RESUMO
As Ligas Acadêmicas (LAs) surgem nas universidades brasileiras no início do século XX como estratégias e atividades extracurriculares. O objetivo deste estudo foi analisar as Ligas Acadêmicas estruturadas e em funcionamento na Universidade de Brasília como estratégias de ensino e aprendizagem.
Método A coleta de dados foi construída por levantamento documental, entrevista de sondagem e entrevistas individuais aplicadas a acadêmicos membros das Ligas (oito representantes), professores/coordenadores membros das Ligas (quatro representantes) e acadêmicos que participavam das atividades oferecidas pelos membros das Ligas (quatro representantes).
Resultados Percebe-se o reconhecimento do princípio da indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão por parte dos entrevistados, embora a atuação dos membros ligantes tenha sido marcada pelas atividades de ensino e pesquisa em contraposição às atividades extensionistas. No entanto, as concepções dos participantes refletem convergências no que se refere aos princípios/estratégias de criação e desenvolvimento das Ligas Acadêmicas como importantes na formação em saúde.
Conclusão As Ligas Acadêmicas poderiam se tornar instrumentos de exploração da autonomia, da criticidade, da criatividade e do comprometimento, em detrimento de práticas isoladas que induzem ao risco de especialização precoce.
Ligas; Formação; Ciências da Saúde; Educação Médica
ABSTRACT
Academic leagues have emerged in Brazilian universities in the twentieth century as strategies and extracurricular activities. The objective of this paper is to analyze structured academic leagues in operation at the University of Brasilia as teaching and learning strategies.
Method Data was collected through documentary survey, interview survey, individual interviews applied to participants of academic leagues (eight representatives), teachers/coordinators of academic leagues (four representatives) and participants of activities provided for the members of academic leagues (four representatives).
Results We observed the recognition of the principle of inseparability between teaching, research and community outreach among the respondents, although the performance of academic league members has been formed by teaching and research activities, but not by community outreach activities. However, the results reflect the convergence of the principles of the creation and development of academic leagues as important activities for health training.
Conclusion Academic leagues could become instruments to develop student autonomy, criticality, creativity and commitment, rather than isolated practices that can lead to precocious specialization.
Leagues; Training; Health Sciences; Medical Education
INTRODUÇÃO
A experiência das Ligas como fenômeno de articulação e mobilização de indivíduos ou grupos em torno de uma necessidade ou carência remonta à Antiguidade, haja vista as Ligas de Delos e do Peloponeso, que visavam às práticas educativas articuladas à estratégia de defesa em face de um contexto de guerra entre Atenas e Esparta nas disputas por território1. Vertentes mais recentes deste tipo de ação são as Ligas esportivas, instituídas como forma de mobilizar recursos de distintas naturezas, em âmbito local ou regional, para a manutenção, preparação e intercâmbio de equipes de futebol, e a experiência brasileira das Ligas camponesas, que mobilizavam contingentes populacionais na luta pelo direito à posse da terra e à reforma agrária, em um movimento politicamente direcionado e intencionalizado2,3.
No campo da saúde, as Ligas emergiram da necessidade de combater a alta prevalência de agravos à saúde pela tuberculose e pela hanseníase no início do século XX, período de transição de uma economia agroexportadora para uma economia que rumava para a industrialização e urbanização do Brasil2. Essas Ligas Acadêmicas eram formadas por voluntários representantes das elites intelectuais e da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Dentre os fatos determinantes da decisão de adotar esse tipo de ação, sobressaía a ausência do Estado brasileiro no campo da saúde pública, à época conferindo às Ligas uma natureza filantrópica ou caritativa2.
No segundo quartel do século passado, as Ligas Acadêmicas surgem como estratégias desenvolvidas no âmbito das universidades/faculdades de Medicina, mobilizadas por acadêmicos, professores e técnicos que se interessavam por determinados temas, assuntos ou práticas acerca dos conceitos de saúde/doença. A presença e o desenvolvimento desses conceitos nos currículos eram considerados insatisfatórios em termos de abrangência ou profundidade3,4.
Os estudos sobre esta temática, em sua maioria, tendem a considerar as LAs como um espaço transformador, que possibilita o desenvolvimento do ensino e da pesquisa; promove o estabelecimento de vínculos entre estudantes, professores e comunidade; e possibilita um cenário diversificado de práticas, aproximando os estudantes da comunidade5,6.
Apesar do aumento expressivo de Ligas Acadêmicas em outras áreas da saúde, como nas faculdades/departamentos de Enfermagem, a maioria destas organizações se concentra nos cursos de Medicina, e os estudos acerca das suas finalidades e contribuições são muito recentes6.
Os princípios que norteiam as ações das Ligas estão contidos em estatutos que estabelecem a denominação, os fins e a sede da Liga, os requisitos de admissão e exclusão dos membros, os direitos e deveres, o modo de constituição e de funcionamento da Liga, as condições para disposições regimentais e dissolução, e a forma de gestão administrativa4.
De modo geral, as Ligas incorporam e buscam a prática do princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão; assumem um caráter extracurricular e complementar; e suas ações são de natureza teórica e prática7. As atividades teóricas são desenvolvidas por meio de aulas, seminários, análise e discussão de textos, apresentações de casos clínicos e realização de eventos científicos. As atividades práticas são desenvolvidas em ambulatórios, hospitais, instituições filantrópicas filiadas e unidades básicas de saúde7.
Com o objetivo de compreender o que motiva a criação e o desenvolvimento das LAs, analisamos as relações que se estabelecem entre as LAs; as Diretrizes Curriculares Nacionais; o Projeto Político Pedagógico Institucional (PPPI) da Universidade de Brasília (UnB) e a Política Nacional de Educação Permanente para o SUS. Nestes termos, nos orientamos pelo objetivo de analisar as Ligas Acadêmicas estruturadas e em funcionamento na Faculdade de Ciências da Saúde e na Faculdade de Medicina da UnB como uma estratégia de ensino e aprendizagem no processo de formação dos estudantes em Saúde.
MÉTODO
No que se refere a sua temática, este estudo é uma primeira aproximação da questão das LAs na Universidade de Brasília, fato que influenciou o direcionamento da abordagem metodológica para um estudo descritivo de natureza qualitativa e de caráter exploratório. Todos os participantes leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (UnB) mediante o Registro no 130/12.
Sobre o processo de formação e/ou capacitação dos estudantes membros das LAs considerados “estudantes ligantes”, professores/coordenadores/profissionais das LAs, “professores/coordenadores/profissionais ligantes” e estudantes participantes apenas das atividades propostas pelos membros das LAs considerados “não ligantes”, no primeiro plano de análise, buscou-se a identificação de sentidos, seguida do estabelecimento de um diálogo entre esses achados e o plano mais geral da produção acadêmica; das normas em vigor sobre o tema no plano do Ministério da Educação, Ministério da Saúde, Universidade de Brasília (UnB); a Política Nacional de Formação Permanente em Saúde para o SUS; e os questionamentos que motivaram a construção deste artigo.
Sobre a relação entre os Ligantes e a Comunidade: Tipologia de Tones, buscou-se uma analogia na caracterização das relações das LAs com a comunidade e/ou grupos sociais beneficiados, recorrendo à tipologia proposta por Tones9 e apresentada por Stotz8, construída em torno de quatro enfoques das práticas de educação em saúde: Educativo, Preventivo, Radical e Desenvolvimento Pessoal8,9.
Sujeitos e critérios de inclusão
Participaram como sujeitos da pesquisa 16 voluntários: oito acadêmicos da Faculdade de Ciências da Saúde e da Faculdade de Medicina da UnB,Campus Darcy Ribeiro, membros participantes das Ligas Acadêmicas, aqui denominados “acadêmicos ligantes”; quatro acadêmicos que conheciam e participaram das atividades propostas pelas LAs, porém não estavam estatutariamente vinculados a elas, aqui denominados “acadêmicos não ligantes”; quatro professores/coordenadores/profissionais, aqui denominados “professores/coordenadores/profissionais ligantes”.
A restrição do estudo ao Campus Darcy Ribeiro explica-se pela inexistência de LAs nos demais campi (Ceilândia, Gama e Planaltina) durante a realização da coleta de dados, entre julho de 2012 e janeiro de 2013.
Procedimentos de coleta e análise de dados
Foram convidadas a participar da pesquisa as 11 LAs identificadas na UnB – cinco delas em processos recentes de criação –, dentre as quais sete responderam afirmativamente e disponibilizaram os estatutos. Foram selecionadas para as entrevistas individuais e sondagem as quatro Ligas consideradas consolidadas e ativas, sendo duas do curso de Enfermagem e duas do curso de Medicina.
A coleta de dados foi realizada mediante levantamento documental (estatutos das Ligas), revisão bibliográfica (Diretrizes Curriculares Nacionais; Projeto Político Pedagógico Institucional da UnB – PPPI; Política Nacional de Educação Permanente para o SUS, artigos científicos), entrevistas de sondagem e entrevistas individuais.
Os instrumentos utilizados foram planilhas elaboradas para a sistematização dos dados, questionários semiestruturados e autoaplicados e roteiros de entrevistas individuais, guiados por estes questionamentos: Como as LAs articulam as práticas de ensino, pesquisa e extensão? Quais são as evidências da eficácia das Ligas na qualificação dos professores, na formação dos estudantes e na solução e/ou encaminhamento dos problemas da comunidade? Como as LAs estruturam as suas práticas em termos de sujeitos, objetivos, abrangência/âmbito da ação, princípios orientadores, estratégia de ação e pressupostos de eficácia? Como as LAs se articulam com a rede pública de Atenção à Saúde e com o processo de educação permanente em saúde para o SUS?
Os dados coletados foram analisados na perspectiva da análise de conteúdo, referenciada por dois momentos ou planos de estudo10,11. O primeiro plano constou da leitura exaustiva do material, buscando-se gerar categorias com base nos estatutos, entrevistas, documentos e material bibliográfico. No segundo plano de análise, buscou-se caracterizar a abordagem adotada nas ações desenvolvidas pelas LAs, identificando as relações com a população e a rede pública de serviços em saúde e outros cenários de prática. Nesse momento, adotou-se como referencial a tipologia apresentada por Stotz8 com base em Tones9, que trata de enfoques das práticas educativas em saúde8,9.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os dados emergidos neste estudo estabeleceram uma relação entre variáveis e categorias levantadas pelos professores/coordenadores ligantes, estudantes ligantes e estudantes não ligantes como determinantes na superação e nos avanços dessas entidades com o padrão de problematização elaborado para os roteiros de entrevistas individuais (fácil problematização, difícil problematização e reafirmação da problematização), para as questões norteadoras e pelos objetivos construídos ao longo deste estudo, considerando que para toda ação há uma reação, e vice-versa12.
Vistas como componentes curriculares paralelos em algumas instituições de ensino brasileiras, as LAs conformariam um espaço demarcado pela intersecção entre práticas do sistema formador em Saúde, Sistema Único de Saúde (SUS) e a Rede de Serviços Públicos articulada à comunidade (Figura 1).
As Ligas Acadêmicas como espaço de intersecção no processo de educação e profissionalização em saúde
Percebe-se ainda que os pontos levantados tanto pelos acadêmicos ligantes, como pelos professores/coordenadores se mostraram semelhantes, reconhecendo a aproximação desses indivíduos no movimento de criação, implantação e implementação das LAs.
Em nenhum estatuto observou-se referência às bases filosóficas ou conceituais que orientaram a sua formulação. No entanto, percebem-se fortes sinais de flexibilidade em face das necessidades de reformulação, fatos já identificados em outros estudos13,14,15. Em nossa análise, os estatutos não mencionaram tal referência, mesmo considerando o ano de criação das LAs da Faculdade de Medicina e da Faculdade de Ciências da Saúde (2008 – 2011), posterior à criação da Associação Brasileira de Ligas Acadêmicas de Medicina (Ablam).
Evidenciam-se nesse sentido sinais de mobilidade dos ligantes entre as distintas Ligas e da proximidade exercida por esses mesmos estudantes em relação ao Centro Acadêmico de Medicina (Camed), entidade responsável pela orientação do processo de criação das Ligas.
No que se refere ao processo de seleção para admissão de novos membros nas LAs, observou-se que geralmente ele é organizado pela diretoria, podendo constar de alguns dos seguintes itens: entrevistas; rodas de conversa; ficha de inscrição; análise do histórico de graduação do candidato; participação com frequência de 75% em cursos introdutórios; elaboração de redação; prova.
Quanto à composição profissional e à perspectiva de atuação em equipe de saúde, três Ligas foram classificadas como uniprofissionais, por mencionarem em sua estrutura professores e/ou acadêmicos de uma única área, enquanto quatro foram classificadas como multiprofissionais, por mencionarem em sua estrutura profissionais e/ou acadêmicos admitidos e oriundos de diferentes áreas das ciências da Saúde.
Dos sete estatutos analisados, quatro reconhecem a importância da admissão de membros de diferentes áreas do saber em seus espaços, explicitando a intenção de favorecer o contato precoce entre acadêmicos, professores e trabalhadores de diferentes áreas. Por outro lado, três Ligas sinalizaram que estruturaram suas práticas de modo centrado em uma única área do saber, incidindo numa formação uniprofissional. Isto revela uma tendência à reprodução do caráter tecnicista e individualista do modelo de atenção hegemônico no SUS, diga-se medicina flexneriana15.
Sobre a metodologia de trabalho adotada, os principais aspectos enunciados foram: o envolvimento dos alunos com a comunidade e com os serviços, a autonomia desenvolvida entre os estudantes ligantes, o trabalho em equipe e a transformação dos estudantes em agentes multiplicadores de conhecimento. Estes aspectos seriam norteados pelos princípios de multidisciplinaridade, noção de cuidado integral, busca ativa do conhecimento, vivência e planejamento das atividades, que proporcionariam a ampliação do conhecimento e a formação reflexiva e ética.
Percebe-se por parte dos ligantes o reconhecimento do princípio da indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão, embora a atuação deles apareça como predominantemente marcada pelas atividades de ensino e pesquisa. As práticas de extensão seriam prejudicadas por impasses relacionados à burocracia na criação e desenvolvimento de projetos nas LAs, pelo próprio calendário acadêmico, no qual as atividades curriculares formais não deixam espaço para atividades curriculares paralelas, e pelo distanciamento entre a universidade e a comunidade.
Os entrevistados consideram que as Ligas têm por objetivo aproximar o estudante da prática de atenção à saúde, alcançar a indissociabilidade, oferecer diversidade de cenários, formar para a saúde, aprender a fazer, aprender a cuidar do outro, formar profissionais sensibilizados e comprometidos para lidar com o imprevisível, e incentivar a pesquisa e a extensão. Entende-se que estes seriam sinais de que os ligantes intencionam desenvolver habilidades para a promoção da saúde e não apenas para o cuidado centrado na doença, num campo de prática real delimitado pela rede de serviços de saúde e pelas necessidades locais de saúde, de maneira humanizada, na perspectiva do fortalecimento e da implementação do SUS.
Foram citadas, dentre outras, as seguintes motivações para a criação de LAs: o tema proposto não era visto de forma concreta na graduação; a deficiência do currículo; as DCN não intensificam o modelo de atenção ampla; o crescimento da área temática proposta pela LA no Brasil e a necessidade de uma aproximação precoce dos estudantes com a prática de atenção à saúde, nos termos propostos pelas DCN.
As principais dificuldades de manutenção de uma Liga, citadas por professores e ligantes, foram: pouco interesse dos alunos em atividades extracurriculares; exiguidade do tempo disponível para participação em atividades curriculares paralelas; déficit do currículo; falta de recursos financeiros para apoiar as ações de pesquisa e extensão; falta de certificação pela UnB; burocracia nas licitações e na aprovação de projetos; acepção deficiente por parte de outros departamentos e professores; rotatividade de membros ligantes. Estas dificuldades também foram relatadas pelos acadêmicos não ligantes e acadêmicos ligantes.
Para a identificação dos sujeitos da ação das LAs, tomou-se como pressuposto a ideia do sujeito como indivíduos ou grupos investidos de protagonismo, vistos com a capacidade de viabilizar ou impedir o desenvolvimento de um projeto ou de uma ação proposta8,9. Observou-se que as LAs têm como foco o desenvolvimento de competências, habilidades e valores entre os estudantes, com base na identificação de lacunas curriculares. Além disso, a referência ao desenvolvimento de competências, habilidades e valores no discurso dos ligantes é suplantada pela referência focada no desenvolvimento de conhecimentos direcionados aos estudantes.
O protagonismo da ação, como elemento fundamental na constituição de sujeitos, estaria centrado predominantemente na figura discente, sem desconsiderar a coordenação dos docentes. Porém, este aspecto revela-se na sua fragilidade se considerarmos a ausência de uma prática dialógica permanente com os indivíduos e grupos sociais da comunidade beneficiada pelas ações desenvolvidas. Dessa forma, estaria posta a possibilidade de ação pedagógica que se configura pelo caráter assimétrico, que parte dos estudantes e professores ligantes em direção a indivíduos e/ou grupos da comunidade12.
No presente caso, as evidências dos processos desencadeados estariam referidas ao acesso igualitário de um grupo específico (estudantes e ligantes) às informações relacionadas à temática da LA ou a mudanças de comportamento no plano individual. Para os entrevistados, os indicadores da eficácia da ação das LAs seriam perceptíveis pelo processo de formação continuada dos ex-participantes das LAs; pela mobilização de estudantes e da comunidade em torno das atividades desenvolvidas; pela sensibilidade dos estudantes às questões de saúde/doença; e pela conquista e aprovação de projetos e disciplinas na universidade.
Neves et al.4 e Fernandes e Mariani13 apontam a necessidade de criar órgãos que desempenhem o papel de regulação nas ações de implementação e funcionamento das Ligas Acadêmicas nas universidades brasileiras, a exemplo da Associação Brasileira de Ligas Acadêmicas de Medicina (Ablam), criada em 2006.
A Ablam estabeleceu Diretrizes Nacionais próprias, aprovadas em Assembleia Geral realizada em 3 de outubro de 2010. Estas Diretrizes definem os princípios, fundamentos, condições e procedimentos a serem observados pelos estudantes e grupos na elaboração de documentos (estatutos, atas, normas) para a criação de uma Liga Acadêmica de Medicina no Brasil4.
É perceptível, no entanto, a coincidência das estruturas dos estatutos e das ações propostas, o que sugere uma convergência entre os componentes das LAs em termos de direção e intencionalidade, facilitada por processos de comunicação e troca de informações e de experiências entre os sujeitos ligantes e idealizadores das diferentes LAs, para além do papel normalizador das Diretrizes da Ablam.
A diversidade de alternativas de avaliação recomendada nos estatutos das LAs sugere que nesse processo podem ser empregados múltiplos critérios, capazes de dar conta, inclusive, de aspectos subjetivos em relação aos processos de avaliação discentes e/ou docentes14.
Estas considerações são respaldadas pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes, Lei 10.861/2004), que refere em suas bases a importância de buscar modelos de avaliação que considerem a diversificação de instrumentos, como escalas subjetivas e objetivas. Estes modelos de instrumentos, embora direcionados para a avaliação das instituições de ensino superior, servem também como base para ações de estruturação de currículos e planos institucionais de planos de cursos, planos de aulas, ações em serviços, redes de apoio à saúde e educação e ações desenvolvidas pelas entidades estudantis13.
O Projeto Político Pedagógico Institucional (PPPI) da UnB de 2011 também reflete sobre a importância do uso de instrumentos diversificados no processo de avaliação da aprendizagem dos trabalhadores, professores, técnico-administrativos e estudantes, tendo como finalidade o diagnóstico educacional precoce para a formulação de estratégias transformadoras da realidade política, econômica e social14.
Os sinais de aproximação entre as LAs e os movimentos de implementação do Sistema Único de Saúde podem ser resultantes das normas de implementação recentes, já citadas, ressaltando-se, no entanto, que resta um longo caminho a percorrer na superação da predominância das práticas de ensino e pesquisa sobre as práticas de extensão no espaço da Liga.
As LAs favoreceriam a diversificação de cenários de prática, proporcionando uma aproximação entre o estudante e as necessidades de saúde da comunidade. Ao mesmo tempo, possibilitariam o trabalho em equipe e a vivência em distintos níveis de complexidade da atenção à saúde praticada pelo SUS. Nesse sentido, percebem-se sinais de direcionamento da formação dos estudantes, no âmbito das LAs, para um modelo de atenção humanizado, que teria como foco a implementação dos princípios de universalidade, integralidade, equidade e controle social propostos para o SUS, ou seja, de modelos tecnoassistenciais contra-hegemônicos15.
Infere-se que as atuais normas e a Política de Educação Permanente para o SUS vêm impactando os currículos dos cursos de saúde, a despeito da permanência de uma política de formação ainda influenciada pelo modelo de atenção à saúde hegemônico16.
Com relação ao âmbito da ação – aqui considerado como o espaço de abrangência da ação delimitado pela assistência à saúde, seja nas unidades de serviços públicos de saúde, seja na própria comunidade –, entende-se que, no atual estágio de desenvolvimento, a ação das LAs ainda permanece fortemente restrita ao domínio das unidades de serviços, embora sejam identificadas algumas ações diretamente desenvolvidas na comunidade.
Os princípios orientadores da ação, segundo Stotz8, neste caso, se referem a: decisão e/ou escolha informada dos indivíduos ou grupos sociais sobre os riscos em relação à saúde; persuasão direcionada sobre riscos em saúde, com vistas à prevenção de agravos em saúde; potencialização das capacidades individuais em face dos problemas de saúde; e persuasão política com vistas à identificação dos determinantes da situação de saúde10.
Em última análise, estes princípios se referem a níveis distintos de ação, que, por sua vez, apontam possibilidades distintas de projetos para a situação de saúde local. Estão relacionados a alternativas possíveis de projetos de sociedade. Nesse sentido, o nível de desenvolvimento das LAs e as demais limitações identificadas nas suas ações sugerem que seus projetos, embora no plano da prática discursiva contemplem uma perspectiva de intervenção mais politizada, em termos de organização, funcionamento e gestão sugerem um “que fazer” mais próximo das abordagens que incentivam a eleição informada sobre riscos e a persuasão sobre agravos à saúde na perspectiva da prevenção.
Coerentemente com os princípios de ação, a estratégia de ação, enquanto somatório das capacidades de diferentes naturezas – poder técnico, poder político, poder administrativo, recursos materiais, estruturas físicas, tecnologias, etc. – articuladas com vistas aos fins propostos pelas LAs, neste caso, estaria voltada para a exploração de crenças e valores relativos ao processo de saúde-doença ou para a prevenção de doenças por meio do desenvolvimento de comportamentos e hábitos saudáveis. Cabe ressaltar, no entanto, a perspectiva de uma ação orientada para o desenvolvimento de destrezas para a vida junto aos grupos sociais ou até mesmo uma capacitação dos indivíduos e grupos sociais em torno da luta política pela saúde.
Finalmente, uma ação de saúde caracterizada nesses termos, na perspectiva do autor, supõe pressupostos de eficácia das ações desenvolvidas, que funcionariam como indicadores do nível de alcance dos objetivos propostos.
Em termos formais, ou como imagem objetivo para as LAs, ações de ensino, assistência, gestão e controle social teriam como foco “o campo da saúde”, visto como um espaço dinâmico de intervenção, cujas evidências, necessidades e carências estariam localizadas: no modo de vida da população e nas suas relações com o meio ambiente, na biologia humana, ou seja, no perfil epidemiológico da população desenhado por grupos sociais específicos a partir dos lugares que eles ocupam no modo de produção local e no modo como o modelo tecnoassistencial em saúde está estruturado e organizado na Regional de Saúde17.
Uma prática de saúde proposta nestes termos realçaria o seu potencial educativo, que supõe, como vimos, um espaço demarcado por um território e uma rede de serviços de saúde estruturada e em funcionamento e uma população; um protagonismo exercido por sujeitos entre os quais emergem os estudantes ligantes, os grupos sociais beneficiados; os professores da UnB; os profissionais da rede de serviços de saúde; e os gestores da Regional de Saúde.
Retoma-se aqui a ideia das LAs como espaços potencialmente incentivadores do aprendizado e da aproximação precoce dos estudantes com a comunidade, com a possibilidade de promover transformações significativas, mediadas por uma ação respaldada em metodologias ativas bem estruturadas no âmbito mais geral18,19,20.
Em tese, recomenda-se a inserção precoce dos estudantes neste cenário, o que demandaria uma presença permanente e uma intervenção contínua das duas faculdades na situação de saúde da localidade, de maneira integrada com a rede local de serviços de saúde, na perspectiva de um modelo de atenção à saúde mediado por ações de ensino, assistência, gestão e controle social objeto de práticas de educação permanente19,21,22,23.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As evidências sobre a criação, implementação e formalização das Ligas Acadêmicas em estudo sugerem que as mobilizações nessa direção partem de ausências/carências de natureza curricular. Estas ausências/carências foram apontadas pelos entrevistados como necessidades de aproximação da prática assistencial como complementação curricular ou insuficiente desenvolvimento de competências e habilidades consideradas de importância para o aprendizado e carreira profissional.
Reitera-se, portanto, que este movimento de organização e implementação da maioria das Ligas Acadêmicas se deu pelo protagonismo dos estudantes sensibilizados com as demandas oriundas da comunidade e dos serviços de saúde mediadas por conquistas pessoais, o que os mobilizaria em torno do desejo de uma formação mais sólida, contraposta à formação calcada em metodologias tradicionais desenvolvidas em sala de aula.
Em relação ao movimento de fortalecimento e implementação do SUS, é importante considerar que o cenário de práticas da Faculdade de Medicina e da Faculdade de Ciências da Saúde, nos termos propostos pelas Diretrizes Curriculares Nacionais, para além do Hospital Universitário de Brasília, é formalmente constituído por um território e uma população que demarcam os municípios de Paranoá e Itapoã. Estes territórios, suas populações e seus equipamentos de uso coletivo em saúde delimitam a Regional de Saúde do Paranoá.
Nestes termos, o diálogo entre os diversos protagonistas constituintes do campo da saúde é condição fundamental para uma prática discursiva, articulada com a transformação das práticas de saúde e os processos de formulação, implantação e implementação da política local de saúde. Uma política local de saúde assim direcionada toma como foco o SUS, sobretudo, para a criação e articulação de vínculos permanentes entre universidade, comunidade e o sistema local de saúde.
Neste sentido, apresentam-se para as LAs desafios que apontam a necessidade de desenvolver perfis técnicos e políticos entre os seus protagonistas aqui referidos, articulando competências orientadas para a qualidade de vida e a transformação das práticas de saúde vistas como práticas educativas.
Isto posto, reitera-se que as evidências que emergem neste estudo apontam a possibilidade de que as LAs – apesar das potencialidades de transformação do cenário de práticas de saúde, mediada por ações de ensino, pesquisa, extensão, assistência, gestão e controle social – tendam a reproduzir o modelo de formação ainda imperante, que prioriza o ensino e a pesquisa em detrimento da extensão e das demais práticas propostas na Política de Educação Permanente para o SUS23.
No entanto, à luz das normas mais recentes – que definem o SUS como ordenador da política de formação profissional na saúde; que implantam uma Política Nacional de Educação Popular em Saúde; que definem uma Política de Educação Permanente para a participação social na saúde; e que, no Distrito Federal, reiteram a rede de serviços do SUS como cenário de práticas na formação dos profissionais de saúde3,20 –, cabe refletir sobre um novo papel para as LAs, na medida em que elas são inquestionáveis como espaço de autonomia, de liberdade, de criação e de protagonismo estudantil, com grande potencial de experimentação e reflexão na gestão das práticas pedagógicas no âmbito da universidade.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos a todos os estudantes e ligantes (membros) que disponibilizaram seu tempo para a conclusão deste estudo, bem como aos professores, orientadores e profissionais que estiveram envolvidos na construção de uma nova área do conhecimento em ensino na Saúde, do Instituto de Psicologia e Faculdade de Ceilândia da Universidade de Brasília.
REFERÊNCIAS
- 1 Aranha MLA, Saviani D. História da Educação e da Pedagogia: Geral e Brasil. São Paulo: Moderna; 2006.
- 2 Nascimento DR. Fundação Ataulpho de Paiva: Liga Brasileira Contra a Tuberculose – Um século de luta. São Paulo: Quadratim; 2002.
- 3 Hamamoto-Filho PTH, Venditti VC, Miguel L, Silva LA, Oliveira CC, Peraçoli JC. Pesquisa em educação médica conduzida por estudantes: Um ano de experiência no Núcleo Acadêmico de Pesquisa em Educação Médica. Rev Bras Educ Méd 2011; 35(1):108-113.
- 4 Neves FBCS, Vieira PS, Cravo EA, Dias M, Bitencourt A, Guimarães GP, Feitosa-Filho GS, Orlando JMC. Inquérito nacional sobre as ligas acadêmicas de medicina intensiva. Rev Bras Ter Intens 2008; 20(1):43-48.
- 5 Peres CM, Andrade AS, Garcia SB. Atividades Extracurriculares: Multiplicidade e diferenciação necessárias ao currículo. Rev Bras Educ Méd 2007; 31(3):203-2011.
- 6 Torres AR, Oliveira GM, Yamamoto FM, Lima MCP. Ligas acadêmicas e formação médica: Contribuições e desafios. Interface – Comunicação Saúde e Educação 2008; 12(27):713-720.
- 7 Monteiro LLF, Cunha MS, Oliveira WL, Bandeira NG, Menezes JV. Ligas Acadêmicas: o que há de positivo? Experiência de implantação da Liga de Cirurgia Plástica. Rev Bras Cir Plást 2008; 23(3):158-61.
- 8 Stotz EN. Enfoques sobre educação e saúde. In: Valla VV, Stotz EN, org. Participação Popular, Educação e Saúde: Teoria e prática. Rio de Janeiro: Relume – Dumará; 1993.
- 9 Tones BR. Tendências actuales em educación sanitária. Barcelona: Quadern CAPS 8; 1987.
- 10 Minayo MCS. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2010.
- 11 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Ulisboa; 2004.
- 12 Silva SA. As Ligas Acadêmicas no processo de formação dos estudantes de saúde na Universidade de Brasília. Brasília; 2013. Mestrado [Dissertação] – Instituto de Psicologia/Universidade de Brasília.
- 13 Fernandes PMP, Mariani AW. Medical teaching beyond graduation: undergraduate study groups. São Paulo: Med Journ (Impresso) 2008; 128(5):257-258.
- 14 Gil AC. Metodologia do Ensino Superior. São Paulo: Altos; 2007.
- 15 Brasil. Projeto Político Pedagógico Institucional da Universidade de Brasília. Brasília: Decanato de Extensão; 2011. (Relatório).
- 16 Mendes EV. As redes de atenção à saúde. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2011.
- 17 Paim JA. Saúde: Política e Reforma Sanitária. Salvador: CEPS ISC; 2002.
- 18 Botelho NM, Ferreira IG, Souza LEA. Ligas acadêmicas de medicina: artigo de revisão. Rev Paraense de Med 2013; 27(4):85-88.
- 19 Santana ACDA. Ligas acadêmicas estudantis. O mérito e a realidade da Medicina. Rev Med 2012; 45(1):96-98.
- 20 Ceccim RB, Feuerwerker LCM. O quadrilátero da formação para a área da Saúde: Ensino, gestão, atenção e controle social. PHYSIS: Rev Saúd Coletiv 2004; 14(1):41- 65.
- 21 Mitre SM, Batista R, Mendonça JMG, Pinto NMN, Meirelles CAB, Porto CP, Moreira T, Hoffmann LMA. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem na formação profissional em saúde: Debates atuais. Ciênc Saúd Coletiv 2008; 13(2):2133-2144.
- 22 Simões RL, Bermudes FA, Andrade HS, Barcelos FM, Rossoni BP, Miguel GP, Fraga GP. Trauma leagues: na alternative way to teach trauma surgery to medical students. Rev Col Bras Cir 2014; 41(4):297-302.
- 23 Ramalho AS, Silva FD, Kronemberger TB, Pose RA, Torres ML, Carmona MJ, Auler JO Jr. Anesthesiology teaching during undergraduation through na academic league: what is the impact in students´ learning? Rev Bras Anestesiol 2012; 62(1):63-73.
-
ÓRGÃO DE FINANCIAMENTOÓrgão de Fomento Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (Capes). Registro no130/12 no CEP da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jul-Sep 2015
Histórico
-
Recebido
12 Nov 2013 -
Revisado
07 Ago 2014 -
Revisado
12 Out 2014 -
Revisado
16 Mar 2015 -
Aceito
24 Abr 2015