“A Divina Comédia de Dante que lemos hoje tem a marca de Erich Auerbach” (1892-1957) – destacou recentemente o historiador Carlo Ginzburg -, “e do muito que já foi dito a respeito dos dois, ainda há mais a se dizer” (Ginzburg, 2021 ). A nova tradução comentada de Dante como poeta do mundo terreno oferece ao público brasileiro uma oportunidade para “subir nos ombros destes gigantes” e pensar, hoje, os significados deste texto de 1929.
A leitura de Auerbach assombra desde a primeira página, pela própria forma e estilo com que, sem aparentar esforço, desdobra uma frase curta, colhida na Antiguidade, e conduz o leitor através de um processo denso de transformação de poeta, obra literária e entorno, e descortina aos poucos sua visão particular do papel central que o florentino adquiriu na história da literatura ocidental. “O caráter do homem é seu destino” – este fragmento de Heráclito será, desde a epígrafe, o tema recorrente de um processo em movimento.
Que o homem é um – uma unidade inseparável entre a força e a compleição do corpo, de um lado, e a razão e a vontade do espírito, de outro -, e que seu destino se desdobra a partir dessa unidade, na medida em que se reúnem ao seu redor, como que atraídos por uma espécie de magnetismo, os feitos e sofrimentos que lhe cabem, aderindo a ele e assim formando uma parte de sua unidade – essa é uma intuição que a poesia europeia possuía desde seus inícios na Grécia [...] a partir de um feito revelador de caráter, ou mesmo do caráter manifesto em um feito inicial, descortinam-se para o poeta no curso de sua criação, de maneira necessária e natural, o conjunto e a soma dos feitos similares, e também o sentido global de seu percurso de vida, seu enlace na trama dos acontecimentos, que é ao mesmo seu caráter e seu destino
(Auerbach, 2022 , p.11).
Auerbach acompanha e analisa as encarnações e transformações deste leit motiv em obras literárias de culturas e épocas diversas, da epopeia à tragédia e à comédia, de Homero, Platão e Aristóteles aos relatos bíblicos do Antigo Testamento e da vida de Jesus Cristo, de Virgílio, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino ao estilo novo dos trovadores provençais, até chegar à peregrinação de Dante, como a uma “Roma” para qual todos os caminhos convergem - “retrataremos o caminho que leva Dante à Comédia como um avanço ininterrupto e como uma atualização cada vez maior das forças nele latentes” (Auerbach, 2022 , p. 115). Entre estas forças latentes, Auerbach viu no rebuscamento poético e simbólico dos trovadores provençais, na adoração mística da figura feminina, uma inspiração de juventude que adaptada e incorporada à Comédia se difundiria em um novo estilo híbrido, pela língua vulgar, para um público ampliado de cidadãos não iniciados em pequenos círculos poéticos. Auerbach via, também nos escritos iniciais de Dante, “a missão filosófica de conciliar a mística do estilo novo com a imagem de mundo aristotélica-tomista” (Auerbach, 2022 , p. 131), que coloca a diversidade não como problema, e sim expressão da perfeição divina.
Tomás associou a diversidade das aparências à ideia teológica da criação feita à semelhança de Deus, e o fez de modo que, dados o caráter fundamentalmente imperfeito da criatura e a sua diferença em relação a Deus, seria impossível que qualquer coisa criada individualmente pudesse alcançar a perfeita semelhança divina em uma só espécie, de modo que a diversidade da criação é necessária para que esta se aproxime, em sua totalidade, da perfeita semelhança em relação a Deus
(Auerbach, 2022 , p. 137).
Em um universo em movimento, a tendência à autorrealização das formas, diversas, compelidas a ir da potência ao ato passa a “ser exaltada como caminho necessário rumo à perfeição” e algo propriamente humano: o exercício da liberdade no decorrer da existência terrena (Auerbach, 2022 , p. 138). Este trabalho de Auerbach sobre as origens e significados da obra de Dante é parte de seu processo mais geral de investigação da formação de uma identidade literária europeia pela valorização crescente da atuação do indivíduo sobre uma amálgama das culturas grega, hebraica e cristã. Auerbach procurava um “elemento que, por suas próprias transformações, fosse capaz de revelar a unidade do Ocidente” (Lima, 2007 , p. 752). Tanto nas almas da Comédia, como no jovem Dante, o filólogo enxergava a projeção da “marca disso que sentimos como símbolo exemplar e monumental de um destino inexorável” (Auerbach, 2022 , p. 130): um elemento pré-existente que revela uma verdade na obra artística. O uso de “caráter e destino” como leit motiv , mostra seu primeiro esforço na procura de um “conceito-chave que desse unidade à ideia de representação do homem na literatura ocidental” (Lima, 2007 , p. 748), que desenvolverá em “Figura” e “Mimesis”.
A proposição de uma cultura europeia inseparável de seu aspecto judaico-cristão era uma posição ousada para o judeu Auerbach no ambiente acadêmico alemão, durante a ascensão do nazismo. Como lembra Patrícia Reis no ótimo e oportuno posfácio, “nos anos 1920, nenhuma neutralidade era possível” (Auerbach, 2022 , p. 299), e Dante se tornara um personagem especialmente importante e disputado no meio acadêmico de uma Alemanha que ainda tentava digerir sua derrota na Primeira Guerra Mundial. Ao se colocar pela elaboração de um “Dante europeu” em oposição a seus colegas nacionalistas que vislumbravam um “Dante alemão”, Auerbach expunha uma concepção de história que extrapolava as fronteiras nacionais, mas também mostrava algo próprio da tradição alemã: a capacidade de relacionar fenômenos com “extraordinária atenção ao detalhe diminuto e local de outras culturas e línguas” (Said, 2007 , p. 121). Chama atenção, especialmente, o otimismo do intelectual em uma época de transição aterradora: mesmo se distanciando do uso de conceitos e da ambição de “designar o lugar do homem no universo”, Auerbach manteve até o final da vida sua “crença no valor meta-histórico do indivíduo e na efetiva existência de uma unidade no interior da cultura ocidental” (Lima, 2007 , p. 757).
O desdobramento de “caráter e destino” inspira admiração e suspeição simultâneas, e a contradição leva à pergunta sobre o que há então no texto, por que a sensação de admiração permanece e de onde vem a suspeita? De que forma sua obra “conversa” conosco, como sua voz reverbera na atualidade? Se no fim do século passado a “afirmação da unidade do Ocidente já era denunciada como arma ideológica de dominação” (Lima, 2007 , p. 754), hoje esta é diariamente reafirmada em cada nova imagem do genocídio praticado por Israel ao povo palestino. Na Europa, o antissemitismo foi substituído pelo anti islamismo, e o imigrante ocupa o lugar do “outro” ameaçador que era dado ao povo judeu na Alemanha de Auerbach. No cenário atual de crises múltiplas, características nacionais, culturais e étnicas são evocadas como identidades e convicções políticas das mais diversas – e extremadas. Nos estudos literários, nas humanidades, na cultura, em lugar da reflexão teórica sobre a produção criativa, e o significado da transformação das condições, muitas vezes o que se busca é uma verdade útil, um aspecto da realidade na obra que servirá para alguma interpretação específica, histórica, sociológica, filosófica – independente da qualidade da criação artística. Que diríamos da transformação na forma como nos vemos hoje: que pensar deste sujeito-empresa desvalorizado como base da unidade de um Ocidente financeiro? A carência por um conceito unificador, que servisse como chave de compreensão meta-histórica, salvando o papel do indivíduo, explicaria uma leitura sedutora, mas equivocada; talvez esta carência esteja falando, verdadeiramente, de um aspecto central da atualidade perplexa e apática, desta peregrinação de celebridades de si: a necessidade latente de criar sentido, continuamente, à vida e à história.
A ausência de sentido linear de que hoje podemos estar mais conscientes, não atrapalha a percepção da beleza na habilidade do autor em costurar e encadear com maestria processos contínuos de conservação e mudança. Auerbach traçou um caminho com seu relativismo duplo, atento a objetos em transformação sobre cenários mutantes, sem medo das vias tortuosas; os ecos de sua voz reverberam nos crânios dos que seguiram a trilha de sua filologia nos estudos literários, sociológicos, históricos e teóricos. Essa nova edição é parte do projeto em andamento de publicar com qualidade as obras completas de Auerbach, e traz para o público brasileiro a obra deste analista genial, em transformação, escrita entre duas guerras, sobre outra época de transição, e se revela vertiginosamente distante e próxima do cenário local e global, da produção acadêmica e da política. O que se vê do cangote dos gigantes é uma série de abismos.
Referências
- AUERBACH, Erich. Dante como poeta do mundo terreno. Tradução e notas de Lenin Bicudo Bárbara, coordenação e revisão de Leopoldo Waizbort, posfácio de Patrícia Reis. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2022.
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GINZBURG, Carlo. Residencias en Historia: En los hombros de los gigantes - Auerbach y Dante. [S.l.]: PUC Chile. 2021. Vídeo (83 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bJRsurzAT68&list=FLmmh5bTpw5dqnzAWiAiL_0Q&index=2&t=232s . Acesso: 18 fev. 2024.
» https://www.youtube.com/watch?v=bJRsurzAT68&list=FLmmh5bTpw5dqnzAWiAiL_0Q&index=2&t=232s - LIMA, Luiz Costa. Trilogia do Controle. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007.
- SAID, Edward W. Humanismo e crítica democrática. São Paulo: Cia. Letras, 2007.
Editado por
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Editora Responsável:Nathália Sanglard de Almeida Nogueira
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Out 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
29 Fev 2024 -
Aceito
05 Ago 2024 -
Revisado
05 Jul 2024