Resumo
O objetivo deste artigo é apresentar o papel da intervenção pedagógica do Programa Escola Cidadã no empoderamento das meninas-mulheres negras de comunidades escolares da cidade de Ibirité-MG. Para isso, foram entrevistadas 11 meninas negras participantes do Programa. Diante do cenário de baixa representatividade da mulher negra na política, verifica-se que o Escola Cidadã além de contribuir para a ampliação do protagonismo das meninas e mulheres negras, tem oportunizado um ensaio da atuação parlamentar para uma ocupação futura dos espaços de poder representativo.
Menina Negra; Representatividade Política; Educação para Cidadania; Racismo Institucional
Abstract
The purpose of this article is to present the role of pedagogical intervention of the Citizen School Program in the empowerment of black girls and women from school communities in the city of Ibirité, Minas Gerais, Brazil. Eleven black girls participating in the Program were interviewed. Given the low representation of black women in politics, it was found that the Citizen School, in addition to expanding the protagonism of black girls and women, has provided an opportunity to practice parliamentary performance to support a future occupation of spaces of representative power.
Black Girls; Political Representation; Education for Citizenship; Institutional Racism
1. Introdução
Ao destacar a presença/ausência da menina-mulher1 negra em espaços públicos, como a escola e demais instituições do Estado, é preciso relembrar a história de Ruby Bridges, “[...] a primeira criança negra a frequentar uma escola integrada no sul dos EUA, na época com seis anos de idade” (Gouvêa, 2017:1). Em 1960, após uma imensa pressão dos movimentos de luta pelos direitos civis, o governo estadunidense implementou o programa de integração racial nas escolas do sul do país, onde até então muitas delas não contavam com a presença de crianças negras. Essa mudança na política educacional local provocou uma forte reação de movimentos segregacionistas, condicionando Ruby a conviver durante anos com a agressividade de outras crianças e famílias. Na visão de Ruby, demorou um pouco para ela compreender que essa intolerância era motivada pela cor de sua pele (Gouvêa, 2017).
Considerando o contexto brasileiro, é preciso refletir sobre a quantidade de meninas negras que também passaram e passam por esse tipo de violência sofrida por Ruby ao ingressarem nas escolas, tendo em vista que o Brasil é historicamente racista e machista. Nesse sentido, é importante destacar uma entrevista recente das professoras Gina Vieira Ponte e Joana D´Arc Félix a um programa de televisão nacional (Ponte; Félix, 2017), onde elas relataram situações racistas que vivenciaram no período da infância escolar por serem meninas negras.
A luta política pelo direito de ter acesso à escola ainda está presente no cotidiano de muitos países no mundo, como por exemplo, no Paquistão. A paquistanesa Malala Yousafzai, a menina mais jovem a ganhar um Prêmio Nobel da Paz, sofreu uma tentativa de homicídio em 2012, quando tinha apenas 15 anos, por defender o direito das meninas de seu país de frequentarem a escola. Essa luta em defesa dos Direitos Humanos, entre eles o acesso à educação de qualidade, marcou e marca a história de vida de várias meninas-mulheres, como Ruby, Malala Yousafzai, Gina, Joana e Marielle Franco. Esta última foi uma mulher, negra, brasileira, vereadora e oriunda da Favela da Maré - Rio de Janeiro (RJ). Foi brutalmente assassinada em 2018, deixando como legado a luta pelos direitos das mulheres, evidenciando que é urgente a ocupação de espaços de poder em busca de equidade, principalmente, das mulheres negras.
A experiência educativa que realizamos no município de Ibirité - Minas Gerais - Brasil, por meio do Programa Escola Cidadã e que será abordado adiante, dialoga com a luta dessas várias mulheres. Conhecer um pouco sobre a história de vida de Ruby, Gina, Joana, Malala, Marielle e sobre a experiência de nossas meninas negras, é algo que nos toca de forma profundamente humana e deixa mais evidente a dimensão das raízes racistas e machistas do Estado brasileiro, assim, como de vários países do mundo.
2. A mulher negra e sua representatividade na política brasileira
A participação da mulher na política brasileira é relativamente recente, já que somente a partir do código eleitoral de 1932 se tornou possível o voto feminino restrito a mulheres casadas e com autorização dos maridos, ou a mulheres que possuíssem renda própria. Estes fatores inviabilizavam em grande medida a mulher negra, marginalizada na sociedade do período, relegando a enorme maioria destas a uma subcidadania.
Nos anos de 1930 o cenário político brasileiro era conturbado. E mesmo diante disso, em 1935 houve a eleição da primeira mulher negra brasileira para a Assembleia Constituinte de Santa Catarina: Antonieta de Barros. Apesar do pioneirismo de Antonieta, pouco se avançou nos últimos 80 anos em relação à representatividade da mulher negra em variadas instâncias.
No âmbito do poder legislativo a situação apresenta uma lenta transformação. Ao longo desse período importantes conquistas foram alcançadas, como a posse de Benedita da Silva em 2002, como primeira governadora negra do Brasil, após a renúncia do então governador Anthony Garotinho. Houve, também, figuras combativas em outras legislaturas, como a deputada Leci Brandão em São Paulo e a Vereadora Marielle Franco no Rio de Janeiro, citada anteriormente.
O atual cenário político brasileiro é marcado por uma discrepância entre representantes e representados nos cargos eletivos, seja pelo recorte de classe, gênero ou raça. Os números relativos à composição da Câmara dos Deputados em 2014 ilustram bem esse cenário. O resultado do pleito aponta que: 80% dos deputados eleitos eram homens e brancos; e apenas 2,1% eram mulheres pretas ou pardas. E ao ter como referência apenas as deputadas pretas, esse número cai para 0,6% (Macedo, 2014).
Os dados do último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que as mulheres representam 97.348.809 (aproximadamente 51%) da população do país. Desse total, 41.672.013 (42,8%) são pardas e 6.910.918 (7,1%) são pretas (IBGE, 2010). Ao cruzar os dados referentes à população e composição na Câmara, fica evidente a disparidade da representatividade da mulher negra na política brasileira.
Segundo o relatório A participação das mulheres negras nos espaços de poder:
A compreensão dos mecanismos de exclusão e a elaboração de respostas institucionais que desafiem o racismo e o patriarcado pressupõem o exame das dinâmicas de dominação sobre as mulheres negras. Por isso, estudiosas e militantes do feminismo negro têm buscado mostrar especificidades da opressão, resultantes da intersecção de raça e gênero, a partir de uma “perspectiva racial de gênero” (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, 2013:11).
Desta feita, é imprescindível partir de uma análise que integre a perspectiva de gênero e raça para melhor compreender o baixo índice de elegibilidade das mulheres pardas e pretas no Brasil.
Conforme o mesmo relatório indica:
Não existem barreiras institucionais explícitas à atuação das mulheres negras como parlamentares ou servidoras públicas federais, uma vez que não existem leis e normas que proíbam sua presença nestes espaços. No entanto, práticas racistas e sexistas impõem obstáculos à sua inserção em postos políticos de destaque (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, 2013:12).
Dentre esses obstáculos, podem ser considerados fatores sociais como poucas possibilidades de acesso a diversos recursos e condições básicas de estudo, saneamento básico e creches para seus filhos, por exemplo. Há, ainda, problemas relacionados à violência simbólica, em que são construídos estereótipos extremamente negativos aos quais as mulheres negras são submetidas socialmente. Por conta desses estereótipos, as mulheres negras são constantemente questionadas em relação à sua capacidade de liderança, de execução de trabalhos intelectualizados e de gestão (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, 2013).
Essa violência simbólica atua em duas dimensões: cerceando espaços que poderiam ser ocupados por essas mulheres e na desconstrução paulatina da visão de que esses espaços de poder podem e devem ser ocupados por elas.
Para além das dimensões social e simbólica que interferem na baixa presença de mulheres negras nos espaços de poder, incidem outras limitações dadas pela própria estrutura de financiamento de campanha determinadas pelos partidos políticos, como por exemplo: 1º) ainda que a Lei n.º 12.034/2009 (BRASIL, 2009) tenha estabelecido que 5% do orçamento dos fundos partidários devem ser designados para formação de mulheres na política; 2º) ainda que esta lei garanta 10% do tempo de televisão para as mulheres; e 3º) ainda que a Lei 9.504/1997 (BRASIL, 1997) torna obrigatório garantir a elas 30% das vagas partidárias - não há qualquer referência ou garantia de que estes recursos beneficiem as candidatas negras (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, 2013).
3. Raça e gênero no Programa Escola Cidadã de Ibirité-MG
Ao analisar a implementação de um programa2de ações pedagógicas e formativas voltadas à cidadania no município de Ibirité, é preciso levar em conta o contexto mandonista, clientelista e assistencialista que historicamente marca o espaço público desta cidade e de muitos municípios brasileiros (Silva; Nanô; Silva, 2018).
O cenário político de Ibirité/MG é baseado em um histórico de baixo estímulo à participação popular na política local. E considerando, também, os fatores relacionados às questões de raça e gênero apresentados na introdução deste texto, houve, então, a motivação e a mobilização para a estruturação de práticas pedagógicas no ano de 2017 voltadas ao estímulo dos (as) estudantes à ocupação dos espaços de poder através de um projeto denominado “Câmara Mirim”3. Essa atividade consistiu na organização de um legislativo mirim formado por crianças e jovens com idade entre 10 a 15 anos. E durante a vigência do projeto os (as) estudantes passaram por um processo de formação voltado para a atuação de vereadores (as) e deputados (as). De forma simbólica, puderam vivenciar a experiência do exercício de ser um (a) parlamentar no município e na Câmara dos Deputados, no Distrito Federal. Este projeto foi implementado na Escola Municipal Maria das Mercês Aguiar, Ibirité/MG e devido ao impactado gerado na comunidade escolar, na cidade, na Câmara Municipal dos Vereadores e na Prefeitura local, em 2018 foi ampliado também para outras cinco escolas por meio do Programa Escola Cidadã.
De acordo com o documento oficial desse Programa (Ibirité, 2018:1), o Escola Cidadã de Ibirité se inspira na concepção pedagógica do educador Paulo Freire e tem como objetivo: “[...] promover através da escola a participação dos (as) estudantes na vida política de suas comunidades e no aperfeiçoamento do sistema democrático-representativo de nossa cidade, estado e país”. As ações do Programa foram: um curso de formação dos (as) professores (as) em escola cidadã com carga horária de 320 horas; um subprojeto em cada uma das seis escolas com tema específico definido pela comunidade escolar; a realização de um congresso dos (as) estudantes denominado “Dia da Cidadania”; a publicação de livros por meio da editora ligada ao Programa (Silva; Nanô; Silva, 2018; Silva; Silva; Caetano, 2018); o projeto Câmara Mirim de Ibirité, que em 2018 foi organizado e implementado junto à Câmara Municipal dos Vereadores; e o projeto Câmara Mirim 2018 realizado junto à Câmara dos Deputados em Brasília. Todo o processo de formação e experiências que envolveram os (as) professores (as) e os (as) estudantes foi realizado no período de fevereiro a dezembro do ano letivo, trazendo como temática central o aprofundamento das relações raciais e de gênero no contexto social e político.
As ações do Programa Escola Cidadã foram muito relevantes. No entanto, a que gerou maior impacto no contexto político-educacional da cidade foi a experiência construída nas atividades do projeto Câmara Mirim. Para a constituição da bancada do legislativo mirim foi realizado um trabalho antes e após essa etapa. A definição dos (as) 30 estudantes4que ocuparam as vagas do legislativo mirim foi realizada por meio de eleição organizada em cada escola. Para ter a candidatura aprovada, o (a) estudante interessado (a) era avaliado (a) previamente pelo grupo de professores (as), em relação ao seu engajamento durante as ações de educação para a cidadania realizadas em sua escola. Após os registros das candidaturas, o grupo docente era responsável por publicar o deferimento delas, e, assim, era realizado o pleito eleitoral para que os (as) próprios (as) estudantes da escola elegessem os (as) seus (as) representantes5.
É importante ressaltar nas ações do projeto Câmara Mirim a representatividade de meninas negras alcançada entre os (as) 30 parlamentares mirins:
Conforme foi mostrado nos gráficos 1 e 2, é possível observar que há uma ampla participação das meninas-mulheres na composição da bancada do legislativo mirim, aproximadamente de 71% em 2017 e 66% em 2018. E dentro do grupo geral considerando as categorias estabelecidas nos gráficos, as meninas negras foram as que tiveram maior participação tanto em 2017 como em 2018, com 48% e 43%, respectivamente, de ocupação das vagas do legislativo mirim.
O impacto político e pedagógico das ações do Câmara Mirim pode ser comparado ao sistema político mais amplo:
Percebe-se que durante as atividades do projeto as meninas tiveram maior participação e interesse nas atividades sobre educação e democracia. Esse fato nos faz questionar o atual sistema político brasileiro e a forma como tem se dado a representação política na Câmara dos Deputados, onde as mulheres são apenas 51 num total de 513 deputados na atual legislatura, o que representa 9,94%. Em contrapartida, verificamos no projeto que a baixa participação das mulheres no sistema político representativo não é por falta de competência, pois, a partir do projeto verificamos que as meninas apresentaram um desempenho acima da média em relação aos meninos (Silva; Nanô; Silva, 2018:43).
Ao comparar a experiência de representação política construída em Ibirité com a organização do sistema político brasileiro, fica evidente que as meninas e mulheres devem ter mais espaços de participação em decisões do espaço público. O fato de haver uma baixa representação feminina e negra no legislativo em diferentes instâncias da federação não é por falta de potencial e capacidade desses estratos sociais. Conforme Bourdieu (2002), isso ocorre porque a sociedade ocidental é organizada a serviço de um sistema de dominação masculina que tende a favorecer aquilo que é viril e agressivo, em que o mais apto e forte é o masculino branco, e o menos capacitado e frágil é a feminina negra. Essa ação é uma tentativa de biologização das relações sociais como se fossem naturais e socialização de uma teoria racista e machistamente biológica.
Considerando a alta participação das meninas negras como parlamentares mirins, foi possível perceber entre as escolas participantes do projeto que houve uma identificação dos (as) estudantes com as meninas negras e, também, com a grande capacidade delas no desempenho de funções da política representativa. Tanto em 2017 como em 2018, duas meninas negras foram eleitas para presidir os trabalhos da Câmara Mirim de Ibirité.
4. A Percepção de ser menina negra e a contribuição do Programa Escola Cidadã em seu processo de formação
Para compreender como as jovens negras participantes das ações do Programa Escola Cidadã percebiam a si mesmas, a sociedade na qual estão inseridas e o impacto do Programa em suas vidas, foi realizada uma pesquisa qualitativa. Essa ação aconteceu por meio da distribuição de um questionário aberto para 11 estudantes negras com idades entre 11 e 15 anos, que estavam regularmente matriculadas em turmas do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental de duas escolas públicas vinculadas ao Programa.
O questionário era simples, composto por duas perguntas. O foco da pesquisa foi compreender quais as impressões que essas garotas tinham de si e da sociedade em relação ao racismo, se já sofreram algum tipo de preconceito e se após o ingresso delas no Programa Escola Cidadã perceberam alguma contribuição para a promoção de ações que fariam diferença em suas vidas.
4.1. Ser menina negra
Um ponto em comum em todas as respostas foi a fala contundente das garotas quanto à percepção do preconceito no Brasil enquanto um fato indubitável, que se manifesta de maneira mais latente em algumas ocasiões. Das 11 entrevistadas, apenas três afirmaram que não foram vítimas de nenhum ato preconceituoso. Entretanto, elas disseram que já testemunharam situações nas quais pessoas negras foram inferiorizadas ou ridicularizadas devido à etnia a qual são pertencentes:
Vivemos num país racista e preconceituoso e várias pessoas sofrem por causa da cor. Eu nunca sofri preconceito por ser negra, mas perto da minha casa tem uma vizinha negra e ela conta que sempre sofreu racismo por causa da sua cor, por isso muitas pessoas sentem raiva do que são (Flávia, 12 anos, 2018).
Ainda que haja certa confusão em relação a determinados conceitos por parte das meninas entrevistadas, visto que preconceito e racismo foram vistos como sinônimos em alguns casos, há entre elas uma visão aproximada de que o Brasil é uma nação onde há manifestações de discriminação fundamentadas na cor da pele:
Às vezes eu me sinto reprimida pela sociedade por ser mulher e ainda ser negra; por ser negra, noto olhares estranhos e maldosos, já me falaram palavras de ódio que me causaram muita dor. Ser negra no Brasil é difícil e doloroso, porque o Brasil é feito de preconceito, que é errado por ser racismo (Rafaela, 13 anos, 2018).
Esta constatação por parte das próprias jovens evidencia como essas garotas entendem as várias relações sociais que se desenrolam em suas famílias e comunidades. Para as entrevistadas, ser negra é uma condição que exige, também, ser forte. Estas meninas-mulheres têm a sensibilidade de realizar uma leitura do mundo e compreender que devido à cor de sua pele, têm (e terão) de enfrentar algumas dificuldades que, provavelmente, uma garota branca não enfrentaria:
Vivemos num país onde, infelizmente, tem muita discriminação e injustiça com os negros e com as negras. As mulheres já são vistas com inferioridade, e quando elas são negras, isso só aumenta. A menina negra sofre preconceito por ela não se encaixar no “padrão” da sociedade, por ela não se diminuir para ser aceita, por ela lutar pelos direitos iguais num país onde o preconceito muitas vezes reina. (Graziele, 13 anos, 2018).
Por mais difícil e dolorido que seja ser mulher negra na sociedade brasileira, essas estudantes sabem, também, que isso significa ser forte para poder enfrentar os obstáculos que surgem no decorrer do caminho. Júlia, 15 anos, afirmou que: “ser uma menina negra é saber que terei que lutar muito, para que no futuro possa ter as mesmas oportunidades”.
O racismo é um pilar que estrutura as relações raciais no Brasil. Duas entrevistadas relataram já terem enfrentado situações desagradáveis dentro da própria família. Esse pode ser um indício de que a inferiorização da pessoa negra é algo corriqueiro e presente nas variadas relações sociais, inclusive, as de natureza íntima. Nesse sentido, de fato, a discriminação devido à cor da pele é evidente, constante e se manifesta nas mais distintas esferas de convivência, em espaços públicos e privados:
Às vezes, nossa própria família faz aquelas piadas sem graça [...]. Isso é extremamente irritante, ainda me chateia, sou a única negra da família do meu pai. É tão chato! A família toda é racista e machista (Ana, 13 anos, 2018).
Logicamente, tais manifestações de preconceito são catalisadoras de sentimentos, que muitas vezes estão relacionados à baixa autoestima, melancolia e desconforto. Para algumas meninas negras assumir o cabelo crespo e impor orgulhosamente sua negritude merecedora de respeito trata-se de uma questão identitária e de resistência. Para outras, se mostrarem dessa maneira é motivo de angústia diante das situações enfrentadas, conforme podemos observar em alguns dos trechos já transcritos.
Nesse sentido, é interessante observar como um ambiente adverso pode gerar emoções e comportamentos distintos: enquanto algumas destas meninas-mulheres revelaram que se sentiam magoadas, outras assimilaram o preconceito como uma mola propulsora para que se posicionarem de modo incisivo, visando combater o racismo estrutural:
Minha mãe sempre fala que ser preta não é e nunca será um problema, que minha cor é linda, então todas as atitudes preconceituosas que já fizeram comigo até hoje, não me deixaram triste, e sim me deram vontade de arrumar um jeito de acabar com isso (Júlia, 15 anos, 2018).
A banalização do preconceito como algo presente na vida destas jovens e de muitos outros indivíduos negros é a comprovação de que a desigualdade racial possui raízes profundas e de que são necessárias ações pontuais, enérgicas e eficientes para combater algo que se naturalizou no cotidiano da vida das pessoas.
É significativo como ao serem convidadas a pensarem sobre a condição de mulheres negras, essas jovens expressaram reflexões acerca de outros tipos de preconceitos. O mais citado deles é decorrente de uma sociedade ainda misógina, em que a mulher é rotulada como inferior ao ser comparada ao homem. Nesse sentido, é importante ressaltar o que Bourdieu (2002) fala sobre a compreensão de uma sociedade organizada por um sistema de dominação masculina6. Para ele, a dominação masculina, atua de modo silencioso, invisível, não há relação de força física, mas uma força fictícia e com alto poder coercitivo sobre os corpos humanos, e a potencialidade dessa força simbólica está centrada nas “[...] predisposições colocadas, como molas propulsoras, na zona mais profunda dos corpos” (Bourdieu, 2002:45).
Das 11 garotas entrevistadas, seis afirmaram que sentem, também, o peso do machismo em suas vivências:
Como uma menina negra, vivenciei algumas atitudes racistas e também machistas. Mesmo sendo nova, conheci e conheço pessoas de mente fechada, mas pelas histórias que me são contadas vejo, porém, a evolução do nosso país onde as mulheres não podiam nem votar expressando sua opinião ou onde o negro era considerado uma raça impura. O país evoluiu, mas ainda há aquela diferença de gênero e raça onde a mulher é um sexo frágil e considerado inferior (Ana, 13 anos, 2018).
Segundo Júlia, 15 anos, “no país, infelizmente, ainda tem aquela coisa de que a mulher é menos capacitada” e para a estudante, a mulher negra é julgada como menos capaz ainda se comparada à mulher branca”. Karen, 15, em seu depoimento, desabafa que “só de ser menina não é fácil porque tem o machismo e [que] ser negra torna a vida ainda mais difícil”. É extremamente relevante pontuar como todas estas garotas têm plena consciência das dificuldades que enfrentam e/ou enfrentarão.
Dieniffer, 14 anos, descreveu já ter se sentido menosprezada, como se sua cor fosse mais relevante que qualquer outro traço comportamental ou fenotípico por ela apresentado. Segundo Dieniffer, ser negra, “significa ser uma menina menos notada, porque muitas das vezes as pessoas têm preconceito por conta da cor, do jeito do cabelo, então a nossa cor negra é a mais desprezada”. Em consonância com o sentimento desta estudante, outras também asseguraram já terem se sentido rebaixadas por não serem homens e nem mulheres brancas.
4.2. Meninas negras no Programa Escola Cidadã
Ao analisarem as consequências de suas participações no Programa, as entrevistadas transparecem um sentimento bem próximo à esperança, como se, enfim, tivessem a oportunidade concreta de quebrarem uma espécie de círculo vicioso. Elas ressaltaram que por serem moradoras de periferias e que por isso, dificilmente, teriam a chance de experienciarem certas circunstâncias oportunizadas pelo Escola Cidadã, como por exemplo, a viagem à Brasília para participarem das atividades da Câmara Mirim 2018. Dieniffer, 14 anos, deixa evidente essa questão, ao afirmar ser “muito bom para nós que moramos na comunidade, pois, provavelmente não teríamos outras oportunidades assim”.
As falas destas jovens reverberam a necessidade premente de entenderem mais a respeito de política. E a percepção de todas elas é que a possibilidade de estudar tal assunto, de maneira tão empírica, é única, o que tem surtido um redirecionamento em suas trajetórias:
Com o Projeto Escola Cidadã, eu estou aprendendo a exercer a cidadania e aprendendo meus deveres e direitos como cidadã. O projeto me incentivou a aprofundar mais na política e a ser mais responsável. Eu passei a levar educação política para meus amigos e familiares, a levar as coisas mais a sério (Júlia, 15 anos, 2018).
Segundo Karen, 15 anos, o Escola Cidadã foi algo que mudou sua história, sua vida. A partir das atividades e reflexões propostas pelas (os) professoras (os), ela pôde compreender como os mais variados acontecimentos sociais, culturais e econômicos têm estreita correspondência com os fatos políticos:
Eu aprendi que tudo que acontece no mundo está ligado com a política. [...] Somos a nova geração, temos que lutar para melhorar a política, e aprender a fazer escolhas. Temos que lutar para melhorar, também, as coisas neste mundo e isto também tem a ver com a política (Karen, 15 anos, 2018).
Para as entrevistadas, a participação em tal iniciativa representa uma nova oportunidade de aprendizado, e destacam que o melhor é ser por intermédio de atividades inovadoras e atrativas:
Eu acho legal esse projeto, pois com ele estamos aprendendo e fazendo muitas coisas diferentes e novas, que ainda não tínhamos feito antes. Acho legal também porque estamos aprendendo quais são os nossos direitos e deveres como estudantes [...] (Bianca, 14 anos, 2018).
As jovens pontuaram, ainda, que a experiência vivida foi uma importante oportunidade de aprimorarem seus conhecimentos. Antes do “Escola Cidadã”, assim como grande parte da população brasileira, elas também apresentavam uma enorme descrença na política, equiparando, inclusive, política com corrupção. Contudo, mediante a participação no Programa, elas estão formulando novas concepções e desconstruindo opiniões alicerçadas no senso comum:
Desde o começo achei muito interessante o assunto abordado pelo projeto; seria de grande importância entender a política do nosso país; mas como uma adolescente normal, tive o pensamento do projeto ser um motivo para sair da sala de aula. Porém o trabalho foi muito bom, foram muitas etapas [...]. Mas valeu a pena, conheci novas pessoas, tive novas ideias sobre a política, experiências maravilhosas e muito trabalho também. Penso no futuro, [...] onde poderemos dizer que aprendemos política a fundo, tirando a ideia de política ser sinônimo de roubo (Ana, 13 anos, 2018).
A partir do desenvolvimento dos trabalhos, as entrevistadas perceberam que política é algo mais abrangente e, concomitantemente, complexo. Diante disso, as garotas veem no Programa uma chance valiosa para se engajarem em movimentos sociais pró-democracia, uma vez que estão vivenciando uma experiência riquíssima e completamente nova:
O Projeto significa uma experiência totalmente importante para a minha visão de mundo, para eu poder ver e lutar pelo que eu quero e pelo que eu preciso. Eu espero que este projeto tenha continuidade e que ele mude a visão e o pensamento de muitos jovens e que eles possam ser cidadãos de bem e que lutem por direitos iguais e justos para todos (Graziele, 13 anos, 2018).
O que foi visto diante dos posicionamentos destas meninas-mulheres negras é que fazer parte deste Programa proporcionou iniciar um profundo processo de empoderamento, a partir do qual, vem sendo reconstruída a maneira como elas enxergam a si mesmas. As bases para esta nova compreensão a respeito do mundo e das relações sociais estão sendo erguidas através do engajamento, estudo, pesquisa e desenvolvimento de atividades de cunho político e emancipatório. As consequências destas ações despertam nas garotas o desejo de fazerem a diferença em suas vidas e também em suas comunidades:
Participar do Projeto significa uma nova oportunidade de aprender, uma nova forma de ver a política e de saber meus direitos e meus deveres tanto na escola quanto em casa e outros lugares. Também me faz ver e ter novas ideias de melhorias para a cidade. (Luana, 13 anos, 2018.)
Para mim é uma boa oportunidade de conhecer melhor a política do nosso país (Lyvia, 11 anos, 2018).
É pertinente salientar que a ressignificação de determinadas ideologias e conceitos, por parte destas meninas-negras, consiste em algo progressivo. Ou seja, é gradualmente que elas vêm aguçando o olhar crítico perante o mundo. Contudo, a apuração deste olhar não tem fomentado nas estudantes a crença num determinismo que as levariam a se verem fatalmente estagnadas, cerceadas da condição de superarem os possíveis obstáculos decorrentes do gênero e da cor por elas apresentadas. Ao contrário, é justamente por compreenderem melhor as dinâmicas políticas que elas têm identificado formas de atuarem em prol das mudanças positivas necessárias à sociedade:
O Projeto Escola Cidadã me faz sentir que eu posso ajudar outras pessoas. Além disso, esse projeto ajuda as estudantes a se impor na sociedade e a se manter mais firme diante do preconceito. (Rafaela, 13 anos, 2018).
Ter opiniões diferentes e falar sobre política é bem interessante também. Várias pessoas acham que política não é para discutir. Eu também pensava assim, porém, depois do Projeto, já não penso mais. (Flávia, 12 anos, 2018).
Aprendi que devemos sempre respeitar a opinião do outro, pois não é só porque ele pensa diferente de mim que está errado. (Sara, 12 anos, 2018).
E é de maneira gradativa, esperançosa e com alto potencial de engajamento político que estas garotas vêm reconstruindo várias de suas impressões a respeito de si mesmas e da vida política e social.
5. Considerações finais
O presente artigo buscou apresentar o papel da intervenção pedagógica ligada ao Programa Escola Cidadã no empoderamento das meninas-mulheres negras de comunidades escolares da cidade de Ibirité/MG, a partir de uma formação voltada para o entendimento e prática da política, tanto em seu âmbito parlamentar, quanto em sua dimensão social.
Por meio deste tipo de ação pedagógica, foi possível desconstruir junto aos educandos (as) a retórica que sustenta o sistema de dominação masculina (Bourdieu, 2002) e a sociabilidade racista que permeia estruturalmente nossa sociedade, para desta forma contribuir para a ampliação do protagonismo das meninas e mulheres negras nos espaços de poder.
Os impactos relatados pelas meninas-mulheres negras apresentados neste trabalho evidenciam de maneira clara a dimensão emancipadora e de construção e valoração identitária promovida junto a elas pelo Programa Escola Cidadã.
Dessa forma, considera-se que se a sociedade quiser ampliar a representatividade das mulheres negras nos espaços de poder e reverter a realidade de exceção à regra de grandes mulheres combativas, como Marielle Franco, é imprescindível o papel de políticas educacionais e intervenções pedagógicas integradas e transdisciplinares como a que foi aqui apresentada.
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Ponte, Gina Viera.; Félix, Joana D´arc. Entrevista: Gina Vieira Ponte e Joana D´arc Félix. Conversa com Bial Entrevista concedida a Pedro Bial. Rio de Janeiro, 2017 [http://bit.ly/2wV0E7a - acesso 29 set. 2018].
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Secretaria De Políticas De Promoção Da Igualdade Racial. 2013.A participação das mulheres negras nos espaços de poder Brasília, 2013 [http://www.seppir.gov.br/central-de-conteudos/publicacoes/pub-acoes-afirmativas/a-participacao-das-mulheres-negras-nos-espacos-de-poder - acesso em 23 setembro de 2018].
» http://www.seppir.gov.br/central-de-conteudos/publicacoes/pub-acoes-afirmativas/a-participacao-das-mulheres-negras-nos-espacos-de-poder - Silva, O. H. F.; Nanô, J. P. L.; Silva, D. B. R. (orgs.). A garotada ocupando a representação política Ibirité: Editora Escola Cidadã, 2018, 144pp.
- Silva, O. H. F.; Silva, D. B. R.; CAETANO, R. S. O. (orgs.). De Ibirité a Brasília: itinerários de uma educação transformadora Ibirité: Editora Escola Cidadã, 2018, 190pp.
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1
Esses conceitos estão juntos por compreender que muitas dessas meninas estão em um período de transição para a condição de mulher.
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2
Ao longo do texto as palavras “programa” e “projetos” irão aparecer em contextos similares. Todavia, compreendemos o programa como um conjunto que engloba as várias ações pedagógicas realizadas por nós.
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Esse projeto foi dividido em duas etapas, sendo uma realizada no município e a outra com atividade de campo em Brasília.
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Em 2017 o número de participantes dessa etapa foi de 31 estudantes.
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Esse formato foi adotado a partir de 2018. Em 2017 foi avaliado apenas os aspectos de engajamento, definidos por meio de avaliação construída coletivamente com estudantes, famílias e professores (as).
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6
Essa organização irá dividir as relações sociais e estruturas de forma sexuada (feminino e masculino), divisão esta reproduzida nas diferentes dinâmicas da sociedade, como: “[...] em cima/embaixo, na frente/atrás, direita/esquerda, reto/curvo(e falso), seco/úmido, duro/mole, temperado/insosso, claro/escuro, fora(público)/dentro(privado) etc., que para alguns, correspondem a movimentos do corpo (alto/baixo, subir/descer, fora/dentro, sair/entrar)” (Bourdieu, 2002:11).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
28 Ago 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
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Recebido
02 Mar 2019 -
Aceito
30 Jan 2020