Resumos
Neste artigo procuramos analisar os modos e processo de aprendizagem de competências de literacia em saúde em contextos informais. Pretendemos ampliar a compreensão dos processos de aprendizagem para além dos contextos formais, contribuindo para a elucidação dos profissionais de saúde sobre a forma como os indivíduos adquirem e gerem o conhecimento em saúde.
Face ao nosso objetivo, recorremos um corpus analítico constituído por cem narrativas autobiográficas elaboradas, entre 2006 e 2011, em contextos educativos mas com reconhecido potencial para a utilização em diferentes campos científicos, incluindo a saúde.
Os resultados obtidos evidenciam a existência de três diferentes características dos modos de aprendizagem de competências de literacia em saúde em contextos informais: i) aprendizagens que decorrem na ação, na concretização de tarefas quotidianas; ii) aprendizagens que resultam de processos de resolução de problemas; iii) aprendizagens que ocorrem de forma não planeada, fruto do fortuito e, em alguns casos, desprovidas de intencionalidade.
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Autobiografia como Assunto; Aprendizagem; Conhecimento; Pesquisa em Educação de Enfermagem
In this article we try to analyze the learning processes of health literacy skills in informal contexts. We intend to broaden the understanding of the learning process beyond the formal contexts, thus contributing to the elucidation of health professionals on how individuals acquire and manage their knowledge in health matters.
Given our goal, we use an analytic corpus constituted by one hundred autobiographical narratives written between 2006 and 2011, in educational contexts but with recognized potential for use in different scientific fields, including health.
The results reveal the existence of three different types of modes of learning health literacy skills in informal context: : i) learning that takes place in action, in achieving daily tasks; ii) learning processes that result from problem solving; iii) learning that occurs in an unplanned manner, resulting from accidental circumstances and, in some cases, devoid of intentionality.
Autobiography as Topic; Learning; Knowledge; Nursing Education Research
En este artículo se analizan los modos y procesos de aprendizaje de competencias de literacia en salud en los contextos informales. Tenemos la intención de ampliar la comprensión del proceso de aprendizaje más allá de los contextos formales, contribuyendo a la elucidación de los profesionales de salud sobre cómo las personas adquieren y gestionan el conocimiento en salud.
Teniendo en cuenta nuestro objetivo, utilizamos un corpus de análisis que consiste en cien relatos autobiográficos producidos, entre 2006 y 2011, en contextos educativos, pero con reconocido potencial para uso en diferentes campos científicos, incluyendo la salud.
Los resultados demuestran la existencia de tres tipos diferentes de modos de aprendizaje de competencias de literacia de salud en contextos informales: i) el aprendizaje que tiene lugar en la acción en la consecución de las tareas diarias; ii) aprendizajes que derivan de procesos de resolución de problemas; iii) aprendizajes que se ocurren de modo no planificado, resultado del fortuito y, en algunos casos, carente de intencionalidad.
Autobiografía como Asunto; Aprendizaje; Conocimiento; Investigación en Educación de Enfermería
Introdução
A melhoria das competências de literacia em saúde constitui um importante meio de promoção da saúde das populações. Em 1998, no Health Promotion Glossary(11. Kickbusch I, Nutbeam D. Health promotion glossary. Geneva: World Health Organization; 1998.), publicado pela Organização Mundial de Saúde, são definidos os principais conceitos que orientam as políticas de saúde pública. Nesse documento a literacia em saúde é entendida como: o conjunto de competências cognitivas e sociais que determinam a capacidade dos indivíduos para compreender e usar informação de modo a que promovam e mantenham uma boa saúde.
Ainda que a responsabilidade de promoção da literacia em saúde seja coletiva, aos profissionais de saúde cabe um papel crucial. Em enfermagem a relevância desse papel traduz-se na integração da educação para a saúde enquanto dimensão fundamental da sua intervenção. A investigação na área da educação para a saúde tem dado especial atenção aos contextos e processos formais de aprendizagem e à forma como contribuem para a prevenção da doença e para a promoção da saúde. No entanto, o processo de aprendizagem não se esgota na dimensão formal, estendendo-se aos contextos não-formais (aprendizagem não dispensada por um estabelecimento de ensino ou de formação e que não conduz, tradicionalmente, à certificação, sendo, todavia, estruturada e intencional) e informais (aprendizagem decorrente das atividades da vida quotidiana, relacionadas com o trabalho, a família ou o lazer).
Neste artigo procuramos analisar os modos e processo de aprendizagem de competências de literacia em saúde em contextos informais. Pretendemos ampliar a compreensão dos processos de aprendizagem para além dos contextos formais, contribuindo para a elucidação dos profissionais de saúde sobre a forma como os indivíduos adquirem e gerem o conhecimento em saúde.
Método
Face ao nosso objetivo, recorremos à análise de cem narrativas autobiográficas realizadas por adultos residentes no distrito de Portalegre e elaboradas no âmbito dos processos de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, entre 2006 e 2011. O corpus analítico é, assim, constituído por documentos elaborados em contextos educativos mas com reconhecido potencial para a utilização em diferentes campos científicos, incluindo a saúde.
Dada a sua centralidade na presente investigação, elucidamos resumidamente o contexto de produção destas narrativas autobiográficas. O processo RVCC, no âmbito do qual foram elaboradas, consiste numa oferta educativa destinada a adultos, conferente à obtenção de diploma de equivalência escolar em função das competências obtidas ao longo da vida em contextos não formais e informais. O processo desenrola-se em três fases sucessivas: o reconhecimento, a validação e a certificação. A fase do reconhecimento de competências tem por objetivo proporcionar ao candidato ocasiões de reflexão e avaliação da sua experiência de vida, levando-o ao reconhecimento das suas competências e promovendo a construção de projetos pessoais e profissionais significativos(22. Leitão J. Centros de reconhecimento, validação e certificação de competências: roteiro estruturante. Lisboa: ANEFA; 2002.). Esta fase é realizada em sessões de balanço de competências que podem ser de natureza individual ou de grupo. Ao longo do reconhecimento de competências, o candidato constrói um Portefólio Reflexivo de Aprendizagens (PRA), orientado segundo um Referencial de Competências-Chave, que deverá permitir a evidenciação de competências adquiridas ao longo da vida, em contextos formais, informais e não-formais.
A etapa de validação de competências centra-se na realização de uma sessão, na qual o candidato e a equipa pedagógica analisam e avaliam o PRA, face ao Referencial de Competências-Chave, identificando as competências a validar e a desenvolver, através da continuação do processo de RVCC ou de formação complementar a realizar. O processo de validação pressupõe, assim, a avaliação das aprendizagens do indivíduo à luz do Referencial, cabendo aos formadores essa avaliação nas áreas de competência que têm a cargo.
A fase final do processo RVCC corresponde à certificação, quando estão reunidas as condições necessárias à obtenção de uma habilitação escolar. A certificação de competências consiste na confirmação institucional e formal das competências validadas através do processo de RVCC, realizando-se perante um Júri de Certificação.
A construção do PRA assenta na abordagem autobiográfica procurando promover um trabalho reflexivo do candidato sobre si mesmo e permitindo o reconhecimento do valor das suas experiências de vida. Na nossa perspetiva, as narrativas autobiográficas produzidas no âmbito dos processos RVCC encerram em si um forte potencial analítico na caracterização dos processos de aprendizagem e desenvolvimento de competências, incluindo as competências de literacia em saúde. O material autobiográfico constitui uma fonte de acesso à reflexibilidade dos indivíduos, na medida em que a narrativa, enquanto prática de escrita, constitui uma exceção quotidiana aos ajustamentos pré-reflexivos do sentido prático associados ao imediatismo das situações.
Podemos constatar, na análise realizada, que as narrativas autobiográficas incluídas no corpus analítico assumem as mais diversas formas e estilos, diferindo no tipo de vocabulário, na construção frásica e na clareza do texto. No entanto, todas elas traduzem uma capacidade de objetivar e racionalizar as experiências de vida, ordenando-as por meio de uma ordem cronológica e causal, hierarquizando as suas diversas partes.
O material autobiográfico utilizado nesta investigação foi recolhido junto de quatro entidades promotoras de processos de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências. Obteve-se obtido uma amostra com a composição que se apresenta na Tabela 1
O material autobiográfico foi compilado e trabalhado de modo a sujeitá-lo aos procedimentos de análise de conteúdo seguindo a lógica inerente à análise qualitativa com o propósito de interpretar e reconstruir o sentido da narrativa, elaborando as categorias e proposições (hipóteses explicativas) necessárias à compreensão dos fenómenos em análise através de um processo indutivo(33. Guerra I. Pesquisa qualitativa e análise de conteúdo: sentidos e formas de uso. Lisboa: Principia; 2008.). Subjaz ao trabalho analítico a ideia de que os conteúdos narrativos indiciam conteúdos culturais latentes que são mediados pelas estruturas sociais e simbólicas que contextualizam a sua produção(44. Ruquoy D. Situação de entrevista e estratégia do entrevistador. In: Alborello, Luc et al. Práticas e Métodos de Investigação em Ciências Sociais. Lisboa: Gradiva; 1997. p. 84-116.). Em última instância, a nossa análise foi conduzida com a intenção de proceder à inferência de conhecimentos relativos às condições de produção(55. Bardin L. Análise de conteúdo, Lisboa, Edições 70; 2009.).
Em termos pragmáticos, começou-se por numerar cada autobiografia e retirar os elementos que permitissem a identificação do seu autor, salvaguardando, deste modo, o anonimato. De seguida, foram classificadas com base em variáveis de caracterização: nome fictício do candidato; idade; profissão atual e nível de certificação.
Posteriormente, realizámos uma primeira leitura de todo o material autobiográfico. Ainda que esta tenha sido uma leitura exploratória de cariz flutuante(55. Bardin L. Análise de conteúdo, Lisboa, Edições 70; 2009.), tivemos, simultaneamente, a preocupação de estruturar a leitura a partir das dimensões de análise definidas previamente, a saber: i) processos de aprendizagem em contextos informais; ii) experiências pessoais de saúde e de doença. Estas constituíram, aliás, grandes categorias temáticas que facilitaram a divisão inicial das componentes das autobiografias e a sua organização inicial. Concomitantemente, efetuou-se a estabilização de uma grelha de análise que resultou, não só do núcleo teórico central, de onde decorrem as interrogações de investigação, mas também de categorias e conceitos que emergiram da primeira leitura vertical do material recolhido.
Após o trabalho inicial de definição de categorias e estabilização da grelha de análise, procedeu-se à identificação, nas narrativas, de unidades de registo categorizáveis e comparáveis entre si. As unidades de registo identificadas foram, sobretudo, de natureza semântica (baseadas numa escolha resultante do sentido temático) e linguística (destacando-se, a este nível, as palavras-chave)(66. Ghiglione, R, Matalon, B. O Inquérito. Lisboa: Celta Editora; 2001.). Todo o corpus analítico foi classificado, na medida do possível, com base nos critérios habitualmente utilizados na análise de conteúdo(55. Bardin L. Análise de conteúdo, Lisboa, Edições 70; 2009.), em particular, a exaustividade (abrangendo a totalidade do material recolhido), a exclusividade (evitando classificar um mesmo elemento do conteúdo em duas categorias diferentes) e a pertinência (procurando classificar os trechos em função dos objetivos da análise).
O material autobiográfico recolhido é extenso e marcado, numa primeira leitura, pela singularidade de cada relato de vida. Apenas após o trabalho de exploração e de leitura atenta se revelaram os traços comuns dos modos de aprendizagem em contextos informais. O surgimento destes pontos comuns em narrativas autobiográficas distintas e que surgem com recorrência na análise constituem as marcas de saturação empírica que constitui uma base sólida à generalização das conclusões(77. Bertaux D. Les Recits de Vie: Perspective Ethnosociologique. Paris: Natham ; 1997.).
Resultados
A relevância da dimensão informal no processo RVCC obriga a uma exaustividade da narrativa que permita retratar a globalidade da vida dos candidatos na identificação de aspetos tidos por pertinentes. Os elementos incorporados na narrativa tendem a assumir as características da aprendizagem em contextos informais(88. Pires A. Educação e Formação ao Longo da Vida: análise crítica dos sistemas e dispositivos de reconhecimento e validação de aprendizagens e de competências. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; 2005): desenvolvem-se no exterior das estruturas educativas formalizadas; não têm um conteúdo definido nem um programa pré-estabelecido; não pressupõem a existência de conhecimentos prévios por parte do sujeito para que seja despertado o seu interesse; os conteúdos não estão organizados segundo uma lógica de aprendizagem, mas segundo a sua própria lógica ligada à ação; o sujeito desempenha um papel decisivo. Trata-se, na sua maioria, de relatos de episódios da vida quotidiana ou de acontecimentos dos quais resultam aprendizagens, ou de onde se infere a detenção de competências específicas.
Nos relatos analisados de experiências de aprendizagem de competências de literacia em saúde em contextos informais sobressaem algumas características que nos permitem agrupá-las, pela sua representatividade, em modos diferentes de aprendizagem: i) aprendizagens que decorrem na ação, na concretização de tarefas quotidianas; ii) aprendizagens que resultam de processos de resolução de problemas; iii) aprendizagens que ocorrem de forma não planeada, fruto do fortuito e, em alguns casos, desprovidas de intencionalidade. Os três modos de aprendizagem não são mutuamente exclusivos ou excludentes. Trata-se, antes, de uma ferramenta analítica que permite diferenciar os modos de aprendizagem, em função da sua génese, ainda que muitas das situações de aprendizagens em contextos informais, relatadas nas narrativas autobiográficas, se inscrevam em mais do que uma categoria.
A primeira característica das descrições dos processos de aprendizagem em ambientes informais relaciona-se essencialmente com aprendizagens sociais. São relatos onde a aprendizagem se entrelaça com a vida dos indivíduos, baseando-se nas suas experiências. Estas aprendizagens têm uma natureza bastante abrangente, englobando domínios do desenvolvimento pessoal, social e cultural no contexto da vida quotidiana. O pressuposto é que se pode aprender através da participação em atividades da vida em sociedade. O caráter pedagógico da atividade é fortemente salientado na autobiografia destes indivíduos. Outras investigações salientam a forte ligação entre a ação e a aprendizagem em contextos informais(99. Pastre P, Mayen P, Vergnaud G. La didactique professionnell. Revue française de pédagogie. 2006 ; (154):145-198.): os sujeitos aprendem pelo simples facto de agirem; não é possível agir sem que daí não ocorra experiência, logo aprendizagem. A atividade é percebida tanto como produtora quanto construtora: os sujeitos não produzem apenas transformações nos objetos do mundo exterior, este, simultaneamente, transforma-se, enriquecendo o seu repertório de recursos. Na narrativa autobiográfica, as aprendizagens em ambientes informais surgem frequentemente vinculadas ao desempenho de atividades associadas aos papéis sociais dos indivíduos, destacando-se o papel de mãe:
"Com a minha filha ganhei novas competências, tanto emocionais, como sociais e também outras responsabilidades. Aprendi a cuidar dela, a trocar fraldas, a amamentar, a tirar a febre, a reconhecer os “sapinhos”, as vacinas, as cólicas, etc…" (Simone, 49 anos).
“Ter um filho muda a nossa vida. Temos de estar atentos às suas necessidades, perceber o que eles precisam e cuidar da sua saúde” (Francisca, 46 anos)
“Como mãe aprendi muita coisa: a cuidar de uma criança e a tratá-la quando está doente” (Henriqueta, 45 anos)
Apesar de vinculadas aos papéis sociais, as competências adquiridas resultam de processos de aprendizagem onde os familiares e amigos têm um importante papel enquanto fonte de informação:
“Como mãe era muito inexperiente e tinha muitas dúvidas, mas lá ia pedindo ajuda à vizinha Paula e à minha irmã, e estas ajudavam-me como podiam” (Gabriela, 38 anos)
O conceito de aprendizagem através da ação, caro à análise organizacional(1010. Brownand J., Duguid P. The social life of information. Boston: Harvard Business School Press; 2000.,1111. Marsick V, Watkins K, Callahan M, Volpe M. Informal and Incidental Learning in the Workplace. In: Smith M., DeFrates-Densch N., editores. Handbook of research on adult learning and development. Londres: Routledge; 2008. p. 570-600.), surge nestas narrativas implícito numa conceção alargada do conceito de saberes. De facto, para além dos conhecimentos teóricos, são valorizados, na narrativa autobiográfica, os conhecimentos processuais (que “estão ligados directamente à acção e ao seu desenvolvimento e permitem um conhecimento contingente mas eficaz do real”) e os saberes fazer (que são “relativos à manifestação de actos humanos”)(1212. Gomes M. Referencial de Competências-chave para a Educação e Formação de Adultos (nível Secundário). Lisboa: Direcção Geral de Formação Vocacional; 2006.). Nos exemplos apresentados, as mulheres, ao refletirem sobre as suas ações, reconstroem a experiência e organizam-na à luz do contexto de produção da narrativa. A descrição das aprendizagens é, assim, em muitos dos relatos, localizada no tempo e no espaço de modo a seguir uma linha cronológica à qual a construção da autobiografia deve obedecer. O lugar e o tempo que contextualizam a ação conferem significado à aprendizagem e à própria narrativa. Na narrativa das mulheres, ser uma “mãe competente” é produto da atividade e do contexto. Nessa atividade são incluídas competências relacionadas com a responsabilidade pela prestação de cuidados de saúde associada ao papel de mãe. A realização de tarefas usuais e quotidianas em contextos sociais específicos fornece aos indivíduos um conhecimento ampliado e passível de ser reutilizado em novas situações e noutros contextos.
A segunda característica do relato de aprendizagens em contextos informais consiste na evocação de situações de vida em que o indivíduo se confronta com problemas de saúde. Carré e Charbonnier(1313. Carré P, Charbonnier O. Les apprentissages professionnels informels. Paris: L’Harmattan; 2003.) designam este tipo de situações como tempos de disfunção que encerram em si um potencial instrutivo. O relato seguinte exemplifica a aprendizagem que resulta da situação de a adulta se ver confrontada com um problema de saúde:
“Como a vida por vezes nos traz surpresas e nem sempre são agradáveis, eu também tive uma desagradável em termos de saúde, […] passado cinco anos foi detectado o meu problema de saúde, ao saber o que tinha fiquei muito assustada, mas com o tempo aprendi a viver com o problema que tenho e hoje tento fazer a minha vida, dentro dos possíveis. […] Por vezes costumo dizer que vou vivendo uma experiência com este problema porque com tudo se aprende até com os problemas de saúde.” (Fátima, 56 anos)
Os relatos tendem a valorizar a doença como algo que encerra em si valor pedagógico, sobretudo nos casos em que tem implicações na alteração do estilo de vida. Trata-se daquilo que Schwartz apelida de “pedagogia da disfunção”(1414. Schwartz B. Moderniser sans exclure. Paris: La Découverte; 1994.), segundo a qual o incidente é considerado como objeto de reflexão e oportunidade de evolução, constituindo um eixo do processo formativo. O caso de Adelaide é, a este respeito, particularmente ilustrativo. Esta adulta atribui as causas da anorexia nervosa ao seu estilo de vida que teve no passado, a superação do problema de saúde constituiu uma “lição” sobre a forma como deve relativizar os seus problemas:
“Obviamente, que com os outros trabalhos que já tinha, a família e a casa, ao tentar conciliar tudo, entrei em exaustão. Exaustão essa, que acumulada com stress e falta de descanso originaram anorexia nervosa. A anorexia nervosa é uma disfunção alimentar, caracterizada por baixo peso corporal e stress físico. Quanto menos nos alimentamos, menos nos apetece comer e quanto menos descansamos, mais stress temos. Nem nos apercebemos que estamos com essa doença, pois cheguei aos 37 quilos sem me aperceber como. Olhava-me ao espelho e conseguia ver-me normal, nunca tão magra, o que revelava distúrbios psicológicos, mais um dos sintomas da doença, porque quem não vê o óbvio não está bem. Estive internada um mês, com uma alimentação leve, até recuperar um pouco, pois a recuperação não é fácil.” (Adelaide, 30 anos)
Os resultados pedagógicos que derivam da experiência da doença estendem-se a longo prazo. A situação vivenciada conduz a um processo reflexivo onde os problemas de saúde se convertem em aprendizagens e experiência de vida. O caráter construtivo da ação pode estender-se no tempo quando sujeita a uma análise reflexiva que a reconfigure num esforço de melhor compreensão(99. Pastre P, Mayen P, Vergnaud G. La didactique professionnell. Revue française de pédagogie. 2006 ; (154):145-198.). Esta é, aliás, uma ideia com forte presença nos documentos que enformam o processo RVCC: “a aprendizagem reflexiva […] resulta de um processo de (re)atribuição de sentido à experiência e ao conhecimento prévio. A reflexão visa uma compreensão, por parte do sujeito, […], uma reinterpretação da experiência, à luz de novas perspetivas que constantemente se formam para os aprendentes”(1212. Gomes M. Referencial de Competências-chave para a Educação e Formação de Adultos (nível Secundário). Lisboa: Direcção Geral de Formação Vocacional; 2006.). O discurso dos candidatos vincula esta ideia de que a experiência não é apenas o resultado da vivência de uma determinada experiência, mas também da sua capacidade em refletir sobre a sua situação. Uma terceira característica dos modos de aprendizagem em ambientes informais é o modo não planeado como ocorre. Na narrativa autobiográfica é, muitas vezes, manifestada a casualidade das aprendizagens em detrimento das intenções planeadas antecipadamente nas situações de educação formal. O acaso das circunstâncias da vida, por vezes dramáticas, constituem, ainda assim, momentos de aprendizagem. No caso de Cassilda, a necessidade que sentiu em perceber a doença do pai desencadeou a procura de informação:
“Um dos momentos mais dramáticos que aconteceu na minha vida foi a morte recente do meu pai, [..], após cerca de um ano em que esteve hospitalizado nos cuidados intensivos do Hospital de […], veio a falecer vítima de uma doença “ Síndrome de Guillain-Barré “doença para mim desconhecida até à situação do meu pai, por isto pesquisei na internet e apurei que a síndrome de Guillain-Barré ou polirradiculoneurite aguda é uma doença desmielinizante […] motivando a perda total dos movimentos e da reacção muscular, bem como da caixa torácica o que levou à morte do meu pai, por falta da respiração.” (Cassilda, 35 anos)
O caráter fortuito e aleatório de muitos dos episódios descritos é acompanhado pela identificação de efeitos educativos nas práticas individuais, semelhantes aos identificados em outas investigações: mudanças duráveis de comportamentos que decorrem da aquisição de conhecimentos na ação e da capitalização das experiências individuais(1515. Canário R. Educação de Adultos: Um campo e uma problemática. Lisboa: Educa; 1999.). As aprendizagens descritas, a partir de um olhar distanciado e em perspetiva, ganham uma importância particular no enredo de cada narrativa. Isabel, por exemplo, refere em determinados momentos da narrativa autobiográfica os cuidados que tem na vigilância de eventuais sintomas de cancro colo-retal. A explicação para esse comportamento é atribuída à experiência vivida na infância no acompanhamento da doença da mãe:
“Quando tinha 14 anos foi detectado um cancro a minha mãe nos intestinos, fomos apanhados de surpresa porque a mãe não tinha sintomas nenhuns, e também porque naquela altura não havia os rastreios para detectar a doença numa fase inicial. […] A minha mãe teve que ficar com um saco na parte de fora da barriga para fazer as necessidades, entretanto ainda andou cerca de um ano bem, mas a doença voltou com mais força e já não havia nada a fazer, as dores eram cada vez mais, e naquela altura não havia os medicamentos como há hoje em dia. Ainda bem que hoje já existem medicamentos muito eficazes contra as dores pois assim as pessoas não sofrem tanto” (Isabel, 40 anos).
Discussão
A aprendizagem em contextos informais é, deste modo, marcada por um conjunto de características que a distinguem, sobretudo, dos modos de aprendizagem formal de natureza estruturada, planeada e intencional por parte do indivíduo enquanto aprendente. Os processos de aprendizagem relatados insinuam transformações nos modos de ser e de agir. Subjacente à narrativa autobiográfica encontra-se a ideia de que a aprendizagem se reveste de um caráter linear e cumulativo. A larga abrangência das competências e de contextos tidos como potencialmente formativos possibilita uma multiplicidade de episódios de aprendizagem relatados.
As narrativas encadeiam, assim, descrições de aprendizagens ocorridas em diferentes espaços e tempos e associadas a um processo de transformação de si. A apresentação de si na narrativa autobiográfica incorpora, também a capitalização das experiências das atividades de vida quotidiana, apresentadas como processos de aquisição de conhecimentos na ação. Tais processos aproximam-se da conceção de autoformação apresentada noutras investigações(1616. Amiguinho A, Valente A, Correia H, Madeiro M. Formar-se no projecto e pelo projecto. In: Canário R. Formações e situações de trabalho. Porto: Porto Editora, 1997, p. 101-116) e que derivam dos contextos que estimulam os indivíduos à identificação de problemas, análise de situações, procura de soluções ou gestão de recursos.
O potencial pedagógico dos processos de aquisição de competência de literacia em saúde em contextos informais é, assim, condicionado por dois constrangimentos distintos. Por um lado a configuração dos contextos de aprendizagem pode, pela sua natureza informal, estar sujeita ao erro, ao preconceito ou ao excesso de simplificação. Estes constituem riscos reais dos processos de aprendizagem informal que se agravam nas situações em que os aprendentes não dispõem de um sentido crítico na assimilação da informação. Utilizando a tipologia proposta por Mezirow(1717. Mezirow J. Fostering critical reflection in adulthood: A guide to transformative and emancipatory learning. São Francisco: Jossey-Bass; 1990.,1818. Mezirow J. Transformative dimensions of adult learning. São Francisco: Jossey-Bass; 1991.), podemos classificar de aprendizagem formativa estes casos de processos de assimilação acrítica de informação sobre saúde que ocorrem em contextos educativos informais. Este modelo de aprendizagem que marca sobretudo a infância mas que se prolonga pela vida(1919. Hall M. Getting to Know the Feral Learner. In Visser J., Visser-Valfrey M, editores. Learners in a Changing Learning Landscape: Reflections from a Dialogue on New Roles and Expectations. Dordrecht: Springer; 2008, p. 109-134.) constitui um importante elemento do processo de crescimento e desenvolvimento pessoal. É ai que se fundam os esquemas de significado e de interpretação do mundo que determinam a ação individual. Nesse sentido, as aprendizagens baseadas em conceções erradas sobre saúde e doença podem traduzir-se em comportamentos de risco com sérias implicações na saúde dos indivíduos. Por outro lado, através dos testemunhos identificados nas autobiografias, é possível identificar igualmente situações em que os contextos informais de aprendizagem se revestem de grande potencial de desenvolvimento de competências de literacia em saúde. Estes casos têm por base um processo de reflexão crítica semelhante ao modelo de aprendizagem transformativa descrito por Mezirow(1717. Mezirow J. Fostering critical reflection in adulthood: A guide to transformative and emancipatory learning. São Francisco: Jossey-Bass; 1990.,1818. Mezirow J. Transformative dimensions of adult learning. São Francisco: Jossey-Bass; 1991.). Como foi possível identificar nas narrativas autobiográficas as diferentes experiências de vida resultam, muitas vezes, na alteração das estruturas de atribuição de significado e, consequentemente, em modificações de comportamento. O potencial pedagógico das aprendizagens nestes contextos depende da capacidade do aprendente em interpretar o sentido da sua experiência e, ao fazê-lo, ajustar a sua ação a práticas promotoras da saúde. Trata-se, portanto, de alterações individuais dos marcos mentais, dos hábitos de pensamento e da própria de atribuição de significado geradoras de aprendizagens que se revelem mais exatas e credíveis na forma como orientam a ação individual.
Conclusão
Os resultados obtidos a partir da análise realizada ao corpus analítico constituído por cem narrativas autobiográficas evidenciam a existência de três diferentes características dos modos de aprendizagem de competências de literacia em saúde em contextos informais. Trata-se de processos distintos em termos conceptuais, mas que não são necessariamente excludentes, na medida em que um determinado episódio de aprendizagem pode ser categorizado em mais do que uma das características identificadas.
A aprendizagem para a saúde é, como vimos, entre estes indivíduos indissociável das aprendizagens que decorrem dos contextos de vida quotidiana. São processos marcados pela adoção de papéis sociais e pelos acasos do percurso de vida. Os recursos e os meios que cada indivíduo detém para desenvolver competências que permitam alcançar o seu bem-estar físico, psíquico e social é variável em função dos contextos sociais de proveniência. A potencialidade dos processos de aprendizagem em contextos informais não pode ser acriticamente generalizada na medida em que nem todos os contextos e experiencias de vida são equivalentes. Assim, os contextos informais de aquisição de conhecimentos em saúde encerram em si diferenças e desigualdades sociais no acesso à informação e à qualidade da mesma. Este reportório de saberes biográficos que constitui a base de muitas das competências de literacia em saúde está, no entanto, vulnerável a preconceitos e a conceções erradas e não fundamentadas cientificamente.
A intervenção dos técnicos de saúde, em particular da enfermagem, na sua vocação de capacitação dos cidadãos para a determinação do seu projeto de saúde, deve tomar em consideração os processos informais de aprendizagem de competências de literacia em saúde. No planeamento das intervenções, a educação para a saúde pode beneficiar ao ter em consideração essas reservas de saberes biográficos que resultam das experiências de vida dos indivíduos, cabendo ao enfermeiro o difícil papel de interlocutor entre, por um lado, o conhecimento preconceituoso e conservador que caracteriza, em muitos casos, o senso comum e as aprendizagens em ambientes informais e, por outro lado, o conhecimento científico, por vezes, prodigioso e impenetrável para os indivíduos. Ao se ter em consideração, no planeamento das intervenções, os papéis sociais, os momentos de disfunção e os acasos da vida de que resultam aprendizagens, está-se a contribuir para a promoção da saúde alicerçada na igualdade de oportunidades no acesso à informação e no respeito pelos contextos sociais de origem dos indivíduos.
É neste pressuposto que a narrativa autobiográfica se constitui como um importante instrumento de trabalho na enfermagem. Através das narrativas individuais, o enfermeiro tem acesso, não apenas à sequência dos acontecimentos de vida relevantes para a história clínica dos indivíduos, mas igualmente aos seus quadros de referência. A educação para a saúde sustentada na narrativa autobiográfica permite a reflexão e avaliação da experiência de vida, envolvendo a participação “cúmplice” entre os beneficiários e o enfermeiro. São criadas dinâmicas de confiança e de entreajuda que favorecem a desconstrução de preconceitos, a aquisição de competências e a valorização individual que possibilitem aos indivíduos a tomada de decisões adequadas ao seu projeto de saúde. É neste processo de interpretação da experiência de vida, partilhado entre beneficiário e enfermeiro, que se abre, em nossa perspetiva, um novo campo de ação para enfermagem e que designamos de coaching biográfico. Ao profissional de saúde cabe, nesse papel, o escrutínio das aprendizagens ocorridas nos contextos informais legitimando e reconhecendo os saberes e questionando e desconstruindo conceções erradas. Trata-se de uma forma de resgatar a experiência individual confrontando-a e conjugando-a com os saberes periciais e, nesse processo, promover modos de reflexividade adequados à boa promoção da saúde. Trata-se de enquadrar a educação para a saúde nas mais recentes expressões do paradigma da “aprendizagem ao longo da vida”, nomeadamente aquelas que advogam o aproveitamento dos processo permanente de autoformação dos indivíduos nos diferentes espaços e tempos da sua biografia.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Dez 2014
Histórico
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Recebido
30 Abr 2014 -
Aceito
16 Jul 2014