O artigo de Paiva et al1 se debruça sobre terreno controverso. Ali onde há mais perguntas do que respostas. Onde cruzam conflitos entre aquilo que sabemos, aquilo que ignoramos, crenças e valores que nos estruturam; crenças e valores que estruturam a vida daqueles com quem convivemos e a fluidez dos nossos desejos, dependentes da interpelação dos outros e dos artefatos culturais. A pesquisa de campo foi feita em escolas públicas – 85% dos jovens no país estudam nelas. Lidando com um conjunto de variáveis – pertencimento religioso; cor da pele; idade; indicativos de crenças e valores; narrativa de práticas sexuais; indicação de locais de convívio e redes de sociabilidade; e conhecimentos escolares –, a pesquisa nos mostra que há saberes mais complicados do que outros. A preocupação central é conhecer elementos acerca da sexualidade dos jovens, para melhor encaminhar a construção de estratégias de prevenção à Aids. Se o tema é relevante? Basta dizer que, no Brasil, assim como em outros países, a epidemia da Aids experimenta crescimento entre os jovens. O cenário de enfrentamentos que a pesquisa analisa é importante? Basta lembrar os embates entre conhecimentos científicos e opiniões na sociedade atual, bem representados pelo surgimento de polêmicas que até alguns anos atrás ninguém supunha terem tantos adeptos de cada um dos lados. A terra é plana ou redonda? O aquecimento global é fato ou invenção de forças globalistas? Devemos nos vacinar ou isso não é mais necessário? A vida surgiu no planeta pela ação do criacionismo ou do evolucionismo? Para além do tema escolhido no artigo ser espinhoso – a vida sexual dos jovens –, o cenário de enfrentamentos que a pesquisa deseja flagrar cruza crenças e valores dos pertencimentos religiosos e conhecimentos ofertados pela escola e pelas políticas públicas de saúde, e tudo isso centrado na epidemia de Aids, que dispensa comentários quanto ao grau de polêmica que até hoje provoca, por ser doença de transmissão sexual.
Uma palavra sobre os verbos que estruturam este artigo: saber, crer e desejar. Verbos indicam ação. Poderíamos ter escolhido os substantivos correlatos: saberes, crenças e desejos. Mas queremos enfatizar as polêmicas nesse campo, a maioria das quais centradas naquilo que os jovens fazem, ou se supõem que fazem. Em geral é só depois que eles nos dizem o que fazem – ou que as consequências do fazer se manifestam – que passamos a nos indagar sobre o que pensam e porque fizeram isso ou aquilo. Um referencial político e pedagógico importante que acompanhou as ações de campo da pesquisa e informa a recomendação de políticas públicas de prevenção é a abordagem Multicultural dos Direitos Humanos, respeitosa para com a diversidade no campo das práticas e dos valores morais de cada um e cada uma. A estratégia de debate que seguimos aqui é tomar elementos do texto e seguir caminhos que ampliam os achados da pesquisa.
Há uma disputa entre famílias, religiões e escolas na gestão dos jovens, embate já antigo e com muitas manifestações ao longo da história, no cenário atual, turbinado por movimentos sociais de viés autoritário como o “ideologia de gênero” e o “escola sem partido”. Por que dizemos autoritário? Não seria o caso de dizer simplesmente que são movimentos que revelam uma visão de mundo de direita? Ocorre que esses dois movimentos propõem explicitamente a supressão de temas – no caso, gênero – e da liberdade de ensinar – no caso do movimento do “escola sem partido”. A visão de escola que esses movimentos têm está bem representada nas proposições legislativas encaminhadas, nas quais se diz claramente que os valores da família e da religião tem precedência sobre os valores escolares. São movimentos que amesquinham a tarefa escolar e pretendem que currículos e estratégias pedagógicas sejam a continuidade dos valores religiosos e familiares. O movimento “escola sem partido” tem como um de seus bordões “meus filhos, minhas regras”, a indicar certa noção de que os filhos são propriedade dos pais, o que entra em conflito com a dignidade das crianças e jovens, como está colocado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A pesquisa de Paiva et al1 mostra que os jovens desejam uma escola que lhes oferte conhecimentos e inclusive insumos para a vida sexual, no caso, os preservativos. Vinculamos essas conclusões da pesquisa com a questão da autonomia dos jovens.
A escolaridade é obrigatória no país e cobre a faixa etária dos quatro aos 18 anos. É ao longo desse percurso que os jovens vão galgando autonomia intelectual, afetiva e financeira, sendo que isso está marcado na legislação. Aos 12 anos, passa a existir responsabilidade penal. Aos 14, pode-se trabalhar como aprendiz e é a idade em que a lei reconhece a capacidade legal para haver consentimento na vida sexual. Aos 16, é possível votar e pode-se trabalhar com plenos direitos. Aos 18, o voto torna-se obrigatório, é permitida a condução de automóveis e cessa a menoridade. De modo acertado, o currículo escolar oferta, a cada etapa da vida, conhecimentos mais amplos e diversos. Educar é oferecer novas fontes de conhecimento; ampliar os mundos; saber da riqueza cultural do passado; e perceber a complexidade do espaço público com opiniões e valores dos mais diferentes. Educação implica deslocar a pessoa dos referenciais que ela tem a cada momento. Educar é também a delicada tarefa de inserir os jovens em uma tradição e, em seguida, discutir com eles o direito que têm de modificar essa tradição, pois os jovens são o novo que vem ao mundo, e é desejável que deixem nele sua marca. O artigo de Paiva et al1 enfatiza que o esclarecimento em termos de boas condutas de prevenção à Aids vem do diálogo entre as fontes que conhecemos, e entre elas estão as famílias, o pertencimento religioso e a escola pública, sendo estas igualmente importantes. Não será colocando a escola a reboque das crenças familiares e religiosas que formaremos indivíduos esclarecidos.
O artigo problematiza a erosão do discurso das políticas públicas em saúde e sexualidade, que deveriam estar baseadas em evidências, mas que se pautam por valores religiosos ou simples crenças pessoais que servem de argumento para desautorizar pesquisas científicas. Para ficarmos em exemplos do momento em que estou redigindo esse comentário: o governador de São Paulo manda retirar páginas de um material educativo que abordava o tema de gênero por mera discordância moral. O prefeito do Rio de Janeiro ordena que agentes municipais recolham uma história em quadrinhos na Bienal do Livro, porque nela há ilustração de dois personagens masculinos se beijando. Grupo de pais de uma escola católica ameaça processar o educandário por conta da abordagem de temas em gênero e sexualidade. Na semana seguinte, grupos de alunos e alunas da mesma escola se manifestam pela liberdade de aprender esses temas. Movido claramente por princípios religiosos, o governo do Distrito Federal estabelece que a família é um núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher pelo casamento. Decisões judiciais posteriores mandaram os governantes acima citados voltarem atrás nas atitudes tomadas. Mas certo estrago já está feito pela persistente atitude de afronta às leis e ao respeito à diversidade e pelo ataque a conhecimentos baseados em evidências científicas.
Em outra direção, o artigo aponta que o discurso técnico-científico da grande mídia brasileira é em geral baseado em conhecimentos científicos. Mostra também que os jovens se servem de uma diversidade de fontes a partir da inserção nas redes sociais para obter conhecimentos e encontrar respostas a dúvidas. Muitas pesquisas sobre culturas juvenis indicam que não é no interior das famílias, nem no ambiente religioso, que os jovens discutem abertamente suas questões em relação a temas relacionados a gênero e sexualidade. A escola aparece novamente como ambiente de preferência para esse debate. Sempre será menos constrangedor conversar sobre gênero e sexualidade na presença de colegas de classe e de um professor ou professora do que frente a pastores, padres, pais e outros familiares, com quem vínculos de afeto, sangue, autoridade moral e sustento material tornam a discordância de ideias mais difícil.
A demanda no país por escola de turno integral iguala famílias de diferentes classes sociais. Cada vez mais as crianças e jovens estudam um número maior de anos e um número maior de horas por dia. A instituição escolar passa a ser responsável inclusive por parte de sua alimentação. Não há mais como viver a condição infantil e juvenil no Brasil sem ser em relação com a escola. Isso deveria ser visto como um dado positivo, que agrega valor em nossa democracia e permite a inserção dos jovens no direito à formação integral em conhecimentos científicos e culturais. A difícil tarefa de construir um regime democrático que contemple o maior grau de liberdade religiosa possível e a mais elevada liberdade de expressão da sexualidade e do gênero possíveis passa necessariamente por uma abordagem desses temas que contemple a noção multicultural e o referencial dos direitos humanos. A direção apontada pelo artigo amplia as possibilidades de debate e denuncia o cerceamento ora em curso, promovido por autoridades públicas e lideranças religiosas. As consequências para a saúde sexual e reprodutiva dos jovens podem ser desastrosas. De modo argumentado, a artigo alerta para esse perigo e indica saídas.
Referência
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Abr 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
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Recebido
19 Set 2019 -
Aceito
11 Out 2019