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“CORRO COM O PCC”, “CORRO COM O CV”, “SOU DO CRIME” Facções, sistema socioeducativo e os governos do ilícito em Alagoas* * Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas (Fapeal) e ao CNPq pelo apoio às pesquisas que deram suporte a este texto; processos 60030-000260/2017 e 439179/2018-1, respectivamente. Também agradeço às ponderações feitas pelos pareceristas da RBCS que ajudaram a aprimorar o artigo.

“I RUN WITH PCC”, I RUN WITH CV”, “I AM CRIME”: FACTIONS, SOCIO-EDUCATIONAL SYSTEM AND ILLICIT RULINGS IN ALAGOAS

«JE SUIS DU P.C.C. », « JE SUIS DU C.V. », « JE SUIS DU CRIME », LES FACTIONS CRIMINELLES, LE SYSTÈME SOCIOÉDUCATIF ET LES GOUVERNEMENTS DE L’ILLÉGAL DANS L’ÉTAT BRÉSILIEN D’ALAGOAS

Resumos

Neste texto, discuto as transformações recentes no sistema socioeducativo e suas relações com as balanças de poder entre jovens e adolescentes com alianças faccionais, além de outros atores de mercados ilícitos em Alagoas. Retomo o problema da regulação/desregulação dos conflitos nas “periferias” em um contexto no qual a expansão do dinheiro e de redes criminais se entrelaçam à expansão da urbanização em pequenas e médias cidades do Norte-Nordeste. A partir de registros de campo em unidades de internação e entrevistas, dou destaque: a) à mudança na regulação dos conflitos nas cadeias e nas quebradas em Alagoas após o rompimento da “aliança” entre CV e PCC em 2016; e b) a necessidade de reavaliar alguns dos termos através dos quais as ciências sociais pensam o “popular” e as “periferias” em contexto de maior conexão entre mercados ilegais do Centro-Sul e do Norte-Nordeste do Brasil. Valho-me de uma abordagem figuracional.

Palavras-chave:
Facção; Sistema socioeducativo; Crime; Nordeste


Keywords

Factions; socio-educational system; Crime; Northeastern Brazil.

In this text, I discuss recent transformations in the socio-educational system and its relationship to the balance of power between youths and adolescents with faction alliances and other illicit markets actors in Alagoas, Brazil. I return to the conflict regulation/deregulation problem in the “peripheries”, in a context in which money and criminal network expansions become intertwined with urbanization sprawling to small and medium-sized cities in the North-Northeast. I highlight the following from fieldwork records and interviews carried out in juvenile facilities: a) the change in conflict regulation in prisons and poor neighbourhoods in Alagoas after the “alliance” rupture between CV and PCC gangs in 2016; and b) the need to reassess some of the terms through which social sciences vier the “popular” and the “peripheries” in a context of greater connection between illegal Central-South and North-Northeastern Brazilian markets. I apply a figurational approach


Ce texte analyse les récentes transformations du système socioéducatif et ses relations avec les luttes pour le pouvoir entre jeunes et adolescents ralliés à des factions et à d’autres acteurs illicites de l’état d’Alagoas. Il se penche sur le problème de la régulation/dérégulation des conflits dans les « banlieues », et ce, dans un contexte où la prolifération de l’argent et des réseaux criminels va de pair avec l’augmentation de l’urbanisation des petites et moyennes villes du Nord-Nord-est du Brésil. Partant d’entretiens et d’enregistrements obtenus dans des établissements pénitenciers pour mineurs, l’objectif du travail est de montrer : a) le changement au niveau de la régulation des conflits dans les prisons et les quartiers chauds d’Alagoas après la rupture de l’« alliance » entre les factions du crime organisé PCC et CV en 2016 ; b) la nécessité de réévaluer certains termes utilisés par les sciences pour penser le « populaire » et les « banlieues » dans une situation de plus forte connexion entre les marchés illégaux du Centre-sud et du Nord-Nord-est du Brésil. Pour y parvenir, le travail se vaut d’une approche figurationnelle.

Mots-clés:
faction; système socioéducatif; crime; Nord-est


Introdução

Neste artigo, trato de mudanças expressas em sensos de grupo e de regulação de conflitos entre jovens criados em periferias urbanas alagoanas, ligados a mercados de drogas e mercadorias ilegais. A partir de pesquisa de campo e interlocuções em quebradas e no sistema socioeducativo, discuto a alteração de códigos de justiça no mundo do crime durante os últimos 20 anos em Alagoas, centrando-me em Maceió.

Abordo o surgimento e o cultivo de um senso de aliança às facções PCC e CV1 1 As siglas se referem aos coletivos criminais Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV), surgidos em prisões paulistas e cariocas em momentos distintos. O CV, em finais dos anos 1970, formou-se em penitenciárias onde haviam misturado presos “políticos” e “comuns”. A coexistência entre esses grupos favoreceu alianças, além de compartilhamento de ideias e práticas, visando reduzir os conflitos e aumentar as redes de proteção entre presos dentro e fora das cadeias. Tais redes de apoio mútuo teriam assumido novas feições com o crescimento do mercado de cocaína nos anos 1980. Daí decorreram lutas e secessões ocorridas entre aliados do CV ligadas a traições e disputas por fatias desses mercados (Amorim, 1994; Pengalese, 2008). Já o surgimento do PCC, nos anos 1990, aparece associado aos desdobramentos de “comissões de solidariedade”, formadas como instâncias de representação de presos diante de autoridades penitenciárias paulistas. As “comissões” foram crescentemente deslegitimadas por agentes do sistema carcerário e de justiça (Alvarez, Salla e Dias, 2013) até o assassinato em massa de presos conhecido como “massacre do Carandiru”, em 1992. Este foi o momento crítico de estímulo à busca pelos presos por novos tipos de alianças visando à proteção mútua. Eles herdaram ao mesmo tempo que renegaram práticas moldadas na relação entre comissões de solidariedade e agências estatais paulistas. Assim, aumentaram os constrangimentos para que regulassem conflitos e reduzissem os assassinatos entre os próprios ladrões (Dias, 2011; Feltran, 2018). Tal como o CV, fonte de inspiração para os paulistas, o PCC se formou como uma rede de apoio e proteção entre presos e seus familiares, galvanizada por ideias e práticas de combate a injustiças cometidas por agentes do sistema carcerário e do judiciário, durante a redemocratização. O PCC, na medida em que ampliou seu poder de controle de mercados de bens roubados, drogas e armas, tornou-se símbolo de novas maneiras de se fazer negócios, de projetos de melhoria de vida (Marques, 2016), além de oferta de serviços de justiça e proteção entre aliados e populações em regiões periféricas (Biondi, 2018). Grandes parcelas destas passaram a reconhecer as detalhadas práticas disciplinares do PCC (Lessing e Willis, 2019) como práticas de justiça. Um dos elementos ressaltados por pesquisadores como distintivo do PCC em relação ao CV, e da figuração criminal paulista em relação à carioca é o papel hegemônico desempenhado pelo PCC em São Paulo, e a atuação do CV em uma figuração mais descentralizada e violenta. No cenário carioca, a competição é marcada pela territorialização do tráfico que gravita em torno dos donos do morro e pela multiplicidade de alianças a distintos coletivos criminais que disputam mercados ilegais na antiga capital federal sem formarem hegemonias (Hirata e Grillo, 2017). Ainda pouco tratada é a expansão dessas redes para o Nordeste e outras regiões do país. A edição deste artigo estava avançada quando da publicação do artigo de Paiva (2019a), e por isso não pude dialogar com ele. e como tais fenômenos têm se mostrado interdependentes de transformações em mercados ilegais e políticas de segurança pública. Ademais, trato como a crescente polarização entre sentimentos de defesa e afeição aos símbolos PCC e CV em Alagoas pressionou a demarcação de uma terceira zona de posição não faccional, referida e autorreferida como “do crime”2 2 Este artigo aborda eventos anteriores às eleições de 2018. Atualmente, parece haver novos desdobramentos, entre os quais se destacam grupos anteriormente aliados a facções, que passaram a defender o não envolvimento faccional, posição expressa em pichações em quebradas maceioenses tais como “É tudo neutro”. .

Inicialmente, proponho um desenho parcial a partir do qual se pode compreender as mudanças no sistema socioeducativo alagoano e o papel das facções em seu funcionamento. Em seguida, trato das mudanças nos padrões de agressividade desses adolescentes, relacionando expressões êmicas, padrões de canalização das agressividades e prestígio no mundo do crime. Tomo como marcador de anterioridade e posterioridade o período das pressões vindas de lideranças do sistema prisional para que os adolescentes no socioeducativo fossem separados por indicação de simpatia às facções, expressas nas ideias de “correr com o PCC ou com o CV”3 3 Repertório vindo com o aumento das redes faccionais em Maceió e no Nordeste, “correr com” expressa simpatia e compromisso daqueles que apoiam ações e lideranças das facções, mas sem serem irmãos ou batizados, o que implicaria mais responsabilidades, mas também maior status entre ladrões e traficantes. Ademais, o senso de “correr com uma facção” expresso nas falas de funcionários e adolescentes, acaba por esfumaçar a condição recente e não estável de tais compromissos, mesmo no interior das unidades faccionalizadas. Permite levantar questões sobre os sensos de alianças e hierarquias expressas nas redes faccionais implicadas em seu crescimento e no rompimento da aliança PCC/CV pós-2016. . Isso começou por volta de 2014, mas foi sedimentado como referência de governo do sistema socioeducativo em finais de 2016.

Aponto como, em um período anterior, padrões de agressividade embutidos em termos nativos como “ser sujeito-homem” e “cabra-homem” estavam entrelaçados a uma figuração mais descentralizada da distribuição do poder criminal. Assinalo que, posteriormente, o encarceramento de jovens crescentemente ligados às facções alterou os equilíbrios de poder entre os adolescentes no socioeducativo, reduzindo relativamente os gradientes de descentralização da regulação dos conflitos daqueles envolvidos no crime.

Entretanto, encontrei um processo distinto daqueles estudados em estados como São Paulo e Rio de Janeiro (Barbosa, 1998BARBOSA, Antonio Rafael. (1998), Um abraço para todos os amigos: algumas considerações sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Eduff.; Feltran, 2012FELTRAN, Gabriel. (2012), “Governo que produz crime, crime que produz governo: o dispositivo de gestão do homicídio em São Paulo (1992 – 2011)”. Revista Brasileira de Segurança Pública, 6, 2: 232–255.; Hirata e Grillo, 2017HIRATA, Daniel Veloso & GRILLO, Carolina Christoph. (2017), “Sintonia e amizade entre patrões e donos de morro: perspectivas comparativas entre o comércio varejista de drogas em São Paulo e no Rio de Janeiro”. Tempo Social, 29, 2: 75–97.; Willis, 2015WILLIS, Graham Denyer. (2015), The killing consensus: police, organized crime, and the regulation of life and death in urban Brazil. Berkeley and Los Angeles, University of California Press.), mas estreitamente dependente deles. A adoção e reelaboração de práticas de regulação de conflitos entre ladrões e traficantes vindas de cadeias e favelas do Rio de janeiro e São Paulo, como tribunais informais mediados por pessoas não diretamente envolvidas nos conflitos – e também expressas em termos tornados nativos como “buscar saber a caminhada”, “resolver da melhor forma”, “esperar vir o resumo” –, pressionaram a uma transformação nas balanças de poder entre grupos e, consequentemente, na figuração dos mercados ilegais em periferias urbanas de Maceió (Rodrigues, 2019RODRIGUES, Fernando de Jesus. (2019), “Mercados ilícitos, ambivalências e agressividade: condições estatais e mercantis de um circuito de bailes de reggae em ‘periferias’ de Maceió, AL”. Contemporânea, 9, 1: 199–227.).

Se, por um lado, parece ter aumentado a percepção de que diferentes tipos de conflitos e assassinatos entre traficantes e ladrões sofreram maiores pressões de regulação por lideranças e redes faccionalizadas, de outro a polarização entre as alianças PCC e CV e as disputas por zonas cujas lideranças se anunciavam como não envolvidas desencadearam um novo redirecionamento das agressividades letais. Nesse contexto, aumentou-se a impressão de guerra “na cidade”, e não apenas em bairros, ruas ou quebradas, homóloga aos movimentos que se desenrolavam em escala nacional (Candotti, Cunha e Siqueira, 2017CANDOTTI, Fábio Magalhães, CUNHA, Flávia Melo da, & SIQUEIRA, Ítalo Barbosa Lima. (2017, março), “Crime e Estado no Amazonas”. Le monde diplomatique Brasil, Sem paginação. Disponível em: https://diplomatique.org.br/crime-e-estado-no-amazonas/, consultado em 03/06/2018.
https://diplomatique.org.br/crime-e-esta...
; Melo e Rodrigues, 2017MELO, Juliana & RODRIGUES, Raul (2017), “Notícias de um massacre anunciado e em andamento: o poder de matar e deixar morrer à luz do Massacre no Presídio de Alcaçuz, RN”. Revista Brasileira de Segurança Pública, 11, 2: 48–62.) e transnacional.

Manso e Dias (2018)MANSO, Bruno Paes & DIAS, Camila Nunes. (2018), A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. São Paulo, Todavia. destacam que entre 2013 e 2014 há uma alteração na intensidade de esforços do PCC para se expandir em diferentes presídios do Brasil, alterando os equilíbrios de força com o CV, coincidente com o aumento de tensões que observei em campo, em Alagoas4 4 O processo de expansão das redes faccionais CV e PCC para Alagoas é marcado por diferentes períodos-chave, desde os anos 1990, que não poderão ser tratados em detalhe. Vale destacar que a presença do CV no mercado atacadista de drogas em Alagoas remonta aos anos 1990. Lastreou-se em alianças com produtores de maconha do polígono constituído por cidades do sertão. Arapiraca, um centro de produção de fumo, é um de seus pontos de escoamento para o Centro-Sul desde os anos 1960. A ida de Fernandinho Beira-Mar para as dependências da Polícia Federal em 2003 e 2005 marca outro momento, facilitando a chegada do crack em Alagoas em 2005 e implicando uma significativa mudança no mercado varejista local. Os acordos de transferências de presos para Catanduvas e outros presídios federais moldaram um dos principais canais de chegada de aliados do PCC e CV a partir de 2006, embora as lembranças de meus interlocutores façam referência à presença de aliados do PCC em Maceió desde ao menos 2003. A estruturação de um sistema penitenciário estadual relativamente organizado (diferente do Amazonas e do Rio Grande do Norte) e alinhado com as políticas nacionais de segurança pública criou um ponto de circulação de presos aliados ao CV e ao PCC nas cadeias alagoanas, reverberando em novos pontos de coordenação criminal nas quebradas. Alguns desses pontos serão mencionados no artigo. Uma das forças de atração das facções a Alagoas é a produção da maconha, com conexões crescentes com o Oeste da Bahia, uma nova frente produtora junto à soja. A química, fornecida pelas facções, integra-se à produção in natura regional, o que redundou na redução da oferta da maconha solta, ampliando-se o consumo nordestino da prensada. . Na mesma senda, desenvolvem-se estratégias para assegurar trânsitos privilegiados de drogas, contrabandos e armas nas fronteiras sul e oeste (Feltran, 2018FELTRAN, Gabriel. (2018), Irmãos: uma história do PCC. São Paulo, Companhia das Letras.), aumentando decisivamente as interdependências entre as lutas por poder nos presídios do Nordeste com as dinâmicas criminais nas fronteiras (Hirata, 2015HIRATA, Daniel Veloso. (2015), “Segurança pública e fronteiras: apontamentos a partir do ‘Arco Norte’”. Ciência e cultura, 67, 2: 30–34. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v67n2/v67n2a11.pdf, consultado em 20/05/2018
http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v6...
; Paiva, 2019bPAIVA, Luiz Fábio Silva. (2019b), “As dinâmicas do mercado ilegal de cocaína no tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 34, 99: 1–19.).

Trato dessa transformação por meio de um registro de campo no sistema socioeducativo de Alagoas. A partir de eventos em torno de um assassinato dentro de uma das unidades, aponto como a recente divisão de alojamentos de acordo com a indicação de simpatia a uma das facções e o reforço do poder de adolescentes com fortes alianças ou vínculos faccionais engendraram eventos não intencionados para os administradores do “sistema”. A relutância de muitos jovens em aceitar as lideranças e práticas de regulação faccionais (em muitos sentidos, os que “corriam com PCC e com o CV” adotavam práticas semelhantes, ainda que guardassem significativas diferenças) expôs as tensões no macrocosmo da cidade no microcosmo do sistema de internação. Além da característica de guerra entre os aliados do PCC e do CV, veio à tona o profundo incômodo de muitos adolescentes em colocar os vínculos familiares abaixo do compromisso faccional, aumentando ainda mais a tensão nas personalidades de alguns dos adolescentes e, por conseguinte, nas quebradas. Isso se expressou numa terceira categoria que circulava como identificação de grupos não alinhados ao PCC e ao CV, não unidos sob uma terceira facção, mas abrigados sob a denominação genérica “do crime”.

Facções e redes faccionais

De início, alguns termos requerem consideração com o intuito de posicionar os limites do que ajudam a compreender. Ideias como as relações de sintonia entre cadeias e quebradas, expansão do sistema de encarceramento e de redes faccionais, regulação ética de procederes “do crime” e dos homicídios surgiram para representar realidades específicas, principalmente em São Paulo (Dias, 2011DIAS, Camila Caldeira Nunes. (2011), Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo, São Paulo.; Feltran, 2010aFELTRAN, Gabriel. (2010a), “Margens da política, fronteiras da violência: uma ação coletiva das periferias de São Paulo”. Lua Nova, 79, 11: 201–233.; Mallart, 2014MALLART, Fábio. (2014), Cadeias dominadas. São Paulo, Terceiro nome.; Marques, 2010MARQUES, Adalton. (2010), Crime, proceder, convívio-seguro: um experimento antropológico a partir de relações entre ladrões. Tese de mestrado. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo, São Paulo.; Willis, 2009WILLIS, Graham Denyer. (2009), “Deadly Symbiosis? The PCC, the State, and the Institutionalization of Violence in São Paulo, Brazil”, in G. Jones & D. Rodgers (Org.), Youth violence in Latin America: gangs and juvenile justice in perspective. New York, Palgrave Mcmillan.). As novidades trazidas pelos pesquisadores, por sua vez, beneficiaram-se do acúmulo de conhecimento em torno da realidade carioca que, uma década antes, era o ponto de referência da discussão socio-antropológica brasileira acerca das relações entre pobreza, mercados ilegais e dinâmicas de sujeição criminal (Barbosa, 2006BARBOSA, Antonio Rafael. (2006), “O baile e a prisão – onde se juntam as pontas dos segmentos locais que respondem pela dinâmica do tráfico de drogas no Rio de Janeiro”. Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria, 9, 15: 119–135.; Misse, 2009MISSE, Michel. (2009), “Trocas ilícitas e mercadorias políticas: para uma interpretação de trocas ilícitas e moralmente reprováveis cuja persistência e abrangência no Brasil nos causam incômodos também teóricos”. Anuário Antropológico, 2: 89–107.; L. A. M. da Silva, 2017SILVA, Luiz Antonio Machado da. (2017), “’Violência urbana’, segurança pública e favelas: o caso do Rio de Janeiro atual”. Caderno CRH, 23, 59: 283–300.; Zaluar, 1994ZALUAR, Alba. (1994), O condomínio do Diabo. Rio de Janeiro, Editora UFRJ.). Facções e redes faccionais, aqui, referem-se a dimensões diferentes de fenômenos interligados pelo aumento das interdependências criminais entre Rio de Janeiro, São Paulo e outras regiões do país, incluindo os heterogêneos estados do Nordeste.

Entre meus interlocutores, facção é um termo que indica tanto uma classificação-nós quanto uma classificação-eles, manuseada para indicar práticas e normatividades políticas, comerciais e de outras dimensões da vida entre aliados do PCC e CV e em relação aos “do crime”, que exibem uma posição “antifaccional”. As distinções entre os procederes de aliados do CV e PCC importam, mas precisam ser ponderadas diante de uma realidade de não hegemonia faccional, como tem sido apontada para a figuração paulista (Feltran, 2012FELTRAN, Gabriel. (2012), “Governo que produz crime, crime que produz governo: o dispositivo de gestão do homicídio em São Paulo (1992 – 2011)”. Revista Brasileira de Segurança Pública, 6, 2: 232–255.) e pelos receios gerados por traficantes locais e regionais de serem mantidos em posições e regimes de tratamento inferiores ou meros instrumentos de um jogo cujas regras não controlam (Lessing, 2017LESSING, Benjamin. (2017), “Counterproductive punishment: How prison gangs undermine state authority”. Rationality and Society, 29, 3: 257–297.; Manso e Dias, 2018MANSO, Bruno Paes & DIAS, Camila Nunes. (2018), A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. São Paulo, Todavia.).

No que tange à regulação comercial e de justiça entre biqueiras/bocas de fumo em Maceió, a figuração é marcada por diferentes grupos locais “não alinhados faccionalmente”, formando redes instáveis de compromissos e governos que, sob condições mutantes, favorecem mudanças nas alianças entre biqueiras/bocas e as facções PCC e CV. Elas chegaram como redes de empreendedores “atacadistas” que hoje buscam conquistar donos de biqueiras e bocas de fumo para operarem dentro de uma ética (Biondi, 2014BIONDI, Karina. (2014), Etnografia no movimento: território, hierarquia e lei no PCC. Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP.; Dias, 2009DIAS, Camila Caldeira Nunes. (2009), “Ocupando as brechas do direito formal: o PCC como instância alternativa de resolução de conflitos”. Dilemas-Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 2, 4: 83–106.; Marques, 2010MARQUES, Adalton. (2010), Crime, proceder, convívio-seguro: um experimento antropológico a partir de relações entre ladrões. Tese de mestrado. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo, São Paulo.) e de uma sociedade secreta de proteção mútua (Feltran, 2018FELTRAN, Gabriel. (2018), Irmãos: uma história do PCC. São Paulo, Companhia das Letras.). Muitas tensões e conflitos decorrentes de tal figuração têm gerado migrações de negócios em biqueiras/boca e de expectativas de apoio e proteção mútuos, de uma aliança faccional para outra5 5 Sejam mudanças de alianças do PCC para o CV ou o contrário, do CV para o PCC. , quando o suporte “de cima” fraqueja. Eventualmente, alguns têm se declarado neutros, recusando o jogo e os comprometimentos de “guerra” (apoio a ataques para tomadas de bocas/biqueiras e formação de redes de proteção mútua) implicados na oposição PCC versus CV. As pretensões de governo de lideranças faccionais, assim, são desdobradas em contextos múltiplos, em uma figuração de não hegemonia.

Assim, as redes de interdependências socio-afetivas (Elias, 1994ELIAS, Norbert. (1994), Teoria simbólica. Oeiras: Celta.) entre esses múltiplos polos criminais formam fluxos de poder e padrões de regulação das emoções distintos daqueles das cidades de onde surgiram, ainda que as identificações PCC e CV expressem padronizações entre práticas criminais e moralidades locais, nacionais e internacionais. O manuseio de símbolos de tratamento, comunicação e comportamento acontecidos nessa recente expansão de alianças faccionais expressa ligações com vias de mão dupla. Elas se entrelaçam a níveis desiguais de acesso a poderes econômicos e simbólicos criminais, engendrando novos padrões de instabilidades nessas redes. Isso ficou claro quando lideranças do PCC liberaram o “batismo” de adultos e adolescentes como uma estratégia para enfrentar o CV, sem seguir as referências normativas até então tidas como obrigatórias no estado de São Paulo (Lessing, 2017LESSING, Benjamin. (2017), “Counterproductive punishment: How prison gangs undermine state authority”. Rationality and Society, 29, 3: 257–297.)6 6 Ver texto de COSTA, F., “Em guerra contra rivais, PCC afrouxa regras de ‘batismo’ para ter cada vez mais membros”, UOL, de 15 de dezembro de 2017, disponível em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/12/15/pcc-afrouxa-regras-de-batismo-para-chegar-a-40-mil-filiados.htm?cmpid=copiaecola, consultado em 24 de março de 2019. . A nova figuração, portanto, criou constrangimentos que alteraram a implementação de ideais faccionais anteriores, desdobrando multiplicidades de regimes normativos, interligados a heterogêneos equilíbrios de poder em nível local, mas indubitavelmente conectados, algo inédito, a pressões de controle e padronização de práticas de justiça e governo “no crime” em planos nacionais.

Em outra dimensão, redes e alianças faccionais são termos adotados como instrumentos conceituais, acompanhando o acúmulo de conhecimento acerca das redes criminais no Rio de Janeiro e em São Paulo. Se a circulação de pessoas, coisas e informações formam sintonias em cadeias e quebradas – não apenas no plano de uma cidade, mas entre estados –, a ideia de rede faccional (Barbosa, 1998BARBOSA, Antonio Rafael. (1998), Um abraço para todos os amigos: algumas considerações sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Eduff.; Mallart e Rui, 2017MALLART, Fábio., & RUI, Taniele. (2017), “Cadeia ping-pong: entre o dentro e o fora das muralhas”. Ponto Urbe, 21: s.p. Disponível em: https://journals.openedition.org/pontourbe/3620, consultado em 04/05/2018.
https://journals.openedition.org/pontour...
; Feltran, 2011FELTRAN, Gabriel. (2011), Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo, Editora Unesp, CEM, Cebrap.; Godoi, 2017GODOI, Rafael. (2017), Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos. São Paulo, Boitempo.) capta as dependências interpessoais que moldam dispositivos e disposições que, por sua vez, engendram padrões de controle social, autocontrole e regulação. Eles ganham expressão na vida de jovens encarcerados e das pessoas de suas redes nas periferias urbanas, além de formarem novos circuitos de cidades e fluxos migratórios. Tais dispositivos estão potencialmente à disposição como referências de justiça e governo, surgidas em figurações homólogas aos movimentos de encarceramento em massa global (Skarbek, 2011SKARBEK, David. (2011), “Governance and Prison Gangs”. The American political science review, 105, 4: 702–716.).

Coletivos criminais e sistema socioeducativo de Alagoas nos anos 2000

Em 2015 ouvi de um experiente fiscal de uma unidade de internação que os adolescentes em Alagoas “não aderiam a facções”. A afirmação encontrava amparo em quase duas décadas de sua atuação no “sistema” como monitor. Observei que, entre 2013 e 2015, adolescentes que mantinham ligações com integrantes ou lideranças locais do CV e do PCC – geralmente sob o papel de aviões ou microvarejistas que compravam de intermediários vinculados a grandes atacadistas – podiam ficar no mesmo alojamento, especialmente se tivessem vínculos de amizade, vizinhança, família ou simplesmente não se conhecessem. O principal aspecto da “gestão da população” era buscar saber de alguma “treta” pessoal, ou “treta de sangue”, quando envolvia vinganças em nome de familiares ou pessoas queridas como um parceiro7 7 Observei a situação de adolescentes cumprimentando ou passando uma mensagem entre alojamentos, aos gritos, referindo-se uns aos outros pelo termo “minha vida”: “Minha vida, ligado naquela fita lá pra eu?” .

O sentimento de representar uma “bandeira criminal” não estava vinculado a impulsos de ação letais. Fatos e identificações associados a rivalidades entre ruas, entre conjuntos habitacionais8 8 De acordo com relatos, brincar em determinados grupos de boi-bumbá era um elemento decisivo na formação de rivalidades (Pajuçara, Rua do Dragão, Rua da Coreia) nos anos de 2000 a 2003. Também há os exemplos das “tretas de sangue” entre famílias dos conjuntos Mutirão 1, 2 e 3 na região do Vergel/Trapiche. ou, ainda, entre homens – envolvendo mulheres, honra de superioridade viril e desavenças entre parceiros – eram o que prioritariamente precisava ser conhecido pela gerência de segurança para alocar um jovem em um determinado alojamento.

Drybread9 9 Drybread (2014) fez investigações em unidades de internação em Alagoas entre 2002 e 2004. apontou que os conflitos interpessoais de “desrespeito” associados ao apego a determinados ideais de “ser-homem”, em oposição a ser “criança”, eram os mais importantes nos atos que redundaram em homicídios cometidos por adolescentes que encontrou encarcerados. Vingança, honra e virilidade se destacavam nos repertórios de valores dos adolescentes (Drybread, 2014DRYBREAD, Kristen. (2014), “Murder and the Making of Man‐Subjects in a Brazilian Juvenile Prison”. American Anthropologist, 116, 4: 752–764.) a partir dos quais resolviam os conflitos entre si. Não reivindicavam normas, no sentido de ritualizarem a exigência de punição com base em critérios de “certo” em tribunais informais e “debates” (Biondi, 2018BIONDI, Karina. (2018), Proibido roubar na quebrada: território, hierarquia e lei no PCC. São Paulo, Terceiro Nome.; Dias, 2009DIAS, Camila Caldeira Nunes. (2009), “Ocupando as brechas do direito formal: o PCC como instância alternativa de resolução de conflitos”. Dilemas-Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 2, 4: 83–106.; Feltran, 2010aFELTRAN, Gabriel. (2010a), “Margens da política, fronteiras da violência: uma ação coletiva das periferias de São Paulo”. Lua Nova, 79, 11: 201–233.; Marques, 2016MARQUES, Adalton. (2016), “Do ponto de vista do ‘crime’: notas de um trabalho de campo com ‘ladrões’”. Horizontes Antropológicos, 22, 45: 335–367.).

Atualmente, está em curso um aumento das invocações de “regras de facção” tanto por jovens que controlam pontos de venda de drogas em bairros de “periferia” quanto por aqueles que ganham poder e respeito como “representantes” de adolescentes encarcerados em unidades de internação, mas não se mostram referências estáveis e consolidadas. Tais regras são enunciadas por muitos deles como normas gerais que devem valer para as pessoas do lugar, mas que efetivamente mantêm relação com a maneira de as pessoas potencialmente se portarem em relação ao mundo do crime.

Os coletivos que gravitam em torno de bocas de fumo e de lideranças em unidades de internação e prisões disputam, com relativo sucesso, a dicção e a aplicação de regras, mas não sem tensões e ambivalências. Tanto dentro quanto fora do sistema de encarceramento cresceu a importância da disputa entre jovens por performatizar a autoridade, visando difundir “procederes” e éticas faccionais como se valessem para “todos” do “território” de biqueiras/bocas aliadas. Tal performatização também pode mirar patrões e lideranças em redes faccionais, buscando suas atenções, visando à aproximação de potenciais aliados faccionais mais estáveis. Assim, uma parcela da invocação de procederes de facção como justificação para ações de implementação de justiça em quebradas não são propriamente expressão de seu enraizamento, mas de uma novidade prestigiosa aos olhos dos jovens. Isso porque muitos casos de cobranças em nome do “certo”, entre aliados do PCC – incluindo decisões pela morte do acusado de uma atitude “equivocada” –, não seguem procederes faccionais em casos que provavelmente seriam observados em São Paulo. Se “sintonizar” as atitudes “dos cabeças” da facção no estado e dos jovens que buscam espaços de crescimento e valor em biqueiras/bocas de fumo locais é parte dos constrangimentos que moldam os mercados ilegais e governos em periferias atualmente, as expectativas de alcance dessa sintonia são bastante variáveis. A experiência de participar de processos de julgamento e execução de uma penalidade, para casos em que os que “dão a voz” e decisão não são os diretamente envolvidos nas querelas, tem soado como uma abertura de horizontes e de canalizações de buscas por justiça. Entretanto, a situação não parece apenas efeito da situação de guerra entre PCC e CV, mas das mudanças em toda a figuração dos horizontes e das linguagens do que seja ordem/desordem nas teias sociais no Brasil.

Uma parte das funções e expectativas de “justiça”, que hoje tem em aliados faccionais uma expressão, estava distribuída entre policiais de baixa patente, que detinham a autoridade territorial em muitas quebradas, atuando em nome de grupos de aliados formados por policiais, comerciantes e lideranças comunitárias. Até o início dos anos 2000 (Majella, 2019MAJELLA, Geraldo de. (2019), Maceió em guerra: exclusão social, segregação e crise da segurança pública. Recife, edição do autor.), lideranças oriundas das polícias militar e civil administravam a punho de ferro os presídios, ainda sob os repertórios de disciplina e punição do período ditatorial, incluindo o sistema socioeducativo. De acordo com Drybread (2014DRYBREAD, Kristen. (2014), “Murder and the Making of Man‐Subjects in a Brazilian Juvenile Prison”. American Anthropologist, 116, 4: 752–764., p. 754), em 2002 “a prisão juvenil, que foi construída para suportar 40 detentos, abrigou 86 internos masculinos entre 12 e 20 anos de idade. A maioria havia sido sentenciada à internação por assassinato, roubo, sequestro ou estupro.” A referência ao tráfico de drogas e às facções é inteiramente ausente na análise, assim como na importância para o governo da unidade, algo que também observei por meio da fala de monitores, pessoas da superintendência, além dos adolescentes que entrevistei e mantive interlocução (F. Rodrigues, 2017RODRIGUES, Fernando. (2017), “Tradições de agressividade, disciplina e sistema de internação de jovens em Alagoas (1980-2015)”. Interseções, 19, 2: 483–513.).

Doze anos depois, em 2017, a situação era bastante diferente. A triagem do “sistema” tinha como principal preocupação saber a localidade do jovem e inferir ou supor a relação entre “seu” território e o senso de pertencimento a uma das duas facções.

Formadas fora de Alagoas, as facções se tornaram “símbolos locais” de alianças de jovens válidas translocalmente nas redes de “periferias” entre cidades alagoanas e de estados vizinhos como Sergipe, Bahia e Pernambuco, ou acompanhando movimentos migratórios para estados como Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Rio de Janeiro e São Paulo, na busca de famílias moradoras de periferias “rurais” e “urbanas” por trabalho, mas também solicitando transferências através de varas de execuções penais e da infância e juventude, para que seus jovens e adolescentes cumpram pena e medida próximos dos familiares.

A partir de 2016, Maceió passaria a ser vista pelos funcionários do sistema de internação também por um critério de divisão de poderes territoriais entre PCC e CV. Tais símbolos se misturam a linguagens anteriores de disputa territorial em bairros populares de Maceió e cidades de Alagoas, reconfigurando suas funções, ao mesmo tempo políticas, representativas e normativas.

Em 2017, o “sistema” já continha algo em torno de 280 jovens. Chegou a encarcerar 300. A comparação com os 87 do início dos anos 2000 nos dá a dimensão da intensidade do encarceramento de jovens em Alagoas. Na linguagem dos números, houve crescimento em torno de 340% em 15 anos. No Gráfico 1, tem-se uma visão sobre o desenvolvimento do número de medidas de internação e semiliberdade no período 2006-2018:

Gráfico 1
Série Histórica: Cumprimento de Medidas Socioeducativas (2006-2018) no Estado de Alagoas

A intensidade do encarceramento parece homóloga à crescente importância das alianças faccionais na regulação da violência e do comércio de drogas e armas nas periferias de Alagoas, mas é indissociável da colocação em ação das políticas de segurança pública que deram forma ao confinamento e às novas formas de circulação de fluxos do crime entre cadeias e quebradas.

O pico de encarceramento entre 2011 e 2012 ocorre logo após o início da implementação do projeto Brasil Mais Seguro10 10 Sobre o programa Brasil Mais Seguro e suas implicações no sistema de justiça, ver A. V. C. da Silva (2017). , iniciado em Alagoas, no primeiro governo de Dilma Rousseff, intensificando o conhecido fenômeno das prisões provisórias. A percepção do encarceramento, entretanto, entre interlocutores remonta à transferência de Fernandinho Beira-Mar para dependências da Polícia Federal em 2003 e 200511 11 Ver texto “Beira-Mar já está preso em Maceió e ninguém na PF comenta os motivos”, Alagoas 24 horas, de 26 de novembro de 2005, disponível em: www.alagoas24horas.com.br/831946/beira-mar-ja-esta-preso-em-maceio-e-ninguem-na-pf-comenta-os-motivos, consultado em 10 de abril de 2019. , ano associado à chegada do crack a Maceió, rivalizando com a maconha. Na sequência, a continuidade da disposição do governo de Alagoas em aceitar experimentos-piloto de políticas de segurança pública federal desemboca na Operação Jaraguá, em 2009. Tratou-se de uma “cooperação” entre forças de segurança nacionais e polícias estaduais de Alagoas (civil e militar), visando aperfeiçoar as técnicas de investigação de homicídios (A. V. C. da Silva, 2017SILVA, Anna Virgínia Cardoso da. (2017), Impunidade como alvo: o ‘Brasil mais seguro’ e a tentativa de (re)organização do sistema de justiça criminal em Maceió. Tese de mestrado. Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas, Maceió.), mas, na prática, reforçou as tendências de prisões provisórias. Posteriormente, viria o “Brasil mais seguro”.

No mesmo contexto em que o governo federal visava lidar com o fenômeno do que as autoridades chamavam de crime organizado no Rio de Janeiro, os governos de Alagoas buscavam uma direção para lidar com o que ficou conhecido como sindicato do crime e gangue fardada (Majella, 2019MAJELLA, Geraldo de. (2019), Maceió em guerra: exclusão social, segregação e crise da segurança pública. Recife, edição do autor.). Em ambos os casos, a alternativa da expansão penitenciária ganhou força. Formou-se uma pressão, a partir de 1999, com novo impulso após 2003, de construção de unidades prisionais no estado, criando novas malhas de circulação e comunicação entre atores de mercados criminais de Alagoas e das redes faccionais cariocas e paulistas12 12 Ver reportagem “Líder do crime de AL é transferido para Catanduvas”, Agência Estado, de 28 de março de 2007, disponível em https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,lider-do-crime-de-al-e-transferido-para-catanduvas,20070328p17534, consultada em 10 de abril de 2019. via sistemas penitenciários e de justiça estadual e federal13 13 Ver reportagem de MELO, D., “Presos de Alagoas são transferidos para Catanduvas”, Gazetaweb, de 24 de dezembro de 2009, disponível em http://gazetaweb.globo.com/portal/noticia-old.php?c=192250&e=, consultada em 10 de abril de 2019; “Bandidos mais perigosos de Alagoas retornam, por ordem da Justiça, para presídio de Maceió”, Agência Tribuna União, de 13 de abril de 2013, disponível em www.tribunauniao.com.br/noticias/28680/bandidos_mais_perigosos_de_alagoas_retornam_por_ordem_da_justica_para_presidio_de_maceio, consultada em 10 de abril de 2019; e “Após ameaças a secretário de Segurança, Estado protocola ofício para transferência de presos”, TNH1, de 4 de abril de 2018, disponível em www.tnh1.com.br/noticia/nid/apos-ameacas-a-secretario-de-seguranca-estado-protocola-oficio-para-transferencia-de-presos, consultada em 10 de abril de 2019. .

Esses novos dutos de circulação trouxeram transformações simultâneas nas figurações locais e nacionais das redes criminais, afetando não apenas o governo, mas a modelagem das emoções nas quebradas de Alagoas. A seguir, busco tratar de uma dessas mudanças, relacionadas à maneira como a trajetória de adolescentes envolvidos no crime nos deixam ver mudanças nas dinâmicas de controles e autocontroles emocionais, embutidas nas pressões por mudanças nas referências de justiça faccionais nas cadeias e quebradas.

Essa figuração alagoana – e nordestina – dá sinais de profundas transformações, merecendo ser tratada não apenas como um problema de política de segurança pública, mas algo que nos orienta sobre as transformações nas bases da organização social no Brasil, colocando os pobres das periferias urbanas sob um dos focos centrais de tais deslocamentos.

Sujeito-homem”, “diálogo” e “saber a caminhada”: regulação dos conflitos e as “novas” identidades “do crime”

Relatando experiências de como se envolveu no crime, um adolescente no sistema socioeducativo de Alagoas rememorou um episódio em que mostrou atitude em uma roda de colegas:

Adolescente: Um garotão desacreditou de mim, falando que eu não tinha coragem, que eu era otário, me tirando: “Ah, você é um frouxo, você não tem coragem de fazer isso com ninguém não.” Eu falei: “Meu irmão, você não fica desacreditando de ninguém.” Ele: “Você não tem coragem não, véi, você tá pagando de doido...”, e eu: “Pagando de doido, é? Fale mais uma vez pra você ver!”, “Ah, eu desacredito de você.” Eu tava com uma faca. [...] Na hora que eu puxei a faca que ele saiu correndo, eu falei: “Eu vou pegar, ele desacreditou, agora vou mostrar que eu faço.” Peguei e saí correndo atrás dele. Ele foi e entrou dentro de casa. Quando ele entrou dentro de casa, que trancou a porta, já meti o pé na porta, a porta caiu, eu já entrei pra dentro. Só que esse garotão, ele não chegou a morrer, não, eu dei três facada nele ainda, eu dei uma assim no peito, e outra pegou do outro lado, no ombro, outra na barriga.

Pesquisador: Mas vocês eram colegas, certo?

Adolescente: Era colega, porque ele ficou desacreditando de mim, tirando o cara como o quê? Que o cara era frouxo, que não tinha coragem de fazer nada, e eu trocando um diálogo com todo mundo ali? Foi esse garotão que veio me tirar pensando que eu era o quê? Querendo me tirar como otário, como comédia? Eu falei: “Eu vou mostrar como o sujeito-homem faz, querendo tirar sujeito-homem?” Aí eu fui e dei essas facadas nele. [...] Eu tinha 15 anos, hoje estou com 17.

Pesquisador: De lá pra cá, você mudaria a maneira de resolver essa situação ou resolveria do mesmo jeito?

Adolescente: Sempre muda, né? Quando é um caso que a pessoa dá pra trocar um diálogo, que a pessoa quer resolver da melhor forma, eu gosto de resolver da melhor forma (Entrevista realizada em 2018).

O adolescente que me concedeu o relato tinha passagem pela Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Casa), em São Paulo, mas era oriundo de uma pequena cidade de um estado vizinho a Alagoas. Apontou diferenças entre sua experiência paulista e aquela no socioeducativo alagoano (precisava mostrar, como recém-chegado, credenciais de respeito, como ter passado por uma cadeia paulista). Chamou atenção o fato de sua fala coincidir com a de outros adolescentes alagoanos sobre o mundo do crime: estava havendo uma mudança na maneira de se resolver os conflitos nos bairros e na cadeia entre os vagabundos que aderiam às alianças com o PCC (mas também, como pude observar, entre os aliados do CV). Outro jovem expressou algo que estava na fala de diferentes adolescentes:

Tem muita gente que não acredita, mas o PCC tá trazendo a paz. [...] Lá no Biu [Benedito Bentes, bairro] mesmo era uma guerra da porra. Depois que o PCC chegou, diminuiu. Tem uns seis anos que chegou no Biu. Quando acontece alguma coisa a gente tem de saber a caminhada (Entrevista realizada em 2017).

A percepção de que o PCC tem contribuído para a diminuição dos conflitos e assassinatos, entretanto, convive com a sensação de aumento da crueldade expressa em mortes associadas à justiça faccional, marcada pela rivalidade contra o CV, que também adota estratégias de regulação dos conflitos em termos de julgamentos conduzidos por pessoas não envolvidas nos conflitos.

Muitos jovens agora se referem às suas quebradas como ilhas, palavra utilizada após a ruptura da aliança PCC-CV, em 2016. Trata-se de uma clara referência ao estreitamento na liberdade de ir e vir pela cidade, decorrente do zoneamento faccional. Ainda assim, o governo do estado de Alagoas tem comemorado reduções nas taxas de homicídios, reivindicando para si o fenômeno14 14 Ver a esse respeito texto de VIANA, P., “Alagoas tem menor número de homicídios no primeiro trimestre em 10 anos”, Correio dos Municípios, de 4 de abril de 2018, disponível em www.correiodosmunicipios-al.com.br/2018/04/alagoas-tem-menor-numero-de-homicidios-no-primeiro-trimestre-em-10-anos, consultado em 15 de junho de 2018. .

Dos relatos, destaco que mostrar apenas ímpeto e força como expressão de honra não parece ser mais suficiente para angariar respeito no mundo da malandragem. “Saber dialogar”, “buscar resolver da melhor forma”, “conhecer a caminhada” para tomar a decisão de “cobrar” expressam um repertório de posturas que ganha crescente valor em espaços cada vez mais interligados por alianças faccionais em regiões de Maceió e do Nordeste, como pude observar pelos trânsitos de garotos de outros estados pelo socioeducativo alagoano.

Vale ressaltar que o estado de Alagoas é indicado em reportagens jornalísticas como o quarto em “membros”15 15 Trata-se de uma nomenclatura usada pelos jornais com base em informações da inteligência do Ministério Público paulista, mas não são claros os fundamentos dos termos e da contagem. do PCC, ficando atrás apenas do Ceará na região Nordeste16 16 Ver reportagem “Alagoas é o quarto no País em número de membros do PCC”, Gazetaweb, de 19 de janeiro de 2017, disponível em http://gazetaweb.globo.com/portal/noticia.php?c=25942, consultada em 20 de abril de 2018. . É também apontado como um dos lugares nos quais os conflitos são mais violentos, efeito das disputas associadas às fortes presenças do PCC e do CV, tornando-se os principais símbolos de mobilização criminal no estado.

Tal movimento mudou as lógicas de poder e as maneiras como os internos as expressam, alterando os gestos de governo e de apresentação de si diante das equipes técnicas e de segurança. A balança passou a pender para os que exerciam posições como patrões ou pequenos funcionários bem-conceituados em bocas de fumo e biqueiras vinculadas a redes faccionais, onde parece aumentar a exigência de um (in)tenso equilíbrio emocional que suporte as habilidades sintetizadas na ideia de “resolver da melhor forma”, na qual são tensionadas a busca por “saber a caminhada”, “ter um bom diálogo”, “esperar vir o resumo” (decisão) e, apenas assim, “cobrar” (punir com violência). Tais insígnias de liderança reposicionam o papel de antigas posturas de buscar o respeito da malandragem performatizadas em gestos masculinos encarnados nas compreensões nativas do “cabra-homem” ou “sujeito-homem” (Drybread, 2014DRYBREAD, Kristen. (2014), “Murder and the Making of Man‐Subjects in a Brazilian Juvenile Prison”. American Anthropologist, 116, 4: 752–764.).

Diferente de pensar um modelo linear em que uma postura substitui a outra, assinalo um processo com intensas ambivalências, decorrentes de como os indivíduos dependem afetivamente uns dos outros, em diferentes níveis e dimensões, algumas delas conflituosas entre si. Entretanto, mesmo considerando tais conflitos, apostamos na possibilidade de observar algumas tendências definíveis na direção das redes interpessoais (Elias, 1994ELIAS, Norbert. (1994), Teoria simbólica. Oeiras: Celta.). Uma delas, que se mistura a diferentes planos de dependências mútuas, refere-se a alterações nas maneiras de se resolver conflitos no mundo do crime implicadas à profunda penetração das formas de agir ligadas à expansão de alianças e conflitos faccionais em escala nacional e internacional.

Destaco que a exigência de seguir maneiras de resolver conflitos a partir de consultas a lideranças e diálogos entre parceiros, associados ao crescente poder de alianças faccionais, tem enfrentado polos de poder organizados de formas distintas das existentes nas condições de desenvolvimento do PCC em São Paulo ou do Comando Vermelho no Rio de Janeiro. A própria explicitação da rivalidade em termos de “ruptura da aliança” entre o CV e o PCC parece expressar uma singularidade dos equilíbrios de poder no Norte e no Nordeste, fazendo com que os significados de assumir sensos de fidelidade faccional tenha desdobramentos distintos em Alagoas, assim como em cada estado do Nordeste. Pressões para se reconhecer uma imagem de grupo faccional, atrelada a normatizações para não se matar aliados, convivem com constrangimentos para eliminar os inimigos “de facção” e resoluções de tretas de sangue “locais”. Tal rede de interdependências implica para os envolvidos pôr em questão antigas tradições de fidelidade, que, entretanto, continuam a impulsionar pensamentos e gestos, fazendo o crime ser estruturado sob novos atravessamentos afetivos além de renovados horizontes de mundo.

Além do contexto de concorrência aberta entre os simpatizantes do PCC e do CV por controle territorial e fidelização entre varejo e atacado, um dos efeitos não intencionados dessa nova ordem foi o acirramento de tensões entre lideranças aliadas de facções e adolescentes que não estavam propensos a seguir a “voz” de aliados faccionais nem assumir seus repertórios normativos e punitivos. Em alguma medida, tais posições são homólogas às resistências oferecidas por antigas lideranças-traficantes de determinados bairros de Maceió ao estabelecimento de alianças com lideranças faccionais (do PCC e do CV) locais e regionais.

A mudança da enunciação do “crime” diante da anunciação das facções

Após novembro de 2016, o sistema socioeducativo de Alagoas se vê pressionado a levar em conta os vínculos faccionais dos adolescentes como critério de triagem para o direcionamento deles aos alojamentos. Acompanhei as reações dos administradores do socioeducativo às pressões de lideranças prisionais faccionalizadas, quando parte dos gestores relutava em crer na presença das facções e reconhecer seus poderes de “regulação do crime” e de impor divisões nos alojamentos.

De outro lado, travava contato com evidências de violações decorrentes de se colocar socioeducandos com diferentes vínculos faccionais em um mesmo alojamento. Adolescentes vinham até as equipes técnicas machucados e, com receio de retaliações mortais, não informavam às equipes o que estava se passando. A necessidade de os adolescentes exporem o problema veio à tona à medida que os conflitos entre o PCC e o CV se tornaram insuportáveis para os que não queriam seguir nem com uma nem com outra “facção”, até a ruptura da “aliança” em agosto de 2016.

O fenômeno da divisão entre jovens por senso de fidelidade a facções e a crescente oposição entre eles não pareciam nítidos aos olhos das equipes e dos administradores. Daí o ultimato dado por lideranças prisionais faccionalizadas, acatado pelo sistema prisional e, depois, pelo socioeducativo, de que os adolescentes “tinham” de ser separados, “senão muita gente ia morrer”.

Conforme as facções se tornavam símbolos de afeição, cuidado e justiça, muitos jovens traficantes, não sem ansiedade, lançaram-se em sucessivas batalhas por ocupação territorial pleiteando atuação exclusiva de seus aliados e também para chamar atenção de lideranças faccionais em busca de alianças que fortalecessem suas posições. Tal temporada de “oportunidades para expansão e crescimento” esteve associada à política estatal de extermínio de personagens do crime que não estavam vinculadas às facções e que lideravam o crime no âmbito local. Tais lideranças atuavam em regiões circunscritas dos bairros, formando entre si uma figuração com alto nível de descentralização na organização do tráfico. Cada região tinha sua própria dinâmica de conflito, concorrência e assassinatos. A retirada de tais lideranças das lutas por espaços nos mercados de drogas nos bairros coincidiu com o aumento do trânsito de lideranças prisionais pelos sistemas carcerários estadual e federal e com a migração de aliados faccionais do Centro-Sul do Brasil. Assim, uma grande parcela de jovens viu a oportunidade de crescer no crime, aliando-se com membros e irmãos de coletivos criminais tais como o CV e o PCC.

Os equilíbrios de poder em presídios federais e estaduais se tornaram, assim, interdependentes dos governos locais do crime em Alagoas. Tais ligações vinham à tona através de pressões para se criar uma “fidelização” entre atacado e varejo de drogas e armas. Parcialmente, estavam ligadas a patrões, alguns deles, adolescentes e jovens que, mesmo maiores de idade, “deviam” pena no socioeducativo. Isso retroalimentou um fluxo de pessoas entre o sistema prisional e as unidades de internação. Com a política estadual de eliminação de lideranças do tráfico circunscritas aos bairros, abriu-se uma temporada de guerra para adolescentes e jovens destemidos, muitos deles angariando força para tomar bocas de fumo e ter maior papel no mercado de drogas através de alianças com lideranças faccionalizadas.

No final de 2016, após a ruptura da “aliança” PCC-CV, houve um intenso movimento de expulsões e fugas de adolescentes e suas famílias das casas onde moravam, em diferentes bairros e cidades do interior de Alagoas, favorecendo amplas e invisíveis evacuações, rompendo redes de amizade e de vizinhança. Isso redefiniu inteiramente as fronteiras e imagens de grupo de crianças, adolescentes e jovens que passaram a ter um protagonismo tanto na política quanto na economia do crime.

Relacionado a esses esforços de demarcação de poderes territoriais entre aliados do PCC e do CV tem emergido um senso de imagem-de-nós expressivo do esforço de grupos adolescentes e adultos para se distanciar tanto dos símbolos de uma “facção” quanto da outra. São os “do crime”, como enfatizou um jovem, diante da minha insistência inicial em tentar entender se ele estava próximo de uma ou outra “facção”:

Pesquisador: Então, vamo lá... Nos lugares onde você [...] vendia droga, era coligado com o PCC ou era mais autônomo em relação ao PCC?

Adolescente: Não, oxe, era... Era o crime, véi! [...] É o crime, véi! PCC é facção, nóis é o crime, véi. É o crime! (Entrevista com adolescente em unidade de internação, realizada em 2015).

Os jovens que não se sentiam representados ou não desejavam “correr junto com a facção” no interior da unidade, acatando ordens e performatizando rituais de assunção de vínculos faccionais, passaram a ser vistos com desconfiança, “perdendo o convívio”17 17 O termo significa estar sujeito ao isolamento e a agressões, incluindo aquelas relacionadas a ordens de assassinato dentro das unidades. .

No final de 2017 e no início de 2018, desencadeou-se a criação de novas unidades, em uma escala até então inédita, visando separar jovens que “perderam o convívio” tanto na unidade “CV” quanto na unidade “PCC”. Eles não poderiam ser transferidos para unidades associadas à “facção rival”, uma vez que seriam vistos simplesmente como inimigos que deveriam morrer.

Assim, criou-se um paradoxo. Jovens inicialmente alocados em unidades por associação entre o bairro de moradia e a facção dominante onde habitavam os adolescentes não tinham mais convívio nem nas unidades que concentravam adolescentes e jovens aliadas ao PCC e nem naquela aliada ao CV.

Havia, ainda, o prédio no qual se costumava alocar internos sentenciados por estupro ou algum homicídio fora do tráfico e do roubo, que gerasse ojeriza. Nenhum deles queria ser deslocado para lá e virar foco de fofocas que circulam entre as unidades, correndo o risco de serem rotulados como “lomba errada”, alcunha para estupradores e traidores. Uma vez que passassem por aquela unidade, mesmo que temporariamente, poderiam ser mortos quando “chegada a informação” e dada a “voz” por lideranças a partir de “diálogos” e “resenhas” dentro da unidade.

Assim, em quatro anos (2015-2018), a estrutura do socioeducativo sofreu alterações em seu funcionamento por pressões vindas de lideranças criminais faccionalizadas. Primeiro, a necessidade de separar jovens por vínculos faccionais, o que gerou um efeito não intencionado: o aumento das tensões entre lideranças aliadas de “redes-facções” e adolescentes que não queriam “correr junto” nem com os aliados do CV nem com aliados do PCC. Isso desencadeou a necessidade de criar novos espaços de encarceramento, considerando dois critérios: ter ou não ter disposição para aceitar a regulação e justiça de lideranças faccionais e saber qual facção controlava o lugar de moradia do jovem, uma vez que aqueles que haviam “perdido o convívio” em unidades diferentes, uma ligada ao CV e outra ao PCC, dificilmente poderiam ser deslocados para uma mesma unidade. Criou-se uma nova zona disposicional de tensões, compreendidas pela superintendência como problemas de gestão do sistema socioeducativo.

Assassinato na unidade: afeição e repulsa às facções

Em uma segunda-feira, recebo ainda de madrugada ligações e mensagens de WhatsApp que apenas veria pela manhã. Era uma funcionária de uma das unidades de internação. Ao lê-las nas primeiras horas da manhã, senti-me preocupado e um tanto culpado por não ter visto as ligações durante a madrugada. Os textos informavam a morte de um adolescente em um alojamento de uma das unidades que costumo frequentar e entrevistar. Imediatamente, retornei a mensagem. Demonstrando decepção, surpresa e horror, a funcionária relatou que dois adolescentes assassinaram um terceiro. Havia entrevistado os dois adolescentes acusados do ato, não o jovem que fora assassinado. No início da manhã, a notícia do fato estampava cantos em sítios de notícias. Um deles informava:

Adolescente é encontrado morto na Unidade de Internação em Maceió

Corpo estava com sinais de enforcamento e agressão. Dois adolescentes foram encaminhados para a Central de Flagrantes da Polícia Civil.18 18 SANCHES, C. “Adolescente é encontrado morto na Unidade de Internação em Maceió”, G1 Alagoas, de 9 de outubro de 2017, disponível em https://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/adolescente-e-encontrado-morto-na-unidade-de-internacao-em-maceio.ghtml, consultado em 20 de abril de 2018.

Para confrontar a narrativa do portal de notícias, tive de esperar dois dias, pois me encontrei atribulado na universidade. Assim que possível, coloquei-me a par do acontecido a partir das percepções dos funcionários e do acompanhamento aos atendimentos pela equipe técnica da unidade em que o adolescente fora assassinado. Os adolescentes, nos dias seguintes, agiam como se não soubessem do fato.

Após o brutal episódio, mais três jovens seriam transferidos em menos de duas semanas por terem sido focos de “malícias” e “diálogos” em torno de lideranças adolescentes na unidade. Dias depois, houve um grande remanejamento de jovens e dos territórios das unidades. Semanas depois, unidades foram criadas, estabelecendo-se novas divisões entre adolescentes. Um movimento singular estava acontecendo dentro e, provavelmente, fora das unidades, pois os casos envolviam a chegada de novatos.

Tudo parece ter começado com a necessidade de uma transferência urgente do adolescente assassinado de uma unidade criada inicialmente para abrigar os “sem convívio”. Entre os adolescentes aprisionados em alojamentos associados ao CV e ao PCC, os indivíduos que passam pela unidade dos “sem convívio” podem ser rotulados como “lomba errada”, alcunha identificadora para estupradores, “talaricos” – aqueles que “dão em cima da mulher dos parceiros” – ou, ainda, “viados que não sabem se conter”.

O adolescente assassinado havia sido transferido para a USC19 19 Nome fictício. (unidade inicialmente criada para os “sem convívio”) porque já havia perdido o convívio na UI-6620 20 Nome fictício. , unidade que, após as grandes transferências e remanejamentos no início de 2017, passou a ser uma unidade “CV”.

Independente de um jovem estar efetivamente aliado a uma facção, cada adolescente seria direcionado para uma unidade com representantes da facção reconhecida como controlando o tráfico e dimensões da “justiça” do bairro ou localidade onde vivia o adolescente. Estabeleceu-se, assim, uma extensão de algumas formas de autoridade territorial de regiões “de periferia” para as unidades de internação.

No caso do jovem assassinado, alguns aspectos se destacaram nos sucessivos processos de remoção. Ele havia sido destinado à UI-66, que é liderada por aliados do CV, pelo fato de ele ter sido aliado dessa facção e sua quebrada “ser” CV. Ele perdeu o convívio por razões pouco claras. No entanto, o pai do adolescente, recluso em uma unidade prisional em uma cidade do interior, estaria “correndo com o PCC”.

“Correr com a facção”, como antes mencionado, não significa ser “batizado”, “irmão” ou “primo leal”, mas uma indicação de aliança circunstancial. Ela pode ser estabelecida por vínculos fraternais entre um indivíduo que está chegando e outro que já está preso em uma unidade prisional ou do socioeducativo. Entretanto, conforme é associado a uma rede de aliados faccionais, cria-se uma obrigação negativa, a de não correr com aliados da facção rival. Uma vez encaminhado ao sistema penitenciário ou ao socioeducativo, uma parcela dos encarcerados procura indicar uma unidade em que estejam amigos, parceiros ou conhecidos, na expectativa de não estar só, ter aliados e não cair em uma unidade “dos alemão”. Os vasos comunicantes (Godoi, 2010) entre as famílias, parceiros e inimigos dos jovens nas “periferias” e os jovens e adolescentes presos nas unidades são decisivos para que os que estão chegando pela primeira vez ao sistema formem sua visão sobre que indicações dar para que a equipe de triagem os aloque para a unidade que espera. Tal expectativa, após a aceitação do sistema da divisão das unidades por sensos de vínculos faccionais, tende a se converter em dever de respeito às lideranças prisionais ou do socioeducativo que agora costumam ser os aliados das respectivas facções. Essa é uma tendência cada vez mais forte, mas como parte de um processo em curso, cheio de ambivalências e reversões21 21 Há muitos casos de quebradas ligadas a uma facção que, devido à falta ou à presença de apoio, mudam de aliança, indo do PCC para o CV ou o contrário, do CV para o PCC. .

Posteriormente, o jovem teria se afastado do CV, talvez pela “aproximação” do pai com a “facção” rival. Juntam-se a isso os relatos de que o jovem não respondia colaborativamente aos rituais de falas e diálogos dentro dos alojamentos, que tinham a função de constantemente testar e alimentar a hierarquia e o respeito aos disciplinas e o visão.22 22 O disciplina e o visão são funções desempenhadas por adolescentes uns para os outros nas unidades. Também expressam hierarquias. A primeira sinaliza liderança e indica alguém que tem o papel e a “consideração” para chamar uma discussão sobre alguma questão conflituosa surgida entre os adolescentes. O visão tem como principais funções observar e informar, com gritos peculiares, os movimentos que ocorrem na unidade, especialmente os de entrada e saída de pessoas pelo portão. Esse é um aspecto decisivo das alterações sofridas nas dinâmicas internas das unidades.

Assim, quando os monitores perceberam a perda de convívio do adolescente, expressa em “malícias” e “vozes”, funcionários do sistema decidiram transferi-lo para a USC, a unidade dos “sem convívio”. Tal tipo de transferência – por perda de convívio – tornou-se frequente, de forma que causou um efeito não intencionado. Acumulou-se uma quantidade de adolescentes que perderam o convívio na UI-66 (Unidade CV) por razões diferentes das que anteriormente justificariam tais transferências. Não se tratava de “lombas erradas”, “talaricos” e “viados”. Juntou-se uma quantidade significativa de adolescentes de bairros associados ao CV mas que, por diferentes razões, não mais “corriam com o CV” e “receberam a voz” para serem “cobrados” pelas lideranças aliadas do CV. Gradativamente, a unidade dos “sem convívio” ficou associada à presença de jovens do CV, mesmo que o vínculo anterior com alguma facção tenha se mostrado bastante impreciso.

Assim, quando o jovem perdeu o convívio na USC, criou-se um impasse. Para onde levá-lo? Em meio a sensos de urgência com a iminência de o jovem sofrer alguma agressão física mortal, resolveram enviá-lo à UI-7723 23 Nome fictício. , uma unidade associada ao PCC. Ele perdeu o convívio nas unidades que tinham aliados do CV, e a USC acabara de se tornar uma unidade híbrida com “lombas erradas” e oriundos de bairros controlados pelo CV.

Acredito que o adolescente ter indicado que o pai estava vinculado ao PCC favoreceu a escolha dos funcionários por uma unidade cuja “voz” era dada por aliados do PCC. As alternativas se estreitavam com muita rapidez, pois ele estava “marcado” na nova unidade. De acordo com relatos, já na UI-77 (“Unidade PCC”) ocorreu uma breve conversa entre o jovem assassinado e outro adolescente na volta ao alojamento após uma quadra. “E aí? Como está?” “Tranquilo. Sossegado, meu pai está preso em Arapiraca. Ele corre com o 15 [PCC].”

O adolescente assassinado era um recém-chegado à unidade e precisava dar um sinal de que poderia ter convívio. Deu a credencial que poderia reduzir desconfianças e aumentar sua aceitação. Já havia se afastado do CV, segundo relatos, mas isso não seria suficiente para mostrar convívio. Indicar um parente “correndo com o PCC”, especialmente o pai, pareceu-lhe valioso e adequado. Nas entrevistas com a equipe técnica teria afirmado que tinha convívio, que estava tudo tranquilo e que não estava sofrendo nenhuma ameaça.

No dia anterior ao assassinato, os adolescentes esboçaram cânticos de facção e batidas nas portas dos alojamentos, um sinal de que alguma ação coordenada poderia ser desencadeada por representantes dentro da unidade. Entretanto, o fiscal e a equipe de monitores do dia teriam interrompido o que seria o início de alguma ação organizada. O fiscal ameaçou colocar o nome de todos que estivessem “fazendo bagunça” no livro da unidade, além de abrir um CAD (procedimento do Comitê de Avaliação Disciplinar), algo que pode repercutir no aumento do período de internação se anexado ao processo do adolescente. Cessaram os cânticos e nada de extraordinário aconteceu no dia. O que pareceu uma desistência dos jovens de perpetrarem o assassinato mantém relação com as relações de respeito e cumplicidade não assumida entre adolescentes e determinadas equipes de monitores. Eles têm suas preferências por comprometer ou prejudicar um fiscal ou equipe de funcionários, por se sentirem mais respeitados e serem mais ouvidos por algumas equipes mais que outras, contra as quais alimentam antipatias. Perder um canal de diálogo com os funcionários mais dispostos a ajudá-los pode significar aumentar o veneno.

No turno seguinte, entretanto, algo por volta das 19 horas, iniciaram novamente canções e batidas de mãos e pontapés contra as portas. Isso foi assinalado como um dos motivos de os monitores não terem observado o desenrolar dos eventos. Entretanto, outros funcionários, em conversas informais, afirmaram que pessoas ouviram um grande estrondo e vozes. Tais informações circulam em um circuito de rumores contraditórios, uma vez que o expediente de boa parte dos funcionários termina às 17 horas. Uma televisão e um ventilador teriam sido utilizados no assassinato. Ouvi relatos de que os dois jovens teriam esperado o outro adolescente dormir e, em meio às canções, enforcaram-no com lençóis e, após ter desmaiado, jogaram a televisão sobre sua cabeça do alto da cama do beliche superior. Em meio a uma breve luta corporal, os adolescentes acusados do homicídio se utilizaram de peças do ventilador para furar o adolescente que veio a falecer. Segundo relatos, chegaram a arrancar seus olhos. Alguns monitores teriam relatado que os adolescentes falaram em “beber o sangue do morto”.

Os jovens teriam ficado com o corpo do adolescente das 19h30 até a meia-noite dentro do alojamento, quando gritaram pelos monitores. Pouco tempo depois, a funcionária me ligaria, convocada em caráter de urgência, restando as chamadas não atendidas registradas.

A morte do adolescente quebraria a maior sequência de “normalidade” na unidade, considerada a mais trabalhosa e perigosa do sistema, desde novembro de 2016, momento em que duas mudanças ocorrem: o sistema adota a separação dos adolescentes por “sensos de pertencimento à facção” e um novo educador social é indicado para atuar na unidade, ampliando significativamente as comunicações entre monitores, equipe técnica e adolescentes. Acompanhei a rotina da unidade nos dias seguintes à morte, fazendo entrevistas e observações, além de acompanhar atendimentos de equipes técnicas aos adolescentes.

Alguns funcionários perderam seus cargos. Sucederam reuniões e veio à tona o debate sobre as razões de haver aumentado o número de casos de “perda de convívio” nas unidades. Junto com a questão, emergiram divergências entre os atores sobre como interpretar o problema, como propor soluções e, ao fundo, sobre qual seria a função de cada unidade. Fazia pouco tempo que reconheceram a divisão de adolescentes por sensos de vínculo com redes faccionais e, por fim, viram-se pressionados a realizar novas modificações na distribuição dos jovens nas unidades.

Além da necessidade de separar os jovens por “sensos de pertencimento a facções”, ficou clara a necessidade de separar um novo tipo de jovem: o que “perdeu o convívio”, aquele que não se adaptaria à obediência às lideranças ligadas às redes faccionais e que não eram reconhecidos como “lomba errada”, mas que pertenciam a localidades “governadas” por quem “davam a voz” em nome do PCC e do CV. Em outros termos, mesmo perdendo o convívio em uma unidade faccionalizada, não poderiam ser alocados em uma controlada pela rival, pois continuariam associados à imagem “do alemão”.

De acordo com uma funcionária, dois dos jovens que perderam o convívio na “unidade PCC” e que agora estavam no mesmo alojamento da unidade dos “sem convívio” iniciaram um círculo de orações que, ao final, terminava com a frase: “Sou do crime!”

Tal desfecho exporia a situação atual de conflitos entre redes de adolescentes e adultos expressas por símbolos faccionais que venho acompanhando, com repercussões nas práticas e normatizações do “crime”. Diferente da ideia de que a expansão das alianças faccionais se dá por adesões semiautomáticas, o que tenho observado parece mais bem captado pela ideia de um processo de faccionalização altamente tenso e ambivalente. Se, de um lado, há uma expansão das alianças faccionais, de outro, tal movimento conhece forças opositivas, crescentemente fragilizadas, formando uma figuração que intensifica assassinatos por novas formas de afeição e fidelidade.

O conflito entre redes faccionais pelo controle do varejo em bocas de fumo no Norte e no Nordeste pressionou a uma busca por comprometimento de adolescentes através do reforço a um senso de grupo diferente dos das torcidas organizadas, das gangues de bairro, da família. A ideia de que a facção deve ser uma imagem-de-nós mais importante que outras na integração da identidade de uma pessoa é cada vez mais presente, mas longe de ser aceita unanimemente e sem conflitos. Entretanto, as evacuações e expulsões de bairros implicadas na “guerra” tem um potencial para repercussões de longo prazo, como em outras experiências de guerra (Winnicott, 2005WINNICOTT, Donald Woods. (2005), Privação e delinquência. São Paulo, Martins Fontes.). Alguns de meus interlocutores afirmavam não ser membro da facção identificada com a unidade onde estavam, e uma das justificativas enunciadas se expressava no incômodo com o que estou chamando de pregação da prioridade da facção sobre a família (“Oxe, o cara se quiser ser primo leal ou irmão, precisa em primeiro lugar respeitar a facção, e só depois a família. Pra mim, em primeiro lugar tá a família”).

Ademais, algo que chamou atenção nos relatos foi que os jovens do alojamento acusados do assassinato não teriam tido nenhuma relação anterior com o garoto morto. Algo que abre margem para problematizar sobre as novas formas de tomada de decisão sobre punições nas unidades, cogovernadas pelos próprios adolescentes. Nos dias de visitas das famílias, em festas organizadas pelas equipes nas unidades ou nas oportunidades de lazer, os adolescentes se aglomeram em frente a algum alojamento para dialogar e tomar decisões, estabelecendo, muitas vezes, quem deverá executar a punição, geralmente espancamentos. Tais momentos se mostram decisivos para testar o comprometimento de adolescentes em relação às lideranças e seus aliados na cadeia. Um adolescente que chega à unidade por roubo pode ampliar suas relações de rivalidade, uma vez que seja pressionado e consinta com a indicação de que deva proceder a punição a partir de um “diálogo” na unidade. No caso do assassinato na unidade, não houve consulta a lideranças do sistema prisional, apenas às do socioeducativo, o que gerou rumores de que a “cobrança” poderia gerar punições para os que decidiram e para os que a executaram, uma vez que o pai do garoto “corria com o PCC”.

Tais eventos mostram as instabilidades nos equilíbrios de forças decorrentes da crescente presença das redes faccionais nos mercados ilícitos e nos sistemas de encarceramento, entrelaçadas a uma tendência em curso, mas sem uma direção estável, através da qual os adversários reconheçam “pacificamente” as posições que ocupam. Dois exemplos retirados da pesquisa que conduzo expressam tal faceta da questão. O primeiro, um adolescente que, desenvolvendo-se em meio a instabilidades e privações afetivas, segue o caminho do pai na busca por emprego através das redes familiares e fraternais que hoje ligam Alagoas ao Mato Grosso. Lá, passa a traficar e roubar, aproxima-se de aliados do Comando Vermelho e, fugindo da polícia, retorna a Alagoas, onde seria preso. No socioeducativo alagoano, onde o encontrei, passa a “fechar” com o PCC:

Adolescente: Todo canto que o cara ia tinha um acontecimento pro cara meter bala, daquele jeito. Se o cara não metesse bala, era daquele jeito pro lado do cara.

Pesquisador: E algum policial já quis te matar?

Adolescente: Rapaz, já, em Mato Grosso.

Pesquisador: Em Mato Grosso?

Adolescente: Foi. Só vim pra cá porque os policial queria me matar lá.

Pesquisador: Por conta de que lá?

Adolescente: Porque eu tava roubando muito e traficando.

Pesquisador: Entendi. Mas lá você já teve contato com o PCC, coisa assim?

Adolescente: Só com os cara do CV.

Pesquisador: Só com os cara do CV?

Adolescente: Foi, lá no mundão. Os cara do CV queria que eu roubasse uma camionete, pra me dar 40 kg de maconha, e eu ia roubar, só que eu tinha vindo pra cá. Se eu tivesse lá, tinha roubado.

Pesquisador: Entendi. Mas aqui você tá correndo mais com o lado do PCC ou do CV?

Adolescente: Rapaz, eu tô mais do lado do PCC, véi.

Pesquisador: Entendi.

Adolescente: Tô fechadão (Entrevista realizada em janeiro de 2017).

As unidades de internação se tornaram, desde 2016, um espaço de formação agonística de lideranças sobre ladrões e traficantes, ganhando fama e abrindo-se oportunidades de uma “carreira”. Para parte deles, suas vidas passaram a se projetar em um futuro fora da unidade e dentro da facção (“Quando eu subir, eu vou distribuir celular em todos os presídios”; “quando eu voltar pra minha quebrada, vou ter de voltar pro corre, com o 15, tomar conta das minhas bocas, tenho duas”; “eu não vou voltar pra minha quebrada, não posso, mas o patrão já vai me mandar pra tal cidade”). Tal “ampliação de horizontes” requer algum grau de previsibilidade, não apenas circunscrita ao território de moradia, mas estreitamente associada ao estabelecimento e cumprimento de regras em sua vizinhança, sua quebrada e, claro, fazer-se reconhecido como tendo o poder de exercer a autoridade justificada por tal necessidade.

Conclusão: conflitos nas periferias alagoanas e os novos elos interioranos do Brasil

Os repertórios de “cobrança” e justiça reproduzidos entre adolescentes alagoanos enlaçados no mundo do crime têm sofrido profundas mudanças com a expansão de alianças faccionais. Conflitos entre pessoas e grupos, vinculados às tomadas de boca de fumo, à falta de “respeito” (nos quais “o cara quer ser mais que o cara”), à inveja, a ciúmes ou a vinganças familiares (“cobranças” porque um primo, irmão, tio, pai ou pessoa querida foi assassinada), estão mais pressionados a passar por repertórios normativos e punitivos referidos como “das facções” por adolescentes. Nem sempre essas pressões prevalecem, elas são, inclusive, forças que acirram conflitos e ciclos de assassinatos sem passar por “procederes” faccionais, mas são camadas simbólicas anteriormente inexistentes, e cada vez mais fortes, formando novos equilíbrios ambivalentes de tensões.

Tais “repertórios de justiça” são recentes, seja na capital ou no interior – e, particularmente, no sistema de internação do estado24 24 Diferente de São Paulo, que conheceu um processo de descentralização dos sistemas carcerário e socioeducativo (Marques, 2017; Silvestre, 2012), em Alagoas os adolescentes de qualquer cidade a que estão sujeitos a medidas de internação são direcionados para o complexo da Sumese, situado em Maceió. Tal concentração do cumprimento da medida de internação faz com que as delegacias de cidades do interior exerçam um papel suplementar de encarceramento de adolescentes altamente criminalizados pela atuação no tráfico e no roubo. Naquelas delegacias, diferentemente das da capital, um adolescente pode ficar até dois meses antes de ser encaminhado a uma unidade de internação. Boa parte deles fica algo em torno de 10 a 15 dias. De outra forma, boa parte dos adolescentes apreendidos em Maceió – e que chegam até a delegacia – é geralmente encaminhada no mesmo dia para as unidades de internação. . O aparente paradoxo é que a expansão de tais “mercados” e “referências normativas” está relacionada com a expansão inédita de determinados setores estatais, especialmente a polícia, agentes penitenciários e socioeducativos, não apenas no âmbito estadual, mas também nacional.

Se, por um lado, o aumento da invocação a repertórios normativos de facções está relacionado à expansão de redes criminais “nacionais”, formadas e desenvolvidas em penitenciárias, sistemas socioeducativos e periferias do Rio de Janeiro e de São Paulo, por outro, parece importante compreender o curso singular de tal expansão em Alagoas e nas regiões “periféricas” do país25 25 Nesse sentido, ver Nascimento (2017). .

A expansão “nacional” das facções, ao sinalizar uma mudança massiva nas dinâmicas de conflito e justiça nas franjas mais periféricas entre as periferias de “integração” mercantil e estatal dos mais pobres, pressiona a um olhar não apenas para as facções. Ganha relevo os cursos socio-históricos de ampliação das redes de interdependências dessas periferias regionais com as periferias mais estatizadas e mercantilizadas que outrora foram formadas sob a justificação de seguir as forças mais dinâmicas de modernização de um país, cuja sociodiceia teria como alguns de seus ideais-guia a nação e o estado-democrático do direito (o governo da lei impessoal). Mas se hoje as forças de reprodução de fronteiras e borrões entre o legal e o ilegal estão na base de coordenação de esforços por justiça e “progresso” entre os excluídos-aliados através de redes de apoio criminais, o que significa a disseminação e a reelaboração de ideais de justiça e progresso criminais entre os que estão associados, há mais de um século, à imagem do “atraso civilizatório” do Brasil?

Há sinais muito fortes de que nos encontramos em um novo curso de desenvolvimento das ligações entre pessoas e grupos no país. Tal processo se engendra na redefinição de separações sociais advindas de configurações econômicas, políticas e culturais anteriores. No entanto, os conhecimentos disponíveis encontraram um limite para explicar as condições contemporâneas de “paz”, de lutas, ciclos de assassinatos e de formas de governo no país. Paira a questão de como as figurações contemporâneas se entrelaçaram às frustrações inscritas em repertórios de sonhos anteriores com a “integração” entre indivíduos do Norte-Nordeste e do Centro-Sul sob a forma de um país. O silenciamento dessas esperanças e as frustrações decorrentes não são forças que simplesmente desvanecem.

Assim, os novos equilíbrios de poder urbanos, que repercutem na economia e na justiça dos e para os pobres, pressionam por novas questões. Como o aumento das interdependências inter-regionais através de lógicas mercantis ilícitas (Misse, 2007MISSE, Michel. (2007), “Crime organizado e mercados informais e ilegais”. Estudos Avançados, 21, 61: 139–157.; Telles e Hirata, 2007TELLES, Vera da Silva & HIRATA, Daniel Veloso. (2007), “Cidade e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito”. Estudos Avançados, 21, 61: 173–191.) e das tradições de repressão renovadas pós-redemocratização reconfiguraram alguns desses ideais no âmbito de alianças faccionais?

Seguindo caminhos abertos por Feltran (2010aFELTRAN, Gabriel. (2010a), “Margens da política, fronteiras da violência: uma ação coletiva das periferias de São Paulo”. Lua Nova, 79, 11: 201–233., 2010bFELTRAN, Gabriel. (2010b), “Periferias, direito e diferença: notas de uma etnografia urbana”. Revista de Antropologia, 53, 2: 565–610.), parece fazer sentido – também para a realidade alagoana – falar em “políticas do crime”, complementando-se e conflitando-se, sem planos prévios, a “políticas de estado”, no que tange às tentativas de regulação das agressividades mortais e de gestão da vida periférica. No entanto, parece prudente assinalar que tais políticas apenas podem ser compreendidas a partir de diferentes e conflituosos níveis de interdependências socioafetivas.

Com o estabelecimento de um fluxo de aliados de facções no sistema penitenciário alagoano, movimento que tem algo em torno de 12-15 anos, e com o rompimento da “aliança” entre o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC) em agosto de 2016, abriu-se um novo conjunto de questões para entender os padrões de liberação e contenção das agressões letais em periferias urbanas de cidades de Alagoas.

As margens demarcadas pela ampliação de fronteiras morais e criminais por setores do estado se entrelaçaram às lutas pela implementação de proibições em termos de “certo” e “errado” entre determinados grupos em redes instáveis de alianças que se enunciam como do mundo do crime. O efeito não intencionado das disputas é a característica de guerra transterritorial que as competições assumem, abarcando redes de bairros e cidades da capital e do interior. Observa-se toques de recolher pela polícia e por traficantes aliados de facções, “ataques” a bocas de fumo organizados por grupamentos formados por indivíduos situados em diferentes cidades do estado. Trata-se de ações transmunicipais de “conquista” de bocas de fumo e da ampliação de formas de comércio, especialmente os ligados à diversão, criando novos canais de fluxos de dinheiro. Há, ainda, as lutas e os novos tipos de “acordos” e conflitos entre setores policiais e o “crime” pelo controle de atividades mercantis locais, com expulsões de moradores e fugas de pessoas dos bairros onde foram criados, com amplas repercussões sobre as vidas dos evacuados, especialmente crianças. As polícias continuam a exercer governos sobre o crime, em novos formatos, e serem afetadas pelos governos do crime em escalas inéditas.

Atualmente, a realidade das periferias de Alagoas, como parece ser a de cidades do Norte e Nordeste, tem sido marcada por ambivalentes tensões e dependências mútuas entre aliados do PCC, do CV, coletivos criminais regionais, locais, além de sistemas penitenciários e policiais estaduais e federais. Um fenômeno não visível é o da evacuação e migração em largas proporções de adolescentes e famílias de seus bairros, criando novos movimentos de migração intra e intercidades pelos interiores do Brasil. Eles têm moldado processos de urbanização nos últimos 20 anos e provocam um chamado à reavaliação sobre como temos entendido o desenvolvimento dos “mundos populares e das periferias” após a “redemocratização”, mas colocando ainda mais força na busca por seus pontos de vista e vozes “regionais” a compor as posições de objetivação de tais rumos (Feltran, 2007FELTRAN, Gabriel. (2007), “Vinte anos depois: a construção democrática brasileira vista da periferia de São Paulo”. Lua Nova, 72: 83–114). A questão fica limitada quando olhamos apenas as fronteiras criminais, especialmente quando ficam claros os entrelaçamentos entre ideais de sucesso individual e de mobilização social a nutrir horizontes de jovens ansiosos por sonhos ofertados por empreendimentos e estados. Um dos efeitos não intencionados são as canalizações de lutas “antissistema” em direção a alianças faccionais, aliadas às frustrações da realidade excludente. Acumulam repertórios expressivos de uma política e uma economia política que, na expansão para o Nordeste, fustiga o espectro de um sentimento e uma questão latente e silente nas expansões faccionais: a “questão regional”. Os desejos de “progresso” alimentam a aproximação com alianças faccionais e impulsionam a vida de jovens nas periferias, não apenas das grandes metrópoles, mas de cidades e regiões que acumularam durante o século XX as maiores coberturas de símbolos de rebaixamento social de suas reputações, simbolizadas “no atraso” do Norte-Nordeste. A ampliação das mútuas dependências criminais traz à tona, de maneira inédita, novos repertórios de ação mobilizadora nas periferias inter-regionais, mas por via carcerária e das economias ilegais. As dinâmicas de exclusão acumuladas ao longo de séculos no Brasil se encontraram com dispositivos de encarceramento tão efetivos e, agora, inter-regionais que uma parte das vozes das populações populares e periféricas “brasileiras” se encontra mediada por uma esfera “pública” que tem nas unidades carcerárias câmaras de representação, justiça e comércio, incluindo crédito popular. Quais as tendências de longa duração entre os padrões de controle da agressividade e modelagem de medidas de valor humano implicadas nessas mudanças? Trata-se de uma proposta de agenda.

  • 1
    As siglas se referem aos coletivos criminais Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV), surgidos em prisões paulistas e cariocas em momentos distintos. O CV, em finais dos anos 1970, formou-se em penitenciárias onde haviam misturado presos “políticos” e “comuns”. A coexistência entre esses grupos favoreceu alianças, além de compartilhamento de ideias e práticas, visando reduzir os conflitos e aumentar as redes de proteção entre presos dentro e fora das cadeias. Tais redes de apoio mútuo teriam assumido novas feições com o crescimento do mercado de cocaína nos anos 1980. Daí decorreram lutas e secessões ocorridas entre aliados do CV ligadas a traições e disputas por fatias desses mercados (Amorim, 1994AMORIM, Carlos. (1994), Comando Vermelho: a história secreta do crime organizado. Rio de Janeiro, Record.; Pengalese, 2008PENGALESE, Ben (2008), “The Bastard Child of the Dictatorship: The Comando Vermelho and the Birth of “Narco-Culture” in Rio de Janeiro”. Luso-Brazilian Review, 45, 1, Special Issue 'ReCapricorning' the Atlantic: 118–145.). Já o surgimento do PCC, nos anos 1990, aparece associado aos desdobramentos de “comissões de solidariedade”, formadas como instâncias de representação de presos diante de autoridades penitenciárias paulistas. As “comissões” foram crescentemente deslegitimadas por agentes do sistema carcerário e de justiça (Alvarez, Salla e Dias, 2013ALVAREZ, Marcos César, SALLA, Fernando, & DIAS, Camila Nunes. (2013), “Das comissões de solidariedade ao primeiro comando da capital em São Paulo”. Tempo Social, 25,1: 61–82.) até o assassinato em massa de presos conhecido como “massacre do Carandiru”, em 1992. Este foi o momento crítico de estímulo à busca pelos presos por novos tipos de alianças visando à proteção mútua. Eles herdaram ao mesmo tempo que renegaram práticas moldadas na relação entre comissões de solidariedade e agências estatais paulistas. Assim, aumentaram os constrangimentos para que regulassem conflitos e reduzissem os assassinatos entre os próprios ladrões (Dias, 2011DIAS, Camila Caldeira Nunes. (2011), Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo, São Paulo.; Feltran, 2018FELTRAN, Gabriel. (2018), Irmãos: uma história do PCC. São Paulo, Companhia das Letras.). Tal como o CV, fonte de inspiração para os paulistas, o PCC se formou como uma rede de apoio e proteção entre presos e seus familiares, galvanizada por ideias e práticas de combate a injustiças cometidas por agentes do sistema carcerário e do judiciário, durante a redemocratização. O PCC, na medida em que ampliou seu poder de controle de mercados de bens roubados, drogas e armas, tornou-se símbolo de novas maneiras de se fazer negócios, de projetos de melhoria de vida (Marques, 2016MARQUES, Adalton. (2016), “Do ponto de vista do ‘crime’: notas de um trabalho de campo com ‘ladrões’”. Horizontes Antropológicos, 22, 45: 335–367.), além de oferta de serviços de justiça e proteção entre aliados e populações em regiões periféricas (Biondi, 2018BIONDI, Karina. (2018), Proibido roubar na quebrada: território, hierarquia e lei no PCC. São Paulo, Terceiro Nome.). Grandes parcelas destas passaram a reconhecer as detalhadas práticas disciplinares do PCC (Lessing e Willis, 2019LESSING, Benjamin & WILLIS, Graham Denyer. (2019), “Legitimacy in criminal governance: Managing a drug empire from behind bars.” American Political Science Review, 113, 2: 584–606.) como práticas de justiça. Um dos elementos ressaltados por pesquisadores como distintivo do PCC em relação ao CV, e da figuração criminal paulista em relação à carioca é o papel hegemônico desempenhado pelo PCC em São Paulo, e a atuação do CV em uma figuração mais descentralizada e violenta. No cenário carioca, a competição é marcada pela territorialização do tráfico que gravita em torno dos donos do morro e pela multiplicidade de alianças a distintos coletivos criminais que disputam mercados ilegais na antiga capital federal sem formarem hegemonias (Hirata e Grillo, 2017HIRATA, Daniel Veloso & GRILLO, Carolina Christoph. (2017), “Sintonia e amizade entre patrões e donos de morro: perspectivas comparativas entre o comércio varejista de drogas em São Paulo e no Rio de Janeiro”. Tempo Social, 29, 2: 75–97.). Ainda pouco tratada é a expansão dessas redes para o Nordeste e outras regiões do país. A edição deste artigo estava avançada quando da publicação do artigo de Paiva (2019a)PAIVA, Luiz Fábio Silva. (2019a), “’Aqui não tem gangue, tem facção’: as transformações sociais do crime em Fortaleza, Brasil”. Caderno CRH, 32, 85: 165–184., e por isso não pude dialogar com ele.
  • 2
    Este artigo aborda eventos anteriores às eleições de 2018. Atualmente, parece haver novos desdobramentos, entre os quais se destacam grupos anteriormente aliados a facções, que passaram a defender o não envolvimento faccional, posição expressa em pichações em quebradas maceioenses tais como “É tudo neutro”.
  • 3
    Repertório vindo com o aumento das redes faccionais em Maceió e no Nordeste, “correr com” expressa simpatia e compromisso daqueles que apoiam ações e lideranças das facções, mas sem serem irmãos ou batizados, o que implicaria mais responsabilidades, mas também maior status entre ladrões e traficantes. Ademais, o senso de “correr com uma facção” expresso nas falas de funcionários e adolescentes, acaba por esfumaçar a condição recente e não estável de tais compromissos, mesmo no interior das unidades faccionalizadas. Permite levantar questões sobre os sensos de alianças e hierarquias expressas nas redes faccionais implicadas em seu crescimento e no rompimento da aliança PCC/CV pós-2016.
  • 4
    O processo de expansão das redes faccionais CV e PCC para Alagoas é marcado por diferentes períodos-chave, desde os anos 1990, que não poderão ser tratados em detalhe. Vale destacar que a presença do CV no mercado atacadista de drogas em Alagoas remonta aos anos 1990. Lastreou-se em alianças com produtores de maconha do polígono constituído por cidades do sertão. Arapiraca, um centro de produção de fumo, é um de seus pontos de escoamento para o Centro-Sul desde os anos 1960. A ida de Fernandinho Beira-Mar para as dependências da Polícia Federal em 2003 e 2005 marca outro momento, facilitando a chegada do crack em Alagoas em 2005 e implicando uma significativa mudança no mercado varejista local. Os acordos de transferências de presos para Catanduvas e outros presídios federais moldaram um dos principais canais de chegada de aliados do PCC e CV a partir de 2006, embora as lembranças de meus interlocutores façam referência à presença de aliados do PCC em Maceió desde ao menos 2003. A estruturação de um sistema penitenciário estadual relativamente organizado (diferente do Amazonas e do Rio Grande do Norte) e alinhado com as políticas nacionais de segurança pública criou um ponto de circulação de presos aliados ao CV e ao PCC nas cadeias alagoanas, reverberando em novos pontos de coordenação criminal nas quebradas. Alguns desses pontos serão mencionados no artigo. Uma das forças de atração das facções a Alagoas é a produção da maconha, com conexões crescentes com o Oeste da Bahia, uma nova frente produtora junto à soja. A química, fornecida pelas facções, integra-se à produção in natura regional, o que redundou na redução da oferta da maconha solta, ampliando-se o consumo nordestino da prensada.
  • 5
    Sejam mudanças de alianças do PCC para o CV ou o contrário, do CV para o PCC.
  • 6
    Ver texto de COSTA, F., “Em guerra contra rivais, PCC afrouxa regras de ‘batismo’ para ter cada vez mais membros”, UOL, de 15 de dezembro de 2017, disponível em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/12/15/pcc-afrouxa-regras-de-batismo-para-chegar-a-40-mil-filiados.htm?cmpid=copiaecola, consultado em 24 de março de 2019.
  • 7
    Observei a situação de adolescentes cumprimentando ou passando uma mensagem entre alojamentos, aos gritos, referindo-se uns aos outros pelo termo “minha vida”: “Minha vida, ligado naquela fita lá pra eu?”
  • 8
    De acordo com relatos, brincar em determinados grupos de boi-bumbá era um elemento decisivo na formação de rivalidades (Pajuçara, Rua do Dragão, Rua da Coreia) nos anos de 2000 a 2003. Também há os exemplos das “tretas de sangue” entre famílias dos conjuntos Mutirão 1, 2 e 3 na região do Vergel/Trapiche.
  • 9
    Drybread (2014)DRYBREAD, Kristen. (2014), “Murder and the Making of Man‐Subjects in a Brazilian Juvenile Prison”. American Anthropologist, 116, 4: 752–764. fez investigações em unidades de internação em Alagoas entre 2002 e 2004.
  • 10
    Sobre o programa Brasil Mais Seguro e suas implicações no sistema de justiça, ver A. V. C. da Silva (2017)SILVA, Anna Virgínia Cardoso da. (2017), Impunidade como alvo: o ‘Brasil mais seguro’ e a tentativa de (re)organização do sistema de justiça criminal em Maceió. Tese de mestrado. Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas, Maceió..
  • 11
    Ver texto “Beira-Mar já está preso em Maceió e ninguém na PF comenta os motivos”, Alagoas 24 horas, de 26 de novembro de 2005, disponível em: www.alagoas24horas.com.br/831946/beira-mar-ja-esta-preso-em-maceio-e-ninguem-na-pf-comenta-os-motivos, consultado em 10 de abril de 2019.
  • 12
    Ver reportagem “Líder do crime de AL é transferido para Catanduvas”, Agência Estado, de 28 de março de 2007, disponível em https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,lider-do-crime-de-al-e-transferido-para-catanduvas,20070328p17534, consultada em 10 de abril de 2019.
  • 13
    Ver reportagem de MELO, D., “Presos de Alagoas são transferidos para Catanduvas”, Gazetaweb, de 24 de dezembro de 2009, disponível em http://gazetaweb.globo.com/portal/noticia-old.php?c=192250&e=, consultada em 10 de abril de 2019; “Bandidos mais perigosos de Alagoas retornam, por ordem da Justiça, para presídio de Maceió”, Agência Tribuna União, de 13 de abril de 2013, disponível em www.tribunauniao.com.br/noticias/28680/bandidos_mais_perigosos_de_alagoas_retornam_por_ordem_da_justica_para_presidio_de_maceio, consultada em 10 de abril de 2019; e “Após ameaças a secretário de Segurança, Estado protocola ofício para transferência de presos”, TNH1, de 4 de abril de 2018, disponível em www.tnh1.com.br/noticia/nid/apos-ameacas-a-secretario-de-seguranca-estado-protocola-oficio-para-transferencia-de-presos, consultada em 10 de abril de 2019.
  • 14
    Ver a esse respeito texto de VIANA, P., “Alagoas tem menor número de homicídios no primeiro trimestre em 10 anos”, Correio dos Municípios, de 4 de abril de 2018, disponível em www.correiodosmunicipios-al.com.br/2018/04/alagoas-tem-menor-numero-de-homicidios-no-primeiro-trimestre-em-10-anos, consultado em 15 de junho de 2018.
  • 15
    Trata-se de uma nomenclatura usada pelos jornais com base em informações da inteligência do Ministério Público paulista, mas não são claros os fundamentos dos termos e da contagem.
  • 16
    Ver reportagem “Alagoas é o quarto no País em número de membros do PCC”, Gazetaweb, de 19 de janeiro de 2017, disponível em http://gazetaweb.globo.com/portal/noticia.php?c=25942, consultada em 20 de abril de 2018.
  • 17
    O termo significa estar sujeito ao isolamento e a agressões, incluindo aquelas relacionadas a ordens de assassinato dentro das unidades.
  • 18
    SANCHES, C. “Adolescente é encontrado morto na Unidade de Internação em Maceió”, G1 Alagoas, de 9 de outubro de 2017, disponível em https://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/adolescente-e-encontrado-morto-na-unidade-de-internacao-em-maceio.ghtml, consultado em 20 de abril de 2018.
  • 19
    Nome fictício.
  • 20
    Nome fictício.
  • 21
    Há muitos casos de quebradas ligadas a uma facção que, devido à falta ou à presença de apoio, mudam de aliança, indo do PCC para o CV ou o contrário, do CV para o PCC.
  • 22
    O disciplina e o visão são funções desempenhadas por adolescentes uns para os outros nas unidades. Também expressam hierarquias. A primeira sinaliza liderança e indica alguém que tem o papel e a “consideração” para chamar uma discussão sobre alguma questão conflituosa surgida entre os adolescentes. O visão tem como principais funções observar e informar, com gritos peculiares, os movimentos que ocorrem na unidade, especialmente os de entrada e saída de pessoas pelo portão.
  • 23
    Nome fictício.
  • 24
    Diferente de São Paulo, que conheceu um processo de descentralização dos sistemas carcerário e socioeducativo (Marques, 2017MARQUES, Adalton. (2017), Humanizar e expandir: uma genealogia da segurança pública em São Paulo. Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP.; Silvestre, 2012SILVESTRE, Giane. (2012), Dias de visita: uma sociologia da punição e das prisões. São Paulo, Alameda.), em Alagoas os adolescentes de qualquer cidade a que estão sujeitos a medidas de internação são direcionados para o complexo da Sumese, situado em Maceió. Tal concentração do cumprimento da medida de internação faz com que as delegacias de cidades do interior exerçam um papel suplementar de encarceramento de adolescentes altamente criminalizados pela atuação no tráfico e no roubo. Naquelas delegacias, diferentemente das da capital, um adolescente pode ficar até dois meses antes de ser encaminhado a uma unidade de internação. Boa parte deles fica algo em torno de 10 a 15 dias. De outra forma, boa parte dos adolescentes apreendidos em Maceió – e que chegam até a delegacia – é geralmente encaminhada no mesmo dia para as unidades de internação.
  • 25
    Nesse sentido, ver Nascimento (2017)NASCIMENTO, Emerson Oliveira do. (2017), “Acumulação social da violência e sujeição criminal em Alagoas”. Sociedade e estado, 3, 2: 465-485..
  • DOI: 10.1590/3510216/2020
  • *
    Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas (Fapeal) e ao CNPq pelo apoio às pesquisas que deram suporte a este texto; processos 60030-000260/2017 e 439179/2018-1, respectivamente. Também agradeço às ponderações feitas pelos pareceristas da RBCS que ajudaram a aprimorar o artigo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    06 Ago 2018
  • Aceito
    09 Set 2019
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