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Contribuições da Fonoaudiologia nos cuidados paliativos e no fim da vida

Prezadas Editoras-chefes da Revista CoDAS,

Os Cuidados Paliativos devem ser encarados como uma política pública e integrar o sistema de saúde em todos os níveis de complexidade. Essa política deve incluir atuação de uma equipe interdisciplinar que viabilize cuidados integrais e integrados, humanizados e com qualidade técnica. O profissional paliativista deve compreender o paciente e sua família como o centro gerador das decisões, propiciar-lhes dignidade e respeito, ajudando-os no enfrentamento da doença e na aceitação da morte como uma etapa natural da vida.

O fonoaudiólogo tem se tornado um membro atuante e importante nessa equipe. Considerando-se a realidade na atuação em Fononcologia, percebeu-se a necessidade do posicionamento do Comitê de Fononcologia e do Departamento de Voz da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia em relação à atuação do fonoaudiólogo nessa equipe e atendimento aos pacientes em fim de vida.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde - OMS (2004)(11 Organização Mundial da Saúde (OMS). Definição de cuidado paliativo; [2002]. Disponível em: http://www.who.int/cancer/palliative/definition/en. Acessado em: 6 de junho de 2019
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), os cuidados paliativos priorizam a qualidade de vida dos indivíduos acometidos por doença grave e incurável, incluindo também o apoio ao familiar e à rede de cuidado. O manejo desse paciente deve ser baseado no controle dos sintomas e no gerenciamento da dor, seja ela física, psíquica, social e/ou espiritual(11 Organização Mundial da Saúde (OMS). Definição de cuidado paliativo; [2002]. Disponível em: http://www.who.int/cancer/palliative/definition/en. Acessado em: 6 de junho de 2019
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).

Outro conceito que deve ser bem esclarecido é o que define cuidados de fim de vida. Esse tipo de atenção faz parte dos cuidados paliativos e devem ser aplicados quando o paciente apresenta uma baixa na qualidade de vida, com a presença da finitude muito próxima. Realiza-se uma avaliação ética que tem como base a autonomia, o resguardo da integridade humana, o respeito às crenças e desejos do paciente em fim de vida(22 Burlá C, Py L. Cuidados Paliativos: ciência e proteção ao fim da vida. Cad. Saúde Pública. 2014;30(6):1-3. https://doi.org/10.1590/0102-311XPE020614
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).

O Conselho Federal de Fonoaudiologia emitiu o parecer n.º 42/ 2016, que define o papel da equipe interdisciplinar em cuidados paliativos, com objetivos de: [1] minimizar o sofrimento e [2] otimizar a qualidade de vida, bem-estar e seguridade do paciente em cuidados paliativos, incluindo aqui assistência extensiva aos seus familiares e cuidadores. Esse documento está em acordo com a definição da OMS. O fonoaudiólogo participa dessa equipe e pode contribuir nas questões relacionadas à alimentação e comunicação. Cabe ao fonoaudiólogo avaliar e indicar estratégias para contornar os impactos negativos relacionados à disfagia e à comunicação ineficientes(33 Conselho Federal de Fonoaudiologia (Brasil). Parecer no. 42, de 18 de fevereiro de 2016. Dispõe sobre a atuação do fonoaudiólogo em cuidados paliativos. Parecer aprovado na 1450 SPO do CFFa. Disponível em: https://www.fonoaudiologia.org.br/cffa/wp-content/uploads/2013/07/parecer-n.-42-2016-cuidados-paliativos.pdf. Acessado em: 6 de junho de 2019
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). Embora a Comissão Intergestores Tripartite/MS (2018)(44 Comissão Intergestores Tripartite (Brasil). Resolução no. 41, de outubro de 2018. Dispõe sobre as diretrizes para a organização dos cuidados paliativos, à luz dos cuidados continuados integrados, no âmbito Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 23 out 2018, no. 225, Seção 1.) tenha publicado a resolução n.º 41, que inclui os cuidados paliativos na oferta de cuidados continuados, tal documento não cita de forma direta a participação do fonoaudiólogo, somente afirma a necessidade de uma equipe multiprofissional para o gerenciamento desse tipo de paciente.

Inserido nesse contexto, o fonoaudiólogo deve participar na tomada de decisão compartilhada nas demandas que envolvam a deglutição e a comunicação. As alterações da deglutição geram impacto na qualidade de vida do paciente e, quando associadas ao comprometimento da comunicação, reduzem a autonomia do indivíduo. Dessa forma, a atuação do fonoaudiólogo é de suma importância, pois ajuda no manejo do paciente em cuidados paliativos e viabiliza conforto e possibilidades de o paciente realizar suas escolhas e expressar seus desejos no desfecho de sua vida(55 Jacinto-Scudeiro LA, Ayres A, Olchik MR. Tomada de decisão: papel do fonoaudiólogo em cuidados paliativos. Distúrb Comun, 2019; 31(1): 141-146. https://doi.org/10.23925/2176-2724.2019v31i1p141-146
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).

A vontade do paciente em se alimentar deve ser levada em consideração e o papel que o alimento representa em seu cotidiano, objetivando prazer e qualidade de vida, principalmente quando há presença de doença progressiva e incurável(66 Luchesi KF, Silveira IC. Cuidados paliativos, esclerose lateral amiotrófica e deglutição: estudo de caso. CoDAS. 2018; 30(5). https://doi.org/10.1590/2317-1782/20182017215
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).

O processo da tomada de decisão é participativo e deliberativo e envolve dilemas como recusa de tratamento, escolha ou recusa de determinado procedimento, desejo da equipe de cuidado, crenças da família e a realidade clínica do paciente(77 Serradura-Russell A. Ethical dilemmas in dysphagia management and the right to a natural death. Dysphagia. 1992;7:102-105. https://doi.org/10.1007/BF02493440. PMid:1572227
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). As considerações sobre a liberação ou a suspensão da dieta por via oral e a indicação do uso de via alternativa de alimentação devem considerar a história clínica do paciente, suas condições físicas, seus exames laboratoriais e a presença do mecanismo de proteção das vias aéreas inferiores no paciente paliativo. Em alguns casos, o paciente ou o próprio familiar pode deixar a decisão registrada de não usar a via alternativa de alimentação nas diretivas antecipadas de vontade e isso deve ser respeitado(88 Groher ME. Determination of the risks and benefits of oral feedings. Dysphagia. 1994;9:233-235. https://doi.org/10.1007/BF00301916. PMid:7805422
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).

As diretivas antecipadas de vontade ou o consentimento informado têm indicação e funcionamento para resguardar a autonomia e o desejo do paciente em relação à aceitação ou recusa de determinados procedimentos e dispositivos de tratamento e, caso o paciente não tenha deixado seu desejo expresso de alguma forma, deve-se passar essa responsabilidade para um parente mais próximo ou determinar um decision maker para fazer valer a autonomia desse indivíduo no processo de tomada de decisões(99 Blackmer J. Tube feeding in stroke patients: a medical and ethical perspective. Can J Neurol Sci. 2001;28(2):101-6. https://doi.org/10.1017/s0317167100052756. PMid:11383932
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).

No modelo convencional de cuidado, o trabalho do fonoaudiólogo consiste, predominantemente, na redução de riscos relacionados à disfagia, que envolvam a saúde pulmonar, a desidratação e a desnutrição do paciente. Na atuação fonoaudiológica com pacientes em cuidados paliativos ou em fim de vida, a suspensão da dieta por via oral e a indicação da via alternativa pode ser recusada pelo paciente e cabe ao fonoaudiólogo otimizar a alimentação por via oral de forma segura e minimizar os riscos de broncoaspirações de alimento para a via aérea inferior, ativando os mecanismos protetivos funcionais existentes ou adaptados(1010 Pollens R. Role of the speech-language pathologist in palliative hospice care. J Palliat Med. 2004;7(5):694-702. https://doi.org/10.1089/jpm.2004.7.694. PMid:15588361
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).

Nesse contexto de atuação, o fonoaudiólogo deve contribuir na realização de exames objetivos para gerenciamento da disfagia, educação continuada para os familiares e para a rede de apoio, indicação de estratégias compensatórias para uma deglutição segura, manejo do risco de broncoaspirações, modificação e adaptação de volumes e consistências alimentares(1111 Eckman S, Roe J. Speech and language therapists in palliative care: what do we have to offer? Int J Palliat Nurs. 2005;11(4):179-81. https://doi.org/10.12968/ijpn.2005.11.4.28783. PMid:15924034
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). O treinamento da comunicação adaptada deve ser disponibilizado ao paciente e à rede de apoio, tendo em vista a efetividade e clareza na transmissão da mensagem ao paciente, e entre ele e seus interlocutores, para, principalmente, quando o objetivo for a obtenção do consentimento para algum procedimento(1111 Eckman S, Roe J. Speech and language therapists in palliative care: what do we have to offer? Int J Palliat Nurs. 2005;11(4):179-81. https://doi.org/10.12968/ijpn.2005.11.4.28783. PMid:15924034
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).

O gerenciamento da disfagia deve priorizar a análise dos riscos e benefícios na ingestão de alimentos e bebidas, respeitando as preferências alimentares, cultura, identidade social e religião do paciente. Sendo assim, é mandatório o uso da autonomia desse indivíduo ou ainda a utilização de mecanismos para ajudar na tomada de decisão compartilhada entre paciente ou tomador de decisões instituído, equipe de cuidado e rede de apoio. A decisão compartilhada deve estar pautada em comunicação assertiva, com foco no gerenciamento dos desejos e anseios do paciente, com participação ativa de todos(1212 Kenny B. Food Culture, Preferences and Ethics in Dysphagia Management. Bioethics. 2015;29 (9): 646-52. https://doi.org/10.1111/bioe.12189. PMid:26481206
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).

Em se tratando do desejo do paciente, o indivíduo pode decidir não comer e não ingerir líquidos voluntariamente pautado em algum tipo de desconforto associado a tal ingestão, na ausência de sofrimento psíquico associado. Embora esse desejo do paciente possa ser interpretado como abreviação da vida ou aceleração da morte, deve-se compreender que essa escolha pode estar relacionada ao objetivo do indivíduo de não ficar com náuseas, distensão abdominal, enjoos, entre outros desconfortos. Nesse momento, uma avaliação médica e psicológica pode ajudar a identificar de modo mais preciso o objetivo desses pacientes: se realmente querem ter um desfecho para a morte de forma mais acelerada ou não(1313 Pope TM, Richards BJ. Decision-Making: At the End of Life and the Provision of Pretreatment Advice. Bioethical Inquiry. 2015;12:389-94. https://doi.org/10.1007/s11673-015-9652-6. PMid:26160603
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-1414 Pope TM, Anderson L. Voluntarily stopping eating and drinking: A legal treatment option at the end of life. Widener Law Review. 2011;17(2):363-427. https://doi.org/10.1186/s12916-017-0951-0. PMid:29052512
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).

Sendo assim, o papel do fonoaudiólogo na equipe de cuidados paliativos e no manejo do paciente em fim de vida envolve aspectos fundamentais da condição humana, a comunicação e a alimentação, o que reforça a importância da sua participação. A atuação profissional baseia-se em avaliar a viabilidade dos procedimentos baseados em evidências científicas e na ética profissional que atendam às demandas fonoaudiológicas dos pacientes. Essas demandas estão relacionadas à comunicação, meio que garante a autonomia do paciente, e à deglutição, principalmente quando esses pacientes apresentam disfagia e risco elevado de broncoaspirações maciças. A tomada de decisão deve ser compartilhada e deliberativa, com o objetivo de manutenção da qualidade de vida e conforto do paciente em cuidados paliativos ou em fim de vida.

  • Fonte de financiamento: Nada a declarar.
  • Trabalho realizado pelo Comitê de Fononcologia (2017-2019), do Departamento de Voz da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia - SBFa - São Paulo (SP), Brasil.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    06 Ago 2019
  • Aceito
    27 Ago 2019
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