Resumo
Este artigo discute o conceito de “acesso” no contexto da etnografia. A concepção de Schatz do acesso como a identificação do ponto de observação mais próximo é o fundamento da discussão sobre 15 meses de trabalho de campo realizado em Myanmar para um estudo de experiências de encarceramento que obteve pouco acesso a essas instituições. O artigo vai além de uma compreensão de acesso definida em termos de um foco em dentro e fora e demonstra como acessar um campo a partir de vários pontos de observação possibilita várias perspectivas e qualifica compreensões nuançadas. O artigo demonstra como espaço, tempo e relações interpessoais afetam os pontos de observação acessíveis ao pesquisador. Adicionalmente, ele conclui que trabalhar com egressos prisionais após sua liberação oferece pontos de observação potencialmente claros que são inacessíveis dentro de prisões.
Prisão; Etnografia; Métodos Qualitativos; Acesso; Myanmar; Trabalho de Campo
Abstract
This article discusses the concept of ‘access’ within ethnography. Schatz’s conception of access as finding the nearest possible vantage point lays the foundation for a discussion of 15 months of fieldwork conducted in Myanmar for a study of experiences of imprisonment that had little access to the inside of these institutions. The article goes beyond an understanding of access framed by a focus on inside and outside and demonstrates how accessing a field from multiple vantage points allows for various views and qualifies nuanced understandings. The article shows how space, time and interpersonal relations affect the vantage points accessible to the researcher. Further, it concludes that working with former prisoners after their release offers potentially clear vantage points that are inaccessible inside prisons.
Prison; Ethnography; Qualitative Methods; Access; Myanmar; Fieldwork
O acesso é uma questão frequentemente discutida na pesquisa em prisão. Essas discussões geralmente tem por foco a questão da obtenção de permissão para adentrar1 1 Harrignton identifica o uso intercambiável das palavras “acesso”, “conexão” e “entrada” como um dos indicadores da falta de reflexão conceitual sobre acesso. Seguindo Harrington (2003:599), “este artigo empregará o termo “acesso” porque – ao contrário de entrada e conexão – o acesso chama a atenção para o objetivo social-científico da etnografia: o acesso à informação”. prisões, ou certas áreas de prisões, e as questões práticas ligadas à obtenção do acesso físico uma vez que essa permissão é concedida (Watson; Van der Meulen, 2018; Rhodes, 2001Rhodes, Lorna A. Toward an Anthropology of Prisons. Annual Review of Anthropology 30(1), 2001, pp.65-83.). Este artigo defende uma expansão das formas como pensamos sobre acesso. Os primeiros passos nessa direção já foram dados por pesquisadores que mantêm que o acesso é um processo iterativo (Bandyopadhyay, 2015Bandyopadhyay, Mahuya. Deviation and Limitations of (Prison) Ethnography: Postscript to Fieldwork in an Indian Prison. In: Drake, Deborah; Earle, Rod; Sloan, Jennifer (ed.). The Palgrave Handbook of Prison Ethnography. Basingstoke, Palgrave Macmillan UK., 2015, pp.442-62.; Reiter, 2014Reiter, Keramet. Making Windows in Walls Strategies for Prison Research. Qualitative Inquiry 20(4), 2014, pp.417-28.) e por etnógrafos de prisões que usam a auto-etnografia como ferramenta para informar seu trabalho de campo e análise e para abordar o acesso desde essa perspectiva (Jewkes, 2012Jewkes, Yvonne. Autoethnography and Emotion as Intellectual Resources: Doing Prison Research Differently. Qualitative Inquiry 18(1), 2012, pp.63-75.; Rowe, 2014Rowe, Abigail. Situating the Self in Prison Research Power, Identity, and Epistemology. Qualitative Inquiry 20(4), 2014, pp.404-16.). Contudo, esses relatos dizem respeito sobretudo ao processo de obtenção de acesso a uma instituição, isto é, a entrada nas prisões. Este artigo argumenta que, no estudo das experiências cotidianas dos sujeitos, a compreensão do acesso precisa ser mais desdobrada. Ele argumenta que, para compreender a vida cotidiana de presos, precisamos saber mais sobre o que acontece dentro das prisões.
A inspiração para este artigo foram os dilemas com que me deparei durante 15 meses de trabalho de campo em Myanmar em 2016-2018.2 2 O trabalho de campo dividiu-se em duas partes: a primeira, com duração de 8 meses, ocorreu entre outubro de 2016 e junho de 2017, e a segunda, com duração de 6 meses e meio, ocorreu entre fevereiro e agosto de 2018. Fui ao campo sabendo que não havia ainda obtido acesso às prisões e que convencer as autoridades a confiar em uma pesquisadora e autorizar-lhe o acesso levaria tempo. O país tem uma história de governos autoritários que têm limitado qualquer tradição de abertura e confiança. A situação atual, na qual a liderança política assume a forma de uma democracia nascente, deixa as autoridades em uma posição vulnerável. Ainda que tenha havido uma abertura do espaço político, uma cultura de medo persiste (Skidmore, 2004Skidmore, Monique. Karaoke Fascism Burma and the Politics of Fear. Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 2004.), e as autoridades são apreensivas quanto a abrir os portões das prisões para pesquisadores. Portanto, eu poderia ter poucas expectativas quanto à possibilidade de obter acesso a prisões. Fui a campo com um plano do que fazer caso obtivesse acesso, mas também preparada para o cenário mais provável de que todo o meu trabalho ocorreria fora das prisões.
A maioria do meu trabalho de campo ocorreu fora da prisão, com nenhuma garantia de que em algum momento eu seria capaz de adentrá-la. Apenas ao fim do meu trabalho de campo obtive acesso a uma prisão durante três dias para realizar entrevistas com presos, seguidas de um workshop de um dia com seus funcionários superiores. Durante o trabalho de campo fora da prisão, procurei egressos prisionais e organizações ligadas a prisões e presos. A partir daí, e por meio de indicações, fui identificando outros contextos e mais participantes de pesquisa. Enquanto as oportunidades para conversar com egressos eram ricas, o trabalho fora da prisão era muito diferente das minhas experiências prévias de pesquisa (Jefferson; Gaborit, 2015Jefferson, Andrew M.; Gaborit, Liv S. Human Rights in Prison. Basingstoke, Palgrave Macmillan, 2015.; Gaborit, 2013Gaborit, Liv S.Subjectification in Philippine Jails: How Inmates Cope with the Objectifying Power of Confinement. Copenhagen, University of Copenhagen, 2013.). Ainda que eu tivesse me preparado para essa situação, fui surpreendida pela experiência de fazer pesquisa sobre prisões fora delas. Durante meses, questionei se estava agindo de forma correta. Onde eu deveria me inserir entre participantes potenciais de pesquisa que viviam suas vidas em contextos tão distintos? Estava fazendo etnografia se minha pesquisa consistia principalmente em reuniões com ONGs e entrevistas com egressos? Seria capaz de chegar suficientemente perto da vida cotidiana dentro dessas prisões que eu sequer havia visto? Seria capaz de escrever uma descrição significativa?
Esses desafios me forçaram a refletir sobre a metodologia da etnografia de prisões e me levaram às seguintes perguntas, que serão discutidas neste artigo: qual é o campo da etnografia de prisões? Como obtém-se acesso a esse campo? E, consequentemente, o interior de prisões é o local ideal para a realização de pesquisa? O que outros locais podem contribuir para nossa compreensão de prisões?
Este artigo aborda essas perguntas a partir de três ângulos. A primeira seção diz respeito à busca pelo ponto de observação mais próximo (Schatz, 2009Schatz, Edward (ed.). Political Ethnography: What Immersion Contributes to the Study of Power. Chicago; London, University Of Chicago Press, 2009.) e aborda as perguntas como uma questão de espaço e distância, e discute como diferentes espaços afetam a distância ou proximidade relacional com os sujeitos da pesquisa. A segunda seção discute como o posicionamento do pesquisador pode levar a vários pontos de observação. Finalmente, a terceira seção inclui reflexões sobre o que aprendi depois de adentrar os portões da prisão.
Acesso como distância e espaço – encontrando o ponto de observação mais próximo
O trabalho de campo é uma parte essencial da maioria das etnografias e, portanto, tem sido objeto de discussão durante décadas. Malinowski definiu as regras básicas ao estabelecer a tradição de estudar um local isolado, idealmente não tocado, para observar os nativos a partir de uma perspectiva naturalista. Segundo essa abordagem, os presos típicos estão longe de ser sujeitos de pesquisa ideais:
Pessoas vivendo fora de seu estado nativo (por exemplo, indígenas trabalhando em cidades; aborígenes empregados em fazendas; ou, no caso de Radcliffe-Brown, citado acima, presos mantidos à força em um assentamento penal) passaram a ser considerados objetos antropológicos menos adequados porque estavam foram “do campo”, assim como estudos zoológicos de animais em cativeiro passaram a ser considerados inferiores àqueles realizados com animais selvagens (Gupta; Ferguson, 1997Gupta, Akhil; Ferguson, James (ed.). Anthropological Locations: Boundaries and Grounds of a Field Science. Berkeley, University of California Press, 1997.:7).
A etnografia de prisões, um estudo de instituições construídas por Estados, está longe do ideal malinowskiano. Ela é um estudo de pessoas que foram retiradas de seus lares e da vida cotidiana que surge nessa realidade social confinada (ainda que os limites sejam pouco claros, como argumenta Cohen, 1985Cohen, Stanley. Visions of Social Control: Crime, Punishment, and Classification. Cambridge, Polity Press; Blackwell, 1985.).
Há um contraste marcante entre o início da etnografia, quando era usada para estudar estranhos em territórios remotos e não tocados, e os dias atuais, quando a metodologia etnográfica é comumente usada para estudar estruturas sociais familiares, tais como aquelas de uma prisão. Isso ilustra o desenvolvimento da metodologia etnográfica e como a etnografia tem uma longa história de inovações metodológicas.
Desde Malinowski, a etnografia se desenvolveu para se enquadrar na realidade moderna da globalização, na qual a maioria dos locais já foi “tocada” por influências externas, e metodologias etnográficas são usadas para estudar fenômenos em diferentes locais. Recentemente, esse desenvolvimento tem continuado, com pesquisadores argumentando que a etnografia é útil até mesmo para estudos sem trabalho de campo, devido à utilidade de uma “sensibilidade etnográfica” (Schatz, 2009Schatz, Edward (ed.). Political Ethnography: What Immersion Contributes to the Study of Power. Chicago; London, University Of Chicago Press, 2009.). Alguns pesquisadores sugerem até mesmo locais arbitrários (Candea, 2007Candea, Matei. Arbitrary Locations: In Defence of the Bounded Field-Site. Journal of the Royal Anthropological Institute 13(1), 2007, pp.167-84.) e etnografia não-local (Feldman, 2011Feldman, Gregory. If Ethnography Is More than Participant-Observation, Then Relations Are More than Connections: The Case for Nonlocal Ethnography in a World of Apparatuses. Anthropological Theory 11 (4), 2011, pp.375-95.). Muitos procedimentos-padrão foram rompidos e adaptados. Ainda assim, alguns pesquisadores de prisões se referem a ideais antigos quando refletem acerca de suas práticas. Ao fazer pesquisa em prisões, pesquisadores precisam se adequar a medidas de segurança da instituição, que frequentemente entram em conflito com a metodologia etnográfica clássica. Isso ocorre quando pesquisadores só podem acessar partes limitadas das prisões, em certos horários, e são limitados a conversar com grupos pré-determinados de pessoas. Alguns chegam a descrever a etnografia de prisões como quase-etnografia devido às limitações do trabalho dentro de prisões (Bandyopadhyay, 2015Bandyopadhyay, Mahuya. Deviation and Limitations of (Prison) Ethnography: Postscript to Fieldwork in an Indian Prison. In: Drake, Deborah; Earle, Rod; Sloan, Jennifer (ed.). The Palgrave Handbook of Prison Ethnography. Basingstoke, Palgrave Macmillan UK., 2015, pp.442-62.).
Ainda que o trabalho de campo seja uma característica-chave da etnografia, há grandes variações nas abordagens desse trabalho e das demandas de diferentes campos. Numa discussão sobre a definição do “campo” da pesquisa de campo etnográfica, Gupta e Ferguson escrevem:
Esse espaço misterioso – não o “que”, mas o “onde”, da etnografia – foi deixado ao senso comum, além e aquém do limiar da reflexividade (Gupta; Ferguson, 1997Gupta, Akhil; Ferguson, James (ed.). Anthropological Locations: Boundaries and Grounds of a Field Science. Berkeley, University of California Press, 1997.:2).
Desde a análise de Gupta e Ferguson em 1997Gupta, Akhil; Ferguson, James (ed.). Anthropological Locations: Boundaries and Grounds of a Field Science. Berkeley, University of California Press, 1997., outros ultrapassaram esse limiar de reflexividade em discussões acerca do que é o campo da etnografia e como métodos etnográficos podem ser úteis a outras disciplinas. Este artigo parte de discussões sobre “o campo” da Etnografia Política3 3 Definida como o subcampo da etnografia dedicado a procedimentos formais da política e sua implementação (Schatz, 2009; Stepputat; Larsen, 2015). (Stepputat; Larsen, 2015Stepputat, Finn; Larsen, Jessica. Global Political Ethnography: A Methodological Approach to Studying Global Policy Regimes. 1. DIIS Working Paper, Copenhagen, DIIS, 2015.; Schatz, 2009Schatz, Edward (ed.). Political Ethnography: What Immersion Contributes to the Study of Power. Chicago; London, University Of Chicago Press, 2009.) e da Psicologia Crítica4 4 Definida como o subcampo específico da psicologia crítica alemã e escandinava como uma ciência de sujeitos (Holzkamp, 2013). (Jefferson; Huniche, 2009). A contribuição da etnografia política são discussões sobre o que constitui o campo em estudos de fenômenos não-locais, tais como políticas públicas, e como abordar a pesquisa em locais onde o acesso é limitado. A contribuição da psicologia crítica são as discussões sobre como abordar as experiências de sujeitos seguindo suas trajetórias através de diferentes lugares (Dreier, 2003Dreier, Ole. Subjectivity and Social Practice. 2.ed. Århus: Center for Sundhed, Menneske og Kultur, Institut for Filosofi, Århus Universitet, 2003.; Jefferson; Huniche, 2009).
Ainda que o campo tenha ultrapassado o limiar da reflexividade desde o trabalho famoso de Gupta e Ferguson sobre localizações, esforços ainda são necessários para que o “acesso” ultrapasse esse limiar. Numa revisão da literatura sobre acesso na etnografia, Harrington (2003)Harrington, Brooke. The Social Psychology of Access in Ethnographic Research. Journal of Contemporary Ethnography 32(5), 2003, pp.592-625. concluiu que, enquanto processos de acesso têm sido discutidos, nossa compreensão conceitual de “acesso” permanece fragmentada. Ela identifica cinco formas como o acesso é descrito: “‘senso comum’, anedotas, listas de verificação, interpretação de papéis, e trocas” (Harrington, 2003Harrington, Brooke. The Social Psychology of Access in Ethnographic Research. Journal of Contemporary Ethnography 32(5), 2003, pp.592-625.:600). Contudo, Harrington afirma que todas essas abordagens carecem de uma fundamentação teórica. Para superar essa fragmentação e criar uma compreensão do acesso com embasamento teórico, ela sugere tomar como referência a psicologia social e, particularmente, a teoria de identidade social (Tajfel; Turner, 1979Tajfel, H.; Turner, J.. An Integrative Theory of Intergroup Conflict. In: Austin, William G.; Worchel, Stephen (ed.). The Social Psychology of Intergroup Relations. Monterey, Calif, Brooks/Cole, 1979.) e da representação do eu(self) (Goffman, 1990Goffman, Erving. The Presentation of Self in Everyday Life. Repr. Penguin Books. London, Pinguin Books, 1990.). A análise de Harrington abre novos caminhos ao abordar como “negociações habilidosas” que ocorrem em encontros entre etnógrafos e participantes de pesquisa afetam o acesso. Este artigo busca fornecer um maior desenvolvimento dessa compreensão do acesso ao discutir a interação entre nossa compreensão conceitual do “campo” e o acesso que buscamos.
O trabalho de Schatz no seu volume editado Etnografia Política (2009) é uma inspiração que dá os primeiros passos nessa direção, ainda que reste trabalho a ser feito. Schatz argumenta que “o acesso é uma escala móvel, não algo binário”. Não apenas em prisões, mas em todos os locais de trabalho de campo etnográfico, “‘dentro’ e ‘fora’ não são mais (se algum dia foram) categorias úteis para descrever o acesso de etnógrafos”. Ao invés disso, Schatz (2009:307) recomenda que etnógrafos “busquem sempre o ponto de observação mais próximo”. No meu caso, a prisão em si não era o objeto de estudo. Eu estava estudando experiências de encarceramento. A falta de autorização para adentrar as prisões me forçou, portanto, a refletir sobre qual seria o ponto de observação mais próximo das experiências de outros. A observação participante dentro de prisões é crucial para compreender as experiências de encarceramento? E onde mais pode-se encontrar pontos de observação adequados para esse objeto de estudo?
Onde, então, uma pesquisadora deve ir durante 15 meses de trabalho de campo sobre prisões se ela não tem quase acesso nenhum a essas prisões? Passei meu tempo nos escritórios de organizações da sociedade civil que trabalham com prisões para aprender sobre seu trabalho e conversar com egressos que fazem parte de suas equipes. Fui a casas de chá e restaurantes para ter conversas informais com egressos. Falei com egressos que agora trabalham como motoristas de táxi, enquanto dirigíamos pelas ruas de Yangon. Participei de eventos tais como aniversários de eventos políticos importantes, festivais religiosos e até mesmo o casamento de um egresso. Passei tempo em uma clínica de reabilitação, onde usuários de drogas se sujeitavam a reclusão voluntária como parte de seu tratamento e entrevistei egressos que eram clientes dessas instituições. Fui a monastérios e entrei para uma escola de meditação que era responsável por cursos de meditação em algumas prisões. Passei tempo nas casas de egressos políticos e convidei alguns à minha casa. Meu trabalho de campo me levou a toda a cidade, como fariam as vidas cotidianas dos moradores de Yangon. Acompanhei egressos em suas vidas cotidianas e testemunhei como suas experiências prévias na prisão afetavam suas vidas atuais.
Ainda que, no início, o trabalho de campo fora da prisão tenha sido uma solução pragmática, ao longo desse processo percebi que alguns lugares me ofereciam possibilidades que não estavam disponíveis em meu trabalho anterior dentro de prisões. Às vezes, os céus abriam e meu ponto de observação, ainda que geograficamente mais distante do lugar onde as experiências ocorreram, oferecia uma visão clara.
Isso ocorreu várias vezes quando visitei egressos que ainda viviam no bairro onde haviam sido encarcerados. Uma vez, enquanto almoçávamos em uma casa de chá local, um egresso me apontou o fato de que alguns dos outros clientes estavam vestindo calças caqui. Ainda que tivessem tirado suas jaquetas, suas calças revelavam sua identidade como agentes penitenciários. O egresso havia escolhido este lugar para nosso almoço e agora me dizia que era regularmente frequentado por agentes penitenciários. A visita à casa de chá parecia um ato de resistência. As pessoas da área sabiam quem ele era, sabiam de seu passado. Sua presença na casa de chá foi notada, particularmente porque ele estava com uma mulher branca e um tradutor local. Ali, onde os agentes penitenciários poderiam nos ver, mas não nos ouvir, ele continuou nossa conversa sobre como o sistema prisional era atroz.
Ainda que ele tenha ganhado liberdade de movimento após sua liberação, ainda estava preso a essa área. Boa parte de sua renda vinha dos agentes penitenciários da área e seu negócio estava situado lá. Ele não dispunha de meios financeiros para mover seu negócio para outra área. Entretanto, ele não estava feliz com a presença de agentes penitenciários e não gostava de estar perto da prisão onde havia sido encarcerado durante anos. Ao invés de evitá-los ao máximo, ele parecia confrontá-los em seus próprios termos. Ele participava de debates públicos sobre as condições das prisões e escolhia almoçar em lugares onde eles estavam presentes. Ele insistia que tinha tanto direito à casa de chá e outros espaços no bairro quanto os agentes penitenciários – uma afirmação de quem têm direitos iguais – uma situação significativamente diferente daquela à qual estava acostumado na relação com agentes penitenciários durante os mais de dez anos que passou dentro da prisão.
Discussões anteriores sobre a permeabilidade dos muros das prisões tinham por foco, predominantemente, o que adentra a prisão e como isso diverge da descrição de Goffman de instituições totais (Goffman, 1961; Armstrong; Jefferson, 2017Armstrong, Sarah; Jefferson, Andrew M. ‘Disavowing “the” Prison’. In: Moran, Dominique; Schliehe, Anna K. (ed.) Carceral Spatiality. London, Palgrave Macmillan UK, 2017, pp.237-67.). Nesse exemplo, vemos uma consequência diferente da permeabilidade dos muros da prisão, expressa na maior presença de uniformes, agentes penitenciários e egressos no entorno da prisão. Ainda que haja outras regras do lado de fora, egressos e agentes penitenciários lembram das regras que valiam quando estavam dentro da prisão. Nesse espaço, me tornei parte da luta desse egresso, minha presença apoiava sua ação simplesmente pelo número de pessoas que o acompanhavam e pelo valor sinalizador de estar com uma estrangeira. Senti o estado de alerta que também vi nele quando vimos os agentes penitenciários ou quando passei pela prisão em minhas idas e vindas para nossos encontros.
Outro egresso me convidou a sua casa numa parte diferente da cidade. Depois que conversamos sobre as formas como ele apoia outros egressos e suas famílias, ele me levou para conhecer sua mãe. A mãe morava com ele e a esposa e estava sendo cuidada por eles depois de ter ficado doente e não conseguir sair da cama. Vivenciei em primeira mão as frustrações cotidianas e o desespero que ele e sua mãe enfrentavam devido às limitações de sua doença. Sentei-me ao lado dela e disse as poucas frases que conheço em birmanês, sem conseguir entender suas respostas sem a ajuda de seu filho. Enquanto isso, ele estava ocupado buscando documentos de sua época na prisão. Havia um brilho em seus olhos enquanto ele me mostrava os documentos e me contava seus atos de resistência na prisão. O brilho desapareceu quando ele me explicou que, a despeito de ainda querer ser ativista, tinha que cuidar de sua mãe e de sua família. Ao invés de trabalhar no movimento político por nenhum ou pouco dinheiro, ele aceitou uma posição menos política com um salário melhor e mais segurança de emprego. Antes que eu fosse embora, ele me contou que havia me convidado a sua casa para me mostrar sua situação real. Para a minha pesquisa, isso era mais importante do que eu entendia. Saí de sua casa cheia de emoções. Senti simpatia por sua mãe doente, e pelo fato de que ele e sua esposa tinham de cuidar dela, e um profundo respeito pela força que ele mobilizava vivendo longe da luta, mas ainda parte dela sempre que possível, fazendo tudo isso com um sorriso no rosto. Essa foi a primeira vez que ele me permitiu ver além do sorriso corajoso. Acima de tudo, saí de sua casa impressionada com a generosidade com que ele compartilhou sua vida comigo, me permitindo ver detalhes tão íntimos de sua vida cotidiana.
Para o estudo de experiências pessoais, o lar de uma pessoa pode oferecer um ponto de observação particularmente interessante (Szakolczai, 2008). Ao contrário de uma cela, onde as regras da prisão governam a quantidade e tipos de pertences pessoais que um preso pode ter, e as formas como ele pode tornar a cela algo seu, o lar é um espaço que pode ser adaptado às necessidades e desejos da pessoa que lá mora. Muito pode ser apreendido sobre uma pessoa simplesmente estudando as formas como decorou sua casa e as histórias que os pertences pessoais contam. Além disso, o lar é um espaço para relações íntimas, nesse caso, com os parentes com quem ele habitava. É um espaço seguro, onde participantes de pesquisa podem se sentir mais à vontade para compartilhar suas histórias pessoais. Finalmente, o lar é o lugar onde o morador escolhe quem pode entrar. As casas que visitei não tinham procedimentos de acesso formais e eu não “requisitei acesso”, me convidando a entrar. Os participantes da pesquisa me convidaram a essas casas.
O participante do exemplo acima depois me disse que queria interagir comigo porque nunca havia visto alguém fazer esse tipo de pesquisa em Myanmar e que pensou que isso teria grande valor. Mais tarde, um amigo em comum me disse que o participante havia dito que era fácil falar comigo sobre suas experiências de prisão porque “eu sabia” porque “havia estado lá dentro”. O fato de que eu tinha experiência trabalhando em prisões em outros países e havia dado a ele a impressão de que entendia as dinâmicas envolvidas foi o suficiente para que ele me posicionasse de certa forma como alguém de dentro da “prisão”.
Em ambos os casos, os egressos foram capazes de usar o espaço como forma de me mostrar suas vidas. Ainda que eu tivesse falado com ambos durante horas e tentado abordar suas experiências por meio de minhas palavras, essas experiências adicionaram outra camada à minha compreensão. Elas ofereceram o que Rhodes chama de “um punctum” (Rhodes, 2015), um momento significativo em que as experiências corporificadas compartilhadas me levaram a percepções sobre o que não podia ser visto ou expresso em palavras. Os egressos usaram a agência que tinham fora da prisão para me levar a lugares e me mostrar os limites da liberdade que haviam reconquistado.
Como eu estava trabalhando fora da prisão, foi possível seguir egressos das prisões em diferentes contextos e adentrar contextos que tinham significância particular para suas experiências de encarceramento e nos quais corriam menos riscos e, assim, se sentiam mais à vontade para compartilhar detalhes mais íntimos de suas experiências. Segundo as escolas alemã e escandinava de Psicologia Crítica, sujeitos são constituídos por meio das diferentes práticas sociais nas quais participam, ao longo de suas trajetórias de vida em meio a essas práticas (Dreier, 2003Dreier, Ole. Subjectivity and Social Practice. 2.ed. Århus: Center for Sundhed, Menneske og Kultur, Institut for Filosofi, Århus Universitet, 2003.). Ser capaz de me deslocar com egressos ao longo de diferentes práticas das quais participam oferece potencial para uma compreensão multifacetada deles. Quando se estuda pessoas em um só contexto, arrisca-se perder de vista as múltiplas práticas das quais participam e das trajetórias ao longo de práticas que as moldam. Se apenas estudarmos presos quando estão na prisão, arriscamos confundir os marcadores de cultura com as diferenças e similaridades individuais que ocorrem como resultada da trajetória ao longo de práticas sociais diferentes das quais os presos participaram antes do encarceramento (Jefferson; Huniche, 2009). Jefferson e Huniche, ambos psicólogos por formação que fazem pesquisa usando metodologia etnográfica, argumentam que seguir pessoas através de diferentes contextos possibilita estudar pessoas em prática. O estudo de pessoas em prática não significa apenas estudar sujeitos e o contexto no qual agem, mas estudar sujeitos tais como são constituídos por meio de sua participação em práticas sociais.
Fazer um trabalho de campo no qual os locais são escolhidos de acordo com onde os sujeitos do estudo participam é, num certo sentido, similar ao trabalho de campo multicêntrico (Marcus, 2011Marcus, George E. Multi-Sited Ethnography: Five or Six Things I Know About It Now. In: Coleman, Simon; Von Hellermann, Pauline (ed.). Multi-Sited Ethnography: Problems and Possibilities in the Translocation of Research Methods. Routledge, 2011.). Contudo, ao invés de defini-lo como trabalho de campo multicêntrico e em locais separados, Jefferson e Huniche argumentam que precisamos desenvolver nossa compreensão do “campo” para abarcar as várias práticas das quais uma pessoa participa:
… uma compreensão mutável (menos geográfica) do campo aproxima o trabalho antropológico do estudo de pessoas em prática, ao invés do estudo de marcadores de cultura (Jefferson; Huniche 2009:16).
Assim, podemos considerar as múltiplas práticas das quais uma pessoa participa como um campo, com esse campo definido da seguinte forma:
Como um construto epistemológico, ele não é necessariamente limitado espacialmente, mas depende da delineação do fenômeno social sob investigação (Meissner; Hasselberg, 2012Meissner, F.; Hasselberg, I. Forever Malleable: The Field as a Reflexive Encounter. In: Hirvi, Laura; Snellman, Hannah. (ed.) Where Is the Field? The Experience of Migration Viewed through the Prism of Ethnographic Fieldwork. Helsinki, Finnish Literature Society, 2012.:87).
Quando aplicamos essa compreensão ao estudo das experiências de encarceramento, o “campo” se expande para as práticas sociais que moldam a forma como a prisão é vivenciada, isto é, às vidas dos presos antes e depois do encarceramento.
Nos dois exemplos acima, ser capaz de participar de outros contextos e práticas que são parte das vidas de egressos nos permite compreender a prisão como apenas um ponto nodal em suas trajetórias de vida. Essa abordagem oferece uma compreensão profunda dos egressos, enquanto a prisão como instituição é minimizada como um contexto dentre muitos.
Ao mesmo tempo em que estudo “o campo”, ele se torna parte de minha própria trajetória, que, quando visível a outros, afeta as formas como posso ser posicionada e, assim, o acesso que consigo obter. Minha trajetória de vida não apenas afeta a forma como sou vista, mas também a forma como vejo minha experiência subjetiva (Holzkamp, 2013Holzkamp, Klaus. Psychology from the Standpoint of the Subject: Selected Writings of Klaus Holzkamp. Basingstoke, Palgrave Macmillan, 2013.). Vi o campo através de uma lente específica, influenciada pelas histórias que havia ouvido antes, de egressos e funcionários de prisões em Myanmar, e por minhas experiências dentro de prisões nas Filipinas, no Líbano e em Serra Leoa (Jefferson; Gaborit 2015Jefferson, Andrew M.; Gaborit, Liv S. Human Rights in Prison. Basingstoke, Palgrave Macmillan, 2015.).
Posições de pesquisadores como pontos de observação
O posicionamento é um processo contínuo e, assim sendo, uma discussão geral sobre os pontos de observação oferecidos por minhas posições durante todo o período de trabalho de campo é arbitrária. Fui posicionada de formas diferentes em vários momentos por várias pessoas em várias situações. Em alguns momentos, tentei administrar a forma como era posicionada, em outros, fui posicionada sem saber plenamente como ou por que, ou até mesmo contra meus desejos. Esta seção discute algumas das instâncias nas quais a forma como fui posicionada teve um efeito claro nas compreensões que pude acessar ou não.
Ao discutir posições, pesquisadores com frequência se descrevem de acordo com certas dimensões, tais como gênero, classe e raça. De acordo com essas dimensões, eu poderia ser descrita como uma mulher branca (dinamarquesa) de classe média. Contudo, essas dimensões não são fixas, mas podem ser performadas e interpretadas de múltiplas formas:
Todos os exemplos sugerem que encontrar uma equivalência entre a identidade de pesquisadores e as categorias disponíveis nos campos é uma questão de negociação habilidosa de processos de interações simbólicas, e não uma casualidade. Mesmo traços aparentemente inflexíveis como gênero ou raça podem ser apresentados sob uma variedade de formas, algumas das quais são mais estratégicas do que outras (Harrington, 2003Harrington, Brooke. The Social Psychology of Access in Ethnographic Research. Journal of Contemporary Ethnography 32(5), 2003, pp.592-625.:605).
Essas características não eram fixas, mas sim flexíveis, e podiam ser moldadas para adequar-se a diferentes posições. Para compreender o processo iterativo de posicionamento, é importante olhar mais de perto como essas e outras características são colocadas em jogo, e, para esta análise, como elas afetam o conhecimento a que tenho acesso. Para as reflexões gerais sobre essas características, quero adicionar que eu não era apenas branca ou dinamarquesa. Em Myanmar, eu era uma “estrangeira”, uma estranha agrupada com os colonialistas do passado e os trabalhadores humanitários e diplomatas do momento atual. Ciente das conotações dessa posição, fiz todo o possível para deixar claro que, ao invés de vir de fora com regras e recomendações, havia vindo para aprender, e que via os participantes de minha pesquisa como especialistas.
Ser uma mulher foi um fator complexo no trabalho de campo, cujos efeitos sobre minhas interações no campo admito não compreender completamente. Concepções tradicionais de gênero em Myanmar tendem a atribuir mais autoridade a homens do que a mulheres. No contexto cosmopolita de Yangon, contudo, esses papéis de gênero vêm sendo questionados e há muitos exemplos de mulheres sendo respeitadas como autoridades. No meu caso, adicionar a qualificação de mulher jovem subtrairia ainda mais de minha possível autoridade, enquanto o fato de que sou doutoranda em uma universidade estrangeira adicionaria à minha autoridade. Ao mesmo tempo, me vestia com uma combinação de roupas tradicionais birmanesas e roupas ocidentais. Na maioria dos dias, usava uma longyi (saia birmanesa) e camiseta. Em alguns casos, isso me ajudou a me encaixar, em outros, me fez parecer mais conservadora do que as jovens birmanesas. Como eu interagia predominantemente com homens que cresceram num tempo quando ainda não era normal que mulheres birmanesas se vestissem de forma progressista, inspirada na moda coreana e ocidental, optei por me vestir de forma mais conservadora.
Dados não são apenas algo que coletamos. São gerados por meio de nosso engajamento com o campo, quando ligamos nossos gravadores, levamos uma caneta ao papel ou apertamos o botão de nossas câmeras. Isso tem consequências para a forma como pensamos sobre acesso. Não podemos mais conceber o acesso como algo de que necessitamos para chegar ao lugar onde podemos coletar dados, mas como um processo iterativo e intersubjetivo. Nesse processo, as formas como o pesquisador é posicionado em interações com participantes afetam que dados é possível acessar e gerar.
Durante meu trabalho de campo, houve várias instâncias nas quais ficou claro para mim que a forma como estava sendo posicionada afetava meu acesso ao campo. Uma instância ocorreu numa manhã, durante o café da manhã com yogis do lado de fora do centro de meditação onde ocasionalmente participava de seções semanais em grupo. O centro de meditação é ligado a retiros de meditação que ocorrem dentro de prisões, e alguns dos yogis são egressos. À mesa de café da manhã, dois egressos me apresentaram aos outros yogis. Previsivelmente, fui apresentada como uma pesquisadora da Dinamarca que estava escrevendo uma tese sobre as prisões em Myanmar. Contudo, a próxima parte da introdução, descrita aqui em um trecho de meu diário de campo, me surpreendeu:
Ele então adicionou que meu tio meditava há 25 anos e também estava praticando o método U Goenka aqui na Birmânia. Aung5 5 Pseudônimo. o corrigiu e disse que na verdade meu tio havia encontrado esse método apenas recentemente. Eu confirmei que foi há dois anos. Aung adicionou que agora meu tio acreditava que essa era a melhor forma de meditar do mundo. Não tenho certeza de que isso é exatamente certo, mas deixei para lá (Diário de campo, 2017).
Só pude estar presente nesse café da manhã porque havia me tornado uma antiga aluna – alguém que havia participado de ao menos um retiro de 10 dias com essa escola em particular. Contudo, ainda era uma novata no grupo, pois, a essa altura, fazia poucos meses que frequentava o centro. Ao invés de compartilhar essa informação, os yogis escolheram compartilhar a história do envolvimento de longa data do meu tio com o método e me posicionar, por extensão, como alguém de dentro.
Isso mostra as vastas possibilidades para usar vários aspectos de nossas experiências anteriores e características quando examinamos como uma pesquisadora é posicionada e como isso afeta seu acesso ao campo. Precisamos, portanto, olhar não apenas para as categorias clássicas, como gênero, religião e classe, mas também para os processos complexos por meio dos quais aspectos de nossa autobiografia são colocados em jogo. Nesse caso, fomos até além de minha autobiografia e incluímos experiências de um parente.
À medida que o trabalho de campo progredia e eu passava mais tempo em Yangon, não apenas a minha história, mas também as conexões que fiz no campo ganharam importância. Como o trabalho de campo foi realizado fora das prisões, tive a oportunidade de realizar uma imersão por meio do trabalho de campo de longa data – num nível raramente possível para etnógrafos que realizam seus trabalhos de campo dentro de prisões.
Bandyopadhyay descreve as limitações e desafios que etnógrafos de prisões enfrentam quando trabalham dentro de uma prisão durante um tempo limitado e sob a governança das autoridades prisionais. Enquanto Schartz (2009) nos encoraja a pensar sobre o acesso não como um dentro/fora binário, mas a buscar o ponto de observação mais próximo, Bandyopadhyay nos lembra que o acesso é um processo contínuo. Ela descreve como, durante seu trabalho de campo, estava a todo tempo tentando equilibrar as tentativas de construir uma conexão com os presos com a manutenção da distância que era vital para continuar a ter permissão para acessar a prisão. Além disso, ela descreve como o acesso limitado com frequência confronta o pesquisador com uma limitação temporal:
A estruturação oficial do tempo do pesquisador e dos sujeitos, a contradição de sujeitos terem todo o tempo do mundo, e no entanto não terem controle suficiente sobre ele para dedicá-lo ao pesquisador como e quando mutuamente conveniente, a urgência de coletar dados rapidamente e o lento processo de obter confiança – todas essas questões definem o tempo no trabalho de campo em prisões (Bandyopadhyay, 2015Bandyopadhyay, Mahuya. Deviation and Limitations of (Prison) Ethnography: Postscript to Fieldwork in an Indian Prison. In: Drake, Deborah; Earle, Rod; Sloan, Jennifer (ed.). The Palgrave Handbook of Prison Ethnography. Basingstoke, Palgrave Macmillan UK., 2015, pp.442-62.:453).
Tanto os presos quanto os pesquisadores são submetidos à estruturação oficial do tempo, ainda que de formas distintas. Ao fazer pesquisa fora da prisão, é possível evitar as limitações impostas pelas estruturas oficiais da prisão descritas por Bandyopadhyay. Trabalhando nas ruas de Yangon, não fui limitada por autoridades me dirigindo a ficar em certas áreas, manter distância de (ex) presos ou ir e vir em certos horários. Pude deixar as vidas dos egressos serem os princípios-guia para onde ir e quanto tempo ficar. Ainda assim, precisava estar ciente de como minha presença em diferentes contextos e relações com diferentes pessoas poderiam afetar a forma como era percebida pelas autoridades se quisesse obter acesso às prisões em algum momento, e em relação a vários grupos de egressos, que em alguns casos tinham opiniões conflitantes. Assim, enquanto pude me mover mais livremente fora das limitações das prisões, algumas limitações permanecem em qualquer campo em que etnógrafos se engajam.
Minhas múltiplas alianças foram colocadas em jogo por vários atores. Em um momento, um egresso que sabia que eu estava negociando com as autoridades para conseguir acesso à prisão me disse “fale com seus amigos no ministério”. Resisti a ser posicionada como alguém com amigos no Ministério de Assuntos Internos por alguém que havia sido preso devido a sua luta contra essas autoridades e que ainda estava engajado nessa luta. Quando finalmente obtive acesso à prisão, as autoridades prisionais me confrontaram com uma foto minha em uma casa de chá com um egresso que era um crítico ferrenho do sistema prisional. Era o mesmo egresso que havia me levado à casa de chá frequentada por agentes penitenciários, descrita acima. Sabia que ele havia publicado fotos de nossos encontros em sua página no Facebook e que elas receberam muita atenção. As autoridades me perguntaram o que eu estava fazendo com ele. Calmamente respondi que conversei com ele sobre suas experiências, assim como havia conversado com muitos outros egressos. As autoridades me perguntaram se ele havia dito más coisas sobre sua prisão, respondi que ele havia dito coisas boas e más, assim como muitos outros, e que eu tinha certeza de que conheciam suas críticas da prisão. Quando fui inicialmente confrontada com a foto, temi que isso causaria problemas, mas após minha explicação curta, a foto foi guardada e a atmosfera tornou-se mais relaxada. Não havia perdido o acesso para adentrar os portões da prisão, mas havia certamente sido posicionada de uma forma que afetaria o nível de confiança de alguns dos agentes penitenciários e, portanto, meu acesso enquanto estivesse lá dentro. As várias situações das quais participei não apenas ofereceram diferentes pontos de observação – também fui observada quando acessei pontos de observação. Nesse caso, o ponto de observação serviu como plataforma para o egresso mostrar nossa conexão ao mundo.
Esses dois exemplos mostram como minhas conexões afetam a forma como sou posicionada. E minhas próprias reações mostram como me sinto mais confortável em certas posições do que em outras. Para os propósitos deste estudo, busquei lançar uma rede ampla para conectar-me com vários atores. Como uma pessoa, contudo, minha lealdade aos presos é mais forte do que às autoridades. Portanto, me senti desconfortável quando fui posicionada como tendo “amigos no ministério”. Ser associada a um crítico da prisão, por outro lado, gerou preocupação quanto às possíveis consequências dessa posição, mas, como abolicionista, não me senti desconfortável quanto a como era percebida. Isso remete ao longo debate dentro da pesquisa em prisões quanto a “de que lado estamos” (Becker, 1967Becker, Howard S. Whose Side Are We On? Social Problems 14(3), 1967. pp.239-47.; Liebling, 2001Liebling, Alison. Whose Side Are We on? Theory, Practice and Allegiances in Prisons Research. British Journal of Criminology 41(3), 2001, pp.472-84.; Sim, 2003Sim, Joe. Whose Side Are We Not on? Researching Medical Power in Prisons. In: Tombs, Steve; Whyte, Dave. Unmasking the Crimes of the Powerful: Scrutinizing States and Corporations. New York, Peter Lang International Academic Publishers, 2003.) e a noção de Skidmore de “escrever contra o sofrimento humano” (2004). Também ilustra que a questão do equilíbrio entre a construção de conexões e o distanciamento não é exclusiva ao trabalho dentro de prisões. Dentro de prisões, o risco de os portões serem fechados pode até aumentar a importância desse equilíbrio e prevenir o pesquisador de se aproximar “demais” dos presos, dado que as autoridades prisionais podem vigiar seu trabalho. Fora da prisão, tive o privilégio de estar fora de vista – tanto de participantes de pesquisa que podem ter opiniões divergentes quanto de autoridades cuja aprovação precisaria obter para conseguir acessar as prisões. Isso me permitiu me deslocar entre grupos distintos. Com o tempo, contudo, à medida em que me estabeleci mais no campo e minhas conexões se tornaram mais fortes e estáveis, minhas posições passaram pela mesma transformação. Não era mais uma novata com um histórico em branco; eu era uma yogi da tradição U Goenka, alguém que havia falado com muitos egressos políticos e alguém que havia obtido acesso à prisão. Todas essas posições me atribuíam autoridade para falar sobre as prisões, mas eram também posições que reduziam o campo no qual podia escolher meus pontos de observação. À medida em que o tempo passava, me familiarizei com as vistas dos pontos de observação que havia acessado, ainda que minha flexibilidade para acessar novos pontos de observação a partir de diferentes posições tenha sido limitada.
Posfácio – a vista desde dentro
Quando me restavam menos de três meses em meu trabalho de campo, recebi um e-mail dizendo que havia sido concedida acesso à Prisão Central Insein em Yangon. Junto de meu assistente de pesquisa, revisei a carta de permissão. À medida em que ele traduzia, percebemos que ela estipulava que meu acesso seria permitido em três datas específicas, a primeira das quais no dia seguinte. Em poucos instantes, minha situação havia mudado. Ao longo das duas semanas seguintes, realizei três visitas à Prisão Central Insein e, um mês depois, visitei a prisão mais uma vez para realizar um workshop com os funcionários superiores da prisão.
A sede do Departamento de Prisão de Myanmar me assegurou que medidas especiais de segurança foram adotadas para os dias em que eu faria minhas visitas. Dentro da prisão, fui acompanhada por dois agentes penitenciários superiores, um homem e uma mulher, e um agente penitenciário júnior documentou as visitas com uma câmera. Quando atravessamos o complexo prisional para chegar à ala de meditação onde realizei parte de meu trabalho, a equipe saudou meus acompanhantes superiores e todos os presos se agacharam. Ainda que estivesse finalmente do lado de dentro dos portões, ficou claro que não tinha acesso para observar a vida cotidiana normal dentro da prisão. Minhas visitas me ofereceram um ponto de observação específico, vendo a prisão por meio de uma visita extraordinária. Ainda assim, era um ponto de observação que revelou muito sobre a prisão. Ainda que partes da visita tenham mostrado uma visão embelezada da prisão, uma charada sob o controle das autoridades, a prisão às vezes mostrava seu lado feio. Vi presos caírem através das portas, de tamanho menor do que humano, quando forçados a usar correntes em seus pés para ir à corte, presos removendo correntes de seus próprios pés usando martelo e bigorna, e ouvi o nível ensurdecedor de som fora das salas de visita. Vislumbrei o que as autoridades queriam que eu visse e também o que eles prefeririam que permanecesse escondido. À medida que as visitas progrediram, tornou-se possível me deslocar a mais áreas da prisão, e minha comitiva se reduziu a apenas um agente penitenciário.
Durante as visitas, pude entrevistar 10 presos, sempre com funcionários da prisão presentes, visíveis, mas suficientemente distantes para que não conseguissem ouvir o que era dito. As entrevistas ocorreram na ala de meditação, na ala feminina, e no escritório de um agente penitenciário superior. Todos os presos apareceram para suas entrevistas vestindo suas melhores roupas. Os homens estavam vestindo os uniformes padrão de prisão azuis, que estavam mais limpos do que os uniformes usados pela maioria dos presos que vimos. As mulheres estavam vestindo camisas brancas e longyi marrons, que é como se vestiam quando saíam da prisão para ir à corte. A ala de meditação tinham o ambiente mais relaxado, e aqui os entrevistados agiram mais livremente, compartilhando opiniões e histórias sobre suas vidas do que não eram diretamente exigidas por minhas perguntas. Na ala feminina, o grau de liberdade com que as entrevistadas participaram das entrevistas variou, e essa variação pareceu em alguma medida relacionada com o nível de autoridade da presa sendo entrevistada. Na sala do agente penitenciário, as entrevistas foram mais formais. Uma entrevista praticamente pareceu uma prova, dado que o entrevistado estava muito nervoso ao entrar na sala e mencionou que não estava seguro de que suas respostas eram boas o suficiente, pois “nunca havia participado de um pergunta e resposta assim”. A situação tornou-se mais complicada pelo fato de que sua língua materna era uma língua étnica que meu tradutor pouco dominava e o preso falava pouco birmanês. Ele se acalmou assim que eu assegurei que não havia respostas certas ou erradas para minhas perguntas e que eu me identificava com ele em termos de suas dificuldades com a língua birmanesa, dado que ainda não tinha sido capaz de dominá-la após um ano de estudos. Assim como do lado de fora da prisão, o conteúdo das entrevistas variou de acordo com o contexto onde ocorreram. Os contextos variaram entre uma ala de meditação familiar e um escritório que servia aos funcionários, e não aos presos. Mais importante, nenhum desses lugares foi escolhido pelos presos. Ainda que as entrevistas tenham gerado dados ricos sobre uma parte específica da vida dos presos na prisão, suas experiências com meditação, elas representam apenas um fragmento do que estar preso significa para eles.
As visitas à prisão me permitiram vislumbrar o contexto misterioso com o qual trabalhava há tanto tempo, mas que nunca havia visto. A visita incluiu poucas surpresas, mas confirmou a compreensão da prisão que eu havia obtido com base no trabalho de campo do lado de fora. O medo prévio sobre se eu entendia esse lugar que nunca havia visitado foi aliviado.
A visita à prisão era crucial para compreender as experiências de encarceramento? Sim e não. Fora da prisão, um espectro mais amplo de pontos de observação e tempo adequado para me aproximar de participantes criou possibilidades ricas para acessar experiências íntimas e os múltiplos contextos sociais que constituem egressos. Dentro da prisão, era um desafio, se é que era possível, construir a confiança necessária para conseguir acessar experiências pessoais desse tipo, e elas só podiam ser compreendidas por meio de uma prática social específica da qual o preso participava no momento. Portanto, o acesso a prisões não era essencial para o estudo das experiências de encarceramento, ainda que tenha oferecido um valor adicional por meio da familiaridade com a prisão, um sabor adicional às histórias que havia ouvido antes. Para estudos de outros aspectos do encarceramento, o acesso ao lado de dentro das prisões provavelmente tem importância maior. Por exemplo, durante as visitas à prisão, foi possível observar as interações sociais – entre presos e também entre presos e funcionários – em detalhe.
Conclusão
Se prisões são tão inacessíveis, por que não deixar esses contextos tão desafiadores para trás e se dedicar a países onde os portões das prisões são abertos com maior facilidade? Ou instituições que são abertas ao escrutínio de pesquisadores? Porque é necessário escrutinar o que ocorre por trás de portas fechadas (Jefferson, 2014Jefferson, Andrew M. Lines of Flight – On the Desire to Know but Not Know Prisons. Newsletter of European Group for the Study of Deviance and Social Control, May 2014 [http://www.europeangroup.org/media/242#overlay-context=content/newsletters].
http://www.europeangroup.org/media/242#o...
). Como Schatz (2009Schatz, Edward (ed.). Political Ethnography: What Immersion Contributes to the Study of Power. Chicago; London, University Of Chicago Press, 2009., 307) afirmou em relação à etnografia política:
Se deixarmos que a acessibilidade relativa dite os termos do engajamento em pesquisa, muitas questões fundamentais sobre política permanecerão sem respostas.
Lidar com essas questões fundamentais e adentrar campos de pesquisa desafiadores demanda reflexões metodológicas minuciosas. Isso cria um potencial para o desenvolvimento criativo da metodologia etnográfica (Reiter, 2014Reiter, Keramet. Making Windows in Walls Strategies for Prison Research. Qualitative Inquiry 20(4), 2014, pp.417-28.). Etnógrafos de prisão podem aprender com etnógrafos políticos ou psicólogos críticos, assim como podem compartilhar lições aprendidas do engajamento com um contexto extremamente desafiador com etnógrafos que trabalham em campos aparentemente acessíveis. Ainda que essas conclusões sejam desenvolvidas por meio da análise da etnografia de prisões, elas geram questões relevantes para toda a etnografia.
Para concluir, retornemos às principais questões deste artigo – o que é acesso? E qual é o ponto de observação mais próximo? Assim como pesquisas anteriores, este artigo demonstrou como o acesso é um processo iterativo. A análise exemplificou como a reflexão acerca das próprias posições no campo pode aumentar as oportunidades de acesso a múltiplos pontos de observação possíveis no campo, bem como melhorar a compreensão dos dados. Por fim, o artigo defendeu uma compreensão do campo como um fenômeno social, e não uma localização geográfica.
Ao fazer pesquisa em prisões, “o campo” é mais do que a prisão. Ao estudar as experiências de encarceramento, o campo é constituído por todos os contextos incluídos no fenômeno social do encarceramento (Jefferson; Huniche, 2009; Meissner; Hasselberg, 2012Meissner, F.; Hasselberg, I. Forever Malleable: The Field as a Reflexive Encounter. In: Hirvi, Laura; Snellman, Hannah. (ed.) Where Is the Field? The Experience of Migration Viewed through the Prism of Ethnographic Fieldwork. Helsinki, Finnish Literature Society, 2012.). Presos e funcionários têm um vida fora da prisão – ainda que às vezes seja uma experiência passada ou um futuro imaginado. Portanto, o lado de dentro da prisão não é sempre o local mais adequado para a pesquisa em prisões. Dependendo do tópico de pesquisa específico, outros locais podem oferecer ponto de observação tão bons quanto, ou até mesmo melhores. Isso requer que pesquisadores de prisões não apenas busquem acesso ao interior das prisões, mas também às vidas dos presos antes e depois do encarceramento. Essas tarefas podem ser tão desafiadoras quanto a obtenção de autorização oficial para adentrar a prisão. Não é fácil identificar possíveis futuros presos ou buscar egressos tentando fugir do estigma do rótulo “preso” (Gaborit, em preparação).
Este artigo demonstra a importância de se examinar as trajetórias de vida de (ex-) presos devido ao efeito que têm na forma como (ex-) presos atribuem sentido às experiências de encarceramento. Ao seguir presos enquanto se deslocam através do espaço e do tempo, ao ir além das limitações da realização de trabalho de campo apenas “dentro” de prisões, é possível compreender melhor prisões como instituições e os efeitos que têm sobre as pessoas que passam por elas. Essa abordagem tem consequências não apenas para nossa compreensão de prisões e encarceramento, mas também para a compreensão geral do “campo” da etnografia. Ela demonstra um potencial de compreensão do “campo” como uma rede emaranhada criada pelas trajetórias de vida dos participantes do fenômeno social sob estudo. Ela demanda que etnógrafos vão além de uma compreensão binária do acesso como determinado por um lado de dentro e um lado de fora, ao contrário, vendo-se como se deslocando dentro da rede de trajetórias de vida que compões o fenômeno social do campo.
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-
1
Harrignton identifica o uso intercambiável das palavras “acesso”, “conexão” e “entrada” como um dos indicadores da falta de reflexão conceitual sobre acesso. Seguindo Harrington (2003Harrington, Brooke. The Social Psychology of Access in Ethnographic Research. Journal of Contemporary Ethnography 32(5), 2003, pp.592-625.:599), “este artigo empregará o termo “acesso” porque – ao contrário de entrada e conexão – o acesso chama a atenção para o objetivo social-científico da etnografia: o acesso à informação”.
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2
O trabalho de campo dividiu-se em duas partes: a primeira, com duração de 8 meses, ocorreu entre outubro de 2016 e junho de 2017, e a segunda, com duração de 6 meses e meio, ocorreu entre fevereiro e agosto de 2018.
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3
Definida como o subcampo da etnografia dedicado a procedimentos formais da política e sua implementação (Schatz, 2009Schatz, Edward (ed.). Political Ethnography: What Immersion Contributes to the Study of Power. Chicago; London, University Of Chicago Press, 2009.; Stepputat; Larsen, 2015Stepputat, Finn; Larsen, Jessica. Global Political Ethnography: A Methodological Approach to Studying Global Policy Regimes. 1. DIIS Working Paper, Copenhagen, DIIS, 2015.).
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4
Definida como o subcampo específico da psicologia crítica alemã e escandinava como uma ciência de sujeitos (Holzkamp, 2013Holzkamp, Klaus. Psychology from the Standpoint of the Subject: Selected Writings of Klaus Holzkamp. Basingstoke, Palgrave Macmillan, 2013.).
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5
Pseudônimo.
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Agradeço aos egressos prisionais que me acolheram e compartilharam suas experiências para esta pesquisa. Também gostaria de agradecer ao Departamento de Prisões de Myanmar por confiar a mim o acesso a uma de suas prisões. Por último, agradeço a Bjørn Thomassen, Andrew Jefferson e Tomas Martin pelos comentários úteis oferecidos a este artigo. Esta pesquisa foi financiada pelo Ministério das Relações Exteriores da Dinamarca como parte do projeto de pesquisa Legados da Detenção em Myanmar. Tradução: Thaís Camargo.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Dez 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
-
Recebido
5 Dez 2018 -
Aceito
23 Abr 2019