Muito se tem discutido o papel das redes sociais na transformação das relações humanas (e mesmo entre humanos e outros animais), bem como no desenvolvimento de sérias ameaças à democracia – riscos que a pandemia da covid-19, com a obrigatória redução da maior parte das interações às telas e toda a sua coorte de negacionismos, explicitou e aprofundou. Em sentido quase diametralmente oposto, as novas mídias vêm sendo associadas a possibilidades promissoras de divulgação do conhecimento científico e combate à desinformação. Para os periódicos acadêmicos, a atuação nos ambientes virtuais se vem mostrando incontornável, envolvendo dimensões que vão muito além do formato hoje prevalente de publicação digital. Em meio a justas e prementes demandas por pesquisas que sejam capazes de dialogar com públicos não restritos aos pares, as redes sociais se apresentam como todo um universo de possibilidades, mas também de desafios, sobre os quais os conhecimentos e as práticas seguem tateantes.
Talvez nada ateste mais fortemente a importância que vem sendo atribuída à atuação nas redes que o fato de ela ter passado a compor os parâmetros de avaliação de alguns editais de agências de fomento. Ao menos no caso do Brasil, a inclusão de ações de marketing e políticas de divulgação científica nos critérios de admissão e permanência do portal SciELO constituiu outro estímulo fundamental para que as revistas acadêmicas investissem em perfis em diferentes plataformas na internet. A versão de 2014 do documento indicava a expectativa de que os periódicos estivessem presentes nas redes sociais a partir do ano seguinte. Tais perspectivas foram detalhadas e aprofundadas nas revisões de 2017, 2020 e 2022, explicitando eixos de difusão que envolvem não apenas espaços mais claramente voltados ao mundo acadêmico, mas também as grandes plataformas comerciais. A preocupação de fundo é que os periódicos que compõem a coleção dialoguem com variadas instâncias da sociedade e fortaleçam sua relevância nos âmbitos cultural, social e econômico, por meio de ações estruturadas e estrategicamente pensadas.1 1 As versões de 2014, 2017, 2020 e 2022 podem ser acessadas em: SciELO Brasil. Critérios, política e procedimentos para a admissão e a permanência de periódicos na Coleção SciELO Brasil. Disponível em: https://www.scielo.br/about/criterios-scielo-brasil. Acesso em: 30 out. 2022. Ao longo de 2022, o SciELO construiu um comitê consultivo sobre o tema e fez circular entre corpos editoriais um detalhado questionário sobre uso das redes, que tinha a dupla intenção de elaborar um diagnóstico e de provocar transformações nas práticas atuais, levantando questões hoje parcamente contempladas, como a acessibilidade.
Em diálogo com essas diretrizes, mas sem se pautar exclusivamente por elas, Varia Historia vem mantendo uma política sustentada de presença nas redes sociais, iniciada com o lançamento, em 2015, de uma página no Facebook2 2 Disponível em: https://facebook.com/variahistoria/. Acesso em: 30 out. 2022. e um canal no YouTube.3 3 Disponível em: https://www.youtube.com/@VariaHistoria. Acesso em: 30 out. 2022. Em 2018, ingressamos no Twitter4 4 Disponível em: https://twitter.com/variahistoria. Acesso em: 30 out. 2022. e, dois anos mais tarde, no Instagram.5 5 Disponível em: https://www.instagram.com/variahistoria/. Acesso em: 30 out. 2022. Todos esses perfis seguem ativos, contando com atualizações regulares que, atentando para as especificidades e os públicos prevalecentes em cada uma das plataformas, procuram colocar em evidência os trabalhos editados na revista, o periódico como um todo e outros temas de interesse da área de história. De forma mais intermitente, promovemos a edição de verbetes da Wikipédia, sobretudo nos casos em que artigos veiculados por Varia Historia podem contribuir para a qualificação de textos sobre temáticas correlatas. Também refletimos com regularidade sobre nossas políticas de divulgação em editoriais, que já sublinharam a importância de manter os artigos “vivos” (DUARTE, 2016DUARTE, Regina Horta. Editorial – Artigo bom é artigo vivo: Periódicos e circulação do conhecimento. Varia Historia, v. 32, n. 60, p. 599-603, set./dez. 2016.) e se interrogaram sobre “por que e para quem produzimos” (CALDEIRA, 2018CALDEIRA, Ana Paula Sampaio. Editorial – Para quem e por que produzimos? Varia Historia, v. 34, n. 66, p. 585-589, set./dez. 2018.).
Questões fundamentais, que levam a impasses cujo enfrentamento no dia a dia da produção de postagens nem sempre é fácil. Uma primeira dúvida diz respeito a, afinal, que públicos procuramos atingir. Nenhuma produção em história (ou em qualquer outro domínio do conhecimento) poderá dialogar com todo e qualquer público, e a incerteza sobre se estamos falando preponderantemente para pares ou para outros setores da sociedade compromete, por vezes, a qualidade e a ressonância dos materiais que publicamos nas redes sociais. Há, além disso, toda uma reflexão ainda por fazer sobre as especificidades de cada área, uma dimensão que é frequentemente negligenciada nos debates sobre divulgação (CALDEIRA, 2018CALDEIRA, Ana Paula Sampaio. Editorial – Para quem e por que produzimos? Varia Historia, v. 34, n. 66, p. 585-589, set./dez. 2018., p. 586-587). No caso das humanidades, uma das dificuldades passa pelo fato de lidarmos com um conhecimento em princípio menos hermético, construído de forma próxima à linguagem comum, mas ao mesmo tempo menos associado a “produtos”, “aplicações”, “resultados palpáveis”.
Colocam-se, ainda, questões ligadas às assimetrias no cenário internacional. Assim como os indicadores de impacto tradicionais, a chamada altmetria, um conjunto de ferramentas que procura rastrear “os usos sociais de artigos científicos compartilhados em redes sociais e outras plataformas, como Wikipedia, notícias jornalísticas e blogs” (BARATA, 2019BARATA, Germana. Por métricas alternativas mais relevantes para a América Latina. Transinformação, v. 31, e190031, 2019., p. 2), tende a privilegiar produções feitas em inglês e em países hegemônicos (p. 8). Acabam comprometidas, assim, algumas das possibilidades mais interessantes de utilização das redes sociais para avaliar a circulação e o impacto dos artigos, e mesmo levar a “ajustes no foco editorial” (FACHIN et al., 2022FACHIN, Juliana et al.. Visibilidade, atenção online e impacto das interações nas publicações científicas. Biblos, v. 36, n. 1, p. 184-205, jan./jun. 2022., p. 194). De toda forma, não restam dúvidas de que a divulgação se consolidou como “mais uma das etapas do processo da comunicação científica sob a responsabilidade dos editores” (p. 202).
Talvez o desafio mais delicado seja o de manter o alinhamento efetivo às práticas de ciência aberta e o diálogo com o vigoroso campo da história pública, bem como com valores desejáveis de mudança social, diante da dependência de plataformas comerciais pautadas por lógicas alheias à livre circulação do conhecimento e com altíssimo grau de concentração empresarial. O caso emblemático é o do Facebook (que, embora tenha perdido fôlego nos últimos anos, segue sendo uma rede bastante difundida): mudanças nos seus algoritmos diminuíram dramaticamente o engajamento e dificultaram a difusão de postagens não “impulsionadas”. O Instagram, parte do mesmo megaconglomerado informático, tem um funcionamento cada vez mais incerto e que tampouco favorece o tipo de produção que costuma ser feito pelos periódicos de história. Pairam dúvidas sobre os destinos do Twitter depois de sua recente aquisição por um multibilionário.
Estamos certamente diante de uma concorrência desigual, em meio à insuficiência crônica do financiamento dos periódicos acadêmicos e a uma inserção nas redes que depende, muitas vezes, de trabalho voluntário, conta com um alto grau de improviso e enfrenta uma série de limitações técnicas. Ainda timidamente exploradas, as parcerias entre distintos periódicos – divulgando reciprocamente seus conteúdos, por exemplo – pode, nestes tempos de recursos escassos, ser uma estratégia de sobrevivência no dinâmico e por vezes desconcertante mundo das redes.
Independentemente de quais venham a ser suas vidas posteriores, este número de Varia Historia chega a público com a esperança de que possa ressoar de maneiras diversas, na medida em que está comprometido com uma das mais relevantes contribuições potenciais do conhecimento histórico: pensar, a partir de diálogos com variados espaços e temporalidades, os desafios do nosso presente.
Os complexos caminhos da construção e da comunicação do conhecimento estão centralmente em questão no dossiê Saberes en las Américas, organizado por Andrés Vélez-Posada (Universidad EAFIT, Colômbia) e Mariana Labarca (Universidad de Santiago de Chile) – a quem agradecemos pela colaboração competente e pela interlocução gentil ao longo de todo o processo de edição. O conjunto de estudos cobre um arco temporal que vai dos primeiros momentos da conquista do continente até meados do século XVIII e congrega pesquisadoras e pesquisadores atuantes na Argentina, no Brasil, no Chile, na Colômbia, nos Estados Unidos e na França. Em conjunto, os cinco trabalhos e a apresentação refletem sobre as Américas como um espaço crucial de reordenação das ciências e de tensionamento dos limites entre conhecimentos práticos e eruditos, mostrando o caráter eminentemente transfronteiriço – e frequentemente não eurocêntrico – da conformação de uma série de saberes.
Completam o número artigos que tratam de temas tão variados quanto as interpretações sobre excessos na tributação na Yehud persa e a produção historiográfica a respeito da Guerra Fria, passando pela construção de narrativas humanitárias em torno dos corpos dos prisioneiros no Brasil do século XIX, pela censura a espetáculos durante a ditadura militar e pelas relações entre trauma, nostalgia e ontologia histórica. Trazemos, igualmente, resenhas de obras voltadas à atuação da FIFA na segunda metade do século XX e à teorização de uma poética da relação. A última parte da entrevista com Roger Chartier pode apresentar novas perspectivas para pensar as dinâmicas das redes, sobretudo por debater as chamadas práticas de “cancelamento” – que, assim como outras questões ligadas à internet, podem ser mais bem compreendidas na trajetória de longa duração das tecnologias e práticas de comunicação, às quais o historiador francês dedicou boa parte de sua carreira.
Não poderia encerrar este editorial sem registrar meu sincero agradecimento a todas e todos integrantes da equipe de estagiárias e estagiários da Varia Historia, sem as e os quais nós simplesmente não existiríamos nas redes. Represento todas essas pessoas naquelas que vêm, nos últimos meses, produzindo nosso conjunto de postagens semanais: Bárbara Meier, Gabrielle Noacco, Giullie Torres, Nathálya Ferreira e Paula Esteves.
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As versões de 2014, 2017, 2020 e 2022 podem ser acessadas em: SciELO Brasil. Critérios, política e procedimentos para a admissão e a permanência de periódicos na Coleção SciELO Brasil. Disponível em: https://www.scielo.br/about/criterios-scielo-brasil. Acesso em: 30 out. 2022.
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Disponível em: https://facebook.com/variahistoria/. Acesso em: 30 out. 2022.
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Disponível em: https://www.youtube.com/@VariaHistoria. Acesso em: 30 out. 2022.
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Disponível em: https://twitter.com/variahistoria. Acesso em: 30 out. 2022.
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Disponível em: https://www.instagram.com/variahistoria/. Acesso em: 30 out. 2022.
Referências
- BARATA, Germana. Por métricas alternativas mais relevantes para a América Latina. Transinformação, v. 31, e190031, 2019.
- CALDEIRA, Ana Paula Sampaio. Editorial – Para quem e por que produzimos? Varia Historia, v. 34, n. 66, p. 585-589, set./dez. 2018.
- DUARTE, Regina Horta. Editorial – Artigo bom é artigo vivo: Periódicos e circulação do conhecimento. Varia Historia, v. 32, n. 60, p. 599-603, set./dez. 2016.
- FACHIN, Juliana et al.. Visibilidade, atenção online e impacto das interações nas publicações científicas. Biblos, v. 36, n. 1, p. 184-205, jan./jun. 2022.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Dez 2022 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2022