breve histórico da conquista britânica da Nova Zelândia e as relações por lá estabelecidas com os nativos. Na sequência, apresenta os poderes dos Maori, de que forma esses eram os efetivos controladores das relações nas ilhas e suas estratégias de resistência à expansão do poder britânico. Segue descrevendo o embate central, segundo nossa análise, das décadas de 1850 e 1860, sobre soberania, poder e o incômodo de colonos e autoridades diante da força dos Chefes. Por fim, identifica as associações entre os distintos grupos britânicos na colônia para a mobilização do Exército Imperial e suas construções discursivas e apresenta as campanhas militares de submissão dos Maori.

Os britânicos e a anexação formal da Nova Zelândia

Distante mais de dois mil quilômetros do incipiente polo de colonização britânica de Nova Gales do Sul (Sydney), o arquipélago neozelandês esteve isolado dos objetivos do Império até as primeiras décadas do século XIX. Alguns poucos Chefes Maori controlavam o acesso dos europeus a pontos específicos das ilhas e as relações entre ambos os grupos se mantiveram na base do comércio que proporcionava acesso a bens exóticos àqueles Chefes.

Os grupos Maori instalados na chamada Bay of Islands, ao norte do arquipélago, controlavam esse comércio (Belich, 1986), o que levou a uma série de conflitos intra-étnicos. Ao mesmo tempo, houve o estabelecimento de missionários da Church Missionary Society, a sociedade evangelizadora da Igreja Anglicana, na mesma região (Lester, 2005).

Na década de 1830, sucessivas vitórias políticas dos grupos religiosos, originalmente articulados em torno da abolição do tráfico negreiro e da escravidão, deram intensa força ao humanitarianism (Hall, 2002)1. Propostas para uma retomada da expansão do Império, com a anexação de territórios a serem administrados por missionários, indicavam uma nova fase, com o imperial humanitarianism (Potter, 1999). Muito se debatia sobre uma “missão” do Império e sobre como atuar em regiões em que ainda não havia colônias formais, mas nas quais já se avistavam britânicos vivendo, comercializando e, como diziam, “deturpando” os povos nativos.

No Parlamento, havia divergências sobre como o Império deveria se expandir. Para a Casa dos Comuns, os nativos deveriam concordar com sua incorporação ao Império e deveriam ter tratamento “justo”. Já para a Casa dos Lordes, eram inúteis expansões imperiais sobre regiões sem interesse econômico imediato (Hall, 2002). Ambas as Casas criaram, no final da década de 1830, comissões com foco específico sobre a Nova Zelândia, de onde chegavam relatos sobre potencialidades econômicas, clima temperado, baixa densidade demográfica nativa, atuação intensa de missionários e de interesses de outras potências, em especial a católica e eterna rival, a França.

A Casa dos Comuns, com mais vínculos com o humanitarianism, autorizou o estabelecimento da British and Foreign Aborigines Protection Society, sob o comando do anti-escravista Thomas Buxton. Já a Casa dos Lordes autorizou a constituição da New Zealand Land Company, presidida por Edward Gibbon Wakefield, um poderoso e bem articulado investidor. Essa companhia foi seguida por outras, logo todas fundidas em uma única, a New Zealand Company (NZCo).

Personagem central convidado por ambas as Casas foi Robert FitzRoy, comandante da Marinha Real que havia recentemente voltado da viagem de circum-navegação do globo com o HMS Beagle (1831-1836). Envolto no debate sobre como deveria ser a anexação das ilhas, redigiu o relato de suas expedições como uma defesa pública da anexação daquele arquipélago a partir de premissas do imperial humanitarianism (Passetti, 2013). Ele foi enfático ao apresentar um embate entre, de um lado, o que chamou de “o pior tipo de colonizador, (...) taberdeiros e pecadores” (FitzRoy, 1839, p.615) e, de outro, britânicos habitantes de “casas de campo caiadas e bem construídas” (FitzRoy, 1839, p.606-607).

Em agosto daquele ano de 1839, partiu da Inglaterra o capitão William Hobson para que, com o auxílio dos missionários da CMS e em diálogo com a NZCo, negociasse com os Chefes Maori sua incorporação formal ao Império Britânico. Para a compreensão do jogo de forças políticas envolvidas nessa ação, é importante verificar o discurso utilizado nas instruções pelo War and Colonies Office para o capitão Hobson:

A Rainha (…) repudia, para ela mesma e para seus súditos, todo tipo de pretensão de apoderar-se de qualquer parte de Nova Zelândia, ou governá-la como parte do domínio da Grã-Bretanha, a menos que seja por livre consentimento dos nativos (...). Acreditando, entretanto, que seu próprio bem-estar (...) e que os benefícios da proteção britânica e leis administradas pelos juízes britânicos compensariam o sacrifício, pelos nativos, de sua independência nacional, a qual não são mais capazes de manter.2

Naquele fim da década de 1830, ainda havia muito receio sobre os custos e vantagens de novas anexações territoriais e também intensa resistência doméstica à política de conquista militar. A força do imperial humanitarianism se fazia presente e marcou as preocupações do governo quanto àquela colônia na década seguinte.

Ocorrida em 6 de março de 1840, a assinatura do chamado Tratado de Waitangi entre o representante da Rainha Victoria e os Chefes Maori criou instrumento jurídico e poderosa arma discursiva para os britânicos. Há intensa disputa política e historiográfica sobre suas consequências, pois ele foi assinado em duas versões.

Um dos pontos centrais está na tradução dada à sovereignty. No entendimento de Richard Hill (Hill, 2005), o termo inglês foi dividido em três pelos missionários. Para os Maori, não havia distinções entre kawanatanga - o poder para a Rainha - e rangatiratanga - o poder local exercido pelos Chefes -, e ainda taonga - propriedade no sentido inglês. O historiador neozelandês John Pocock analisou esse embate entre as versões do Tratado, e entende que havia profundas distinções: “os britânicos pensaram em soberania não apenas na forma de um Protetorado, (...) mas como um governo civil (...). Os iwi (...) sabiam que efetivamente estavam transferindo terras, mas não esperavam se ver despossuídos das mesmas” (Pocock, 2005, p.236).

A formalização da anexação da Nova Zelândia marcou uma nova fase do Império Britânico, com a retomada de sua expansão, questionada desde a revolução que levou à independência de parte de suas colônias norte-americanas. Os debates no Parlamento ao longo da década de 1830 fizeram com que se tentasse conciliar os interesses dos missionários e dos investidores e se aplicasse aos Maori um tratamento justo e digno. Essas forças marcaram as primeiras décadas da colonização britânica daquelas ilhas e foram fundamentais na composição do que viria a ser a definitiva submissão dos nativos ao poder militar britânico, duas décadas depois.

Soberania e poder maori

Os britânicos sabiam que os Chefes Maori eram os efetivos controladores e garantidores da manutenção da colônia. Em sucessivas correspondências enviadas ao War and Colonies Office, os governadores Hobson e FitzRoy comentaram sobre os desafios à implementação da autoridade britânica impostos pelos Chefes. Esses dominavam a produção agrícola e a pesca e logo passaram a questionar a introdução massiva de colonos e as compras de terras.

Esse era um ponto central, pois diante da força do imperial humanitarianism não era possível a invasão de terras dos interiores das ilhas por colonos: a estrutura colonial montada atribuiu à Coroa o poder de comprar as terras dos Chefes e revendê-las para investidores e colonos. Ao tentar transplantar aos grupos Maori concepções bastante específicas da cultura inglesa sobre uso e propriedade da terra, os britânicos “foram incapazes de imaginar que a propriedade poderia assumir outros matizes além do individual e patriarcal” (Pocock, 2005, p.216).

Em vários pontos do arquipélago, ocorreram rebeliões. A mais importante dessas, na década de 1840, ocorreu na Bay of Islands, comandada por Chefes insatisfeitos com a iminente diminuição de seu poder diante do governo, de grupos de regiões próximas às vilas estabelecidas pela New Zealand Company ou pela Coroa. O nome de maior destaque foi o do Chefe Hone Wiremu Heke Pokai. Após verificar que os britânicos estavam se espalhando pela Nova Zelândia e se afastando de seu controle, reuniu seus guerreiros, invadiu Kororareka, arrancou a bandeira britânica, cortou o mastro e colocou fogo nas casas. Aquela foi uma ação política e um sinal claro de sua força e insatisfação com a administração colonial.

O ataque foi contra o maior símbolo do poder britânico e foi entendido por todos como “algo totalmente inesperado e humilhante” (Belich, 1986, p.37). Esses são dois termos centrais para entendermos como os britânicos pretenderam se relacionar com os Maori.

A resposta, comandada pelo humanitarian - mas sempre oficial da Marinha Real - Robert FitzRoy foi também política e militar, com um discurso que já superava aquele declarado quando do Tratado de Waitangi. Uma vez incorporada ao Império, a Nova Zelândia estava sob a soberania da Rainha Victoria:

Todos os nativos da Bay of Islands e redondezas, que desejam a paz, comércio e amizade com os Europeus; - e a manutenção da autoridade da Rainha; - que se beneficiam da proteção de Sua Majestade; - são aqui convocados (...). Considerando-se que alguns nativos descontentes (...) entraram em guerra, e estão agora em rebelião com a Soberana Autoridade da Rainha, para a supressão de tal rebelião, serão imediatamente realizadas operações militares pelas forças de Sua Majestade.3

É importante notar aqui como o ponto central da argumentação para o uso das forças militares contra os nativos foi a contestação à soberania da Rainha. A rebelião, para FitzRoy, deveria ser combatida, já que era comandada por nativos “deturpados”, portanto que estavam fora do que o humanitarianism idealizava:

É minha dura missão declarar minha convicção de que até que as principais pa em Kawakawa sejam destruídas e até que a maioria de seus habitantes rebeldes seja morta, não haverá paz na Bay of Islands (...), [com] nativos extremantes perigosos, que são a ruína de tudo aquilo que é bom e agradável, cuja inimizade com os colonos, aversão à toda lei e ordem e ódio à autoridade britânica são invencíveis. Eles são provavelmente os piores nativos na Nova Zelândia, tendo sido tão corrompidos por homens perversos.4

Enquanto as autoridades britânicas se movimentavam política e militarmente, os Chefes também atuavam na defesa de seus interesses. Recorrendo ao expediente de cartas enviadas a missionários, a outros Maori ou a colonos, procuravam articular respostas à situação que ia saindo de seu controle. Kawiti, um dos sublevados, escreveu após importante vitória militar para procurar assegurar a conquista. Seu destinatário era o missionário William Williams, para que esse encaminhasse ao Governador:

Amigo W. Williams, Como vai? Sinto forte afeição por você: diz que a paz deve ser feita, e concordo com isso, pois nem sempre vou me opor às suas palavras (...). Senhor Governador, Como vai? Desejo que seja feita a paz, muitos europeus foram mortos. Disse que devo ser o primeiro a promover a paz, então é isso. Eu, agora, concordo com isso.5

Outro Chefe, Hone Heke, que havia iniciado a rebelião, escreveu a um dos colonos mais antigos:

Amigo, (...) recomendo que seja cauteloso. Fomos nós que concedemos a terra, mas mais tarde você convidou alguns europeus estranhos para irem e ocuparem. Isso não é correto (...). Pare, portanto de convidar europeus indiscriminadamente para aquele local. Permita que apenas alguns ali se assentem. Caso contrário ficarei extremamente irritado.6

Nesta correspondência, o Chefe foi bastante claro sobre seu entendimento político do que estava ocorrendo. Além das ações militares, procurou coordenar outros Maori e também os primeiros colonos estabelecidos na região para tentar impedir a perda de controle da situação.

Para fazer garantir a soberania da Rainha Victoria, FitzRoy foi demitido e o novo governador George Grey organizou expedição militar com aproximadamente 1.300 soldados, acompanhados por mais de 800 guerreiros Maori de grupos rivais aos sublevados, auxiliados por navios da Marinha Real. Aquela foi uma operação de guerra de envergadura considerável para aquele momento, por se tratar de colônia nova, pequena e periférica, ao mesmo tempo em que ocorria a muito mais preocupante Guerra Sikh, na Índia. Apesar de todos esses fatores, considerou-se crucial enviar uma mensagem clara sobre o poder britânico e a supressão da rebelião ocorreu somente a partir do uso de força militar muito maior do que a cotidianamente disponível na Nova Zelândia.

Ao fim de operações militares de tamanha magnitude - mas sem serem derrotados ou mortos - os Chefes rebelados voltaram a escrever ao Governador. Sua carta expressa suas forças política e militar e como eles eram protagonistas naquela colônia:

Oh meu estimado amigo Governador o saúdo. Grande é minha consideração a você. Este é fim de nossa (sua e minha) conversa, e ofereço a você agora; amigo Governador, eu digo, seja feita a paz entre eu e você. Estou saciado (satisfeito ou tendo tido o suficiente) de suas riquezas (bolas de canhões); portanto, eu digo, estejamos eu e você em paz. Não gostaria? Sim! Esse é término de minha batalha contra você. Amigo Governador, eu, Kawiti e Hikitene aprovamos essa boa mensagem.7

A NZCo, então porta-voz dos colonos na distante metrópole, considerou importante levar a voz daquelas pessoas e se posicionar positivamente diante das operações militares contra os Maori. Para seus diretores, em carta direta a Lorde Stanley, o secretário das Colônias, “tem sido nossa profunda e, agora, nossa determinada convicção de que a firmeza em relação aos nativos e a exibição de força obviamente irresistível, serão as únicas formas de melhorarmos os interesses da humanidade”.8

A vitória militar não foi apenas britânica, mas também de Chefes que se opunham ao poder daqueles da Bay. Havia intensas e tradicionais disputas entre os Maori que a chegada dos europeus intensificou, mas que eram anteriores. A diversos Chefes pareceu ser mais interessante se associar ao Governador naquele momento, para garantir o acesso a bens e armas, em uma análise política e econômica - a partir dos referenciais Maori - da situação. Duas correspondências exemplificam esses interesses e o embate por protagonismo:

“Amigo Governador (...), não permita que os europeus fiquem alarmados - deixe que venham sem hesitação, aqui estamos nós em, Takapuahia, aguardando (por eles). Senhor, meu coração está triste - assim como todas as pessoas. Amigo, não permitirei que lute sozinho com aquelas pessoas”.9

“Amigo Governador (...). Os grupos hostis começam a se movimentar - esse é o primeiro grupo - logo haverá um segundo - um terceiro e quarto grupo a unir-se a Rangihaeata, com o propósito de matar pessoas brancas, mas não as pessoas brancas apenas, como nós também, porque sabem que somos unidos pela crença Cristã”.10

Estas cartas são interessantes, pois indicam o esforço de outros Chefes de se aproximar das autoridades britânicas, apresentando-se como cristãos e como interessados na instalação de colonos. Elas expressam o intenso jogo político entre os Maori naquele período, as transformações naquelas relações decorrentes do início da chegada sistemática de colonos e as disputas por quem controlaria a nova situação.

Após a repressão à rebelião de Heke, as relações entre a administração colonial e os Chefes se estabilizaram, mas os britânicos permaneceram insatisfeitos e conscientes de sua inferioridade. Ao escrever para Londres, o governador Grey desabafou: “os nativos tiveram poucos motivos para respeitar ou temer a autoridade britânica (…). As autoridades e os colonos receberam permissão dos nativos para morar ali, de maneira bastante degradante”.11

Esta citação é importante, pois indica os problemas centrais identificados pelo Império. Naquele momento, não eram exatamente as questões econômicas, tampouco as ameaças de potências europeias concorrentes o que ameaçava, mas sim o maior problema era não serem reconhecidos como superiores, os colonos estarem submetidos ao poder e interesses dos Chefes, exatamente o oposto do que o discurso imperial supunha.

Ainda em 1846 o Governador estabeleceu uma associação importante entre as ameaças à soberania da Rainha, o poder Maori e outro ponto, central na construção do discurso que levaria, quase duas décadas depois, aos combates militares aos Maori. Naquela oportunidade, Grey declarou ter ocorrido “o mais bárbaro assassinato de uma mulher e suas quatro crianças, cometido por seis nativos, (...) que mutilaram o corpo da pobre mulher e comeram parte dele”.12 Estava ali retomada a velha oposição entre civilização e barbárie. Com a barbárie não há diálogo, mas sim combate. Naquele momento, no entanto, não havia forças militares suficientes para tal, nem tampouco esse discurso estava suficientemente disseminado. Era preciso dobrar a força do humanitarianism na metrópole e, para tal, relatos sobre cruéis assassinatos, traições, grupos de desordeiros e antropofagia eram excelentes mobilizadores.

Esse tipo de relato ocorria nos locais em que havia contato, convívio e conflito entre colonos britânicos e os Maori. O ponto central era a disputa pelas terras, já que havia sido estabelecido que a Coroa deveria comprá-las dos Chefes e revendê-las e esses logo notaram que a forma mais simples de resistir era se negar a vendê-las. Essa tensão aumentou a partir de 1852, quando o Parlamento Britânico aprovou o Ato de Constituição, outorgando poderes de autogoverno à colônia.

O governo local e a legislação sobre o acesso às terras passaram ao controle dos colonos, que viviam, conviviam, disputavam e estavam insatisfeitos com os poderes dos nativos. Assim que a quantidade de colonos aumentou, em meados da década de 1850, as pressões se tornaram maiores, as insatisfações idem, os ataques mútuos voltaram e passaram a circular na metrópole os relatos de ataques, mortes, massacres e antropofagia. Aos colonos, era importante associar os Maori à barbárie e às ameaças à soberania da Rainha Victoria, a um ataque ao próprio Império Britânico.

Quem é o soberano? O movimento do rei e a sublevação contra Victoria

Ao longo da década de 1850, o fluxo de imigrantes à Nova Zelândia se intensificou, fortalecendo as pressões pela venda de terras, operações recorrentemente questionadas por diferentes Chefes. Em paralelo e conectado a esse movimento, espalhou-se insatisfação com a forma de atuação dos britânicos e o lugar dos Maori na sociedade em transformação.

As pressões sobre eles foram tão intensas que grupos historicamente rivais passaram a dialogar. Segundo a documentação britânica, os primeiros encontros dos Chefes para uma articulação ocorreram em 1856 em Ngaruawahia, na região do Waikato. Aquele era o ponto central de tensão, já que estava entre os dois principais polos da colonização britânica - Auckland e Port Nicholson (futura Wellington). O movimento logo alcançou amplos apoios entre os principais grupos, culminando com um fato inédito para aquelas sociedades: a proclamação de um Rei Maori, acima e para todos os grupos, em 1858. Este era Potatau Te Whero-Whero.

Para os britânicos, a proclamação de um Rei Maori era explícito ataque à soberania da Rainha Victoria e esse termo, já bastante presente nas correspondências da década anterior, voltou a circular com bastante intensidade, indicando um entendimento de que havia um questionamento ao poder da monarca. Insatisfeitos com as dificuldades colocadas para tomarem as terras dos nativos, os colonos, os comandantes militares e os governantes indicados por Londres logo passaram a articular o problema político-militar ao fundiário.

A documentação enviada da Nova Zelândia a Londres é farta dessa argumentação. Carta do governador Browne, de 1860, por exemplo, apresenta explicitamente essas articulações:

Desde a ampliação do Movimento do Rei, tribos (...) estão prontas para unir-se para suspender o progresso dos europeus, e livrarem-se de seu domínio (…). Respeitosamente sugiro que a paz dessa colônia só possa ser garantida pela presença de considerável força militar. Se essa proteção não existir, a Colônia pode entrar em guerra a qualquer momento (...) e acabar com a Nova Zelândia enquanto colônia britânica.13

Para ele, o movimento dos Maori era uma ameaça real à soberania britânica sobre o arquipélago e ele sabia que essa argumentação era poderosa para mobilizar os maiores receios na metrópole. Assim como havia ocorrido na década de 1840, pretendia-se o envio de grande aparato militar para combater e encerrar as resistências nativas, recorrendo à argumentação de uma iminente perda da colônia. Os Chefes perceberam tal articulação e questionaram o que entendiam como provocações em busca de um estopim bélico:

Amigo Coronel Murray, Saudações a você em nome do nosso Senhor Jesus Cristo (...). Você diz que nós somos culpados de rebelião contra a Rainha, mas achamos que não somos (…). Ouvi que está vindo para Waitara com soldados, e portanto sei que está zangado comigo. É esse seu amor por mim, trazer soldados para Waitara? Isso não é amor; isso é ira. Não desejo a ira, tudo o que quero é a terra. Isso é tudo.14

A articulação entre colonos e autoridades civis e militares foi intensa para alcançar o objetivo de mobilizar os receios soberanistas na metrópole, provocar os discursos sobre superioridade racial e o lugar do Império. Para mobilizar as forças políticas na metrópole e conseguir as forças militares com o objetivo de liquidar as resistências nativas e conquistar suas terras, optou-se pela intensificação do discurso da oposição entre a civilização britânica e a barbárie nativa, distanciando-se do ultrapassado imperial humanitarianism para compor um cenário de ameaça real aos súditos e à soberania da Rainha pautado no aprofundamento de uma oposição racial.

Os colonos tiveram especial destaque nesse momento, recorrendo a diferentes autoridades provinciais para fazer chegar formalmente ao Governador e, dele para a metrópole, reclamações quanto à submissão política, econômica e militar aos Chefes Maori:

Todos estão conscientes de que essa situação é um mal necessário, e que no fim será vantajosa. De fato, todos esperam que a província possa se livrar do “gênio do mau” que, por quase 20 anos tem sido sua ruína (...). Kingi conseguiu “expulsar” todos os governadores anteriores, e espera continuar assim. Espero que não; mas estamos em condições de irmos próspera e rapidamente à luta? Se essa se tornar muito longa, poderemos esperar que todos os bandidos da costa oeste se reúnam aqui para saques, e nesse caso nossas propriedades seriam queimadas, nossos cavalos, gado e ovelhas roubados ou mortos.15

Essa e outras cartas chegaram às autoridades em Londres. Nelas estão o questionamento ao poder do Chefes e narrativas em torno de um embate entre colonos civilizadores e nativos bárbaros e violentos. O embate se dava entre a civilização e a barbárie, entre o poder nativo e a Rainha Victoria. Era essa associação provocativa que os colonos, os militares e as autoridades coloniais pretendiam fazer chegar aos gabinetes metropolitanos.

Diante de sucessivas negativas para aumentar a quantidade de tropas estacionadas naquela periférica colônia, foi proposto sistema de financiamento para a transferência de soldados veteranos interessados em se fixar na Nova Zelândia. O objetivo declarado era o de aumentar a população de origem britânica e, ao mesmo tempo, contar com homens treinados para a guerra e armados chamados de New Zealand Fencibles.

A instalação de mais de 500 fencibles na Nova Zelândia não proporcionava apenas um reforço de tropas, mas principalmente alterava a forma como os colonos se portavam e se relacionavam com os Maori. Não era esperado que soldados e oficiais veteranos de guerras coloniais se subjugassem ao poder dos Chefes, nem tampouco que aceitassem o que era descrito como provocações e ataques. Dos fencibles se esperava uma postura dura, agressiva, militarizada e de força.

O resultado, esperado e planejado, era a defesa dos núcleos de colonização e também a intensificação dos conflitos. Ao não se submeter aos Maori, os ex-militares resistiriam com suas armas. Desses enfrentamentos, viriam vitórias locais e, também, insatisfações nativas. Novos combates e novos relatos de mortes, vinganças e antropofagia: esses eram sabidos ingredientes para uma mobilização metropolitana e para a transferência de tropas. O governo colonial sabia que a chegada dos veteranos levaria a mais conflitos. Aos poderes locais isso era interessante, pois transformava, no âmbito discursivo, os Maori de sujeitos ao humanitarianism em bárbaros a serem combatidos. Nesse sentido, por exemplo, os colonos de Taranaki escreveram ao governador e ele retransmitiu a Londres, em 1860:

Durante muitos anos (…) os colonos de Taranaki sentiram a incerteza face à invejosa população nativa, que nunca se sujeitou por completo às autoridades britânicas (…). Eles [colonos] tiveram suas casas arruinadas, seus colegas e seus filhos assassinados por hordas de selvagens (…). Foram forçados a deixarem submetidos à guerra selvagem suas bem cultivadas fazendas e seus numerosos rebanhos (…), e então correrem o risco de se sujeitarem novamente ao domínio de uma raça selvagem (…). Não se fará paz com eles até que sejam severamente punidos pelos bárbaros assassinatos cometidos a colonos inofensivos e desamparados.16

Nessa descrição, verificamos a mobilização de discursos bastante específicos, associando os Maori a uma população indisposta ao trabalho e “invejosa dos sucessos dos colonos”. Eles também são descritos como violentos, selvagens, bárbaros que pretendem dominar pela força os pacíficos colonos britânicos. É interessante notar como, no início da década de 1860, estes termos foram incorporados e retransmitidos à administração do Colonial Office (separado do War Office em 1854):

é absolutamente necessário infringir tal punição às tribos que cometeram os assassinatos de colonos desarmados, o que convencerá os nativos da Nova Zelândia de que somos tanto capazes, quanto determinados a vingar tais atrocidades, para manter a supremacia do Governo de Sua Majestade; que nossa paciência é em consideração à sua ignorância e barbarismo, e não temor de sua bravura.17

“Assassinatos”, “atrocidades” e “barbarismo” foram incorporados ao discurso imperial e, no caso da Nova Zelândia, associados aos Maori. Com “bárbaros” não se negociava, era preciso “vingar atrocidades” e, acima de tudo, garantir qual grupo era mais poderoso e sobre quem recaía a soberania: Rainha Victoria ou Rei Whero-Whero. Naquele momento, o governador Browne já indicava sua compreensão da situação e procurava mobilizar discursos e angariar forças na administração metropolitana para fazer chegar à Nova Zelândia o poderoso Exército Imperial.

Para alcançar seus objetivos, era preciso radicalizar a situação na colônia. Somente uma conflagração nativa com discurso claramente contra a soberania da Rainha e repleta de relatos de mortes de colonos, massacres e antropofagia poderia mobilizar o Parlamento, a monarca e suas tropas para campanhas militares em colônia tão pequena e periférica. Neste sentido, o Governador escreveu aos Chefes reunidos no chamado “Movimento do Rei” com um ultimato:

Dizem que os idealizadores [do Movimento] desejam que as tribos Maori da Nova Zelândia se unam e acabem com o poder da Soberana, de cuja proteção gozaram por mais de vinte anos, e que vão instituir um Rei Maori (…), devem provar serem súditos leais e fiéis, e que a instalação de um Rei Maori seria um ato de desobediência e provocação à Sua Majestade e não será tolerado.18

Passados vinte anos da anexação da Nova Zelândia ao Império Britânico, não havia mais discurso humanitarian na administração colonial. As sucessivas demonstrações de poder por parte dos Maori, desinteressados em se tornar súditos subalternizados, incomodavam colonos e administradores civis e militares. As tentativas de conquistar terras com as armas foram infrutíferas, já que os nativos eram também guerreiros e excelente estrategistas. Não alcançaram o sucesso militar, mas foram capazes de gerar recorrentes conflitos, escaramuças e mortes, relatadas pelas vias oficiais em tons de oposição entre civilização e barbárie. Quando os Maori, pressionados pelos britânicos, se uniram e resolveram intensificar sua resistência à perda de terras, proclamando seu Rei - muito mais simbólico do que um soberano no sentido da cultura política inglesa - foi possível acionar outra ameaça, a da perda da colônia pela Rainha Victoria.

Foi somente quando conseguiram articular os discursos sobre violências, resistências, barbárie e ameaças à soberania que os colonos foram capazes de mobilizar as forças imperiais. Em duas décadas, eles converteram os Maori de súditos selvagens ideais a bárbaros a serem aniquilados.

No início da década de 1860, a Nova Zelândia estava tencionada. Os Maori estavam no auge de seu poder, a maior parte deles reunidos como nunca antes em torno de um Rei. Os britânicos, em número cada vez maior, insatisfeitos por viver na colônia situação de inferioridade com a qual não estavam preparados para lidar. Os colonos, interessados em mandar e em conquistar terras, divulgavam sucessivos informes em torno da chamada barbárie dos Maori. Os administradores imperiais, desesperados com o que parecia ser uma sublevação contra a soberania da Rainha. Os Chefes se prepararam para o conflito, entendendo que chegara a hora de afirmar seu poder ou então de sucumbir. Os colonos criaram tensões, criaram conflitos e conseguiram mobilizar o aparato imperial por uma guerra que interessava somente a eles.

O império contra-ataca

Provocada, a administração imperial respondeu. Não era possível uma ameaça tão clara à soberania da Rainha Victoria, era inadmissível perder uma colônia. George Grey, o governador responsável pela vitória sobre os Chefes da Bay of Islands em 1846 foi transferido de volta da Colônia do Cabo. Para comandar as tropas, foi enviado um dos comandantes mais destacados na recentemente encerrada Guerra da Crimeia: Duncan Cameron. Entre os Maori, o Rei Potatau Te Whero-Whero faleceu de causas naturais e seu filho, Matutaera Te Pukepuke Tawhiao, assumiu o trono.

O envio do general Cameron à Nova Zelândia foi um indicativo da assimilação dos discursos sobre riscos por parte da administração imperial. Ele era um homem da nova geração de militares e levou àquela guerra colonial novos pensamentos sobre estratégia, em especial sobre logística e comunicação.

Ele investiu na construção de mapas para a ocupação rápida da região com o emprego da mais recente tecnologia de guerra. O plano desenhado consistiu na tomada do rio Waikato com navios a vapor, na construção de uma estrada por terra para o deslocamento das tropas, na construção de fortes e na conexão de todo este aparato por telégrafo. O objetivo central era tomar Ngaruawahia.

Ele e o Governador George Grey pretendiam uma vitória militar rápida, suprimir as resistências nativas e alçar altos postos na concorrida administração imperial. Conseguiram a mobilização de mais de catorze mil soldados e o envio dos mais poderosos canhões Armstrong. Eles assumiram o discurso do embate da civilização britânica contra a barbárie Maori, incorporaram os interesses dos colonos. Grey recorreu a essa argumentação para proclamar: “É impossível que as condições permaneçam como estão (…). Na verdade estivemos, e ainda estamos por ora, inteiramente à mercê dos nativos, e eles sabem disso”.19

Quando a lente analítica é afastada da ampla guerra imperial de conquista e focada sobre a situação colonial, percebe-se a conjunção de interesses e fatores privados que possibilitou a mobilização de discursos para o emprego do Exército Imperial em uma colônia tão periférica. É importante ressaltar esse ponto, já que naquele início da década de 1860, o Império Britânico enfrentava dificuldades para efetivar a expansão de seu domínio sobre a imensa área conhecida como Índia, se movimentava em torno de conflitos no Egito por conta do Canal de Suez e ultrapassava grave crise de abastecimento de matéria-prima em suas indústrias têxteis, decorrente da Guerra Civil Americana.

Em 1863, o governador Grey publicou o Supression of Rebellion Act, autorizando o confisco de terras do Movimento do Rei e convocando civis para o combate. Aos colonos era oferecida a oportunidade do botim de guerra. Divulgado em áreas repletas de aventureiros recém-chegados nas corridas do ouro de Otago, no leste da Nova Zelândia, e da Austrália, essa convocação fez se mobilizarem mais de quatro mil civis e militares da reserva. Para a imensa maioria deles, aventureiros do Império que atravessaram o planeta em uma corrida de ouro, aquela era a oportunidade para colocar todas as suas forças, alcançar a vitória militar, eliminar os Maori e conquistar uma nova situação de proprietário fundiário.

Um dos principais desafios foi enfrentar um povo guerreiro e inventivo que transformou suas estratégias defensivas para resistir aos mais modernos inventos bélicos britânicos. Em suas fortalezas - chamadas de pa -

as técnicas incluíam a escolha criteriosa do local para a instalação de trincheiras para guerreiros com mosquetes, a construção de paliçadas em sequência para retardar o avanço dos invasores e transformá-los em alvos fáceis, a instalação de outra linha de mosquetes em ponto mais alto da colina, enterrada em buracos para proteção contra a artilharia, e a camuflagem de todo este aparato, além da construção de alvos falsos para desperdício de munição (Belich, 1996, p.210-211).

Aquela intensa mobilização para uma clássica guerra colonial de conquista demonstra a superação dos discursos do humanitarianism e as forças locais interessadas na eliminação das resistências nativas, em seu desaparecimento e na instalação de uma nova sociedade em que não havia espaço para a antes propalada “interação das raças”. Embebidos pelos discursos da superioridade racial e pelas noções de missão imperial, os colonos novos e antigos estavam dispostos a garantir a “soberania da Rainha Victoria”, isto é, seus próprios interesses em nome de um discurso mobilizador das preocupações metropolitanas.

As autoridades coloniais, interessadas na solução militar e na supre­ssão das resistências nativas, ajudaram na instigação de um clima geral de beligerância entre colonos e nativos e trataram de informar a Londres a urgência das medidas em execução:

chegou a Sir George Grey informação de que os nativos estavam prontos para rebelarem-se e assassinarem os colonos das áreas mais remotas (…), ele considerou que ações deveriam ser tomadas o quanto antes para remover qualquer nativo descontente das proximidades do território europeu (…). Magistrados foram enviados para as redondezas das vilas nativas, com instrução de visitar os habitantes ou para tomar seu juramento de lealdade, ou para removê-los para o interior do país. Todos se recusaram a fazer o juramento de lealdade (como já imaginávamos).20

A situação de conflito na Nova Zelândia, em especial na região do Waikato, onde estava sediado o Movimento do Rei e onde ficavam importantes grupos que ofereciam resistência ao projeto de poder britânico, foi construída e justificada pelo general Cameron. Duas décadas de relações tensas e intensas entre os dois grupos, a chegada constante de mais britânicos ansiosos por terras e por assumir, do outro lado do mundo, lugar que não lhes era reservado na metrópole, e uma população armada e hostil, fizeram com que as relações naquela zona de contato da expansão imperial chegassem ao ponto de ruptura. Na descrição da situação enviada a Londres para pressionar por mais tropas e justificar as medidas beligerantes que vinham sendo tomadas, o general informou sobre a possibilidade de massacres de britânicos, o desafio imposto à autoridade e à soberania da Rainha Victoria e uma suposta proposta de pacificação e desarmamento, negada pelos Chefes. Para o general, o governador, os militares e os civis, era chegada a hora do combate e de suprimir os Maori.

A invasão do Waikato

Entre julho de 1863 e maio de 1864, o Exército Imperial Britânico, apoiado pela Marinha Real e por colonos armados, empreendeu mais uma de suas campanhas militares de repressão a resistências nativas. Comandados por um general de nova geração e utilizando a mais moderna tecnologia de guerra, praticamente duas dezenas de milhares de britânicos colocaram fim às resistências dos Maori atacando diretamente o centro do Movimento do Rei, ocupando militarmente e conquistando as terras.

Naquele momento, os britânicos partiram para o combate para impor o controle efetivo sobre o arquipélago, abandonando outras estratégias de poder, como a evangelização e a negociação política. Aos Chefes, sublevados sob um Rei Maori há sete anos, a reação britânica não era surpreendente. Eles preferiram combater e eventualmente ser derrotados, a se submeter.

De julho a outubro de 1863, uma série de escaramuças - mais do que grandes combates - marcou as ações. Naquele último mês, no entanto, chegaram de Sydney os navios à vapor blindados destinados à ocupação do rio. A partir de então, os britânicos passaram a contar com vantagem operacional ao controlar o curso do rio, impedir o trânsito de canoas nativas e utilizar os navios para bombardear as pa instaladas às suas margens.

No início e no fim de novembro, as tropas imperiais alcançaram e venceram, respectivamente, as grandes pa de Meri-Meri e Rangiriri, protetoras das zonas mais densamente povoadas e economicamente relevantes. Enquanto a primeira foi abandonada para se focar a resistência na segunda, vinte quilômetros distante, os embates nessa última foram intensos, com mais de quarenta mortos de cada lado. Ultrapassadas as barreiras militares, em meados de dezembro os militares ocupavam seu principal alvo, Ngaruawahia, o polo econômico e demográfico do Movimento do Rei.

Diante desta importante derrota, as resistências Maori não desistiram. Guerreiros, àqueles grupos a rendição e submissão aos militares britânicos não era uma opção razoável. Diante das derrotas impostas pelos navios no rio, construíram nova linha de fortalezas, com três pa integradas, paliçadas, trincheiras e muralhas, trinta quilômetros ao sul, em Paterangi, impondo nova série de derrotas.

Para não enfrentar diretamente tal força, os britânicos dividiram as tropas e ultrapassaram a linha pelos flancos, atacando diretamente Rangiawahia povoada por mulheres e crianças, enquanto os homens estavam reunidos para a batalha. Era janeiro de 1864 e as tropas ocupavam os principais locais de produção e habitação do Movimento do Rei, restando apenas uma última linha defensiva.

Naquele momento, o general Cameron já escreveu entusiasmado ao War Office informando “a posse de grande faixa de terra fértil, por nós, entre os rios Waipa e Alto Waikato, o recuo do inimigo para o interior e sua perda de plantações das quais precisava para seu abastecimento”.21 Como se vê, não se oferecia mais a opção de simples rendição, a estratégia também era claramente de ocupação daquelas terras, interessantes aos colonos mobilizados nas milícias.

Entre fim de março e o início de abril, ocorreu o último grande embate, com a vitória britânica sobre a pa de Orakau, com mais de cento e vinte nativos mortos. Os Maori recuaram para a margem sul do rio Punui, ponto a partir do qual o general Cameron optou por não avançar. O poder do Movimento do Rei estava destruído, as terras mais interessantes estavam ocupadas, a soberania da Rainha Victoria garantida e outras rebeliões de menor monta - e sem tanto simbolismo - ainda precisavam ser combatidas, em Tauranga e Taranaki.

Poderes, resistências e a opção pelo combate militar pelos britânicos

A dinâmica das operações militares explicita sua inserção em novo tipo de conflito, que logo se disseminaria nas décadas seguintes pelo globo, a chamada “guerra colonial”. Como a Nova Zelândia foi uma colônia muito específica, com o chamado imperial humanitarianism, justificada, como vimos, por um discurso pautado no “trato justo e honesto” com os nativos e com atuação intensa dos missionários, esse é um caso interessante para verificarmos como, em duas décadas, a situação se alterou.

As instruções enviadas ao capitão Hobson, em 1840, e depois toda a atuação do humanitarian Robert FitzRoy, indicavam a tentativa do Império de se descolar dos modelos anteriores de guerra de conquista. No entanto, elas supunham a adesão dos nativos à retórica imperial, sua assimilação do cristianismo e inserção nos mercados fundiário e de trabalho. Não estava naquele planejamento que os Chefes aprendessem a lógica de funcionamento da sociedade britânica para utilizar seus recursos jurídicos a fim de bloquear a perda de terras.

Todo esse debate teórico sobre a construção de uma nova sociedade e de um novo tipo de Império também não ecoava naqueles que eram os executores dessas ações. Os imigrantes que se dispunham a uma viagem de quatro meses até o outro lado do planeta estavam interessados em começar uma nova vida em situação bastante distinta daquela vivida na Grã-Bretanha. Sonhavam em finalmente se livrar das amarras da sociedade metropolitana e galgar novos espaços em uma nova sociedade mimética da britânica, mas na qual eles estariam nos postos mais altos.

Para essas pessoas, não estava em seus planos se deslocar à outra extremidade do globo para agora se submeterem a outros poderosos - ainda mais quando esses poderes estavam nas mãos de Chefes nativos, sob os quais recaiam todos os preconceitos de cor, raça e religião. Era inconcebível, para aqueles colonos, estarem submetidos aos Maori. Aquilo era o oposto do que se entendia como a missão e o lugar do Império.

Insatisfeitos, partiram para o confronto com os nativos e tiveram pela frente duas décadas de incessante conflito por poder e por terras. Conflitos como esse necessariamente culminam em mortes, assassinatos, massacres dos dois lados. Aqueles cometidos contra as populações brancas foram relatados, noticiados, circularam pelo Império e na metrópole em um esforço para desconstruir a imagem do Maori enquanto nativo a ser civilizado. No entendimento e no discurso dos colonos, os nativos eram bárbaros e deveriam ser combatidos. Por isso os relatos de atrocidades, massacres e, principalmente, de antropofagia eram tão interessantes. O governo imperial, ao armar os colonos e incentivar a transferência de militares veteranos, instigou a violência e foi partícipe de um esforço para transformar discursivamente os Maori em bárbaros.

As cartas e relatórios enviados pelos militares nos campos de batalha da Invasão do Waikato são especialmente interessantes para verificarmos como esse discurso sobre um embate entre a civilização e a barbárie era forte e disseminado entre aqueles grupos de combatentes. Somente em um único momento aparece o discurso de defesa da soberania da Rainha Victoria. Quando ocupou Ngaruawahia, o general Cameron escreveu ao governador Grey para informar solenemente que “a bandeira da Rainha está desfraldada”.22

Para aquele militar, os nativos eram pragas a serem exterminadas: “múltiplas guarnições foram estabelecidas (...) já alcançaram o sucesso ao limpar o mato a sul e leste de Auckland dos grupos de saqueadores que antes o infestavam”.23 Em suas descrições, os nativos apareciam como distantes dos princípios morais cristãos, com ações questionáveis com seus próprios familiares: “Como se sabia que mulheres e crianças estavam na pa, o inimigo foi chamado (…). Disseram-lhes que suas vidas seriam poupadas e, caso se recusassem, seriam solicitados a terem ao menos compaixão por suas mulheres e crianças e as mandassem sair. Responderam que não o fariam e que lutariam até o fim”.24

O uso desse tipo de vocabulário pelo general a seus superiores na Grã-Bretanha é importante indício da aceitação e disseminação dessa forma de entender os Maori como sujeitos que “infestavam” as florestas a serem “limpas”, como bárbaros dispostos a sacrificar mulheres e crianças em uma batalha perdida. Esses são conceitos e termos muito distintos daqueles empregados pouco mais de duas décadas antes.

Entre os comandantes militares, o uso desse vocabulário retomado e potencializado pelos colonos e seus interesses locais era sistemático. A eles, a guerra estava declarada e era uma guerra com apenas um fim aceitável: a vitória britânica. Como os nativos vinham de sociedades guerreiras e se negavam a abandonar o terreno, eram combatidos e liquidados: “Uma série de conflitos corpo-a-corpo ocorreu aqui entre os Maori, rastejando secretamente pelas moitas, e nossos homens (…) caçando e destruindo o inimigo. Por fim, todo Maori encontrado foi assassinado, ou ferido e preso”.25

Esse tipo de documento é especialmente interessante, pois é uma comunicação entre dois comandantes no campo de batalha. Eles se entendiam como superiores e não reservavam a seus oponentes nem sequer o crédito de defenderem sua terra natal - como fariam em um conflito entre europeus.

Richard Hill, ao analisar a situação, defende que o modelo idealizado para a Nova Zelândia desde a NZCo e encampado pelo discurso imperial pressupunha uma colônia branca, portanto os conflitos com os Maori eram inevitáveis:

o conflito é inerente à natureza e propósito do Império e suas colônias de povoamento. Não é surpreendente que a história das relações entre a Coroa e os Maori no século XIX esteja marcada por embates e desapropriações, alienação de terras e demais recursos, e oposição de uma declinante população Maori a tais perdas (...). Enquanto a potência colonizadora se posicionava para forçar suas vontades, simultaneamente as resistências se fizeram inevitáveis (Hill, 2009, p.515).

A documentação nos mostra como esse conflito foi construído. Afinal, se era inevitável, em um momento precisava ser lutado. Havia intensa resistência na metrópole a incorporações de territórios por conquista, a massacres de povos nativos, a relações “injustas” com eles. Podia parecer inevitável o conflito para a lógica imperial, mas o Império era imenso e em expansão. Havia incontáveis frentes de expansão e zonas de contato espalhadas pelo globo e suas elites de colonos imigrantes disputavam o privilégio de poder contar com o Exército Imperial na supressão de resistências. Nativos insatisfeitos com a perda de poder eram encontrados na China, na Índia, na Austrália, no Sudão, na África do Sul - para ficarmos apenas nos exemplos das décadas de 1850 e 1860. A quais desses locais as tropas seriam deslocadas? Dependia dos interesses estratégicos do Império, mas também muito da capacidade dos grupos locais em mobilizar discursos relevantes que sensibilizassem a burocracia e a imprensa metropolitana. Ao instigar os conflitos, dificultar as pazes, pressionar por terras e provocar os Maori guerreiros, os colonos na Nova Zelândia conseguiram superar a força do humanitarianism e disseminar o discurso sobre a barbárie. Quando foram desafiados pela unificação da maioria dos nativos em torno do Movimento do Rei, mobilizaram o outro ponto sensível - o desafio ao poder do Império e à soberania da Rainha Victoria.

Aos colonos, aos militares, aos imigrantes recém-chegados, o ponto central na distante Nova Zelândia era poder. Era ter a certeza de que os brancos eram superiores, que os nativos deveriam obedecer, que havia uma missão e um fardo imperial. As guerras com os Maori não foram apenas por terras, mas principalmente pela noção de superioridade, para mandarem sem serem questionados ou desafiados por Chefes exóticos.

A Nova Zelândia e o processo global de combate a resistências nativas

O Império Britânico foi uma estrutura de dominação e controle com estratégias de atuação bastante distintas. Locais e tempos de colonização eram muito diferentes, por exemplo, na Jamaica, na Índia e na Nova Zelândia, como já destacou John Darwin (Darwin, 2009). A análise do caso neozelandês é interessante, pois explicita as forças envolvidas nas alterações nas formas de se relacionar com os povos nativos e suas resistências.

É importante destacar as especificidades daquele caso, mas também suas conexões com um amplo movimento entre as elites políticas e militares ocidentais do período. Os colonos e administradores imperiais britânicos procuraram chamar a atenção para receber as tropas, assim como outros também faziam em distintas regiões sob o controle britânico. As estratégias de ocupação territorial e de combates às resistências nativas circulavam dentro do Império, mas não apenas nele. Havia intenso interesse sobre como os Estados Unidos realizavam sua “conquista do Oeste” e como os franceses procediam.

Na década de 1860, as tropas imperiais avançaram sobre o Waikato, os argentinos sobre os pampas, os chilenos sobre a Araucania, os mexicanos enfrentavam as últimas resistências dos Opata. Nas décadas seguintes, os governos dos EUA e do México submeteram os Apache enquanto os Mapuche eram combatidos no extremo sul da América e os bôeres ocupavam os interiores da África do Sul, para ficar em apenas alguns exemplos.

Em todos esses casos, a conjunção de discursos raciais, de oposição entre “civilização” e “barbárie” e de interesses por terras por partes de colonos instigadores de violências levou ao uso de forças armadas para a supressão de resistências nativas quando foram mobilizados discursos em torno da segurança do Estado e da soberania, do progresso material e supremacia da chamada “raça branca”.

Distribuídos ao longo do globo e executados por impérios formais ou por repúblicas americanas com “colonialismos pós-coloniais” em diálogo com esse movimento europeu (Harambour, 2019), esses casos exemplificam a amplitude de um movimento global de enfrentamento armado às resistências nativas. Esses contaram com as forças armadas para a ocupação de territórios com o objetivo de garantir a soberania do Estado, a liberalização de terras e a instalação de imigrantes europeus nas chamadas “terras vazias” (Belich, 2011).

Esses movimentos das décadas de 1860 e 1870 foram importantes para marcar a superação do discurso do humanitarianism e associar a expansão do capital à defesa do Estado, da civilização e da “raça branca” naquilo que logo seria denominado de “guerras coloniais”. Esse movimento global de combate às resistências nativas não deve, no entanto, generalizar as situações locais. Em The transformation of the globe, por exemplo, Jürgen Osterhammel diagnostica que “apesar de que alguns povos não europeus, como os Maori da Nova Zelândia, conseguiram resistir com um pouco mais de ímpeto, a ofensiva global contra a vida em tribo levou, em praticamente todos os locais, à derrota dos nativos” (Osterhammel, 2014, p.324). Ao entender dessa forma, são descartados os protagonismos nativos, as resistências locais, as negociações e adaptações.

Considerações finais

As histórias do imperialismo britânico estão repletas de conquistas, dominações, partilhas e combates, mas não podem ser simplificadas em um único e suposto processo global de dominação em que a populações afetadas foram vítimas passivas.

Ao analisarmos o caso da periférica colônia estabelecida na Nova Zelândia, verificamos como havia intensos debates dentro do Parlamento, na imprensa e na sociedade britânica sobre como o Império deveria atuar. O capital já acumulado com a Revolução Industrial pressionava por usos inovadores simultaneamente à rápida expansão de societies evangelizadoras por África, Ásia e Oceania.

A Nova Zelândia foi foco de disputa e sua inserção no Império Britânico contou com características destas distintas forças. O humanitarianism conseguiu frear os ímpetos agressivos de ocupação, mas contava com a evangelização e o colaboracionismo dos Chefes Maori. Diante de pressões de colonos e da Coroa por terras e pela submissão política e econômica, os nativos se sublevaram primeiro de forma local e desorganizada e depois de forma organizada, proclamando um Rei em oposição à soberania da Rainha Victoria.

A vida cotidiana na colônia se mostrou, para os britânicos que para lá imigraram, muito mais dura do que eles pretendiam. A eles, era inconcebível atravessar o planeta e serem sujeitos a poderes de Chefes nativos e, para vencer tal força, logo perceberam ser necessário mobilizar discursos na metrópole para conseguir tropas imperiais. Relatos sobre assassinatos “bárbaros”, sublevações nativas e ameaças à soberania britânica eram necessários para mobilizar as atenções sobre uma colônia tão distante e periférica. Baseados em um crescente discurso racial, em um embate entre “brancos” e “os Maori”, entre “civilização” e “barbárie”, conseguiram superar o humanitarianism, acionar os receios soberanistas na metrópole e receber as tropas imperiais.

Os Maori, que a princípio consideraram interessante o convívio com os britânicos e logo perceberam que estavam perdendo terras e poder, tiveram um protagonismo relevante ao longo das décadas de 1840 a 1860, negociando diretamente com os administradores coloniais e os militares. Alguns Chefes se aliaram aos britânicos, outros sempre resistiram. Alguns contaram com o apoio dos missionários, enquanto outros jamais aceitaram essa intromissão. Eles negociaram oralmente, escreveram petições, enviaram cartas. Foram derrotados militarmente, mas importantes partícipes da política colonial durante aquele período.

Ao fim das operações militares, as configurações políticas, sociais, demográficas e étnicas da Nova Zelândia estavam alteradas. A imensa maioria dos Maori se refugiou no chamado “País do Rei”, nas montanhas altas do Waikato, e lá ficaram contidos, mas vivendo de acordo com seus usos e costumes. Seriam precisos mais de cento e vinte anos e muita luta dos Maori para que finalmente se reconhecesse que a Nova Zelândia é uma terra de dois povos e que a Invasão do Waikato foi uma ação ilegal, destinada a conquistar militarmente as terras.

  • 1
    Além dos nomes de instituições e órgãos do governo britânico, também foram mantidos em inglês alguns termos com difícil tradução para o português. Humanitarianism se refere a um movimento religioso, social e político bastante específico do século XIX e que poderia acabar sendo confundido com o “movimento humanitário”, vinculado aos Direitos Humanos, dos séculos XX e XXI.
  • 2
    Marquês de Normanby ao Capitão Hobson. 14 ago. 1839. The National Archives (TNA), Londres. Fundo Colonial Office (CO), 881-1-25.
  • 3
    Proclamação de sua Excelência Robert FizRoy. 26 abr. 1845. TNA, Londres. Fundo War Office (WO) 1-433, 256.
  • 4
    Governador Robert FitzRoy para Coronel Hulme. 4 mai. 1845. TNA, Londres. WO 1-433, 268-271.
  • 5
    Chefe Kawiti para Reverendo Williams. 24 set. 1845. TNA, Londres. WO 1-527, 63.
  • 6
    Hone Heke para Gilbert Mair, 16 out. 1845, apud Belich (1996), p.203.
  • 7
    Chefe Kawiti para Governador Grey. 18 jan. 1846. TNA, Londres. WO 1-527, 358. As definições entre parênteses foram adicionadas pelo tradutor da carta à época, para explicitar a intenção do Chefe ou dúvidas.
  • 8
    NZCo para Lorde Stanley. 29 nov. 1845. TNA, Londres. WO 1-434, 383-389.
  • 9
    Chefe Raupahara para Governor Grey. 3 abr. 1846. TNA, Londres. WO 1-526, 106.
  • 10
    Chefes Kingi, Witi, Te Heke, Tuairane e Hingirere para Governador Grey. 15 jul. 1846. TNA, Londres. WO 1-526, 541-544.
  • 11
    Memorando do Governador Grey. 19 abr. 1846. TNA, Londres. WO 1-526, 275 e 280.
  • 12
    Governador Grey para Conde Grey. 11 mai. 1846. TNA, Londres. WO 1-528, 37-42.
  • 13
    Governador Browne para Duque de Newcastle. 22 mar. 1860. TNA, Londres. CO 881-2, 1, 8.
  • 14
    William King Whiti para Coronel Murray. 21 fev. 1860. TNA, Londres. CO 881-2, 2, 6.
  • 15
    G. Cutfield para Governador Browne. 24 fev. 1860. TNA, Londres. CO 881-2, 2, 7.
  • 16
    Governo provincial e colonos de Taranaki para o Governo. 1860. TNA, Londres. CO 881-2, 2, H-2.
  • 17
    Governador Browne para oficial em Taranaki, 14 abr. 1860. TNA, Londres. CO 881-2, 2, F-3.
  • 18
    Mensagem de Sua Excelência, o Governador, para os Chefes Maori reunidos em Assembleia. Jul. 1860. TNA, Londres. CO 881-1-2, N-3.
  • 19
    Governador Grey para Gen. Cameron. 19 dez. 1861. TNA, Londres. WO 33-16, 339.
  • 20
    Gen. Cameron para War Office. 30 jul. 1863. TNA, Londres, WO 33-16, 366.
  • 21
    Gen. Cameron para War Office. 4 mar. 1864. TNA, Londres. WO 33-16, 409.
  • 22
    Gen. Cameron para Governor Grey. 9 dez. 1863. TNA, Londres. WO 33-16, 407.
  • 23
    Gen. Cameron para War Office. 5 out. 1863. TNA, Londres. WO 33-16, 401.
  • 24
    Gen. Cameron para War Office. 3 abr. 1864. TNA, Londres. WO 33-16, 427.
  • 25
    Tenente-coronel Havelock para Cel. Waddy. 12 fev. 1864. TNA, Londres. WO 33-16, 412.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2019
  • Revisado
    10 Fev 2020
  • Aceito
    20 Mar 2020
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