Open-access A contribuição da demografia para os estudos de mortalidade em tempos de pandemia

Introdução

Desde o seu surgimento, a ciência demográfica vem demonstrando sua importante contribuição para o estudo de níveis, padrões e tendências da mortalidade, o que tem sido uma das principais áreas de interesse da disciplina.

A demografia é uma ciência primordialmente empírica e dedica cuidadosa atenção a questões sobre medição, disponibilidade e qualidade dos dados, a fim de estudar processos no nível populacional agregado. A estreita conexão entre produtores, avaliadores e usuários de dados demográficos é um dos recursos mais atraentes da demografia, possibilitando a produção de informações de melhor qualidade e uma melhor interpretação de seus significados (PRESTON, 1993).

Este texto trata de questões relevantes que reforçam a importância da demografia para os estudos de mortalidade, particularmente em tempos de pandemia, como os atuais.

Atenção à disponibilidade e qualidade dos dados

Uma das principais características dos estudos demográficos, desde os primórdios da disciplina, é o seu foco em dados, com grande atenção dedicada à sua qualidade. Boa parte do trabalho do demógrafo é destinada a testes que avaliam a qualidade dos dados na tentativa de aprimorá-los e melhor interpretá-los. A suposição central de que os dados brutos são quase sempre problemáticos distingue os demógrafos da maioria dos outros cientistas sociais, médicos e estatísticos (CALDWELL, 2001).

Nesse ponto, a principal contribuição da demografia é a avaliação de todas as fontes de dados relevantes disponíveis, indicando seus alcances e limitações. No que se refere à pandemia de Covid-19, a demografia pode contribuir com sua expertise na avaliação da cobertura e qualidade dos registros de óbitos. Além de existirem mortes ocorridas por Covid-19 que nunca serão registradas com essa causa, há também uma parcela importante que será notificada tardiamente: meses ou anos depois do evento.

Existem, também, problemas relacionados à definição das mortes por Covid-19, que dependerão, em grande medida, do local de morte (casa, hospital, etc.) (LEON et al., 2020; FIOCRUZ, 2020). É provável que parte dos óbitos ocorridos em casa não tenha sido testada para a presença do vírus Sars-CoV-2 e, consequentemente, não tenha a doença Covid-19 atribuída como causa de morte. Mesmo para os óbitos ocorridos em hospitais, não se tem garantia de que todos os indivíduos suspeitos de Covid-19 tenham tido suas mortes confirmadas pelo teste.

Outro ponto relevante no que tange à definição das mortes por Covid-19 é sua classificação como causa primária ou secundária na declaração de óbito (LEON et al., 2020; GILL; DeJOSEPH, 2020). Provavelmente, mortes que ocorreram no início da pandemia não foram classificadas como Covid-19 e, até que os protocolos de classificação da doença tenham sido implementados, problemas de classificação foram mais frequentes. Além disso, a falta de informação detalhada no atestado médico da declaração de óbito, como as condições de saúde preexistentes que contribuíram para a morte, limita o estudo mais aprofundado dos fatores de risco relacionados à morte por Covid-19 (GILL; DeJOSEPH, 2020).

Ao avaliarem os dados, demógrafos têm em conta as limitações resultantes de um complexo fluxo percorrido pela informação do óbito, desde a notificação, passando pela revisão, codificação, consolidação, até sua publicação. Durante a pandemia de Covid-19, informações sobre óbitos pela doença vêm sendo publicadas diariamente pelo Ministério da Saúde e por diversas secretarias estaduais e municipais de saúde. Além disso, óbitos por causas relacionadas à doença têm sido divulgados pelo portal de Transparência do Registro Civil. Apesar da relevância dos esforços dedicados à publicação da informação com a tempestividade e urgência que a pandemia requer, é importante considerar as limitações nestes dados, decorrentes da complexidade do fluxo de informação entre a ocorrência do evento e sua publicação.

Tais problemas de cobertura e qualidade não são uniformes entre as regiões e grupos populacionais, refletindo, em grande medida, as desigualdades da sociedade brasileira. Há diferenças, ainda, que resultam das distintas práticas adotadas em cada região, fruto da descentralização dos sistemas de informação em saúde e do Registro Civil.

Cuidado com a interpretação de números absolutos e taxas brutas

Demógrafos sempre foram profundamente sensíveis ao fato de que números absolutos são afetados pelo tamanho e taxas brutas são influenciadas pela composição da população. A forma como os indivíduos são distribuídos por idade, sexo, nível educacional e outras características afeta as medidas brutas, o que pode gerar interpretações errôneas quando populações com diferentes composições são comparadas. Com o intuito de gerar taxas brutas comparáveis, demógrafos foram levados a elaborar medidas que superassem as distorções e permitissem comparações válidas (CALDWELL, 2001).

Durante a pandemia de Covid-19, muitas análises vêm sendo realizadas por meio do número absoluto de óbitos pela doença. Diversos países e regiões com diferentes composições populacionais estão sendo comparados sem o devido cuidado, ignorando o efeito da composição em números absolutos ou taxas brutas, como já relatado pela demografia. Ainda que a prática seja a de divulgar números absolutos de óbitos, especialmente porque são esses os dados brutos levantados, para comparações dos níveis de mortalidade devem ser calculados indicadores que considerem a população sob risco. Um óbvio ajuste que precisa ser feito é considerar a população como denominador, calculando-se as taxas brutas de mortalidade. Além disso, como o diferencial da mortalidade por idade pode ser substancial, indicadores como taxas brutas de mortalidade padronizadas devem ser utilizados quando se deseja eliminar os efeitos da

estrutura etária.

Outro ponto a ser considerado quando países e regiões subnacionais são comparados é a evolução temporal da pandemia de Covid-19. Países não apenas se diferem em relação à sua composição populacional, como também podem estar vivenciando diferentes etapas da pandemia em um determinado ponto no tempo. Na América Latina e no Caribe, por exemplo, os primeiros casos de Covid-19 foram identificados no final de fevereiro, cerca de dois meses depois da China e um mês depois da Europa. Logo, parte das diferenças observadas entre países pode ser atribuída aos distintos estágios da pandemia que os países estão vivendo.

Pesquisa por padrões e diferenciais

A busca por regularidades nas populações, como as “leis de mortalidade”, e contrastes entre subpopulações tem sido um importante tópico de interesse entre os demógrafos.

O padrão etário da mortalidade por Covid-19 é pouco conhecido, mesmo porque a pandemia ainda está em curso e há incerteza sobre seus dados e seu desenrolar em diferentes contextos sociais, econômicos e epidemiológicos. Em diversos países, tem-se observado que a mortalidade por Covid-19 é crescente com a idade e os óbitos estão concentrados entre idosos (ISS, 2020; REMUZZI; REMUZZI, 2020; WU et al., 2020). No entanto, um padrão similar de crescimento exponencial da mortalidade com a idade, principalmente a partir das idades adultas, também é observado para a mortalidade total em várias populações e ainda por diversas causas de morte. Resta, então, comparar a distribuição por idade dos óbitos por Covid-19, considerando tanto as mortes diretas como as indiretas, com os padrões de mortalidade já conhecidos.

Demógrafos também tentam entender os diferenciais nos níveis de mortalidade entre unidades geográficas e subgrupos populacionais. À medida que a pandemia de Covid-19 avança no mundo, diferenças entre países e entre sub-regiões dentro dos países ficam cada vez mais evidentes. A estrutura etária populacional tem sido apontada como um fator relevante para o entendimento dos diferenciais de mortalidade (DOWD et al., 2020), mas as condições de saúde e outras características socioeconômicas das populações também refletem diretamente nas particularidades da pandemia em cada contexto (NEPOMUCENO et al., 2020; DEMOMBYNES, 2020; KNITTEL; OZALTUN, 2020).

Tem-se observado também que a mortalidade por Covid-19 se diferencia por sexo. Em várias populações, o número de mortes é maior entre os homens (ISS, 2020; DREFAHL et al., 2020; RAVI; EKAPOOR, 2020; GUILMOTO, 2020). Fatores biológicos e variações por sexo na prevalência de condições de saúde preexistentes associadas à mortalidade por Covid-19 podem contribuir para essas diferenças (SHARMA et al., 2020). Fatores comportamentais, sociais e econômicos também podem ser importantes para entender os diferenciais por sexo na mortalidade por Covid-19, bem como suas variações regionais.

Pesquisas sobre diferenciais de mortalidade frequentemente se deparam com a interação entre os interesses de pesquisa e a disponibilidade de informação para os níveis em que se deseja estudar. Em relação aos estudos de diferenciais por unidades geográficas no Brasil, comparações entre grandes áreas, como unidades da federação, são mais factíveis. Para níveis mais desagregados, deve-se ter maior cuidado nas interpretações dos resultados. É conhecido, por exemplo, o fenômeno da “invasão de óbitos”, em que o falecido é registrado onde recebeu atenção médica (por exemplo, na capital do estado) e não no seu local de residência. Nesses casos, há inconsistência entre numerador e denominador. Para análises de níveis intramunicipais, como bairros, não se sabe se os registros de óbitos contemplam corretamente o bairro de moradia da pessoa falecida. Além disso, não há estimativas confiáveis para populações com estes níveis de desagregação, principalmente levando-se em conta que a informação primária mais recente para estes níveis é de dez anos atrás, do Censo 2010.

Para os estudos do gradiente socioeconômico das condições de saúde, como os que desejam entender os diferenciais de mortalidade por cor ou raça ou nível de instrução, ainda que sejam extremamente relevantes, existem inúmeras limitações relacionadas, principalmente, com a qualidade dos dados (ELO; PRESTON, 1997; NEPOMUCENO; TURRA, 2020), que também se aplicam em situações de pandemias. Um dos principais entraves a esses estudos é a inconsistência entre as informações que são levantadas nos registros de óbitos e o que é perguntado e reportado nos censos demográficos, em função de diferenças conceituais e metodológicas na coleta do dado: enquanto as informações do numerador das taxas de mortalidade são reportadas nas declarações de óbito, aquelas do denominador são coletadas por entrevistas presenciais nos censos. Além disso, há que se considerar a interação entre as diversas variáveis demográficas e socioeconômicas. Para análises dos diferenciais de mortalidade por nível de instrução, por exemplo, seria esperado encontrar taxas de mortalidade maiores entre os menos educados, principalmente porque estes estão concentrados em idades em que a mortalidade é maior. Portanto, seria preciso estratificar ou controlar, minimamente, por sexo e idade, para se ter uma medida mais precisa da associação entre estas variáveis livre de fatores de confundimento.

Técnicas e análises demográficas podem contribuir, portanto, para apontar limitações nos estudos de padrões e contrastes entre subpopulações, bem como fornecer alternativas metodológicas para a mensuração de tais questões.

Contribuição à produção de informações

Conforme apontado por Preston (1993), algumas peculiaridades dos estudos demográficos oferecem aos demógrafos oportunidades singulares de afetar o conteúdo de instrumentos de dados em larga escala, especialmente pesquisas nacionais, uma vez que, em parte por causa de sua proximidade com a produção de dados, os demógrafos são cientistas sociais aptos a realizarem medições e interpretações cautelosas.

Nesse sentido, os estudos demográficos, com sua peculiar atenção à disponibilidade e qualidade dos dados, podem fornecer importantes subsídios para o aprimoramento da produção de informações, no que se refere tanto aos registros administrativos quanto às questões relacionadas aos estudos de mortalidade com base em pesquisas amostrais e censos.

Grande parte das estimativas de mortalidade existentes, particularmente em regiões menos desenvolvidas, tem sido possível graças à contribuição de pesquisadores, principalmente demógrafos, no desenvolvimento e aprimoramento de técnicas e formas de levantamento de perguntas incluídas nos censos e pesquisas domiciliares (MOULTRIE et al., 2013). Tal experiência qualifica os demógrafos como estudiosos capazes de trabalhar em conjunto com os produtores de informação para o desenvolvimento de novos instrumentos que permitam a mensuração da mortalidade como consequência da pandemia de Covid-19. Um exemplo é a inclusão de perguntas na próxima rodada de censos, a fim de identificar aspectos relacionados à mortalidade no período da pandemia.

O estudo da mortalidade total na população

Demógrafos, em contraste com epidemiologistas, geralmente se preocupam com mudanças na mortalidade total. Quando estudam mudanças de mortalidade por uma causa específica, eles avaliam também o que acontece com a mortalidade por outras causas (CALDWELL, 2001; PRESTON et al., 2001).

Ressalta-se, assim, a importância de estudos que considerem tanto os efeitos diretos quanto os indiretos da Covid-19 na mortalidade. Uma possibilidade para medir o excesso de mortalidade provocado pela Covid-19 é por meio da comparação dos níveis de mortalidade resultantes dos óbitos por todas as causas de morte ocorridos antes (que pode ser uma média dos últimos anos) e durante a pandemia (NAS, 2020).

Ao se considerar a mortalidade específica por Covid-19, é importante fazê-lo também sob a perspectiva dos “riscos competitivos”. Uma maneira simples de exemplificar essa interação entre causas de morte é pensar em indivíduos que morreriam ao longo do ano por câncer, pois apresentavam um quadro delicado, mas acabaram contraindo Sars-CoV-2 e vieram a falecer por Covid-19. Esses óbitos aumentariam a probabilidade de morrer por Covid-19, mas reduziriam a probabilidade de morte por câncer.

A interpretação de medidas resumo de mortalidade também requer atenção nesses contextos. A esperança de vida, indicador amplamente utilizado por demógrafos, é uma medida resumo de mortalidade derivada de tabelas de vida. Esperanças de vida publicadas periodicamente são um importante indicador da saúde geral da população e servem de base para várias políticas públicas. Em tempos de pandemia, contudo, as hipóteses implícitas nas tabelas de vida de período devem ser consideradas e seus resultados devem ser interpretados com grande cautela. Na esperança de vida de período, assume-se implicitamente que a pandemia será experimentada a cada ano acompanhando o envelhecimento de cada indivíduo até que a coorte hipotética se extingua. Essa hipótese pode ser muito forte, se assumirmos que um indivíduo que nasceu em 2020 viverá em um ambiente de pandemia toda sua vida (GOLDSTEIN; LEE, 2020, HEUVELINE, 2020). Portanto, o indicador de esperança de vida ao nascer para anos de pandemia deve ser utilizado como uma medida que reflete as taxas específicas de mortalidade de um determinado período e não para usos que pressuponham estimativas de coorte, como benefícios previdenciários.

Discussão e conclusão

Este texto procurou mostrar que os fundamentos dos estudos demográficos, como a ênfase em medição dos fenômenos estudados, o uso apropriado de métodos e técnicas demográficas, bem como a atenção à produção e avaliação dos dados, seguem sendo questões fundamentais para os estudos de mortalidade e são válidos também para a avaliação dos efeitos da pandemia de Covid-19.

Além dessas questões-chave, oriundas da demografia formal, deve-se atentar aos contextos históricos, sociais, econômicos e epidemiológicos e, portanto, à natureza dos estudos populacionais como campo multidisciplinar integrado a outras ciências, como história, sociologia, economia e epidemiologia. Destaca-se, ainda, a importância crescente de estudos que lançam mão das análises individuais (microdemografia) no nível de pessoas, famílias e domicílios.

No caso brasileiro, em que os atuais contextos social, econômico, político e epidemiológico são diversos daqueles observados em outros países, é preciso ter atenção ao estendermos ao país experiências observadas nos países desenvolvidos. Um claro exemplo dessas diferenças diz respeito aos fatores de risco relacionados à Covid-19. A idade avançada e a presença de doenças crônicas, como doenças cardiovasculares, diabetes, hipertensão e doenças do aparelho respiratório, têm sido apontadas como os principais fatores de risco em países desenvolvidos (DOWD et al., 2020; REMUZZI; REMUZZI, 2020; ISS, 2020). No entanto, idade e saúde são duas variáveis que não devem ser tratadas independentemente. No Brasil, onde existem altas prevalências de doenças crônicas nas idades adultas, uma maior vulnerabilidade da população em idade ativa é esperada em relação àquela dos países desenvolvidos (NEPOMUCENO et al., 2020). Ademais, o Brasil possui altas cargas de doenças infectocontagiosas, como tuberculose, HIV, dengue e malária, que podem aumentar a vulnerabilidade não apenas dos idosos, mas também de jovens e adultos. Além disso, nesse contexto de combate a uma doença infecciosa com alta transmissibilidade, é importante entender melhor como se dão as relações sociais, especialmente familiares e intradomiciliares. Logo, as particularidades da pandemia que surgem devido aos contextos sociais, políticos, econômicos e epidemiológicos de cada região devem ser consideradas nas análises e interpretações dos dados em tempos de pandemia.

É evidente que a pandemia de Covid-19 tem impacto direto na mortalidade, mas também afeta outras áreas de pesquisa que estão no escopo da demografia, como fecundidade e saúde reprodutiva, migração interna e internacional, mercado de trabalho, estrutura familiar, desigualdades de gênero e socioeconômicas, violência doméstica, dentre outras. Logo, o papel do demógrafo, fundado nas questões-chave discutidas ao longo desta nota, é fundamental para adquirir um bom entendimento dos vários aspectos da pandemia de Covid-19, bem como para fornecer insumos científicos para tomadores de decisão em políticas públicas e elucidar ações que visam mitigar o impacto da atual e de possíveis pandemias futuras.

O IBGE está isento de qualquer responsabilidade pelas opiniões, informações, dados e conceitos emitidos neste artigo, que são de exclusiva responsabilidade dos autores.

A autora foi financiada pelo European Research Council (grant number 716323).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2020
  • Aceito
    17 Ago 2020
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