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Feminicídio em cena. Da dimensão simbólica à política1 1 . Este artigo foi redigido durante a realização de estágio pós-doutoral na University of San Francisco, com apoio da Capes.

Through the lenses of femicide: from the symbolic to the political dimension

Resumo

Em março de 2015, a lei n. 13.104/15 instituiu a qualificadora do feminicídio, incorporando-a aos discursos dos/as julgadores/as. Neste trabalho, cabe-nos ressaltar que o campo jurídico-penal é uma das diversas áreas em que se estabelecem complexas relações sociais, portanto, não apenas palco de lutas sociais, mas ele próprio objeto de disputas. Assim, temos por proposta central sistematizar as principais críticas levantadas, até então, sobre a criminalização do feminicídio e, com base nelas, produzir uma reflexão sobre o significado das paradoxais lutas por judicialização no cenário feminista nacional.

Judicialização; Feminicídio; Violência doméstica e familiar contra mulheres; Liberdade

Abstract

In March 2015, the Law 13.104/15 established the qualifying of femicide, incorporating it to judges’ discourses. In this work, we aim to point out that the criminal legal field is one of several areas in settling complex social relations, therefore, this field is not only the scene of social struggles, but it consists itself as an object in dipute. Thus, our central proposal is to systematize the main critics raised, so far, about the criminalization of femicide and, based on them, to produce a reflection on the meaning of the paradoxical struggle for this legalization at the national feminist scenario.

Judicialization; Femicide; Domestic and family violence against women; Freedom

Introdução

Em 2016, ano em que a Lei Maria da Penha completou uma década de vigência, o Brasil sediou a IV Conferência Nacional de Políticas para Mulheres. Esse quadro nos antecipa de modo resumido o panorama que vivemos hoje, em termos de políticas de enfrentamento às violências domésticas e familiares contra mulheres no país. Uma cena em que as estratégias legais e as iniciativas políticas se entrecruzam e, em boa medida, confundem-se, dando origem a novas perspectivas de acesso à justiça (Santos, 1986SANTOS, Boaventura de Sousa. (1986), “Introdução à sociologia da administração da justiça”. Revista Crítica de Ciências Sociais, 21.).

Em março de 2015, viu-se outro momento importante desse contexto tomar lugar – a sanção da lei n. 13.104/15, que instituiu a qualificadora do feminicídio2 2 . A figura do tipo penal, que descreve a conduta correspondente ao crime, é composta por elementos indispensáveis à sua identidade normativa, mas também pode vir acompanhada de circunstâncias que se agregam ao crime, aumentando ou diminuindo suas penas mínimas e máximas. Entre tais circunstâncias, figuram as chamadas qualificadoras, que são circunstâncias que instituem novas margens abstratas de pena a um determinado crime, produzindo verdadeiras derivações frente ao tipo penal basilar. Exemplos de qualificadoras para o tipo base de homicídio (que figura no caput do art. 121 do Código penal brasileiro) são o motivo torpe e o motivo fútil (art. 121, §2º, inc. I e II). . Em seguida à aprovação, veio a sanção pela Presidenta da República, sob a declaração: “Não aceitem a violência dentro e fora de casa. Denunciem, e vocês terão o Estado brasileiro ao seu lado” (Prado, 2015PRADO, Débora. (2015), “Conquista: com sanção presidencial, feminicídio é tipificado no Código Penal brasileiro”. Disponível em http://www.compromissoeatitude.org.br/conquista-com-sancao-presidencial-feminicidio-e-tipificado-no-codigo-penal-brasileiro/. Acesso em 10/5/2015.
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).

Então, diante da proposta de “ter o Estado ao lado das mulheres”, é que se instaura a controvérsia. A alternativa pela criminalização do feminicídio tem suscitado, desde sua sanção, um conjunto de análises que põem em xeque as estratégias empreendidas pelos chamados movimentos feministas brasileiros até então. Ao mesmo tempo, têm-se levantado vozes favoráveis, sob os mais diversos argumentos, aos processos de judicialização (Rifiotis, 2007RIFIOTIS, Theóphilos. (2007), “Derechos humanos y otros derechos: aporias sobre procesos de judicialización e institucionalización de movimentos sociales”. In: ISLA, Alejandro (org.). En los márgenes de la ley: inseguridad y violencia en el cono sur. Buenos Aires/Barcelona/México, Paidós., p. 238), atribuindo, muitas vezes, à dimensão simbólica um viés positivo – de mudança no imaginário cultural.

Neste artigo, cabe-nos ressaltar que o campo jurídico-legal é uma das diversas áreas em que se estabelecem complexas relações sociais e, portanto, é objeto de disputas. Trata-se de uma questão social com significativo conteúdo político e, justamente por isso, envolve questões jurídicas, semânticas e conceituais, entre tantas outras. Nossa intenção é, principalmente, chamar a atenção para algo que parece bastante óbvio, mas que, por vezes, não ganha destaque nas análises: estamos lidando com fatos sociais, imersos nas complexas relações de poder que são parte das estruturas sociais.

Assim, este artigo tem por proposta central sistematizar as principais críticas produzidas, até então, sobre a criminalização do feminicídio e, com base nelas, fazer uma reflexão sobre o significado das ambivalentes lutas pela judicialização no cenário feminista nacional. Pretendemos demonstrar que a criminalização do feminicídio possui um conteúdo que extrapola a sua utilidade simbólica, constituindo-se em instrumento político concreto de enfrentamento às violências de gênero.

Metodologicamente, o trabalho será formulado com base na coleta de boletins e artigos publicados sobre o tema, posteriormente à lei n. 13.104/15. A esses, somar-se-á a revisão legal do processo de criminalização. De um modo geral, a perspectiva da teoria política feminista, formulada por autoras como Rita Segato, Flávia Biroli e Nancy Hirschmann, é fundamental para a construção de nossa lente analítica, como veremos na terceira parte deste artigo. As teorias políticas feministas oferecem uma perspectiva em que as questões sociais são analisadas tanto em sua dimensão individual, quanto em sua dimensão estrutural. Este é um artigo orientado pela epistemologia feminista (Hirschmann, 2003), e será com base nessa perspectiva que também mobilizaremos o referencial teórico neorrepublicano desenvolvido por Philip Pettit. Acreditamos que o conceito de liberdade como não dominação e as consequências normativas para pensarmos as sociedades contemporâneas nos oferecem instrumentos teóricos profícuos para a construção do nosso argumento central que entende como positiva a criminalização do feminicídio e reforça que essa traz não apenas ganhos simbólicos, como também concretos.

Cena 1: do feminicídio “dentro e dora da lei”

A lei n. 13.104/15 tem antecedentes históricos muito específicos, todos relacionados com a luta pela garantia dos direitos das mulheres brasileiras. Ressalvaremos, aqui, sobretudo sua ligação com o processo de efetivação da chamada Lei Maria da Penha, embora reconheçamos, igualmente, sua conexão com reivindicações e processos políticos muito mais longínquos3 3 . Remetemos, para tanto, à leitura da própria epígrafe da Lei Maria da Penha e aos documentos internacionais que a embasam, referidos no texto da epígrafe. . De qualquer modo, reputamos importante enfatizar o processo de concepção, votação e sanção da dita lei, porque é esse o foco do debate aqui levantado.

Nesse sentido, cabe salientar que uma das pesquisas nacionais que deu fundamento para a elaboração e que corroborou para a sanção da Lei Maria da Penha, foi aquela efetuada, em 2001, pela Fundação Perseu Abramo. Em síntese, o levantamento informou que a cada 15 segundos uma mulher sofria violência doméstica e familiar no Brasil (cf. Fundação Perseu Abramo, 2001FUNDAÇÃO Perseu Abramo. (2001), Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado. Disponível em http://csbh.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/pesquisas-de-opiniao-publica/pesquisas-realizadas/projecao-da-taxa-de-espancamento. Acesso em 20/1/2014.
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). Dez anos depois, o mesmo órgão replicou a pesquisa, chegando a patamares não menos preocupantes, de que a cada 24 segundos uma mulher ainda sofria violência doméstica e familiar no país (Fundação Perseu Abramo, 2010FUNDAÇÃO Perseu Abramo. (2010), Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado. Disponível em http://www.fpa.org.br/sites/default/files/pesquisaintegra.pdf. Acesso em 20/1/2014.
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). Concomitantemente a esses levantamentos, o Brasil passou a contar, em 2012, com um mapa especificamente dedicado a contabilizar os homicídios de mulheres (Waiselfisz, 2012WAISELFISZ, Julio Jacobo. (2012), Mapa da violência 2012: caderno complementar 1 – homicídio de mulheres no Brasil. São Paulo, Instituto Sangari. Disponível em http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_mulher.pdf. Acesso em 11/6/2015.
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). Para além dos números, muitos estudos qualitativos, participantes ou etnográficos4 4 . Consultar, por exemplo, Machado (2013). continuam a desnudar as dificuldades no processo de implementação da lei mais conhecida pelo imaginário popular brasileiro.

Desse contexto, enfim, surgiu a justificativa constitucional5 5 . Ver art. 58, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual: “Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação”. para instaurar, no Congresso Nacional, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, conhecida como CPMI da violência doméstica6 6 . Para saber mais a esse respeito, ver Campos (2015). , cujo objetivo era, “no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil e apurar denúncias de omissão por parte do poder público com relação à aplicação de instrumentos instituídos em lei para proteger as mulheres em situação de violência” (Senado Federal, 2012SENADO Federal. (2012), “Relatório final.Comissão Parlamentar Mista de Inquérito: com a finalidade de investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil e apurar denúncias de omissão por parte do poder público com relação à aplicação de instrumentos instituídos em lei para proteger as mulheres em situação de violência.” Brasília, p. 8. Disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=130748&tp=1. Acesso em 14/7/2013.
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, p. 10).

Como síntese das tarefas executadas pela CPMI, formulou-se também um consolidado de propostas de alteração legislativa, notadamente na lei penal e na própria Lei Maria da Penha. Sendo assim, a primeira proposta destacada é para:

Acrescentar o parágrafo 7º ao art. 121, criando a agravante (sic) de feminicídio, como uma forma extrema de violência de gênero contra as mulheres, que se caracteriza pelo assassinato da mulher quando presentes circunstâncias de violência doméstica e familiar, violência sexual ou mutilação ou desfiguração da vítima.

Os desdobramentos seguintes, nas respectivas casas legislativas, foram resultados dos encaminhamentos da CPMI. Não se pode deixar de destacar, contudo, a inegável influência do contexto internacional sobre as políticas locais de enfrentamento, uma vez que, desde a Lei Maria da Penha, as mais diversas modalidades de violências contra as mulheres são expressamente reconhecidas como formas de violação dos direitos humanos (Prá e Eppig, 2012). Imediatamente após a sanção da lei n. 13.104/15 que, simbolicamente, deu-se no dia Internacional das Mulheres (8 de março), a ONU Mulheres (2015)ONU Mulheres. (2015), “Nota pública da ONU MULHERES Brasil: sanção presidencial da lei de tipificação do feminicídio”. Disponível em http://www.onumulheres.org.br/noticias/nota-publica-da-onu-mulheres-brasil-sancao-da-lei-de-tipificacao-do-feminicidio/. Acesso em 27/5/2015.
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parabenizou o Brasil por aquilo que definiu expressamente como um “ato político” que fortaleceu, por sua vez, a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, colocando o país no rol de outras quinze nações latino-americanas que já tipificaram a prática. A Organização dispõe, inclusive, de um extenso documento denominado Modelo de protocolo latino-americano de investigação das mortes violentas de mulheres por razões de gênero (2014), que, em seus próprios termos, “fornece diretrizes para o desenvolvimento de uma investigação penal eficaz de mortes violentas de mulheres por razões de gênero, em conformidade com as obrigações internacionais assumidas pelos Estados”.

Disso se depreende uma postura de ativismo jurídico transnacional (Santos, 2007SANTOS, Cecília Macdowell. (2007), “Ativismo jurídico transnacional e o Estado: reflexões sobre os casos apresentados contra o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos”. Sur: Revista Internacional de Direitos Humanos, 4 (7)., p. 3), como clara tentativa de politizar os direitos humanos. Logo, a mudança que se espera depende da combinação da mobilização jurídica com a mobilização política.

Foi com lastro nesse complexo quadro, portanto, que se iniciou o processo legislativo interno para aprovação da nova lei. O primeiro passo foi a tramitação, no Senado, do projeto de lei 292/13, propondo a alteração do Código Penal brasileiro a fim de inserir o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio.

Cabe lembrar que a Parte Especial da nossa legislação penal, em que estão contidos os crimes em espécie dessa normativa nuclear, inicia-se, com base em uma organização sistemática que coloca a vida como bem jurídico primeiro, justamente com o delito de homicídio7 7 . Para a definição mais acurada de conceitos jurídico-penais tais quais “bem jurídico”, “delito”, ”qualificadora” ou “tipo penal”, sugere-se a consulta do primeiro manual de Direito Penal brasileiro integralmente subscrito por duas mulheres, Prado et al. (2014). .

O art. 121 do código desdobra o homicídio em uma série de possíveis circunstâncias que, por sua vez, podem aumentar ou diminuir a pena abstratamente cominada à pessoa que praticou o crime. Há, portanto, uma estrutura elementar no chamado caput do mesmo dispositivo: o homicídio simples (“matar alguém”), a que se atribui uma margem de pena de reclusão que pode variar entre 6 a 20 anos. Entre as circunstâncias legais previstas, o §2º do mesmo texto arrola as chamadas qualificadoras do homicídio. São situações diversas em que, em virtude dos meios, motivos, modos e fins pelos quais se pratica o crime, há uma reprovabilidade maior associada à conduta do agente, ou há chances evidentemente maiores de que o crime se consuma. Tudo isso produz uma modificação necessária na margem de pena – não mais no patamar de 6 a 20 anos, mas sim de 12 a 30 anos.

A proposta do Senado versava, inicialmente, sobre a inclusão de um novo parágrafo ao dispositivo, que contemplasse o feminicídio como qualificadora do crime, portanto com pena de reclusão de 12 a 30 anos, sob a seguinte delimitação:

§7º Denomina-se feminicídio à forma extrema de violência de gênero que resulta na morte da mulher quando há uma ou mais das seguintes circunstâncias:

I – relação íntima de afeto ou parentesco, por afinidade ou consanguinidade, entre a vítima e o agressor no presente ou no passado;

II – prática de qualquer tipo de violência sexual contra a vítima, antes ou após a morte;

III – mutilação ou desfiguração da vítima, antes ou após a morte [...].

No texto da justificativa, firmada pela CPMI, a lei é apresentada como um ponto de partida para as mudanças necessárias e é apontada como um resultado incontornável da exortação da Diretora da ONU Mulheres, Michele Bachelet, para que os países que ainda não tivessem tipificado a prática do feminicídio o fizessem como forma de enfrentamento (Senado Federal, 2013SENADO Federal. (2013), Projeto de Lei do Senado n. 292, de 2013. Da CPMI de violência contra a mulher no Brasil. Altera o Código Penal para inserir o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Brasília., p. 3).

A proposta seguiu para a Câmara dos Deputados, onde recebeu a denominação de projeto de lei da Câmara 8.305/14 e foi reformulada para que a qualificadora do feminicídio não figurasse apartada das demais, em um novo parágrafo, mas sim constasse como novo inciso do próprio §2º do art. 121, de modo que:

Homicídio qualificado

§2º [...]

Feminicídio

VI – contra a mulher por razões de gênero:

§2º-A. Considera-se que há razões de gênero quando o crime envolve:

I – violência doméstica e familiar;

II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Houve, outrossim, a propositura, que foi incorporada ao texto legal final, de uma outra causa de aumento de pena (de 1/3 até a metade) que pode incidir sobre a pena qualificada, por meio de um novo parágrafo 7º, para os casos em que o crime seja cometido durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto; contra pessoa menor de 14 anos, maior de 60, ou com deficiência; na presença de descendente ou ascendente da vítima.

Depois da sanção, o texto final replicou os exatos termos da proposta da Câmara, a não ser pela relevante supressão do termo gênero (Scott, 1995SCOTT, Joan. (1995), “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade, 20 (2): 71-89, jul.-dez.) que, por sua vez, em todas as referências, foi substituído pela expressão sexo feminino. A Câmara já havia esclarecido essa alternância, em outra ocasião, pontuando que o uso do gênero como critério definitorial vem permitindo aos tribunais pátrios a aplicabilidade eventual da Lei Maria da Penha para homens, especialmente homossexuais. Daí concluiu-se que o melhor seria fazer uso do termo “biológico” e não “social”, em vista da controvérsia que este provoca8 8 . Em 2015, o deputado federal Eros Biondini, do Pros-MG, propôs o PLC 477/15, que substitui, na Lei Maria da Penha (11.340/06), o termo “gênero” pelo termo “sexo”, sob a mesma justificativa, tendo retirado a mesma propositura em 2016, depois de reuniões e negociações com a cúpula LGBT do Estado que representa. .

A lastimável supressão da categoria gênero do texto normativo recém-aprovado, com sua conseguinte substituição pelo “sexo feminino”, também tem fundamento no contexto político. É certo que “além de diferentes formas de interpretar a situação das mulheres em nossa cultura, categorias como sexo e gênero, identidade de gênero e sexualidade são tomadas muito seguidamente no Brasil como equivalentes entre si” (Grossi, 1998GROSSI, Miriam Pillar de. (1998), “Identidade de gênero e sexualidade”. Antropologia em Primeira Mão, 24., p. 12). Entretanto, conforme nos lembra Anne Fausto-Sterling (2001/02FAUSTO-STERLING, Anne. (2001-2002), “Dualismos em duelo”. Cadernos Pagu, 17/18: 9-79. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/cpa/n.17-18/n17a02.pdf. Acesso em 20/6/2010.
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, p. 27), escolher o sexo como critério padrão e enganosamente imutável é, por si só, uma opção social que tende a perpetuar a desigualdade de gênero. O que nos revela que o trabalho da bancada feminina se dá em tom de constante negociata, em um jogo interminável de avanços e retrocessos, sob influência de diferentes agentes, especialmente em uma troca evidente das iniciativas locais e globais. Nesse movimento, os ganhos também devem suportar perdas altamente custosas ao longo do caminho. Sabe-se, contudo, que a medida também teve por vistas assegurar a perpetuação da lastimável lacuna legal na proteção das travestis e das transexuais (El Hireche e Figueiredo, 2015EL HIRECHE, Gamil Föppel & FIGUEIREDO, Rudá Santos. (2015), “Homicídio contra a mulher: feminicídio é medida simbólica com várias inconstitucionalidades”. Consultor Jurídico. Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-mar-23/feminicidio-medida-simbolica-varias-inconstitucionalidades. Acesso em 23/3/2015.
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).

Ademais, utilizar o sexo como critério definitorial do feminicídio é, para além de uma clara tentativa de esvaziamento do seu conteúdo político, também uma transgressão de todo o conteúdo sociológico do conceito que se constituiu muito antes de ele se firmar como categoria jurídico-legal.

Como bem destacou Rita Laura Segato (2006a)SEGATO, Rita Laura. (2006a), “Que és un feminicidio: notas para um debate emergente”. Série Antropologia, 401., o feminicídio é, claramente, um crime de poder, porque retém, mantém ou reproduz uma lógica de poder a que as mulheres estão submetidas. A ideia de território mobilizada por Segato (2006b)SEGATO, Rita Laura. (2006b), “Em busca de um léxico para teorizar la experiencia territorial contemporánea”. In: Politika – Revista de Ciencias Sociales, 2: 129-148, dez. ilustra o sentido de dominação e poder que tais crimes carregam. Segundo a autora, território não é o mesmo que espaço ou lugar, mas refere-se à administração política do espaço, ou seja, território é espaço traçado, delimitado e controlado, seja por um sujeito individual ou coletivo. Portanto, falar em território é falar de relações de domínio e de poder. O feminicídio revela uma ocupação depredadora dos corpos femininos ou feminizados, uma ocupação calcada em um sistema que não só a tolera, como, ao subalternizar o feminino, a promove.

Assim, o território corporal das mulheres é violado para consumar a morte, ou efetivar sua tentativa. O importante é ressaltar que, com base na dimensão de gênero, a conduta toma proporções políticas inegáveis, que permitem um enfrentamento mais incisivo e eficaz, porque compreende a verdadeira natureza de um crime que importa na despersonificação das mulheres. Mortas não pelo que são biologicamente – para usar a mesma definição da Câmara dos Deputados –, e sim pelo que, socialmente, são impelidas a não serem.

Ou seja, o que a concepção do fenômeno feminicídio para a autora em questão quer comunicar é que o corpo das mulheres acaba assimilando todos os reflexos de uma cultura patriarcal que se funda em dois eixos: um eixo assimétrico vertical (que coloca as mulheres em posição de submissão aos homens) e um eixo simétrico horizontal (que relaciona os homens com seus pares e constitui uma lógica social de submissão das mulheres). Essa arquitetura das relações de gênero resvala no espaço mais íntimo da existência humana, que é o corpo. Por fim, nesse sentido, o corpo das mulheres acaba sendo invadido e exterminado pelos pares de um eixo masculino voraz que nele inscrevem a assinatura de uma fratria inteira. Enfim, esse horizonte inteiro é negado pela supressão da expressão gênero e sua substituição pela expressão sexo, no texto legal.

Cena 2: das críticas (in)contornáveis

Foi com base no panorama acima exposto que, imediatamente após a sanção da lei n. 13.104/15, começaram a surgir críticas à falta de técnica jurídica e principalmente à sua representação no cenário de enfrentamento à forma mais extrema de violência contra as mulheres, como uma estratégia vazia e ineficaz.

Um dos textos mais marcantes, desde então, foi escrito por Maria Lúcia Karam (2015)KARAM, Maria Lúcia. (2015), “Os paradoxais desejos punitivos de ativistas e movimentos feministas.” Justificando. Disponível em http://justificando.com/2015/03/13/os-paradoxais-desejos-punitivos-de-ativistas-e-movimentos-feministas/. Acesso em 27/5/2015.
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. Intitulado “Os paradoxais desejos punitivos de ativistas e movimentos feministas”, o artigo principia destacando a sobrevivência da ideologia patriarcal, ainda de forma mais intensa em países da África e Ásia. Prossegue referindo o teor criminalizante da Lei Maria da Penha e chama atenção para a ineficácia desta na redução sistemática do número de homicídio de mulheres desde então. E, com base nas demandas por criminalização do feminicídio, acusa as ativistas e participantes dos movimentos feministas de reforçar a ideologia patriarcal – notadamente com base na decisão do Supremo Tribunal Federal (2012) para que a ação penal, nos casos de lesão corporal leve ou culposa, não requeira a manifestação inequívoca da vontade das mulheres de ver seus algozes punidos – e também por sustentar o espectro punitivista. A análise densa e comprometida que desenvolve na sequência, toma por base princípios conhecidos do campo da criminologia crítica, destacando a falência do sistema penal, sua seletividade e a perpetuação do sofrimento. Afirma, tão logo, que:

Ativistas e movimentos feministas, como outros ativistas e movimentos de direitos humanos, argumentam que as leis penais criminalizadoras têm uma natureza simbólica e uma função comunicadora de que determinadas condutas não são socialmente aceitáveis ou são publicamente condenáveis. Não parecem perceber ou talvez não se importem com o fato de que leis ou quaisquer outras manifestações simbólicas – como explicita o próprio adjetivo ‘simbólico’ – não têm efeitos reais. Leis simbólicas não tocam nas origens, nas estruturas e nos mecanismos produtores de qualquer problema social (Karam, 2015KARAM, Maria Lúcia. (2015), “Os paradoxais desejos punitivos de ativistas e movimentos feministas.” Justificando. Disponível em http://justificando.com/2015/03/13/os-paradoxais-desejos-punitivos-de-ativistas-e-movimentos-feministas/. Acesso em 27/5/2015.
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).

A jurista reconhece que a judicialização pode ser legítima, desde que passe por outras esferas que não a criminal. Compartilhando desse posicionamento, em outro contexto que não o da discussão do feminicídio, Theóphilos Rifiotis já inferia que “a centralidade do jurídico implica uma limitação na busca de intervenção de ‘curto prazo’, e, por vezes, o abandono das políticas de ‘longo prazo’, de outras modalidades de controle social, a ‘minoridade’ e até mesmo a infantilização dos sujeitos sociais” (2006, p. 30). Sobreleva que a intervenção penal do Estado é medida que tolhe as vítimas de seu poder de decisão. Para Vera Regina Pereira de Andrade (2003ANDRADE, Vera Regina Pereira de. (2003) Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre, Livraria do Advogado., p. 17), o que se constata é, portanto, um paradoxo: os movimentos feministas, dos mais progressistas no Brasil e no mundo, ao reivindicarem a criminalização de condutas como as violências domésticas e familiares, reúnem-se com um dos movimentos mais conservadores, que é o de “Lei e ordem”.

No mesmo panorama analítico, a respeito da nova lei, colocou-se também Maíra Kubík Mano (2015)MANO, Maíra Kubík. (2015), “Deveriam as feministas apoiar a criminalização do feminicídio?” Carta Capital. Disponível em http://mairakubik.cartacapital.com.br/2015/03/04/deveriam-as-feministas-apoiar-a-criminalizacao-do-feminicidio/. Acesso em 25/3/2015.
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, em “Deveriam as feministas apoiar a criminalização do feminicídio?”. A autora exalta a função simbólica nominativa da nova lei, porém questiona se a estratégia seria, de fato, compatível com o projeto emancipatório feminista. Para responder à sua própria indagação, faz uso das palavras de Aline Passos, de quem subtrai as considerações de que a lei penal sempre produz sacrifícios caros, apesar de jamais concretizar a proteção que oferece. No contrapeso da afirmação da existência de uns, pondera, o sistema punitivo nega a existência de outros.

Ainda mais inflamada foi a crítica tecida por Eduardo Luiz Santos Cabette (2015)CABETTE, Eduardo Luiz Santos. (2015), “Feminicídio: mais um capítulo do Direito Penal simbólico agora mesclado com o politicamente correto”. Jusbrasil. Disponível em http://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/159300199/feminicidio-mais-um-capitulo-do-direito-penal-simbolico-agora-mesclado-com-o-politicamente-correto. Acesso em 25/3/2015.
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, no texto “Feminicídio: mais um capítulo do Direito Penal Simbólico agora mesclado com o politicamente correto”, publicada no panfleto on-line Jus-Brasil. O autor defende expressamente a incidência de outras qualificadoras do Código Penal brasileiro, como o motivo torpe ou fútil, dispensando-se a criação da nova figura penal. Ao versar sobre a utilidade desta última, deixa clara sua visão:

A grande questão que se impõe é: para que serve então o alardeado “Feminicídio”? E a resposta clara e evidente é: para nada! Após o advento do “Feminicídio” o que melhorará na vida das mulheres em risco de sofrerem violência ou mesmo serem assassinadas por seus algozes? Rigorosamente nada! [...] Essa é base do Direito Penal Simbólico: fingir que não se sabe dessas constatações há tempos disseminadas pela melhor doutrina, pela ciência criminal. Fingir que não sabe o que na verdade sabe e seguir produzindo leis inúteis, mas que rendem para certas pessoas e perante determinados grupos dividendos políticos. Enquanto isso, mulheres e homens continuarão sendo mortos entre 50 mil e 70 mil homicídios/ ano no Brasil.

Por fim, até mesmo a ortodoxa postura do magistrado Rumpelsperger Rodrigues, de Sete Lagoas (MG), conhecido por ter desqualificado a Lei Maria da Penha em suas decisões, considerando-a antiética e contrária aos princípios cristãos, foi retomada pela BBC (Schreiber, 2015SCHREIBER, Mariana. (2015), “Machismo no Judiciário pode limitar impacto da lei do feminicídio”. BBC Brasil. Disponível em http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/03/150307_analise_lei_feminicidio_ms. Acesso em: 15/5/2015.
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), para destacar que alguns representantes do próprio Judiciário entendem que esse tipo de violência atinge indiscriminadamente homens e mulheres.

Esses argumentos não são isolados e são representativos porque traduzem um consolidado de críticas à Lei do Feminicídio que perpassam, sobretudo, uma discussão a respeito: I. Da falência do sistema penal; II. Da presença de um conjunto de falhas técnicas no corpo legal; III. Da ausência de proteção específica aos homens, instituindo critérios desiguais na lei penal.

Passamos, portanto, a tecer algumas considerações a respeito dessas inferências, a fim de perquirir até que ponto são intransponíveis ou não, para, adiante, debater a legitimidade da criminalização do feminicídio, tendo em vista que esse é um fato social imerso em complexas relações de poder nas estruturas sociais e que, portanto, esta dimensão – aquilo que podemos chamar de dimensão política – deve ser iluminada em nossas análises.

Primeiramente, é imperioso firmar nossa concordância com a falência pragmática do sistema penal. Compartilhamos do entendimento de que ele não logra cumprir com sua promessa garantidora, porque viola diversos direitos, em razão da operacionalidade seletiva dos bens jurídicos que opera. Não cumpre, tampouco, com sua função preventiva, porque a pena é incapaz de prevenir ou ressocializar, apenas reproduz a criminalidade e as relações sociais de dominação, com o intento de controlar seletivamente a criminalidade. Enfim, não cumpre, em geral, com sua promessa resolutória, porque não consegue, em boa parte dos casos, sustentar-se como modelo válido de solução de conflitos, excluindo a vítima de uma posição atuante e participativa, causando-lhe ainda mais prejuízos (Andrade, 2003ANDRADE, Vera Regina Pereira de. (2003) Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre, Livraria do Advogado.).

Porém, é preciso lembrar que a inserção da categoria em lei não produziu uma mudança contundente na prática criminalizante, porque, em virtude da supremacia do bem jurídico vida, antes mesmo da inserção da categoria sociológica feminicídio no Código Penal, as mortes de mulheres já eram judicializadas com penas qualificadas, com base em outras disposições preexistentes. Ou seja, no caso do feminicídio, a reivindicação principal era por uma mudança nominativa que contemplasse a existência do fenômeno e produzisse o juízo de valor correspondente no plano legal.

O segundo ponto, e, a nosso ver, um dos equívocos que maculam as leituras dos episódios de violência doméstica e conjugal, é que o sistema penal é desqualificado como solução para o problema. Conforme analisaremos no tópico a seguir, não temos dúvida de que, como solução, esse meio não é – e jamais será – eficaz. Desenvolveu-se, ao longo dos anos, contudo, como uma importante estratégia de enfrentamento mais ou menos eficaz, que tem dado espaço, especialmente na América Latina, a reais possibilidades de desconstrução de paradigmas, a longo prazo, como fez por exemplo a Lei Maria da Penha, ao introduzir, junto de sua diminuta dimensão criminalizante, propostas preventivas e educativas (Machado, 2013MACHADO, Isadora Vier. (2013), Da dor no corpo à dor na alma: uma leitura do conceito de violência psicológica da Lei Maria da Penha. Florianópolis, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina.). Foi, inclusive, desse modo, que as políticas nacionais começaram a substituir o termo combate pelo termo enfrentamento à violência.

No que toca às falhas técnicas, acreditamos que podem ser reputadas à supressão da categoria gênero, com sua substituição pelo sexo. Já discutimos as prováveis motivações de tal estratégia e destacamos que, ao contrário do que se supõe, isso tudo não decorre de uma falta de conhecimento técnico das parlamentares responsáveis pela proposta, pelo contrário, ilustra exemplarmente aquilo a que estamos chamando atenção neste artigo: estamos lidando com fatos sociais complexos, e mais, estamos lidando com sistemas complexos de dominação e poder. A lamentável troca da categoria “gênero” por “sexo” não deslegitima o feminicídio, na verdade, demonstra como houve manobras para diminuir a sua potência, o seu alcance, que vai além de uma posição simbólica.

Do mesmo modo, para finalizar, não merece atenção a afirmativa de que a lei em questão institui parâmetros desiguais entre homens e mulheres. O fenômeno da morte de mulheres por razão de gênero não atinge de modo equivalente os homens, já que mais de 40% do número de morte de mulheres na última década foi perpetrado por companheiros ou ex-companheiros (Waiselfisz, 2012WAISELFISZ, Julio Jacobo. (2012), Mapa da violência 2012: caderno complementar 1 – homicídio de mulheres no Brasil. São Paulo, Instituto Sangari. Disponível em http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_mulher.pdf. Acesso em 11/6/2015.
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf201...
). A proteção dos homens que sofrem condutas equivalentes deve se dar exclusivamente pelos dispositivos já existentes na lei penal.

Cena3: descortinando a dimensão política

Os movimentos e as teorias feministas têm desempenhado um papel fundamental ao descortinar intrincadas relações de desigualdade e assimetrias de poder pautadas pelas desigualdades de gênero e que, por isso, comprometem a igualdade e a cidadania substantivas para todas/os. Na prática, o que as teorias feministas têm feito é demonstrar como complexas redes de relações e estruturas sociais localizam diferentemente os diferentes sujeitos em relações assimétricas de poder e, mais ainda, que tais relações independem, em grande medida, do fato de como os indivíduos exercem ou experimentam individualmente esse poder ao longo de suas vidas (Einspahr, 2010EINSPAHR, Jennifer. (2010), “Structural domination and structural freedom: a feminist perspective”. Feminist Review, 94: 1-19.; Biroli, 2013BIROLI, Flávia. (2013), Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática. Niterói/Vinhedo, Eduff/Horizonte.; Hirschmann, 2003HIRSCHMANN, Nancy J. (2003), The subject of liberty: toward a feminist theory of freedom. Princeton, NJ, Princeton University Press..

Apesar das diferentes ênfases e enfoques, podemos afirmar que as teorias feministas não negam o papel da ação individual e coletiva, ou as possibilidades de autonomia. Entretanto, essas teorias iluminam o fato de que, para tratarmos de temas como autonomia e liberdade, é necessário dar atenção a estruturas e sistemas de dominação e opressão. Quanto menor as disparidades de poder entre as pessoas, mais iguais elas serão e, portanto, desfrutarão das mesmas condições de cidadania.

A teoria política neorrepublicana, principalmente a desenvolvida por Philip Pettit, consolidou, nos últimos anos, uma abordagem fundamentada na busca pela cidadania igual e para todos, como uma teoria para as sociedades contemporâneas e plurais. Embora exista diferença de ênfase e detalhes, a ideia da liberdade como não dominação é o tema crucial e unificador entre aqueles que trabalham dentro do quadro do neorrepublicanismo (Pettit e Lovett, 2009PETTIT, P. & LOVETT, Frank. (2009), “Neorepublicanism: a normative and institutional research program”. Annual Review Political Science, 12: 11-29.).

A ideia de liberdade como não dominação se estabelece como uma alternativa à ideia de liberdade como não interferência, concepção liberal e influente de liberdade. Para o neorrepublicanismo de matriz romana, que é o caso em tela, o oposto de ser livre é ser dominado, e ser dominado não corresponde simplesmente a sofrer interferências, mas sim, sofrer interferências arbitrárias. É possível sofrer interferências, sem com isso sofrer dominação, assim como é possível ser dominado, sem sofrer interferência de fato, portanto o foco dessa perspectiva são as situações de dominação9 9 . O conceito de liberdade como não dominação de Philip Pettit foi desenvolvido em maiores detalhes em Elias, 2014 (entre outros). Recomendamos também Pettit (1997a; 2014a). . Por sua vez, dominação tem sua característica fundamental na ideia de arbitrariedade. Disso decorre que: ser livre, no sentido republicano de Pettit, requer desfrutar de uma esfera de possibilidades de escolhas, sem sofrer controle ou poder arbitrário de outros, ou seja, sem ter que pedir permissão ou ter que responder para outrem sobre suas escolhas.

Certamente, estamos muito distantes dessa realidade, porém, Pettit defende que a liberdade como não dominação deve ser entendida tanto como um ideal a ser perseguido, como uma bússola moral para nos guiarmos e avaliarmos as situações complexas e cotidianas das sociedades plurais contemporâneas (Pettit, 2014aPETTIT, P. (2014a), Just freedom a moral compass for a complex world. Nova York, W.W. Norton & Company.).

Acreditamos que a busca pela não dominação é um caminho bastante profícuo para avaliarmos as ações políticas, sociais e institucionais em sociedades complexas. Philip Pettit deixa a questão clara: esse é um ideal a ser perseguido (2014a), ou ainda, não se trata de uma questão de “tudo ou nada” (Pettit, 1997aPETTIT, P. (1997a), Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford, Oxford University Press.). Neste artigo, mobilizamos este instrumento e ideal: a busca pela não dominação como uma medida bastante pertinente às questões levantadas pelos movimentos e teorias feministas e, ainda, para pensarmos os possíveis ganhos concretos com a criminalização do feminicídio.

O ideal de liberdade de Pettit é ao mesmo tempo alvo de críticas como de elogios10 10 . Este tema é discutido em Almeida e Elias (2014). por autoras feministas. Reconhecemos que o conceito pode ter limites para pensar situações das vidas das mulheres e destacamos a crítica elaborada pela teórica feminista Nancy Hirschmann. Para a autora, o conceito de liberdade como não dominação, apesar de bastante interessante por colocar o tema da dominação no centro da reflexão sobre a liberdade, ainda é demasiadamente centrado na dimensão individual, o que negligenciaria a construção social das escolhas. Para Hirschmann, é necessário pensar na formação das escolhas quando pensamos na liberdade de escolher. Tal formação envolve tanto as condições materiais em que estas são feitas, como as condições internas de identidade e autoconcepção que dão origem aos desejos e vontades de quem escolhe (Hirschmann, 2003, p. 199). Ou seja, não seria suficiente dizer que ser livre é não ser dominado, se esta reflexão sobre a liberdade não problematizar as estruturas sociais, a construção dos comportamentos e dos muito elementos que compõem a vida das mulheres, suas opções de escolhas, suas percepções diante das escolhas e, até mesmo, como os seus desejos e percepções são formados.

As contribuições de Hirschmann complexificam as elaborações sobre a liberdade, assim como enriquecem as possibilidades de pensarmos casos concretos. Nós compartilhamos de seu ponto de vista sobre a construção social da liberdade, porém destacamos que suas críticas a Pettit não são fatais para uma perspectiva que adote a liberdade como não dominação, como um parâmetro moral e político para as sociedades complexas contemporâneas.

Mais uma vez, utilizaremos as reflexões teóricas do autor para elaborar nossa resposta a essas perguntas. Para Pettit, há algo específico na criminalização que a torna diferente de outros tipos de regulação e/ou sanção:

Criminalizar um ato é impor custos absolutos ao invés de custos relativos como nas sanções. Pelo menos, nos casos paradigmáticos, criminalizar é impor estes custos na pressuposição manifesta de que os atos penalizados atraem desaprovações dentro da comunidade. Portanto, ao mesmo tempo penaliza e reprova11 11 . Original: “To criminalize an act is to impose absolute rather than just relative costs as sanctions and, at least in paradigm cases, it is to impose those costs on the manifest assumption that the acts penalized attract disapproval within the community. Thus it is at once to penalize and to reprove”. (Pettit, 2014bPETTIT, P. (2014b), “Criminalization in republican Theory”. In: DUFF, R. A. et al. Criminalization: the political morality of the criminal law. Oxford, Oxford University Press, pp 132-50., p. 136, tradução livre).

Como notamos anteriormente, a questão fundamental da liberdade é não estar sob o arbítrio de outra pessoa, algo fundamental para um status igual de pessoa. Ou seja, a cidadania acontece também em relação ao outro, daí a relevância da reprovação pública de atos que sejam considerados suscetíveis não apenas de repressão, mas também de criminalização.

Portanto, há dois conjuntos de requisitos para a liberdade como não dominação. O primeiro corresponde aos critérios objetivos a ser resguardados: estar seguro da intromissão arbitrária de outras pessoas ou grupos, de instituições e do próprio Estado. O segundo diz respeito a aspectos subjetivos de reconhecimento comum para desfrutar de liberdade (Pettit, 2014bPETTIT, P. (2014b), “Criminalization in republican Theory”. In: DUFF, R. A. et al. Criminalization: the political morality of the criminal law. Oxford, Oxford University Press, pp 132-50., p. 138).

Para a teoria republicana, a criminalização é a resposta correta para várias categorias de interferências a liberdades básicas, e essa defesa não é contingente, mas baseada nos pressupostos neorrepublicanos, para o quais a criminalização coloca um peso extra, além de um “simples” custo:

As pessoas serão capazes de desfrutar de um status público de cidadãs livres apenas na medida em que aqueles que possam cometer crimes relevantes contra elas enfrentem não apenas os custos absolutos impostos sobre estes crimes, mas também a reprovação da comunidade. Sob tal criminalização, vítimas potenciais terão uma segurança publicamente afirmada contra aqueles que estão manifestamente dispostos a enfrentar os custos do crime; elas [as vítimas] podem invocar a condenação pública contra aqueles que estão dispostos a cometer crimes, reivindicando a proteção da comunidade contra eles. E, sob tal criminalização, os potenciais criminosos devem reconhecer que mesmo que eles tenham sucesso em evitar a detenção ou condenação por uma ofensa, eles continuam sujeitos à reprovação pelas normas da comunidade; deixe-os aceitar essas normas e eles não poderão apenas pensar em si mesmos como jogadores sortudos, acreditando que não haveria motivos para ter remorso (Pettit, 2014bPETTIT, P. (2014b), “Criminalization in republican Theory”. In: DUFF, R. A. et al. Criminalization: the political morality of the criminal law. Oxford, Oxford University Press, pp 132-50., pp. 141-142, tradução livre)12 12 . Original: “People will be able to enjoy the public status of the free citizen only insofar as those who would offend against them in relevant ways face not only the absolute costs imposed on offences but also the reprobation of the community. Under such criminalization, potential victims will have a publicly affirmed security against those who are manifestly willing to run the expected cost of offending; they can invoke public condemnation against those who are so disposed to offend, claiming the protection of the community against them. And under such criminalization, potential offenders have to recognize that even if they succeed in avoiding detection or conviction for an offence, they are still subject to reprobation by community norms; let them accept those norms and they cannot just think of themselves as lucky gamblers, acknowledging no grounds for remorse”. .

Salientamos, então, que a criminalização possui um papel político importante para a construção do status da cidadania igual para todas/os, em determinadas circunstâncias. Este papel, de reprovação, não é apenas um papel simbólico ou subjetivo na construção de um imaginário comum que reprova um crime. A questão é que a reprovação pública possui efeito concreto no aumento de segurança, confere possibilidades, confere direitos, e isso vai além de um sentimento subjetivo, passando por uma redistribuição de poder. A questão tem efeito prático na medida em que aumenta as salvaguardas das mulheres e estas salvaguardas são construídas de modo público, amplo, quiçá, diminuindo a deferência, o temor e a benevolência das mulheres em relação àqueles que devem ser seus iguais (sejam homens ou mulheres) e, principalmente, diminuindo o poder dos agressores.

De toda forma, ressalvamos no item anterior que o sistema penal é extremamente falho e limitado. O próprio Philip Pettit faz uma ressalva importante quando defende a importância da criminalização nos Estados republicanos. Essa ressalva é feita em três pontos e constrói-se principalmente com base na tendência, bastante conhecida em muitos sistemas legais, de se estender demasiadamente a criminalização:

Em primeiro lugar, usando o sistema de justiça criminal para dar conta de um gama de atos cada vez maior e mais ampla pode-se enfraquecer o seu impacto nas faixas mais importantes do espectro, diminuindo o papel condenatório da criminalização. Em segundo lugar, corre-se o risco de fazer mais mal do que bem ao colocar nas mãos das autoridades da justiça criminal um poder que pode impactar mais profundamente sobre as perspectivas de não dominação do que qualquer crime contra o qual ela [a criminalização] iria proteger. E, por último, pode tornar a condenação difícil em áreas em que não deveria ser difícil, estendendo as proteções especiais que são apropriadas apenas àqueles que estão sendo processados por sérias ofensas criminais (Pettit, 2014bPETTIT, P. (2014b), “Criminalization in republican Theory”. In: DUFF, R. A. et al. Criminalization: the political morality of the criminal law. Oxford, Oxford University Press, pp 132-50., p. 144, tradução livre) 13 13 . Original: “First, using the criminal justice system across a wider and wider bandwidth of acts can weaken its impact in more important ranges of the spectrum, undermining the condemnatory role of criminalization. Second, it runs the risk of doing more harm than good, putting in the hands of criminal justice authorities a power that may impact more deeply on prospects of non-domination than any of the offences against which it would protect. And finally, it can make conviction difficult in areas where it ought not to be difficult, extending the special protections appropriate only for those charged with serious criminal offences”. .

Apesar de julgarmos pertinentes as observações do autor, defendemos que a criminalização do feminícidio possui um efeito político prático importante para aquelas/es que estão preocupados em construir uma sociedade com estruturas sociais cada vez menos díspares. Não estamos ingenuamente supondo que a questão se resolve com isso. Se, por um lado, a medida não corresponde a uma solução, e também carrega em si ambiguidades e limitações, por outro, constitui-se em um passo, uma medida, uma possibilidade de construção de novas formas de poderes, de cidadania e, portanto, de aumento da liberdade como não dominação.

Ato final: é possível atribuir importância à dimensão legal como dimensão política?

Desde a sanção da lei aqui retratada, tem havido certo dispêndio de energia e um engajamento fundamental de diversas frentes feministas brasileiras dedicadas a demonstrar que há um ganho significativo com o processo de criminalização. Esse ganho, em boa parte das vezes, é referido como um registro simbólico do problema. Ao defender que a ênfase seja atribuída à dimensão política desse processo de judicialização, não ignoramos que esta também pode se apresentar como um terreno simbólico. Entretanto, cremos que o registro meramente simbólico tende a comprometer movimentos concretos que são alçados com base na lei, deixando-a no campo da alegoria, da crença vazia. A constituição de um tipo penal derivado pode contribuir para gerar novas estatísticas14 14 . Por exemplo, dados sobre o feminicídio no Brasil, atualmente, são gerados por metodologia estatística. Ver um exemplo disso em nota de documento elaborado pelo Ipea: “Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil”, de Leila Posenato Garcia, Lúcia Rolim Santana de Freitas, Gabriela Drummond Marques da Silva e Doroteia Aparecida Höfelmann. Disponível em http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/130925_sum_estudo_feminicidio_leilagarcia.pdf. Acesso em 22/6/2015. , novos discursos jurídicos, mudanças no imaginário cultural, novas demandas por igualdade. Constitui-se, também, na tradução política de uma vivência das mulheres – política na medida em que vai para a esfera pública, transformando-se em lei.

Não se pode esquecer, igualmente, que as demandas por judicialização fazem parte de uma configuração específica dos feminismos latino-americanos (Pereira e Raes, 2002PEREIRA, Bérengère Marques & RAES, Florence. (2002), “Trois décennies de mobilisations féminines et féministes en Amérique Latine: une évaluation des avancées, des limites et des futurs enjeux de l’action collective des femmes”. Cahiers des Amériques Latines, 39. Disponível em http://www.iheal.univ-paris3.fr/spip.php?rubrique11. Acesso em 28/3/2012.
http://www.iheal.univ-paris3.fr/spip.php...
, p. 21). É uma marca da incessante busca pelo exercício da cidadania.

A historiografia de nossos movimentos feministas também remete a esta busca pela interlocução do feminismo com o campo jurídico-legal. De acordo com Cynthia Grant Bowman e Elizabeth M. Schneider (1998)BOWMAN, Cynthia Grant & SCHNEIDER, Elizabeth M. (1998), “Feminist legal theory, feminist lawmaking, and the legal profession”. The Fordham Law Review, 67. Disponível em http://ir.lawnet.fordham.edu/flr/vol67/iss2/2. Acesso em 11/6/2015.
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, há uma indissociabilidade latente entre teoria e prática, quando o assunto são os feminismos. As autoras demonstram como, nos Estados Unidos, as variadas correntes teóricas feministas se converteram em um meio intelectual para argumentar e debater temas ligados à igualdade que, primeiramente, emergiram por meio de litígios reais. Obviamente, a tradição jurídica estadunidense difere da brasileira, porém poderíamos fazer uso das mesmas inferências quando o assunto são as reformas legais.

Sobre a realidade dos feminismos latino-americanos, Sônia Alvarez (2014)ALVAREZ, Sônia E. (2014), “Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista”. Cadernos Pagu, 43: 13-56. propõe que se faça referência a campos discursivos de ação feminista e não a movimentos feministas, porque ultrapassam o modelo tradicional de organizações da sociedade civil, para incorporar também outros atores individuais ou coletivos, inclusive do Estado, Igreja, ou outras ONGs, por exemplo. E nesse emaranhado de agentes, há uma constante negociação ou embate político-cultural que constitui o campo discursivo. O momento atual, no Brasil, é de emergência de discursos feministas plurais, heterogêneos, desinstitucionalizados e, em boa parte, desconectados, ao que a autora chama a atenção para a necessária política de tradução feminista. Ou seja, é preciso encontrar uma linguagem em comum, diante de tantos discursos aparentemente desconectados.

As teorias feministas têm, ao longo dos anos, mostrado-nos a complexidade de fazer afirmações gerais, em nome das mulheres, afinal, muitas são as experiências das mulheres e estas são marcadas por diferentes clivagens, tais como: classe, etnia, geração, orientação ou vivência de sua sexualidade. Por isso, atualmente, não é possível fazer afirmações sobre as mulheres sem cair em essencialismos. No entanto, acreditamos que, mesmo diante da dificuldade em se fazer afirmações gerais, e mesmo diante dos possíveis riscos de se cair em essencialismos, o pensamento e os movimentos feministas devem dar um passo em favor de afirmações propositivas em nome das mulheres.

Iris Young (1994)YOUNG, Iris M. (1994) “Gender as seriality: thinking about woman as a social collective”. Sings: Journal of Woman in Culture and Society, 19 (3): 713-738. desenvolve a ideia de gênero como série social (serialidade), e a ideia de série nos permitiria atribuir certa unidade às mulheres, apesar de cientes de que não existe uma mulher universal. Essa unidade nos permite fazer reivindicações e proposições em nome das mulheres, iniciativas que resultam da interpretação que leva em conta os posicionamentos nas estruturas sociais e que os posicionamentos das mulheres são demarcados por uma experiência ligada ao corpo, ainda que esses posicionamentos e relação com e nas estruturas sociais variem muito conforme cada contexto. Entender as mulheres como série15 15 . Neste trabalho, referimo-nos a “as mulheres”, “o grupo mulher”, tendo esse entendimento de serialidade. nos permite ver as restrições e limitações gerais com as quais as mulheres têm de lidar, sem, com isso, fazer afirmações sobre como as diferentes mulheres lidam com tais questões.

Dizer que uma pessoa é uma mulher pode predizer alguma coisa sobre as restrições e expectativas gerais com as quais deve lidar. Mas não diz nada em particular sobre quem ela é, o que ela faz, como ela lida com seu posicionamento social (Young, 1994YOUNG, Iris M. (1994) “Gender as seriality: thinking about woman as a social collective”. Sings: Journal of Woman in Culture and Society, 19 (3): 713-738., p. 733, tradução livre)16 16 . Original: “Saying that a person is a woman may predict something about the general constraints and expectations she must deal with. But it predicts nothing in particular about who is she, what she does, how she takes up her social positioning.” .

Dessa forma, gostaríamos de retomar alguns pontos que estamos afirmando neste artigo. Em primeiro lugar, não somos a favor da criminalização per se, e menos ainda creditamos a essa medida um papel solucionador dos problemas. Porém, vemos na criminalização do feminícidio uma atitude propositiva com conteúdo político importante para as mulheres.

Destacamos, enfim, que a criminalização do feminicídio no Brasil desdobrou-se valendo-se da existência de um tipo base pretérito, não tendo surgido como figura autônoma em nosso Código Penal, o que indica sua potência nominativa. De modo que assumimos que há ganhos concretos nesse processo. Afinal, essa readequação nominativa tem carga política importante, capaz de gerar reflexos nas estruturas sociais. Quaisquer críticas a um pretenso excesso criminalizante, conforme cremos, poderiam se reter às chamadas causas de aumento, já pontuadas por nós nas linhas acima. Mesmo assim, entendemos que todas as causas de aumento trazem consigo a função subjacente de recolocar o feminicídio como uma questão de gênero, por isso levantam questões atinentes à gravidez, geração ou relação familiar (em se tratando da presença de ascendente ou descendente). Nessa linha, creditamos a elas a mesma valoração política que atribuímos à qualificadora.

Ante tudo que expusemos, esperamos ter contribuído para a construção de uma visão reflexiva a respeito da criminalização do feminicídio como processo político complexo, diante de uma estrutura social que concebe o corpo das mulheres como território de ocupação, violência e morte.

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  • YOUNG, Iris M. (1994) “Gender as seriality: thinking about woman as a social collective”. Sings: Journal of Woman in Culture and Society, 19 (3): 713-738.
  • 1
    . Este artigo foi redigido durante a realização de estágio pós-doutoral na University of San Francisco, com apoio da Capes.
  • 2
    . A figura do tipo penal, que descreve a conduta correspondente ao crime, é composta por elementos indispensáveis à sua identidade normativa, mas também pode vir acompanhada de circunstâncias que se agregam ao crime, aumentando ou diminuindo suas penas mínimas e máximas. Entre tais circunstâncias, figuram as chamadas qualificadoras, que são circunstâncias que instituem novas margens abstratas de pena a um determinado crime, produzindo verdadeiras derivações frente ao tipo penal basilar. Exemplos de qualificadoras para o tipo base de homicídio (que figura no caput do art. 121 do Código penal brasileiro) são o motivo torpe e o motivo fútil (art. 121, §2º, inc. I e II).
  • 3
    . Remetemos, para tanto, à leitura da própria epígrafe da Lei Maria da Penha e aos documentos internacionais que a embasam, referidos no texto da epígrafe.
  • 4
    . Consultar, por exemplo, Machado (2013)MACHADO, Isadora Vier. (2013), Da dor no corpo à dor na alma: uma leitura do conceito de violência psicológica da Lei Maria da Penha. Florianópolis, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina..
  • 5
    . Ver art. 58, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual: “Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação”.
  • 6
    . Para saber mais a esse respeito, ver Campos (2015)CAMPOS, Carmen Hein de. (2015), “A CPMI da violência contra a mulher e a implementação da Lei Maria da Penha”. Estudos Feministas, 23 (2): 519-531, maio. Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/38873. Acesso em 26/6/2015.
    https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref...
    .
  • 7
    . Para a definição mais acurada de conceitos jurídico-penais tais quais “bem jurídico”, “delito”, ”qualificadora” ou “tipo penal”, sugere-se a consulta do primeiro manual de Direito Penal brasileiro integralmente subscrito por duas mulheres, Prado et al. (2014)PRADO, Luiz Regis et al. (2014), Curso de direito penal brasileiro. 13 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo, Revista dos Tribunais..
  • 8
    . Em 2015, o deputado federal Eros Biondini, do Pros-MG, propôs o PLC 477/15, que substitui, na Lei Maria da Penha (11.340/06), o termo “gênero” pelo termo “sexo”, sob a mesma justificativa, tendo retirado a mesma propositura em 2016, depois de reuniões e negociações com a cúpula LGBT do Estado que representa.
  • 9
    . O conceito de liberdade como não dominação de Philip Pettit foi desenvolvido em maiores detalhes em Elias, 2014ELIAS, Maria Ligia G. G. R. (2014), Liberdade como não interferência, liberdade como não dominação, liberdade construtivista. Uma leitura do debate contemporâneo sobre a liberdade. São Paulo, tese de doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. (entre outros). Recomendamos também Pettit (1997aPETTIT, P. (1997a), Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford, Oxford University Press.; 2014aPETTIT, P. (2014a), Just freedom a moral compass for a complex world. Nova York, W.W. Norton & Company.).
  • 10
    . Este tema é discutido em Almeida e Elias (2014)ALMEIDA, Carla Cecília Rodrigues & ELIAS, Maria Ligia Ganacim Granado Rodrigues. (2014), “O conceito de liberdade como não dominaçãosob a perspectiva feminista”. Estudos Feministas, 22 (1): 13-27, maio. Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-026X2014000100002. Acesso em 23/6/2015.
    https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref...
    .
  • 11
    . Original: “To criminalize an act is to impose absolute rather than just relative costs as sanctions and, at least in paradigm cases, it is to impose those costs on the manifest assumption that the acts penalized attract disapproval within the community. Thus it is at once to penalize and to reprove”.
  • 12
    . Original: “People will be able to enjoy the public status of the free citizen only insofar as those who would offend against them in relevant ways face not only the absolute costs imposed on offences but also the reprobation of the community. Under such criminalization, potential victims will have a publicly affirmed security against those who are manifestly willing to run the expected cost of offending; they can invoke public condemnation against those who are so disposed to offend, claiming the protection of the community against them. And under such criminalization, potential offenders have to recognize that even if they succeed in avoiding detection or conviction for an offence, they are still subject to reprobation by community norms; let them accept those norms and they cannot just think of themselves as lucky gamblers, acknowledging no grounds for remorse”.
  • 13
    . Original: “First, using the criminal justice system across a wider and wider bandwidth of acts can weaken its impact in more important ranges of the spectrum, undermining the condemnatory role of criminalization. Second, it runs the risk of doing more harm than good, putting in the hands of criminal justice authorities a power that may impact more deeply on prospects of non-domination than any of the offences against which it would protect. And finally, it can make conviction difficult in areas where it ought not to be difficult, extending the special protections appropriate only for those charged with serious criminal offences”.
  • 14
    . Por exemplo, dados sobre o feminicídio no Brasil, atualmente, são gerados por metodologia estatística. Ver um exemplo disso em nota de documento elaborado pelo Ipea: “Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil”, de Leila Posenato Garcia, Lúcia Rolim Santana de Freitas, Gabriela Drummond Marques da Silva e Doroteia Aparecida Höfelmann. Disponível em http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/130925_sum_estudo_feminicidio_leilagarcia.pdf. Acesso em 22/6/2015.
  • 15
    . Neste trabalho, referimo-nos a “as mulheres”, “o grupo mulher”, tendo esse entendimento de serialidade.
  • 16
    . Original: “Saying that a person is a woman may predict something about the general constraints and expectations she must deal with. But it predicts nothing in particular about who is she, what she does, how she takes up her social positioning.”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    23 Maio 2016
  • Aceito
    5 Abr 2017
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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