Open-access Apresentação Democracias, ditaduras e transições: Brasil e Portugal em perspectivas comparadas

O ano de 2024 marca o aniversário de três importantes processos políticos e transicionais no Brasil e em Portugal. Em 1964, um golpe de Estado dava início à ditadura militar brasileira, na sequência da deposição do presidente João Goulart ( FERREIRA, 2004; FERREIRA; GOMES, 2014) 1. Dez anos depois, Portugal, através de um Golpe de Estado protagonizado por patentes médias das Forças Armadas, deu início ao processo de transição à democracia na Europa do Sul, sendo seguido pela Grécia em julho de 1974, e pela Espanha em novembro de 1975 ( PINTO, 2013; HUMLEBÆK, 2013; SOTIROPOULOS, 2013; O’DONNELL; SCHMITTER; WHITEHEAD, 1986). Por fim, entre os anos de 1984 e 1985, da campanha das Diretas Já à eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, o Brasil dava seus últimos passos no sentido da redemocratização ( FREIRE, 2014; FREIRE; MARTINHO, 2012).

Ainda que muito se tenha debatido sobre cada um desses momentos transicionais, as análises em perspectiva comparada são consideravelmente menores ( PINTO; ARAÚJO, 2017; BRITO; GONZÁLEZ-ENRIQUEZ; AGUILAR-FERNÁNDEZ, 2005; RADCLIFF; KORNETIS; OLIVEIRA, 2023). Esse conjunto de acontecimentos influenciou decisivamente as relações entre Brasil e Portugal. Se a proximidade entre ambas as ditaduras, na segunda metade da década de 1960, era esperada, o mesmo não se pode dizer das opções brasileiras a partir da crise da ditadura portuguesa, passando pela Revolução dos Cravos e a quase simultânea descolonização ( CARVALHO, 2014; MARTINHO, 2022; MENESES, 2020; PINTO, 2005). Já quando da democratização brasileira, Portugal se encontrava em processo avançado de integração à Europa e de redefinição de prioridades tanto políticas como econômicas ( PINTO; TEIXEIRA, 2005). Os processos transicionais aqui referidos, isolada ou comparativamente, possibilitam estudos nas mais variadas perspectivas.

O presente dossiê se apresenta a partir de dois importantes eixos. O primeiro diz respeito à cultura política, entendida como “matriz de organização e compreensão dos comportamentos políticos” (GEERTZ, citado por DUTRA, 2002, p. 17) 2. Matrizes e comportamentos ambientados “numa visão comum do mundo, numa leitura partilhada do passado” ( BERSTEIN, 1998, p. 362). Em se tratando de um dossiê voltado para a análise de processos ora democratizantes, ora autoritários, enfatizamos que as culturas políticas não são monolíticas ou estanques, posto que devem ser entendidas como expressões de uma cultura global sem, no entanto, se confundirem completamente com ela; as culturas políticas, ressaltamos, formam-se no embate com outras famílias, outros campos de pensamentos e de valores. Afinal, como disse Serge Berstein ( 1998, p. 355), foi na crise revolucionária da França na virada do século XVIII para o XIX que se formaram, paralelamente, as culturas políticas do republicanismo e do tradicionalismo.

O segundo eixo, caro à história política, refere-se ao fato histórico, ao acontecimento . Ainda que concordemos com a assertiva de Paul Ricoeur ( 2010, p. 159), para quem “o passado, concebido como a soma do que efetivamente ocorreu, está fora do alcance do historiador”, o problema da interpretação do fato permanece. Afastamo-nos, assim, daquela perspectiva que recusa a noção de acontecimento em favor das chamadas categorias estáveis, como “conjuntura, estrutura, tendência, ciclo, crescimento, crise etc.” ( RICOEUR, 2010, pp. 169-170). Distantes das repetições previsíveis e em cadeias facilmente identificáveis, sem surpresas ou acidentes de percurso, os fenômenos passados, ou os vestígios que deles nos chegam, possibilitam narrativas que, mais que certezas absolutas, abrem possibilidades para futuras indagações ( CHARTIER, 1994; GRIBAUDI, 1998). No caso do presente dossiê, as ações e os fatos que nos interessam dizem respeito às mulheres e aos homens, às instituições e às sociedades que ora fizeram prevalecer a ditadura, ora contribuíram para a construção democrática.

As temáticas escolhidas pelas autoras e pelos autores do presente dossiê abrangem uma série de questões que ora remetem a análises já bastante debatidas pela historiografia e pelas ciências sociais, ora buscam novos objetos ainda insuficientemente tratados. Naturalmente, optamos por não desconsiderar as linhas de interpretação abrangentes, seguindo a tradição inaugurada por Guillermo O’Donnell, Philippe C. Schmitter e Laurence Whitehead ( 1986). Foram eles os pioneiros na compreensão dos processos transicionais da Europa do Sul numa abordagem comparativa. Esse modelo de análise está presente no estudo de Fernando Perlatto e Maria Inácia Rezola, ainda que sob perspectivas metodológicas distintas. Os autores analisam as políticas de memória das transições portuguesa e brasileira considerando a natureza específica de cada um desses processos, bem como a memória das ditaduras e das transições. Neste último caso, elegem uma “conjuntura densa”, que foi o ano de 2014, e o papel da imprensa de grande circulação no relato acerca do passado autoritário e da experiência democrática. O tema da memória é retomado nos dois artigos seguintes. Maria Paula Araújo discute as memórias femininas de militantes da luta contra as ditaduras portuguesa e brasileira. Neste caso, além da inclusão dos estudos de gênero, a autora redige seu texto problematizando duas narrativas distintas: um livro de memórias e um filme documentário. Já Américo Freire pensa a construção memorialística com base em duas organizações civis orientadas para a narrativa de vida e a trajetória política de dois personagens fundamentais nas transições portuguesa e brasileira: a Fundação Mário Soares e o Instituto Lula. Ainda que o centro da análise de Freire esteja nessas duas instituições, o autor menciona fundações e institutos de outros países que tanto se aproximam quanto se afastam das experiências portuguesa e brasileira.

Outro universo de preocupações presente neste dossiê diz respeito à questão cultural. Francisco Martinho problematiza as relações entre fado e canto de intervenção durante a fase final da ditadura portuguesa e o processo revolucionário que se seguiu à queda do Estado Novo. Ao mesmo tempo, procura compreender a relação que os agentes da revolução estabeleceram com a mais importante voz do fado, Amália Rodrigues. Tatyana Maia analisa a cultura política brasileira a partir da permanência da ditadura militar nos movimentos negacionistas que vieram à tona recentemente e tiveram papel decisivo na eleição de Jair Bolsonaro. O texto de Maia abre indagações a respeito da importância da história do tempo presente para a compreensão da permanência desse “espectro” que é o “não contemporâneo na contemporaneidade”. O último artigo, de Miguel Bandeira Jerónimo, trata daquela que é, seguramente, a grande peculiaridade do caso português: o problema colonial. A partir da percepção de que a conjuntura inaugurada com o fim da Segunda Guerra Mundial impôs uma nova realidade para as nações colonizadoras, Jerónimo procura destacar, para as duas últimas décadas do colonialismo português, o empenho da ditadura no sentido da adoção de políticas que o autor denomina de “colonialismo de bem-estar social”.

Os temas aqui tratados são abrangentes e buscam apresentar novas luzes aos problemas inerentes à ditadura e à transição para a democracia. Estamos cientes de que eles não esgotam o mosaico de possibilidades de análise e interpretação. O que esperamos é que eles contribuam para novas indagações e pesquisas a respeito de um assunto que permanece atual no presente século.

Referências

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  • BRITO, Alexandra Barahona de; GONZÁLEZ-ENRIQUEZ, Carmen; AGUILAR-FERNÁNDEZ, Paloma (Coord.). Política da memória: Verdade e justiça de transição para a democracia. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005.
  • CARVALHO, Tiago. O Brasil e o fim do império português. In: PINTO, António Costa; JERÓNIMO, Miguel Bandeira (Org.). Portugal e o fim do colonialismo: Dimensões internacionais. Lisboa: 70, 2014, p. 155-178.
  • CHARTIER, Roger. A história hoje: Dúvidas, desafios, propostas. Estudos Históricos, v. 7, n. 13, p. 97-113, jan./jun. 1994.
  • DUTRA, Eliana R. de Freitas. História e culturas políticas: Definições, usos, genealogias. Varia Historia, v. 18, n. 28, p. 13-28, dez. 2002.
  • FERREIRA, Jorge. A estratégia do confronto: A Frente de Mobilização Popular. Revista Brasileira de História, v. 24, n. 47, p. 181-212, 2004.
  • FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. 1964: O golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
  • FREIRE, Américo. Ensaios democráticos no Brasil Contemporâneo: Notas historiográficas. Revista Portuguesa de História, v. XLV, n. 45, p. 439-455, 2014.
  • FREIRE, Américo Oscar Guichard; MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Lembrar abril: As historiografias brasileira e portuguesa e o problema da transição para a democracia. História da Historiografia, n. 10, p. 124-145, dez. 2012.
  • GRIBAUDI, Maurizio. Escala, pertinência, configuração. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escalas: A experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998, p. 121-149.
  • HUMLEBÆK, Carsten. Atitudes partidárias e passado autoritário na democracia espanhola. In: PINTO, António Costa; MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Org.). O passado que não passa: A sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 159-185.
  • MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Portugal, as guerras em África e o quadro internacional: História e historiografia. In: MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes; MORENO, Helena Wakim; GALVANESE, Marina Simões (Org.). Portugal e os 60 anos da guerra em África. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2022, p. 173-185.
  • MARTINS FILHO, João Roberto. Adieu à la dictadure militaire? Brésil(s): Sciences humaines et sociales, n. 5, p. 17-32, 2014.
  • MENESES, Filipe Ribeiro de. Diplomacia, defesa e guerra. In: BRITO, José Maria Brandão de; SANTOS, Paula Borges (Coord.). Os anos sessenta em Portugal: Duas governações, duas políticas públicas? Porto: Afrontamento, 2020, p. 51-77.
  • MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Cultura política e ditadura: Um debate teórico e historiográfico. Tempo e Argumento, v. 10, n. 23, p. 109-137, jan./mar. 2018.
  • O'DONNELL, Guillermo; SCHMITTER, Philippe C.; WHITEHEAD, Laurence (Ed.). Transitions from Authoritarian Rule: Uncertain Conclusions. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1986.
  • PINTO, António Costa. Ajustando as contas com o passado na transição para a democracia em Portugal. In: BRITO, Alexandra Barahona de; GONZÁLEZ-ENRIQUEZ, Carmen; AGUILAR-FERNÁNDEZ, Paloma (Coord.). Política da memória: Verdade e justiça de transição para a democracia. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005, p. 87-108.
  • PINTO, António Costa. O passado autoritário e as democracias na Europa do Sul: Uma introdução. In: PINTO, António Costa; MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Org.). O passado que não passa: A sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 17-45.
  • PINTO, António Costa; ARAÚJO, Maria Paula Nascimento (Org.). Democratização, memória e justiça de transição nos países lusófonos. Recife: EDUPE; Rio de Janeiro: Autografia, 2017.
  • PINTO, António Costa; TEIXEIRA, Nuno Severiano (Org.). A Europa do Sul e a construção da União Europeia 1945-2000. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005.
  • RADCLIFF, Pamela; KORNETIS, Kostis; OLIVEIRA, Pedro Aires. The Southern European Transitions to Democracy: A Historiographical Introduction. Mélanges de la Casa de Velázquez, v. 53, n. 1, 2023.
  • REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
  • REIS, Daniel Aarão. O governo Lula e a construção da memória do regime civil-militar. In: PINTO, António Costa; MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Org.). O passado que não passa: A sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 215-233.
  • RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. V. 1 – A intriga e a narrativa histórica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
  • SOTIROPOULOS, Dimitri A.. O passado autoritário e a democracia grega contemporânea. In: PINTO, António Costa; MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Org.). O passado que não passa: A sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 187-214.
  • 1
    O historiador Daniel Aarão Reis, em 2000, propôs uma renovada interpretação da ditadura de 1964 a partir do conceito de “ditadura civil-militar”. Para Reis ( 2000), as interpretações dominantes sobre o tema optaram, por motivos diversos, pelo esquecimento da ativa participação civil no golpe e no desenvolvimento do regime. Os organizadores do presente dossiê não creem que a designação “ditadura militar” necessariamente desconsidera a ativa participação civil no golpe de Estado e na permanência da ditadura. Ao mesmo tempo, optaram por aceitar as opções de cada autor ou autora, considerando que a natureza dos artigos aqui presentes não inviabiliza olhares divergentes sobre o tema. A esse respeito, ver também: Martins Filho ( 2014); Reis ( 2013).
  • 2
    Sobre o conceito de cultura política, ver também Motta ( 2018).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    02 Out 2023
  • Aceito
    02 Out 2023
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Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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