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Memórias e narrativas tecidas em uma experiência extensionista

Memories and narratives woven in an extensionist experience

Resumos

O presente trabalho pretende colocar em análise o percurso metodológico construído por psicólogos-extensionistas em uma experiência de assessoria com educadores responsáveis por um projeto de educação popular. Tendo o método como objeto de reflexão, buscamos, nas noções de diálogo (Paulo Freire) e de experiência (Walter Benjamin), retomar alguns fragmentos de memórias para pensar o lugar que ocupávamos nesse projeto. Repensar a nossa assessoria por este prisma nos permite refletir sobre as formas de fazer extensão e pesquisa nos campos da psicologia e da educação, entendidos estes como os lugares dos experts que aplicam seu conhecimento para transformar uma determinada realidade.

método; extensão; educadores; psicólogos


The present work seeks to examine the methodological procedure built by extensionist psychologists in a consultancy experience with educators in charge of a popular education project. When we take the method as an object of reflection, we seek, based on the notions of dialog (Paulo Freire) and experience (Walter Benjamin), to employ some fragments of memories to reflect upon the role we played in this project. To reflect on our consultancy from this perspective enables up to reflect upon the forms of carrying out extension and research work in the fields of psychology and education, understood as the places of experts applying their knowledge to change a particular reality.

method; extension; educators; psychologists


RELATO DE EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL

Memórias e narrativas tecidas em uma experiência extensionista

Memories and narratives woven in an extensionist experience

Eduardo Antonio de Pontes CostaI; Maria de Fátima Pereira AlbertoII

IPsicólogo. Doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Professor Adjunto do Departamento de Metodologia da Educação do Centro de Educação, da Universidade Federal da Paraíba. Endereço: Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal da Paraíba – Campus I. Conjunto Humanístico – Bloco IV Cidade Universitária – João Pessoa – PB – Brasil. CEP 58051-900. E-mail: dudu_pontes@hotmail.com

IIPsicóloga. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora Associada do Departamento de Psicologia do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal da Paraíba, Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UFPB. E-mail: jfalberto@uol.com.br

RESUMO

O presente trabalho pretende colocar em análise o percurso metodológico construído por psicólogos-extensionistas em uma experiência de assessoria com educadores responsáveis por um projeto de educação popular. Tendo o método como objeto de reflexão, buscamos, nas noções de diálogo (Paulo Freire) e de experiência (Walter Benjamin), retomar alguns fragmentos de memórias para pensar o lugar que ocupávamos nesse projeto. Repensar a nossa assessoria por este prisma nos permite refletir sobre as formas de fazer extensão e pesquisa nos campos da psicologia e da educação, entendidos estes como os lugares dos experts que aplicam seu conhecimento para transformar uma determinada realidade.

Palavras-chave: método; extensão; educadores; psicólogos.

ABSTRACT

The present work seeks to examine the methodological procedure built by extensionist psychologists in a consultancy experience with educators in charge of a popular education project. When we take the method as an object of reflection, we seek, based on the notions of dialog (Paulo Freire) and experience (Walter Benjamin), to employ some fragments of memories to reflect upon the role we played in this project. To reflect on our consultancy from this perspective enables up to reflect upon the forms of carrying out extension and research work in the fields of psychology and education, understood as the places of experts applying their knowledge to change a particular reality.

Keywords: method; extension; educators; psychologists.

Diferentes vozes, múltiplos saberes

O objetivo deste texto é buscar refletir sobre uma prática de intervenção, de caráter extensionista, produzida por professores e alunos de psicologia, e os educadores do Projeto Comunitário de Educação Popular (PROCEP). Em 1993, o Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares (SEAMPO), vinculado ao Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), firmou um acordo com o PROCEP – organização não-governamental de caráter educacional e social –, objetivando assessorá-lo na análise das fichas de acompanhamento e de avaliação do desenvolvimento biopsicossocial de crianças e jovens, filhos e filhas de trabalhadores rurais e urbanos, pauperizados em suas condições de vida e de trabalho.

As reflexões sobre a nossa intervenção pautam-se em aspectos que consideramos pertinentes para a tessitura deste artigo: O primeiro remete ao conceito de dialogia em Paulo Freire, autor que permitiu e permite pensar um modo outro de fazer extensão juntos aos movimentos populares. O segundo permite falar do desafio de analisar a nossa intervenção a partir do conceito de experiência em Walter Benjamin. Ao rememorar as nossas experiências, as entendemos não como as que "guardam uma história em si", mas àquelas que apresentam, numa relação dialética, um presente sempre em movimento. Por último e escapando à lógica linear tempo, da história, como pretendiam os historicistas segundo Walter Benjamin (1994, p. 231), para "[...] preencher o tempo homogêneo e vazio. [...]" saturado de "ágoras", entendemos que produzir rememorações sobre a nossa inserção psi é poder pensar sobre as contribuições advindas da natureza do referido trabalho, e que se refletem nos modos de como produzimos a intervenção, os diferentes saberes, nas áreas em que atuamos como professores-extensionistas: da psicologia e da educação.

Ao assumirmos as atividades de extensão, entendemos o trabalho como relevante, pela dimensão social e histórica do projeto em tela. Acreditávamos que a Universidade havia sido escolhida para prestar assessoria ao PROCEP por dois motivos: 1) ela era reconhecida como lugar de produção de conhecimento; e 2) os educadores responsáveis pelo PROCEP identificavam na filosofia de trabalho do SEAMPO possíveis canais de diálogo com a sua proposta didático-pedagógica, pensada e estruturada na Educação Popular.

Ressaltamos que o presente relato de experiência ocorreu há mais de dez anos e que a atividade de extensão ocorreu entre os anos de 1993 a 1996, envolvendo a participação de professores e graduandos em psicologia da UFPB, educadores e coordenadores do projeto em tela. O PROCEP, até 1996, tinha cinco núcleos, denominados de canteiros, atendendo a uma média de 150 educandos, em que eram realizadas as seguintes atividades educativas e produtivas: reforço escolar em linguagem, matemática e reconhecimento "do meio", planejamento das atividades, acordo de convivência, merenda, previsão orçamentária, prestação de contas, produção (criação de suínos e bovinos, horticultura, capinagem, produção de feno, serigrafia, fabricação e venda de picolé).

Entendíamos a pertinência da nossa assessoria não apenas pela sua dimensão per si, mas também por compreendermos os limites que atravessavam a nossa maneira de pensar e de fazer extensão, com alguns aportes da psicologia, possivelmente da psicologia social. Aquela forma de assessoria via extensão tornava-se, naquele momento, um desafio e, ao mesmo tempo, uma tentativa de produzir outras possibilidades de formação e de intervenção em psicologia. Esse "novo" era importante considerando-se que a formação do curso em que estávamos inseridos, como professor e estudante, pautava-se no modelo que privilegiava o paradigma da racionalidade biomédica, cuja perspectiva da psicologia do desenvolvimento adotada adequava-se à biologia evolucionista, fundamentada nas características internas, na visão inatista, de essência, do sujeito. Tal modelo de intervenção visava produzir diagnósticos/pareceres de identificação dos aptos, visando-se produzir diferenciações e tratamentos. Desse modo, identificávamos que no espaço de intervenção, o Projeto fazia uso de concepções de um modo de fazer psicologia atravessada por esses modelos biomédico e evolucionista: avaliação das fichas de acompanhamento/diagnóstico. Mesmo diante dessa realidade, ressaltamos que o Projeto privilegiava pensar o lugar da criança e do jovem a partir de uma filosofia de trabalho entrelaçada pela Pedagogia do Oprimido (Paulo Freire) e pela Pedagogia Social (Célestin Freinet).

Por outro lado, entendíamos que não estávamos nos envolvendo com os educadores para "ensinar-lhes o que serve". O nosso desafio era inventar outras formas de olhar, de compreender uma parte de uma realidade social, marcada pela desigualdade social, em que o Projeto, pelo viés da dialética, também nos permitia tensionar o nosso lugar como psicólogos, os experts da academia, que falam a partir de uma verdade.

Como foi possível produzir um "método" a partir dos lugares inventados e reinventados na extensão? Que lugar ocupávamos nesse processo? Como se deu uma produção de conhecimento? Talvez tenhamos as respostas, talvez não. E como falar a partir desse antagonismo? Entendemos que refletir sobre essas questões já traduz em si uma concepção de homem que, na sua relação com o mundo, traz a ideia de múltiplos na própria singularidade, como nos propôs Paulo Freire (1967). Uma singularidade produzida por incessantes diálogos que partem da palavra como ação e reflexão. Nesse movimento pelas palavras, repensar parte da história produzida pelo Projeto em tela é poder repensar o passado para ressignificar a sua história (BENJAMIN, 1994), inclusive a nossa, como psicólogos-extensionistas.

Nesse sentido, a tarefa de rememorar assume um sentido político relevante neste trabalho de reflexão. Na perspectiva de Walter Benjamin (1994, p. 223), representa uma postura ética e política em que a experiência é histórica. Entendemos que a nossa assessoria, a partir do diálogo da experiência, conectava passado e presente, não objetivando a "restauração" de um passado, como uma imagem "eterna", mas a transformação de um presente, inclusive sobre a nossa forma de produzir conhecimento. Não éramos os sujeitos da tutela sobre um projeto de educação popular à medida que acreditávamos que existia "[...] um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. [...]" (BENJAMIN, 1994, p. 223).

Para Benjamin (1994), a ruptura do sistema feudal e a emergência da classe burguesa europeia produziram novas formas de sociabilidade, em que a dimensão da narrativa cede lugar a um "passado sem voz", em que não são mais favoráveis relações entre o narrador e o ouvinte. Segundo o referido autor, o sistema artesanal propiciava as condições para o encontro entre o diálogo da experiência de longa data que reafirmava a esse mesmo homem narrar a sua história. A revolução industrial, fruto do capitalismo manufatureiro, rompe com o que sejam as experiências de vida do trabalhador, com sua referência de vida, de história. O narrador, o artesão, é lançado neste mundo, em que a sua função produtiva não lhe permite tecer memórias, múltiplas e diversas, sobre a relação consigo mesmo e com a história coletiva. Para Benjamin (1994, p. 197), o progresso e a modernidade fazem sucumbir a memória e, consequentemente, a figura do narrador.

Resistindo a essa crise cultural produzida pela modernidade, assinalamos que o conceito de experiência, uma das ideias instigantes que perpassam os escritos de Walter Benjamin, apresenta pontos de aproximação com a concepção de homem em Paulo Freire. Para Benjamin (1994, p. 114), a noção de experiência na modernidade irá se referir à temporalidade, comum aos historicistas alemães da social-democracia, que adotavam, do ponto de vista metodológico, a visão linear de se contar um fato histórico. Esse mesmo autor aborda esses aspectos em vários momentos de seus trabalhos, apontando como se constitui a vivência em uma modernidade definida por outras estruturas de trabalho, em uma percepção moderna de mundo, em confronto com a experiência histórica dos antigos, em que a memória, a escuta, assumiam a manutenção da própria experiência, e não a "perda da experiência".

A ausência dessa dimensão da narrativa era de tal monta que, embora o PROCEP tivesse na época uma história de 18 anos, vivenciava uma crise em que sua experiência era posta em cheque, com possibilidades de extinção. De certo modo, sua história, sua experiência não era utilizada como base de uma possível recuperação, como forma de encontrar ferramentas para ressignificar anteriores saídas para as dificuldades. Um exemplo disso é que as dificuldades vividas naquele momento remontavam, dentre outros aspectos, à falta de recursos materiais e humanos para a continuidade das suas ações.

A partir desse contexto, uma das contingências em que fomos envolvidos foi que, para continuarmos trabalhando, precisávamos ajudar os educadores responsáveis pelo PROCEP a pensar em saídas para a "crise". A nossa estadia (assessoria) com eles nos fez compreender que a sua história, de muita luta, embora não esquecida – porque, vez por outra, alguém comentava: "Já temos 18 anos e vamos acabar assim!..." –, não era tomada e pensada como uma ferramenta, inclusive para pensar saídas a partir de múltiplas entradas (DELEUZE, 1992). Chegamos a essa conclusão por vários motivos: 1) A história do PROCEP estava encerrada em documentos, não tinha "vida", estava guardada, aprisionada nos papéis e nos armários, e entendíamos que ela podia ser ressignificada em múltiplos sentidos e de diversas formas; 2) Essa história era constituída pelo vivido por parte dos educadores que ali estavam, que haviam acumulado experiências ao trabalharem um processo educacional com crianças e adolescentes para lá do letramento. 3) O material didático de que os educadores do PROCEP dispunham era expressivo, muito farto. 4) Sua história continha elementos que considerávamos valiosos para serem vividos em outro tempo. Perguntamos aos educadores: "Isso que vivem hoje já foi vivido por vocês?" Eles responderam que sim, ou seja, aquela história, vivida há 18 anos, continha peças fundamentais para reviver e nelas encontrar elementos para fazer de novo. Parafraseando Walter Benjamin (1994), entendíamos que havia naqueles elementos uma nova relação que possibilitaria formar um novo mundo. Nessa perspectiva, e diante de um recorte da assessoria, convidamos um outro assessor, técnico em cooperativismo da UFPB, para pensarmos como produzir e ofertar o referido conhecimento do Projeto em tela, na busca por parcerias com órgãos e agências de fomento.

Tentávamos assim fazer da história do PROCEP uma experiência comum a "eles" e a "nós", uma comunidade de vida. Desejávamos e pensávamos dar forma, assim como o artesão, à "[...] uma imensa matéria narrável, participando da ligação secular entre a mão e a voz, entre o gesto e a palavra" (GAGNEBIN, 1994, p. 11), participando da relação entre o vivido por eles em épocas anteriores (nos 18 anos do PROCEP) e o vivido por eles e por nós naqueles dias de 1993.

O método como (re)invenção

Na tessitura entre passado, presente e futuro, é aqui que entendemos a instauração de um outro modo de produzir um método vinculado à uma extensão universitária. Reafirmamos que o objetivo desta escrita é convidar a memória e a narrativa para refletirmos analiticamente sobre as nossas implicações, porque, precipuamente, precisamos produzir estratégias de conservação e mecanismos de lembrança. Segundo assinala Gagnebin (2006, p. 11): "[...] na esteira de Walter Benjamin, não esquecer dos mortos, dos vencidos, não calar, mais uma vez, suas vozes – isto é, cumprir uma exigência de transmissão e de escritura".

Nesse contexto, produzimos um partilhar permanente entre os conhecimentos produzidos por diferentes saberes – científico-popular, popular-científico, por exemplo. Havia, certamente, diálogos na relação entre teoria e pratica, mesmo diante dos desafios que atravessam e constituem um modo de ser psicólogo, pesquisador partir de trajetórias que possibilitassem as rupturas, os movimentos de conexões, de desconexões, com o discurso hegemônico burguês de perceber a vida (KONDER, 1992) e que nos constitui como especialistas.

Conforme já mencionado, a demanda primeira do Projeto objetivava a análise das fichas de acompanhamento e de avaliação do desenvolvimento biopsicossocial dos educandos do PROCEP – crianças e jovens, filhos e filhas de trabalhadores rurais e urbanos, pauperizados em suas condições de vida e de trabalho. Essas fichas, elaboradas pelos educadores do PROCEP, apresentavam dificuldades para serem analisadas (ALBERTO; COSTA, 1998).

Nesse contexto e perseguindo esse desafio de formar e realizar intervenções, carecíamos de um método cujos procedimentos fossem diferenciados da tal lógica acima criticada e que pudesse captar a vida e com ela fazer parceria, que tivesse a ver com a vida, já que a "[...] ciência não tem nada a ver com a vida, [...]" (BENJAMIN, 2002, p. 32). Optamos por uma sistematização dos encontros para a devolução das análises das fichas, apresentamos aos coordenadores e educadores do PROCEP um relatório contendo descrições das dificuldades inerentes à elaboração do próprio questionário, como, por exemplo, questões referentes à idade da criança e do jovem, data do preenchimento, dados sobre as famílias, dentre outras que não apareciam no questionário, e eram, certamente, imprescindíveis para a compreensão dos efeitos do Projeto na vida de crianças e jovens do meio popular. A partir dessas apresentações, nos propusemos a discutir os resultados das nossas análises.

Identificamos que havia outras demandas por parte do Projeto. Para atendê-las, o ponto de partida foi o estabelecimento de diálogos, na tentativa de trazer elementos a partir dos quais pudéssemos, coletivamente, pensar a sua história de uma outra maneira. Era necessário "escovar a história a contrapelo" (BENJAMIN, 1994, p. 225) daquilo que aparentemente havia se perdido até a época da nossa assessoria.

Entender a nossa produção de conhecimento significa compreender também como nos colocávamos frente à produção de diferentes saberes. Principalmente quando elegemos outro formato de pesquisa, no aprender a fazer assessoria, em que partíamos dos lugares provisórios, das dúvidas, dos medos, de algumas ferramentas conceituais da psicologia, como já referido, e da educação, a partir da observação participante (BRANDÃO, 1985): assumimos uma postura de trabalho que não permitia afirmar a neutralidade científica, classicamente empreendida pelo discurso positivista.

O método, para nós, deveria significar a produção de itinerários que falassem das rupturas, dos atravessamentos. Seria rever outras possibilidades de leituras, não apenas a história dos vencedores, a história oficial contada por um pragmatismo científico, positivista, em que os "vencidos" – em especial, os que participam do PROCEP – assumem na história o lugar do "opaco, do marginal, do menor". Nessa tentativa de reviver a memória, de rememorar a experiência do Projeto como elemento importante para pensar e repensar também o nosso método, a escolha de Paulo Freire (1967), dentre alguns aspectos já mencionados, nos permite situar a história do Projeto, quando o referido autor afirma que há uma capacidade inerente ao homem que lhe permite ser capaz de construir outras formas de organização na vida e com a vida. Portanto, não como consequência das formas, mas como efeito potente da vida, há um devir histórico para se fazer. Pois há sempre um caminho novo a ser traçado, produzido. Como nos diria Benjamin (1994), estávamos produzindo, a partir de bricolage, uma narrativa histórica, parte dela, por certo, em que era possível escovar a história do PROCEP a contrapelo. Bricolage pode significar o aproveitamento de coisas usadas, danificadas e adaptadas para outras funções.

A história do projeto em tela, com suas ações pedagógicas pautadas na "conscientização" e na "educação libertadora" produzindo novos modos de relacionamento com as comunidades populares, nos possibilita, também, entender alguns aspectos inerentes aos movimentos sociais, especificamente das décadas de 1960 a 1980. Tais aspectos, além de não estarem circunscritos aos saberes produzidos pela psicologia, nos lançavam a outras leituras, sempre recorrentes à especificidade da história brasileira.

O canal para se chegar à história do PROCEP foi a partir dos encontros, que se constituíram em ferramenta importante para a nossa assessoria. Desse modo, os encontros foram privilegiados em detrimento das análises das fichas, assim como se privilegiou o "resgate" da história do Projeto junto aos que dela partilharam como forma de trazer para aquele momento as experiências como formas de atuação do PROCEP. Diante das implicações produzidas por educadores e psicólogos, enfatizávamos a importância de construir canais de diálogos para, além de repensar o trabalho educativo do PROCEP, buscar outros parceiros para a continuidade de suas atividades. Havia, certamente, uma história produzida, e presente no cotidiano de todos. A questão que nos atravessava era: "[...] de estar não apenas nele, mas com ele [...]" (FREIRE, 1967, p. 42).

À medida que nos tornávamos parte ativa nos acontecimentos, constatamos que a análise das fichas representava uma demanda certamente secundária, levando-se em conta as questões internas do PROCEP. Havia dificuldades que ficaram evidentes para nós, educadores e psicólogos-extensionistas. O PROCEP vinha sendo mantido há quase 17 anos por uma ONG (organização não-governamental) holandesa (Comittee Twee), que arcava com a manutenção do Projeto. Segundo a coordenação, como contrapartida, o Projeto deveria tornar-se autossustentável. O que na realidade não ocorreu, produzindo-se inclusive a redução de alguns núcleos, denominados de "canteiros", e a saída expressiva de educadores.

A produção de conhecimento teórico e prático gerado pelo Projeto dava o tom dos efeitos potentes de um trabalho coletivo desenvolvido por educadores que acreditavam em uma futura reforma agrária. Nesse sentido, tentar desconstruir essa regularidade histórica – a de um passado acabado, pronto – e propor, a partir dos diálogos possíveis e da história, a identificação dos meios para superar os desafios do Projeto, o redimensionamento da nossa assessoria diante da demanda inicial do PROCEP representou o tensionamento de diferentes concepções – educadores e psicólogos –, que se pautavam no confronto de diferentes vozes (BAKHTIN, 2003) e que, de acordo com Benjamin (1994), nos conduziu para a produção de conhecimento que se dava nos encontros, e que também nos constituía como psicólogos-extensionistas, inclusive para indagar determinadas "verdades" colocadas nesse tempo presente "saturado de ágoras", como já referido.

Nesse jogo de "poder e de verdade" (FOUCAULT, 1974, p. 17), reafirmamos os referenciais que permitissem colocar em análise, polemizar, determinadas verdades instituídas no Projeto, objetivando apontar para nós, extensionistas, como se produzem determinados sujeitos e se naturalizam certas práticas.

Olhares nômades no contexto da extensão

A estória de Aladim, nos contos As mil e uma noites (1704), narra a vida de um Sultão que, encantado pelas fabulações de Xerazade, adia a execução, eternamente, da contadora de estórias. Nessa criação é possível observar, entre vários aspectos, dois concernentes com a nossa escrita. O primeiro remete à capacidade criativa de Xerazade para sempre recriar um fio da estória que parecia não ter fim. A recriação é a potência que potencializa o interlocutor, o ouvinte. O segundo aspecto chama a atenção para a manutenção de uma memória que, preservada na oralidade de Xerazade, permite ao Sultão fabular sua própria existência: ouvir não apenas uma estória, mas partilhar da surpresa que a contadora reservava para cada noite. Talvez fosse necessário "salvar o desaparecido" (GAGNEBIN, 2006), a memória que poderia surgir contida também na história do Sultão. Por analogia, assumimos, certamente, "o algum lugar" dessa escuta. Na época da nossa assessoria, a história, a narrativa, era o fio condutor das nossas análises, sempre refeitas, inacabadas. Narrar significava, mesmo diante do presenteísmo, do imediatismo forjado pelo modo de produção capitalista, uma outra forma de leitura advinda das experiências, que, para nós, os experts psi, rejeitam os escritos pretensamente descritivos e neutros da ciência positiva, e nos constituem como os sujeitos dos discursos.

A história do PROCEP está vinculada à Diocese de Guarabira, Estado da Paraíba. O início das atividades do Projeto se deu a partir do Projeto Educativo do Menor (PEM), em 1977, passando à denominação de PROCEP na década de 1980. Do ponto de vista retrospectivo, o projeto em tela e tantos outros representaram o aparecimento, no Brasil, de ONGs que iriam caracterizar práticas e ações de assessoria e apoio a movimentos populares, que, quase na invisibilidade, propunham produzir saberes e práticas que lutaram pelo restabelecimento do Estado de Direito (GOHN, 1992; DOIMO, 1995) e pelo respeito aos direitos da criança e do adolescente (ABRAMO, 1997), dentre outros. Como tentar dar conta de uma realidade específica, rica e complexa, cuja prática social buscava subverter o discurso hegemônico da escola formal?

Havia, decerto, uma concepção teórica e metodológica que respaldava, em tese, o nosso trabalho, evidenciada nos referenciais que atravessam a presente escrita. Entretanto, não tínhamos "clareza" sobre como corresponder às demandas do Projeto. Havia, certamente, o SEAMPO, que, em sua dimensão político-ideológica, também reafirmava e acreditava nas práticas dos movimentos populares. Havia, ainda, uma concepção de educação popular que permitia a todos os sujeitos psi vislumbrarem uma outra leitura da realidade, inclusive de intervenção junto aos projetos de educação popular.

Nesse contexto, o SEAMPO apresentava dois aspectos relevantes e germinadores que nos traziam certo "alento" para a nossa implicação (ALBERTO; COSTA, 1998). O primeiro diz respeito à política que o referido setor da UFPB estava realizando naquele momento: uma concepção e uma forma de fazer extensão que problematizava determinados modos hegemônicos, inclusive o da Academia, na produção de saberes. Do ponto de vista ético e político, isto proporcionava a socialização de saberes gerados por nós – universidade, sujeitos detentores do saber cuja elaboração estava reservada a uma intelectualidade –, mas que não se constituía em exclusividade do ponto de vista da produção e do acesso. Um processo que se gesta e se nutre a partir do coletivo, pois implica, segundo Freire (1967, p. 61), "[...] na inserção, na sua integração, na representação objetiva da realidade. Daí a conscientização ser o desenvolvimento da tomada de consciência". Há uma produção de conhecimento que se gesta na ampliação, no entrelaçamento de diferentes saberes: científico e popular. O segundo diz respeito à nossa formação – Psicologia. A constituição de especialistas cujo olhar poderia estar envolvido pela dimensão clínica, pelo conceito de cura, respaldado na dimensão positivista de fazer ciência e, indubitavelmente, na produção de sujeitos psi, ou, melhor afirmando, os experts.

A socialização de saberes, concebida como produzida no entrelaçamento entre Academia e PROCEP – científico e popular –, foi por nós revisitada na tentativa de rememorar essa experiência, trazê-la de "volta ao nosso contexto atual" e escrever esse artigo, o que nos levou a buscar as histórias que produzimos junto com os educadores. Relendo as histórias que produzimos junto com os educadores na extensão, é oportuno situar Walter Benjamin (1994). Para este autor, a história é composta de "um tempo saturado de agora". E certamente não estávamos privilegiando esses "ágoras", mas o "lampejo" de outras temporalidades. Ainda de acordo com Benjamin (1994, p. 231), cada um desses "ágoras" deve estar apto a fazer "detonar" o continuum da história, a irromper na temporalidade e interromper a continuidade supostamente "tranquila" da historiografia oficial. Ao invés de apresentar uma imagem "eterna" do passado, o historiador comprometido com a história dos vencidos – e aqui nos referimos ao PROCEP, aos educadores – faz do passado uma experiência única. Era o único que privilegiávamos com eles.

A questão do método vai apontando para outras leituras, para a "tarefa" de rememorar, com suas nuanças e postura ética e política. Com o Projeto, buscávamos conectar passado e presente a partir do diálogo da experiência. Não para a "restauração" de um monumento da história, mas para a transformação de um presente "árduo, amargo" para os educadores, com vistas à produção de um outro futuro. Nesse sentido, Freire (1967) nos permite pensar em uma outra temporalidade, tanto para a psicologia como para a educação. Era necessário levar os educadores do Projeto em tela a refletir sobre si mesmos, sobre seu tempo, sobre sua história, sobre sua cultura. Era importante que contassem a sua história, não a dos vencidos (BENJAMIN, 1994).

Naquele momento não dispúnhamos de um referencial na psicologia que respaldasse a nossa leitura sobre tantos fragmentos de história trazidos e colocados pelos educadores. Sendo assim, indagamos: Qual a implicação da psicologia numa dimensão ética e política? Qual o nosso papel numa experiência extensionista? Em certo sentido, entendemos que a "[...] extensão funciona como uma espécie de via de mão dupla, na qual transitam os conhecimentos da academia e dos movimentos sociais e populares" (ALBERTO; COSTA, 1998, p. 40).

Nesse modo de ser psicólogos(as), tínhamos a escuta como ferramenta, mas uma escuta para ressignificar a demanda. Uma escuta que era feita no local em que estávamos. Na rua, na praça, na casa, na escola, ouvíamos e devolvíamos em forma de questionamentos, que pretendiam gerar a problematização, a reflexão, e saídas ou a produção de linhas de sentido, raízes, rizomas, que geravam outros "ruídos", outros movimentos (DELEUZE, 1992). Um destes foi a visita às escolas por parte dos educadores do PROCEP. Não qualquer visita, visto que eles já visitavam a escola para saber dos meninos/as, mas uma visita em que educadores do PROCEP e da escola pensassem juntos e trocassem figurinhas sobre suas experiências, principalmente numa tentativa dos seus educadores de contribuir na ressignificação da escola para esses meninos/as.

Nos encontros, tivemos a oportunidade de potencializar o conhecimento produzido no PROCEP, a capacidade dos educadores para trabalhar com crianças e jovens do meio popular, no sentido de que pudessem perceber a produção de conhecimento como elemento de trocas de experiências, de construção de parcerias com outros trabalhos sociais que lidam com crianças e jovens pobres das zonas rural e urbana. Ao invés de apresentar uma imagem "eterna do passado", a nossa assessoria buscava trajetórias que permitissem falar da história dos vencidos, que pode fazer do passado uma experiência única (BENJAMIN, 1994). Rememorar era a expressão reveladora de que a sua história – do PROCEP – trazia em si a dimensão ética e política da educação popular que constituía também os educadores como sujeitos da própria história na medida em que existir é um conceito dinâmico, em um presente "dialético", implicando em uma dialogação eterna do homem com o homem (FREIRE, 1967, p. 60).

Considerações finais

Como pode se verificar a partir destas breves rememorações, entendemos que a experiência educativa do PROCEP se constituía como um instrumento de transformação social, pois trabalhava com elementos concretos emergidos de sua realidade. Assim, e em relação à nossa assessoria, percebemos a existência de aprendizado a partir de vários aspectos inerentes ao saber-fazer. Produziu-se conhecimento sobre a realidade social dos diversos sujeitos envolvidos – dos educandos, das suas famílias e do próprio Projeto. Conhecimentos estes que foram e estão sendo conduzidos para o espaço da sala de aula, para subsidiar nossas práticas pedagógicas voltadas para a formação de profissionais com leituras e experiências da realidade social e psicológica da criança e do jovem do meio popular. Este aspecto era importante, porque não se dispunha, na Psicologia, de um modelo teórico-metodológico único e acabado que respaldasse o trabalho com uma ONG cujo atendimento endereçava-se a um público constituído por crianças e jovens. Ressentíamo-nos da parca produção de conhecimento pertinentes à realidade de crianças e jovens brasileiros do meio popular, que problematizasse a clínica, a escola e o laboratório.

Ao tentarmos lembrar a experiência do PROCEP, nos sentimos, como diz Walter Benjamin (1994), que os homens estão hoje mais pobres de experiências comunicáveis. O homem transformou-se num ser que tem um trabalho mecanizado; que necessita de histórias fechadas (com um final) e que se distancia da morte.

Identificamos a existência de erros e acertos, e também, sem dúvida, o respeito mútuo e o reconhecimento da experiência do outro, das especificidades do conhecimento científico e do popular, bem como a troca de saberes relevantes para a formação de todos: assessores e assessorados. Para Jean Marie Gagnebin (2006, p. 97), "Na história, na educação, na filosofia, na psicologia, o cuidado com a memória fez dela não só um objeto de estudo, mas também uma tarefa ética: nosso dever consistiria em preservar a memória [...]". Esta prática de intervenção em extensão, realizada não apenas como elemento constituinte na produção de conhecimento, mas como questão ética e política, possibilitando repensar um modo psi de intervenção junto aos movimentos populares.

Recebido em: 21 de maio de 2010

Aceito em: 05 de junho de 2012

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2012

Histórico

  • Recebido
    21 Maio 2010
  • Aceito
    05 Jun 2012
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