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A importância dos níveis de vitamina D nas doenças autoimunes

Resumos

Além do seu papel na homeostase do cálcio, acredita-se que a forma ativa da vitamina D apresenta efeitos imunomoduladores sobre as células do sistema imunológico, sobretudo linfócitos T, bem como na produção e na ação de diversas citocinas. A interação da vitamina D com o sistema imunológico vem sendo alvo de um número crescente de publicações nos últimos anos. Estudos atuais têm relacionado a deficiência de vitamina D com várias doenças autoimunes, como diabetes mellitus insulino-dependente (DMID), esclerose múltipla (EM), doença inflamatória intestinal (DII), lúpus eritematoso sistêmico (LES) e artrite reumatoide (AR). O artigo faz uma revisão da fisiologia e do papel imunomodulador da vitamina D, enfatizando sua participação nas doenças reumatológicas, como o lúpus e a artrite reumatoide.

vitamina D; sistema imunológico; doenças autoimunes; lúpus eritematoso sistêmico; artrite reumatoide


In addition to its role in calcium homeostasis, it is believed that the active form of vitamin D has immunomodulatory effects on cells of the immune system, particularly T lymphocytes, as well as on the production and action of several cytokines. The interaction of vitamin D with the immune system has been the target of a growing number of publications in recent years. Current studies have linked the deficiency of vitamin D with different autoimmune diseases, including insulin-dependent diabetes mellitus (IDDM), multiple sclerosis (MS), inflammatory bowel disease (IBD), systemic lupus erythematosus (SLE), and rheumatoid arthritis (RA). This article reviews the physiology and immunomodulatory role of vitamin D, emphasizing its involvement in rheumatic diseases such as SLE and RA.

vitamin D; immune system; autoimmune diseases; systemic lupus erythematosus; rheumatoid arthritis


ARTIGO DE REVISÃO

A importância dos níveis de vitamina D nas doenças autoimunes

Cláudia Diniz Lopes MarquesI, Andréa Tavares DantasII, Thiago Sotero FragosoIII, Ângela Luzia Branco Pinto DuarteIV

IReumatologista, Doutora em Saúde Pública e Tutora da Escola Pernambucana de Medicina - FBV/IMIP

IIEx-residente do Serviço de Reumatologia do HC-UFPE e aluna do Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da UFPE

IIIResidente de Reumatologia Pediátrica do HC-UFPE e aluno do Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da UFPE

IVProfessora Titular e Chefe do Serviço de Reumatologia do HC-UFPE

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Ângela Pinto Duarte Serviço de Reumatologia - Hospital das Clinicas Av. Professor Morais Rego, s/n, sala 133 CEP: 50670-420. Cidade Universitária, Recife - PE Tel: (81) 3454-0155 E-mail: aduarte@terra.com.br

RESUMO

Além do seu papel na homeostase do cálcio, acredita-se que a forma ativa da vitamina D apresenta efeitos imunomoduladores sobre as células do sistema imunológico, sobretudo linfócitos T, bem como na produção e na ação de diversas citocinas. A interação da vitamina D com o sistema imunológico vem sendo alvo de um número crescente de publicações nos últimos anos. Estudos atuais têm relacionado a deficiência de vitamina D com várias doenças autoimunes, como diabetes mellitus insulino-dependente (DMID), esclerose múltipla (EM), doença inflamatória intestinal (DII), lúpus eritematoso sistêmico (LES) e artrite reumatoide (AR). O artigo faz uma revisão da fisiologia e do papel imunomodulador da vitamina D, enfatizando sua participação nas doenças reumatológicas, como o lúpus e a artrite reumatoide.

Palavras-chave: vitamina D, sistema imunológico, doenças autoimunes, lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatoide.

INTRODUÇÃO

A vitamina D e seus pró-hormônios têm sido alvo de um número crescente de pesquisas nos últimos anos, demonstrando sua função além do metabolismo do cálcio e da formação óssea, incluindo sua interação com o sistema imunológico, o que não é uma surpresa, tendo em vista a expressão do receptor de vitamina D em uma ampla variedade de tecidos corporais como cérebro, coração, pele, intestino, gônadas, próstata, mamas e células imunológicas, além de ossos, rins e paratireoides.1

Estudos atuais têm relacionado a deficiência de vitamina D com várias doenças autoimunes, incluindo diabetes melito insulino-dependente (DMID), esclerose múltipla (EM), doença inflamatória intestinal (DII), lúpus eritematoso sistêmico (LES) e artrite reumatoide (AR).1-4 Diante dessas associações, sugere-se que a vitamina D seja um fator extrínseco capaz de afetar a prevalência de doenças autoimunes.5

A vitamina D parece interagir com o sistema imunológico através de sua ação sobre a regulação e a diferenciação de células como linfócitos, macrófagos e células natural killer (NK), além de interferir na produção de citocinas in vivo e in vitro. Entre os efeitos imunomoduladores demonstrados destacam-se: diminuição da produção de interleucina-2 (IL-2), do interferon-gama (INFγ) e do fator de necrose tumoral (TNF); inibição da expressão de IL-6 e inibição da secreção e produção de autoanticorpos pelos linfócitos B.6,7

FISIOLOGIA DA VITAMINA D

A vitamina D, ou colecalciferol, é um hormônio esteroide, cuja principal função consiste na regulação da homeostase do cálcio, formação e reabsorção óssea, através da sua interação com as paratireoides, os rins e os intestinos.8

A principal fonte da vitamina D é representada pela formação endógena nos tecidos cutâneos após a exposição à radiação ultravioleta B.8-10 Uma fonte alternativa e menos eficaz de vitamina D é a dieta, responsável por apenas 20% das necessidades corporais, mas que assume um papel de maior importância em idosos, pessoas institucionalizadas e habitantes de climas temperados.9

Quando exposto à radiação ultravioleta, o precursor cutâneo da vitamina D, o 7-desidrocolesterol, sofre uma clivagem fotoquímica originando a pré-vitamina D3. Essa molécula termolábil, em um período de 48 horas, sofre um rearranjo molecular dependente da temperatura, o que resulta na formação da vitamina D3 (colecalciferol). A pré-vitamina D3 também pode sofrer um processo de isomerização originando produtos biologicamente inativos (luminosterol e taquisterol) e esse mecanismo é importante para evitar a superprodução de vitamina D após períodos de prolongada exposição ao sol. O grau de pigmentação da pele é outro fator limitante para a produção de vitamina D, uma vez que peles negras apresentam limitação à penetração de raios ultravioleta.9

No sangue, a vitamina D circula ligada principalmente a uma proteína ligadora de vitamina D, embora uma pequena fração esteja ligada à albumina.9 No fígado, sofre hidroxilação, mediada por uma enzima citocromo P450-like, e é convertida em 25-hidroxivitamina D [25(OH)D] que representa a forma circulante em maior quantidade, porém biologicamente inerte.8,9 A etapa de hidroxilação hepática é pouco regulada, de forma que os níveis sanguíneos de 25(OH)D refletem a quantidade de vitamina D que entra na circulação, sendo proporcional à quantidade de vitamina D ingerida e produzida na pele.9,10

A etapa final da produção do hormônio é a hidroxilação adicional que acontece nas células do túbulo contorcido proximal no rim, originando a 1,25 desidroxivitamina D [1,25(OH)2D3], sua forma biologicamente ativa.8,9

Reconhece-se, atualmente, a existência da hidroxilação extrarrenal da vitamina D, originando a vitamina que agiria de maneira autócrina e parácrina, com funções de inibição da proliferação celular, promoção da diferenciação celular e regulação imunológica. A regulação da atividade da 1-a-hidroxilase renal é dependente da ingestão de cálcio e fosfato, dos níveis circulantes dos metabólitos da 1,25(OH)2D3 e do paratormônio (PTH). Por outro lado, a regulação da hidroxilase extrarrenal é determinada por fatores locais, como a produção de citocinas e fatores de crescimento, e pelos níveis de 25(OH)D, tornando essa via mais sensível à deficiência de vitamina D.10

A principal função da vitamina D consiste no aumento da absorção intestinal de cálcio, participando da estimulação do transporte ativo desse íon nos enterócitos.9,11 Atua, também, na mobilização do cálcio a partir do osso, na presença do PTH, e aumenta a reabsorção renal de cálcio no túbulo distal.12 A deficiência prolongada de vitamina D provoca raquitismo e osteomalacia e, em adultos, quando associada à osteoporose, leva a um risco aumentado de fraturas.13

Outras ações da vitamina D regulando positivamente a formação de osso incluem: inibição da síntese de colágeno tipo 1; indução da síntese de osteocalcina; promoção da diferenciação, in vitro, de precursores celulares monócitos-macrófagos em osteoclastos. Além disso, estimula a produção do ligante RANK (RANK-L), o que resulta em um efeito que facilita a maturação dos precursores de osteoclastos para osteoclastos, que, por sua vez, mobilizam os depósitos de cálcio do esqueleto, para manter a homeostase do cálcio.8,9 A vitamina D exerce suas funções biológicas através da sua ligação a receptores nucleares, os receptores para vitamina D (RVD), que regulam a transcrição do DNA em RNA, semelhante aos receptores para esteroides, hormônios tireoidianos e retinoides.9,11 Esses receptores são expressos por vários tipos de células, incluindo epitélio do intestino delgado e tubular renal, osteoblastos, osteoclastos, células hematopoiéticas, linfócitos, células epidérmicas, células pancreáticas, miócitos e neurônios.11

Mais recentemente, têm sido evidenciadas as ações não calcêmicas da vitamina D, mediadas pelo RVD, como proliferação e diferenciação celular, além de imunomodulação. O RVD é amplamente expresso na maioria das células imunológicas, incluindo monócitos, macrófagos, células dendríticas, células NK e linfócitos T e B.14 No entanto, sua maior concentração está em células imunológicas imaturas no timo e nos linfócitos CD8 maduros, independentemente do seu estado de ativação.8,12 O resumo dos principais efeitos da vitamina D no sistema imunológico pode ser observado na Tabela 1.

MENSURAÇÃO DA VITAMINA D SÉRICA

Embora a forma ativa da vitamina D seja a 1,25OH2D3, esta não deve ser utilizada para avaliar sua concentração sérica, uma vez que sua meia-vida é de apenas 4 h e sua concentração é 1.000 vezes menor do que a de 25(OH)D. Além disso, no caso de deficiência de vitamina D, existe um aumento compensatório na secreção do PTH, o que estimula o rim a produzir mais a 1,25OH2D3. Desse modo, quando ocorre deficiência de vitamina D e queda dos níveis de 25(OH)D, as concentrações de 1,25OH2D3 se mantêm dentro dos níveis normais e, em alguns casos, até mesmo mais elevadas.9,15

Para quantificar se existem níveis adequados de vitamina D, deve ser dosada a concentração de 25(OH)D, que representa sua forma circulante em maior quantidade, com meia-vida de cerca de duas semanas.9

Não existe consenso sobre a concentração sérica ideal de vitamina D. A maioria dos especialistas concorda que o nível de vitamina D deva ser mantido em uma faixa que não induza aumento dos níveis de PTH.10,15 Os valores normais nos diversos ensaios comerciais existentes variam de 25 a 37,5 nmol/L (10 a 15 ng/mL) a 137,5 a 162,5 nmol/L (55 a 65 ng/mL)13. Revisões recentes sugerem que a concentração ideal seja de 50 a 80 nmol/L enquanto outros sugerem valores entre 75 e 125 nmol/L.16 Usando a elevação do PTH como biomarcador refletindo baixos níveis fisiológicos de vitamina D, a deficiência deve ser definida como concentração sérica inferior a 32 ng/mL (80 nmol/L).16

O nível ideal de vitamina D necessário para garantir o bom funcionamento do sistema imunológico ainda não está definido. Provavelmente, esse valor deve ser diferente daquele necessário para prevenir a deficiência de vitamina D ou manter a homeostase do cálcio.5

AÇÃO DA VITAMINA D SOBRE O SISTEMA IMUNOLÓGICO

Com base na produção ectópica de vitamina D em células do sistema imunológico e na presença de RVD em tecidos não relacionados com a fisiologia óssea, as propriedades imunorreguladoras da vitamina D têm sido cada vez mais bem caracterizadas.17 Estudos epidemiológicos mostram que a deficiência de vitamina D poderia estar associada a risco aumentado de neoplasia de cólon e próstata, doença cardiovascular e infecções.13,15,17,18

Vários mecanismos têm sido propostos para explicar a participação da vitamina D na fisiologia do sistema imunológico, conforme pode ser observado na Tabela 1.

Dentre as principais funções da vitamina D no sistema imunológico podemos destacar: regulação da diferenciação e ativação de linfócitos CD4;5,11,19 aumento do número e função das células T reguladoras (Treg);11 inibição in vitro da diferenciação de monócitos em células dendríticas;8,11 diminuição da produção das citocinas interferon-g, IL-2 e TNF-a, a partir de células Th1 e estímulo da função células Th2 helper;5,8,11,17 inibição da produção de IL-17 a partir de células Th1720 e estimulação de células T NK in vivo e in vitro.21

VITAMINA D E DOENÇAS AUTOIMUNES

De maneira geral, o efeito da vitamina D no sistema imunológico se traduz em aumento da imunidade inata associado a uma regulação multifacetada da imunidade adquirida.22 Tem sido demonstrada uma relação entre a deficiência de vitamina D e a prevalência de algumas doenças autoimunes como DMID, EM, AR, LES e DII.5,13

Sugere-se que a vitamina D e seus análogos não só previnam o desenvolvimento de doenças autoimunes como também poderiam ser utilizados no seu tratamento.11 A suplementação de vitamina D tem-se mostrado terapeuticamente efetiva em vários modelos animais experimentais, como encefalomielite alérgica, artrite induzida por colágeno, diabetes melito tipo 1, doença inflamatória intestinal, tireoidite autoimune e LES.8

Baixos níveis séricos de vitamina D podem, ainda, estar relacionados com outros fatores como diminuição da capacidade física, menor exposição ao sol, maior frequência de polimorfismos nos genes do RVD, efeito colateral de medicamentos, além de fatores nutricionais.10,11

Artrite reumatoide

A AR é uma doença imunomediada, com fisiopatologia bastante complexa. Acredita-se que o evento inicial seja provavelmente a ativação de células T dependente de antígenos, desencadeando uma resposta imunológica essencialmente do tipo Th1. Essa ativação leva a múltiplos efeitos, incluindo ativação e proliferação de células endoteliais e sinoviais, recrutamento e ativação de células pró-inflamatórias, secreção de citocinas e proteases a partir de macrófagos e células sinoviais fibroblastos-like e produção de autoanticorpos.23

Como enfatizado anteriormente, a deficiência de vitamina D está associada à exacerbação da resposta imunológica Th1. Dessa forma, nos últimos anos, a participação da vitamina D na patogênese, atividade e tratamento da AR tem sido aventada com base nos resultados e nas observações de estudos clínicos e experimentais.5

O fundamento para relacionar deficiência de vitamina D e AR se baseia em dois argumentos: existem evidências de que ocorre deficiência de vitamina D em pacientes com AR e a presença de 1,25(OH)2D3 e do RVD em macrófagos, condrócitos e sinoviócitos nas articulações destes pacientes.14,24

A relação entre polimorfismos do gene do RVD e o início e atividade da AR foi demonstrada em um estudo no qual pacientes com genótipos BB ou Bb para RVD tiveram maiores índices no HAQ, velocidade de hemossedimentação (VSH), uso cumulativo de corticosteroides e número de medicamentos antirreumáticos modificadores da doença (DMARD) em comparação com pacientes com o genótipo BB.25

Em modelos de artrite induzida por colágeno, a suplementação dietética ou administração oral de vitamina D preveniu o desenvolvimento de artrite ou retardou a sua progressão.1,26 Da mesma forma, um estudo com 29.368 mulheres mostrou que maior ingestão de vitamina D foi inversamente associada ao risco de desenvolvimento da AR.27 No entanto, outra grande coorte prospectiva, que avaliou 186.389 mulheres no período de 1980 a 2002, não encontrou associação entre ingestão aumentada de vitamina D e risco de desenvolver AR ou LES.28 Corroborando esse resultado, um estudo com 79 doadores de sangue, avaliando a dosagem sérica de vitamina D, não mostrou diferenças entre os níveis basais de vitamina D nos pacientes que, posteriormente, desenvolveram AR em comparação com os controles.29 Estes achados demonstram que o assunto ainda é bastante controverso, não havendo consenso entre os autores sobre a real relação entre vitamina D e AR.

A suplementação com altas doses de alfacalcidol oral durante três meses, em um estudo aberto com 19 pacientes com AR em uso de DMARD convencionais mostrou a redução da gravidade dos sintomas de AR em 89% dos pacientes, sendo 45% com remissão completa e 44% com resultados considerados satisfatórios. Esses pacientes não evidenciaram maior incidência de efeitos colaterais, como hipercalcemia.30

Além disso, parece existir uma associação inversa entre a atividade da doença e a concentração dos metabólitos de vitamina D em pacientes com artrite inflamatória.31 Em condições basais pré-tratamento, ocorre uma relação inversamente proporcional entre os níveis de 25(OH) vitamina D e o número de articulações dolorosas, o DAS28 e o HAQ. Para cada aumento de 10 ng/mL nos níveis séricos de vitamina D, ocorreu uma diminuição no DAS28 de 0,3 ponto e nos níveis de PCR em 25%.31

Lúpus eritematoso sistêmico

Vários autores têm demonstrado maior prevalência de deficiência de vitamina D em pacientes com LES em comparação com indivíduos com outras doenças reumatológicas ou saudáveis.3,32-34 Um estudo transversal realizado por Muller et al.33 evidenciou níveis significativamente menores de vitamina D em pacientes com LES (média 13 ng/mL) em comparação com pacientes com AR (24 ng/mL), osteoartrite (32 ng/mL) e controles (27 ng/mL). Huisman et al.34 demonstraram que 50% dos pacientes com LES eram deficientes de vitamina D (cutoff < 50 nmol/L ou 20 ng/mL). Entretanto, comparando esses pacientes com indivíduos com diagnóstico de fibromialgia, não houve diferença entre os grupos com relação aos níveis de PTH, 25(OH)D e 1,25(OH)2D3.

Pacientes com LES apresentam múltiplos fatores de risco de deficiência de 25(OH)D.A fotossensibilidade característica da doença e a recomendação quanto ao uso de protetor solar determinam menor exposição do indivíduo ao sol, diminuindo a produção cutânea de vitamina D. O uso regular de corticosteroides e de hidroxicloroquina parece alterar o metabolismo da vitamina D, embora as evidências ainda não sejam claras. Além disso, comprometimento renal grave, que pode ocorrer em pacientes com nefrite lúpica, pode alterar a etapa de hidroxilação da 25(OH)D.13

Está bem documentada a maior incidência e gravidade do LES na população negra. Acredita-se que esse fato não seja atribuído apenas a fatores genéticos e especula-se que menores concentrações séricas de 25(OH)D, decorrentes de menor taxa de conversão cutânea devido à pigmentação da pele, seja um dos fatores implicados.19

Níveis críticos de vitamina D (< 10 ng/mL) foram encontrados de forma mais frequente em pacientes com envolvimento renal e lesões cutâneas fotossensíveis.3 Tem sido ainda documentada associação entre baixos níveis de vitamina D e escores de atividade da doença, avaliada através do SLEDAI (Systemic Lupus Erythematosus Disease Activity Index) e ECLAM (European Consensus Lupus Activity Measurement).19,35 Thudi et al.35 evidenciaram que a avaliação funcional através de um escore combinado (HAQ modificado, VAS global da doença pelo paciente e escala de fadiga) eram piores em pacientes com lúpus provável ou estabelecido e deficiência de vitamina D. Entretanto, esse estudo não mostrou associação entre deficiência de vitamina D e níveis de autoanticorpos, incluindo anti-DNA.

A associação entre deficiência de vitamina D e atividade da doença foi demonstrada por um estudo brasileiro com 36 pacientes: a dosagem de 25(OH) D foi menor (média de 17,4 ± 12,5 ng/mL) nos pacientes com alta atividade (SLEDAI > 12) em comparação com aqueles com atividade leve (SLEDAI < 3) e indivíduos-controle.36 Um estudo espanhol com 92 pacientes com LES evidenciou insuficiência de vitamina D (< 30 ng/mL) em 75% dos pacientes e deficiência (< 10 ng/mL) em 45%. Neste estudo, 45% dos pacientes com insuficiência e 35% daqueles com deficiência estavam fazendo suplementação de cálcio e vitamina D no momento da avaliação. Esse estudo mostrou ainda que pacientes com deficiência de vitamina D tinham maior grau de fadiga, embora não tenha sido encontrada relação com duração da doença, SLEDAI ou SLICC-ACR.13

Carvalho et al.37 investigaram a presença de anticorpos antivitamina D no soro de pacientes com LES, visando explicar melhor a deficiência de vitamina D nas doenças autoimunes. Foram estudados 171 pacientes com LES, sendo encontrados anticorpos antivitamina D em 4% deles, porém os níveis 25(OH)D foram semelhantes em pacientes com ou sem a presença destes autoanticorpos. Dentre as associações clínicas e laboratoriais estudadas, a única que mostrou estar fortemente relacionada com antivitamina D foi a presença do anti-dsDNA (P = 0,0004).

Doença indiferenciada do tecido conjuntivo (DITC)

Estudo realizado por Zold et al.38 demonstrou uma variação sazonal nos níveis de 25(OH)D3 em pacientes com DITC e que esses níveis eram menores nessa população em comparação com indivíduos-controle. Nesse mesmo estudo, 21,7% dos pacientes com DITC e deficiência de vitamina D evoluíram para doença do tecido conjuntivo estabelecida (principalmente AR, LES, síndrome de Sjögren e doença mista do tecido conjuntivo); estes tinham menores níveis de vitamina D em comparação com os que permaneceram com doença indiferenciada.

Doença inflamatória intestinal (DII)

As DII (colite ulcerativa e doença de Crohn) são doenças imunomediadas, cuja fisiopatologia envolve também a participação de células Th1, com produção de IL-2, TNF-a e IFN-γ.14 Níveis séricos diminuídos de 25(OH)D têm sido descritos nas DII. Estudo realizado por Jahnsen et al.39 encontrou deficiência de vitamina D em 27% dos pacientes com doença de Crohn e 15% dos com colite ulcerativa.

O mecanismo pelo qual deficiência de vitamina D ocorre mais frequentemente em DII parece ser devido a uma combinação de efeitos, tais como baixa ingestão e má absorção de vitamina D, e menor exposição solar.8

Na DII experimental, utilizando ratos com IL-10 inativada (knockout), a deficiência de vitamina D mostrou acelerar a doença, com aparecimento mais precoce de diarreia e caquexia, além de maior mortalidade14. Por outro lado, o tratamento com 1,25(OH)2D3 preveniu o aparecimento dos sintomas, além de reduzir sua progressão e gravidade.1,3

Esclerose múltipla (EM)

A EM é uma doença autoimune do sistema nervoso central caracterizada pelo reconhecimento inadequado de autoepítopos em fibras nervosas mielinizadas por células imunológicas adaptativas, gerando uma resposta imunológica inflamatória mediada por linfócitos e macrófagos e que resulta em áreas localizadas de inflamação e desmielinização.14

Alguns estudos têm demonstrado a associação de deficiência de vitamina também em pacientes com EM e o seu papel não somente na diminuição das taxas de recidiva, como também da prevenção do seu surgimento.40,41 Em indivíduos brancos, o risco de EM diminui significativamente (em até 40%) naqueles com alta ingestão de vitamina D. O mesmo benefício não foi evidenciado na população negra e hispânica.40

Em um estudo utilizando modelos experimentais de EM, a administração de vitamina D preveniu o início de encefalite autoimune alérgica e lentificou a progressão de doença.42

Diabetes melito tipo 1

Na fisiopatologia do diabetes melito tipo 1 (DM1), estão envolvidos vários mecanismos efetores que levam à destruição celular, incluindo a presença de linfócitos CD8+ e macrófagos, os quais regulam a diferenciação de células Th1 através da IL-12.43 Em modelos experimentais, utilizando camundongos diabéticos não obesos (NOD mice), a deficiência de vitamina D acelerou o início do DM1.44 Utilizando esse mesmo modelo, a suplementação precoce de 1,25(OH)2D3, antes da progressão do infiltrado mononuclear nas células pancreáticas, reduziu a insulinite autoimune e preveniu o desenvolvimento de diabetes.45

Estudos epidemiológicos têm mostrado que suplementação dietética com vitamina D na infância pode reduzir o risco de desenvolvimento da DM1. Estudo finlandês com acompanhamento de 30 anos evidenciou uma redução significativa da prevalência de DM1 em crianças que receberam suplementação de vitamina D diária (RR = 0,12).46

Doenças inflamatórias cutâneas

A disfunção das catelidicinas, peptídeos antimicrobianos (PAM) presentes na pele, é relevante na patogênese de várias doenças cutâneas, incluindo dermatite atópica, rosácea e psoríase.47,48 Um trabalho realizado recentemente demonstrou que a vitamina D3 é um dos principais fatores responsáveis pela regulação da expressão das catelicidinas, envolvendo alterações epigenéticas, como a acetilização de histonas.49 Desse modo, as terapias tendo como alvos o metabolismo e a sinalização da vitamina D3 poderiam ser benéficas em doenças inflamatórias cutâneas.48-53

Na psoríase, o bloqueio da expressão de peptídeos humanos da catelicidina (LL-37) pode inibir a ativação de células dendríticas e a inflamação cutânea.53 Interessante é o fato de que, paradoxalmente, os análogos da vitamina D3 foram utilizados por longo tempo como tratamento de psoríase. Estes compostos se ligam ao receptor de vitamina D, ativando-o, elevando, desta forma, os níveis de catelicidina nos queratinócitos e, presumivelmente, piorando a inflamação. No entanto, o que ocorre é exatamente o oposto: melhora da inflamação cutânea e reversão das alterações morfológicas da pele lesionada.53

O uso da vitamina D3 e seus análogos para o tratamento da psoríase vem sendo estudado há vários anos, demonstrando o efeito do calcitriol na melhora de lesões psoriáticas. No en-tanto, o uso desses agentes em longo prazo é limitado, devido aos efeitos de hipercalcemia e hipercalciúria. Esses achados levaram à pesquisa de outros análogos da vitamina D3 que poderiam apresentar os efeitos antipsoriáticos da vitamina D3, sem os efeitos indesejáveis na homeostase do cálcio. Um desses compostos, o calcipotrieno (também conhecido com calcipotriol), apresenta um efeito de diferenciação e inibição da proliferação de queratinócitos in vitro, enquanto os efeitos no metabolismo do cálcio foram 100 a 200 vezes menores do que aqueles que ocorreram com o calcitriol.54 Atualmente, os análogos sintéticos da vitamina D, em sua forma tópica, representam uma das alternativas mais seguras e eficazes para o tratamento da psoríase leve a moderada, comparável aos corticosteroides tópicos de alta potência.55,56

Profilaxia e terapia das doenças autoimunes utilizando reposição de vitamina D

Apesar das evidências clínicas e experimentais de que a deficiência vitamina D é um fator importante responsável por aumentar a prevalência de certas doenças autoimunese dos seus efeitos imunomodulatórios comprovados,5 como já descrito anteriormente, pouco se sabe sobre os efeitos da reposição da vitamina D na prevenção e no tratamento dessas doenças, porém acredita-se que sua reposição tenha relevância no controle de rejeição de transplante e enxertos e na prevenção e no tratamento das doenças autoimunes.22

Os estudos realizados são, em sua maioria, em modelos experimentais de lúpus,6 EM,57,58 DII,59 artrite60,61 e DM tipo 145,62 e todos demonstram o efeito benéfico da reposição da vitamina D na modulação dos componentes do sistema imunológico responsáveis pelo processo inflamatório, como a expressão de citocinas, fatores de crescimento, óxido nítrico e metaloproteinases.

Em humanos, os estudos realizados são pequenos e não controlados, porém também parecem apontar para efeitos benéficos da suplementação da vitamina D na prevenção do desenvolvimento de doenças autoimunes, bem como na redução da gravidade da doença preexistente.63-69

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As evidências sugerem que a deficiência de vitamina D pode ter um papel importante na regulação do sistema imunológico e, provavelmente, na prevenção das doenças imunomediadas. No entanto, outros estudos ainda são necessários para determinar os riscos e benefícios da reposição de vitamina D, quando e em quais pacientes mensurar a 25(OH)D, os valores de referência para considerar a deficiência/insuficiência, as ações clínicas a serem tomadas e o real impacto dessa associação em nossa prática clínica.

Recebido em 22/06/2009

Aprovado, após revisão, em 26/11/2009

Declaramos a inexistência de conflitos de interesse.

Serviço de Reumatologia do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

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  • Endereço para correspondência:
    Ângela Pinto Duarte
    Serviço de Reumatologia - Hospital das Clinicas
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    CEP: 50670-420. Cidade Universitária, Recife - PE
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Mar 2010
    • Data do Fascículo
      Fev 2010

    Histórico

    • Aceito
      26 Nov 2009
    • Recebido
      22 Jun 2009
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