Qual é o limite entre o prazer e a dor? Onde se encontra a fronteira entre o abuso e o consentimento em nossas relações eróticas cotidianas? O que há de transgressor em determinados prazeres? E como esses prazeres se relacionam com a demanda cada vez maior de direitos sexuais e pela liberação e a expressão de diferentes sexualidades no cenário político atual? Estas são só algumas das inúmeras reflexões que a leitura do novo livro da antropóloga Maria Filomena Gregori suscita.
Gregori é professora do Departamento de Antropologia da Unicamp e já tem pesquisas consolidadas em diferentes temas, como sobre crianças em situação de rua e sobre violência doméstica. Em seus últimos trabalhos vem se dedicando a uma reflexão sobre o mercado erótico contemporâneo. O livro Prazeres perigosos deriva de sua tese de livre-docência defendida em 2010, na qual buscou apresentar a reflexão e os estudos acumulados ao longo de mais de dez anos de trabalho de campo, desenvolvidos tanto aqui no Brasil quanto nos Estados Unidos, voltados para essa problemática.
O desafio neste livro, segundo a autora, é o de “discutir as articulações entre prazer e perigo em algumas manifestações do erotismo contemporâneo” (:19) e, para isso, cria um campo de investigações que propõe chamar de “limites da sexualidade”: a de práticas que se encontram na “zona fronteiriça onde habitam norma e transgressão, consentimento e abuso, prazer e dor” (: 22). São práticas que cada vez mais se encontram disponíveis numa determinada rede mercadológica e que em suas propostas, enquanto “prazeres dissidentes”, acabam por esgarçar determinadas restrições impostas à sexualidade. Seu objetivo, portanto, é o de seguir e compreender desejos que são também “empreendimentos de risco”, ou seja, que “podem colocar em perigo as normas e as convenções vigentes de gênero e de sexualidade e, desse modo, ampliar o escopo de experiências com prazeres e corpos” (:181).
O livro de Gregori se divide em duas partes (“Prazeres” e “Perigos”) a partir de dois eixos de pesquisa ou, melhor ainda, de duas redes de mercado erótico analisadas. O primeiro eixo é o dos sex shops nas cidades de São Francisco, nos EUA, e na de São Paulo; já o segundo é o de alguns clubes BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo: é a sigla que agrupa um conjunto de práticas eróticas que ritualizam jogos de poder), encontrados também na capital paulista.
Os sex shops analisados pela autora procuram estabelecer uma ideia de “erotismo politicamente correto”, ou seja, a de esvaziar ou neutralizar qualquer estereótipo negativo ou transgressor sobre determinadas práticas sexuais. O discurso encontrado nesse mercado é o de valorização de uma autoconstrução ou autoconhecimento, “salienta o sentido de ginástica e de fortalecimento do self” num “esforço claro de integração, e não de subversão” (:44). Gregori aponta o fato de esse mercado ser cada vez mais voltado para clientes mulheres e de alto poder aquisitivo, o qual, ainda que se fortaleçam elementos de uma matriz heterossexual, provoca inflexões sobre esse mesmo padrão de conjugalidade em que as mulheres passam a ocupar um papel de maior protagonismo. A análise da autora dá especial atenção aos usos dos diversos brinquedos ou sex toys vendidos nessas lojas, de como esses objetos acabam por adquirir uma agência própria conforme a imaginação, o desejo ou a fantasia de seus consumidores. Usos que “parodiam aspectos que compõem as normas de gênero, de sexualidade e as que implicam uma fronteira rígida entre sujeito e objeto ou pessoas e coisas” (:144).
Na segunda parte, os brinquedos ou sex toys (fantasias, lingeries, dildos e plugs) são substituídos por chicotes, algemas e cordas. Acessórios eróticos também, mas que, como afirma Gregori, “podem produzir hematomas” (:172). A análise aqui recai sobre a cena BDSM de São Paulo, na qual a autora apresenta uma reflexão sobre essas práticas ritualizadas de jogos de poder e suas relações entre violência, gênero e erotismo. Os esforços de legitimação por seus praticantes, o delicado debate em torno de conceitos importantes como o de “abuso”, “consentimento” e “vulnerabilidade” são pontos que não deixam de ser abordados na discussão trazida pela autora. Seu foco recai em tentar apreender as capturas e as fugas das intensidades e dos desejos que percebeu em suas visitas a esses clubes, atentando para as reificações e os deslocamentos de certas convenções. Há nesses prazeres perigosos, como define Gregori, práticas que são “performances do risco”.
É interessante analisar o SM comercial, o lesbianismo SM e as manifestações SM entre homens gays como alternativas que, no limite, problematizam os modelos que supõem naturalidade, inatismo ou normalidade entre as fronteiras que delimitam homens e mulheres, e mais particularmente o comportamento sexual masculino (ativo) e o feminino (passivo), assim como as fronteiras que separam o prazer da dor, o comando e a submissão. Trata-se de experiências que ousam lidar com o risco social, ou melhor, com aqueles conteúdos e inscrições presentes nas relações entre a sexualidade e suas assimetrias em termos de gênero, idade, classe e raça (Gregori, 2016:176-177).
Um dos pontos para os quais a autora não fecha os olhos é o fato de que muito da erotização do outro nessas práticas sexuais implica ou mesmo depende de uma desigualdade. Ou de como determinados recortes e fatores também interseccionam e atravessam as relações aqui a partir de alguns jogos de poder. Muitos dos desejos que são percebidos nessas práticas revelam que as mesmas diferenças que operam no plano do abuso também podem operar no plano do prazer. Como afirma Gregori, trata-se de um desejo que diz respeito àquilo que tensiona as diferenças, as hierarquias e algumas posições sociais. Um jogo erótico de tensão que pode se romper nas “fissuras” que invariavelmente acontecem durante as práticas.
Já existe uma discussão nas ciências sociais, principalmente no âmbito da sexualidade, de como alguns “agenciamentos” de desejo têm o poder, a violência e o risco como uma dimensão estratificada. Gregori procura fazer uma interlocução com uma variada literatura que vai desde, por exemplo, o Marquês de Sade e Freud, passa por Bataille e pensadores contemporâneos como Nestor Perlongher e Anne McClintock, e chega à recente produção antropológica brasileira de pesquisadores como Regina Facchini, Maria Elvira Díaz-Benítez, Isadora Lins França, Camilo Albuquerque de Braz e Laura Lowenkron. Textos que mostram como experiências em que prazer, dor, poder, submissão e perigo, não só estão misturados, como também são fatores que “criam” esses desejos.
A tensão que Gregori aponta entre marcadores de diferença e desigualdade, hierarquização e aquilo que seus interlocutores dizem ser prazeroso está , portanto, presente nessas práticas, alcançando proximidade com aquilo que Perlongher chamou de “tensor libidinal”. Como explica Gregori,
Os tensores libidinais, expressão que empregou [Perlongher], são resultantes da noção de que o desejo é feito daquilo que provoca, que incita e que aponta a diferença. Assim, os chamados “marcadores sociais de diferença” - que incluem gênero, idade, classe/status, cor/raça -, que operam como eixos na configuração das posições sociais desiguais, quando consideramos relações de abuso, também atuam no delineamento daquilo que proporciona prazer. As hierarquias, normas e proibições formam o repertório do erotismo, a partir de todo um esforço de transgressão (Gregori, 2016:24).
A obra de Maria Filomena Gregori vem, dessa forma, contribuir para um alargamento e maior entendimento sobre nossas convenções de gênero e sexualidade. Com um texto estimulante e desafiador, ela nos provoca reflexões sobre a multiplicidade de nossos desejos eróticos através de uma pesquisa etnográfica consistente e a apresentação de argumentos singulares. Fugindo de respostas e soluções simplistas, a autora demonstra o quanto as relações entre esses elementos é muitas vezes contraditória e com deslocamentos recorrentes, e que a “norma” e a “transgressão” podem até caminhar juntas, habitando a mesma prática (ou o mesmo desejo). O leitor é convidado a repensar e a relativizar até mesmo as suas próprias convicções e moralidades acerca de suas práticas sexuais (e, afinal, fazer se questionar não seria o dever de toda boa antropologia?).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Apr 2017