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Análise urbanística e diagnóstico de assentamentos precários: um roteiro metodológico

Urban analysis and precarious settlements assessment: a methodological guide

Resumos

A finalidade deste trabalho é destacar o papel instrumental da Análise Urbanística no diagnóstico urbanístico-ambiental de assentamentos precários, um arcabouço metodológico capaz de figurar, medir e avaliar as assimetrias que distinguem esses assentamentos da cidade formal. A metodologia na fase analítica adota uma estrutura temática que fixa os fatores de cuja variação depende um maior ou menor grau de qualidade de vida urbana nesses assentamentos e que, numa escala ascendente ou descendente, representam a erosão dos padrões e relações espaciais. O processo de síntese amarra as categorias de análise ordenando-as de forma espacializada e hierárquica em categorias de problemas. O método estabelece marcos de referência para avaliar o nível da transformação a ser produzida com as intervenções de urbanização, oferecendo uma referência para a tomada de posição entre extremos, que podem oscilar da consolidação do tecido existente até sua substituição - importantes dados de entrada tanto para o projeto como para o monitoramento das intervenções públicas.

Análise urbanística; Diagnóstico; Urbanização de assentamentos precários; Favela


The purpose of this paper is to point out the instrumental role of the Urban Analysis on the urbanistic-environmental assessment of precarious settlements, a methodological framework capable of depicting, measuring and evaluating the asymmetries that make these settlements so distinct from the formal city. In its analytical stage, the methodology takes on a thematic structure that establishes the factors whose variation will make for either a higher or a lower degree of quality of life in these settlements, and which represent the erosion of spatial standards and relations. The synthesis process ties the analysis categories, sorting them in a spatial and hierarchical way by categories of problems. The method establishes benchmarks to assess the level of transformation to be produced by the urban interventions, providing a reference for the formulation of decisions, which may range from consolidating the existing urban fabric to its replacement - a key data for the Project itself, as well as for monitoring the urban interventions thereof.

Urban analysis; Assessment; Precarious settlements upgrading; Slums


ARTIGOS

Análise urbanística e diagnóstico de assentamentos precários: um roteiro metodológico

Urban analysis and precarious settlements assessment: a methodological guide

Maria Lucia Cavendish Cavalcanti LimaI; Nadia SomekhII

IConsultora independente. Rua Pedro de Araújo Lima, 51, sala 34, Vila Guiomar. Santo André - SP - Brasil. CEP 09061-840. Tel:(11) 2324-5713. E-mail: lucavendish@gmail.com

IIFaculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie. Universidade Presbiteriana Mackenzie. Rua da Consolação, 930, Prédio 9, Centro. São Paulo - SP - Brasil. CEP 01302-907. Tel.: (11) 2114-8313. E-mail: nadiasom@terra.com.br

RESUMO

A finalidade deste trabalho é destacar o papel instrumental da Análise Urbanística no diagnóstico urbanístico-ambiental de assentamentos precários, um arcabouço metodológico capaz de figurar, medir e avaliar as assimetrias que distinguem esses assentamentos da cidade formal. A metodologia na fase analítica adota uma estrutura temática que fixa os fatores de cuja variação depende um maior ou menor grau de qualidade de vida urbana nesses assentamentos e que, numa escala ascendente ou descendente, representam a erosão dos padrões e relações espaciais. O processo de síntese amarra as categorias de análise ordenando-as de forma espacializada e hierárquica em categorias de problemas. O método estabelece marcos de referência para avaliar o nível da transformação a ser produzida com as intervenções de urbanização, oferecendo uma referência para a tomada de posição entre extremos, que podem oscilar da consolidação do tecido existente até sua substituição - importantes dados de entrada tanto para o projeto como para o monitoramento das intervenções públicas.

Palavras-chave: Análise urbanística. Diagnóstico. Urbanização de assentamentos precários. Favela.

ABSTRACT

The purpose of this paper is to point out the instrumental role of the Urban Analysis on the urbanistic-environmental assessment of precarious settlements, a methodological framework capable of depicting, measuring and evaluating the asymmetries that make these settlements so distinct from the formal city. In its analytical stage, the methodology takes on a thematic structure that establishes the factors whose variation will make for either a higher or a lower degree of quality of life in these settlements, and which represent the erosion of spatial standards and relations. The synthesis process ties the analysis categories, sorting them in a spatial and hierarchical way by categories of problems. The method establishes benchmarks to assess the level of transformation to be produced by the urban interventions, providing a reference for the formulation of decisions, which may range from consolidating the existing urban fabric to its replacement - a key data for the Project itself, as well as for monitoring the urban interventions thereof.

Keywords: Urban analysis. Assessment. Precarious settlements upgrading. Slums.

Introdução

Há mais de cinco décadas, os assentamentos precários vêm-se fixando no contexto urbano do Brasil, afrontando os baluartes mais inexpugnáveis de nossa sociedade - a propriedade privada, desdenhando legislações urbanísticas e ambientais e colocando grandes desafios para as políticas públicas em todas as esferas de governo:

O território da pobreza urbana não se refere a uma minoria excluída ou marginal, mas em algumas cidades (como, por exemplo, Belém, São Luiz, Fortaleza, Recife, Salvador) compreende a maioria da população [...] (MARICATO, 2011, p. 103).

Estudiosos acompanharam a evolução da ação governamental dirigida para essas áreas urbanas entre as décadas de 1940 e 1970 - marcadas por ações de remoção, até a atualidade - ações baseadas nos conceitos de inclusão (TURNER, 1969; PERLMAN, 1977; LEEDS; LEEDS, 1978; VALLADARES, 1978, 2005; DENALDI, 2003; TASCHNER, 1997, 2004). A inversão de concepção na atuação pública fica patente quando o governo federal incorpora ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em 2007, os projetos de urbanização de favelas, destinando-lhes substancial montante de recursos. Somam-se avanços na concepção dos programas à possibilidade de encetar atuação numa escala próxima a que o problema apresenta atualmente - 6% da população vivendo em assentamentos precários segundo o Censo IBGE de 20101 1 Trata-se de 11.425.644 pessoas. (IBGE, 2011). Afirma Maricato (2011, p. 144) que é

[...] impossível não reconhecer, que se constituiu algo novo na gestão de muitas cidades brasileiras por meio de um conjunto de práticas e programas urbanos que buscavam requalificar áreas de moradia precária [...] e produzir novos espaços de inclusão social e política [...].

De forma análoga, contribuições abundantes de inquestionável valor aportadas por pesquisadores brasileiros revelam, explicam e dissecam a territorialização da pobreza e a periferização da vida social nas cidades (SANTOS, 1993; FERREIRA, 2007; MARICATO, 1980, 1996, 2001; ROLNIK, 1997; VILLAÇA, 2001).

Os avanços contribuíram para a formação de consenso em torno de pelo menos dois pontos com respeito aos assentamentos precários:

(a) esse fenômeno não é de natureza transitória; ao contrário, os assentamentos precários são elementos da estrutura fixa das cidades, não só no Brasil como em outros países da periferia econômica, onde apresentam crescimento desconcertante, a taxas superiores às da cidade formal (DAVIS, 2006); e

(b) padrões precários e carências que lhes são peculiares estão colocados lado a lado a um potencial de transformação que pode atingir padrões urbanos razoáveis, que leva os assentamentos precários à categoria de potencial estoque habitacional, com a vantagem de ter os custos de urbanização muito inferiores aos custos de produção de novas moradias (MELLO; LIMA; DOURADO, 1995).

Não é possível ignorar, entretanto, os padrões de habitabilidade bastante precários que os caracterizam e que exigem, quase sempre, intervenções reestruturadoras e integradas. Essa condição é observada na linha programática Integração Urbana de Assentamentos Precários e Informais do Plano Nacional de Habitação (Planhab), que tem como objetivo enunciado promover a integração física dos assentamentos precários ao conjunto da cidade (BRASIL, 2009).

Apesar de toda evolução, muitas das intervenções de urbanização implantam infraestrutura num ordenamento urbano visivelmente distante dos padrões espaciais da cidade formal, levando-nos a questionar até que ponto a tão decantada inserção à cidade ou transformação em bairro é efetivamente posta em prática (DENALDI, 2003).

O que impede que essas intervenções supram apenas demandas incomprimíveis em matéria de habitação? Importantes questões permanecem abertas e, como tais, não asseguram a coerência das práticas com os enunciados do discurso. Quais são elas? Em primeiro plano, a fragilidade das referências que tornem visível a distância entre a promessa da inserção territorial acenada e a realidade urbana das áreas precárias, permitindo que essa distância seja nomeada e medida como problema a ser reparado pelas intervenções. É possível configurar um referencial de situação urbana a atingir ao recuperar áreas degradadas? É viável identificar e demarcar os fatores envolvidos na erosão dos padrões espaciais e alçá-los a categorias de análise? Em outro plano, como afirma Taschner (2004, p. 17),

[...] raramente se estuda a heterogeneidade, a diversidade dentro da favela que são tratadas, em regra, como espaços homogêneos não só para a análise sociológica e para a atuação política [...].

Como também para a intervenção urbanística. É possível identificar e demarcar o gradiente de deterioração de padrões urbanísticos no interior dos assentamentos?

As questões em aberto, anunciadas no parágrafo anterior, estimularam a autora a reunir, a partir dos anos de 1990, elementos para a organização de um arcabouço metodológico que lhes fornecessem respostas com algum grau de clareza e precisão. Desde então, suas pesquisas foram sucessivamente aplicadas a planos e projetos de assentamentos precários, incluindo entre estes o Diagnóstico da Favela Paraisópolis em São Paulo - SP, uma das maiores e mais complexas da cidade (LIMA, 2006). Esse arcabouço metodológico é submetido à apreciação da academia em 2006. Este artigo é uma versão condensada dessa dissertação de mestrado. A seção inicial trata das especificidades implícitas na tarefa de "construir no ambiente construído", situação enfrentada nos projetos e ações de urbanização de assentamentos precários. O destaque recai sobre o papel do diagnóstico nesses projetos. Uma segunda seção apresenta o arcabouço metodológico da Análise Urbanística e a forma como se estrutura através de temas. A seção seguinte descreve o processo contrário: como da análise temática converge-se para a síntese. Por fim, as conclusões, à medida que encerram o artigo, abrem caminho para novas contribuições e desenvolvimentos.

O papel do diagnóstico nos projetos de urbanização de favelas

Analisando o conceito de Projeto sob a ótica de três diferentes autores - Gregotti (1994), Bosi (1996) e Lefevbre (1999) -, logramos distinguir três denominadores comuns presentes em suas formulações:

(a) intrínseca à ideia de Projeto existe uma ideia subjacente/valor, espírito e substrato, que, embora intangíveis, são determinantes da substância do próprio projeto;

(b) inerente à ideia de Projeto há uma finalidade, uma destinação a ser cumprida em sua materialização; e

(c) associado à ideia de Projeto há invariavelmente um meio, condição e percurso necessários para concretizá-lo, cuja organização está subordinada tanto aos valores subjacentes quanto à finalidade do projeto.

Abstraímos dos textos dos respectivos autores aqueles trechos que, em nossa avaliação, expressam a essência da argumentação de cada um deles, e com esses excertos montamos o Quadro 1, a seguir.


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Admitindo o pressuposto de que a organização dos meios num projeto qualquer - inclusive num projeto urbanístico - é regida pelos valores ou ideias subjacentes ao Projeto, sejam estes expressos por um desejo ou intenção, operados pela cultura ou ditados por pensamento ou utopia, se esses valores não se expõem em termos explícitos e categóricos, como então determinar os meios que deles virão a se depreender? De forma análoga, se a finalidade do mesmo Projeto é nebulosa em seu significado, imprecisa na condição digna de almejar-se, indeterminada no gradiente de transformação do espaço, como organizar os meios para atingi-la? Transferindo esse mesmo raciocínio para a relação entre Projeto e Metodologia, como definir esta última se os valores e a finalidade do projeto estiverem sujeitos à imprecisão apontada na frase anterior?

Essa questão se reveste de algum contorno especial quando se trata de transformar situações urbanas minadas por graves desequilíbrios, como é o caso dos assentamentos precários?

Os assentamentos precários são espaços urbanos construídos e habitados onde há uma preexistência a ser sopesada, e esta se afirma como um dos principais condicionantes do Projeto. Por que, em situação de sobrevoo ou observação cartográfica de grandes ou médias cidades latino-americanas, em distância ou escala em que a malha urbana se evidencia, distingue-se facilmente a presença de uma favela ou loteamento irregular? Certamente, não é pela ausência de infraestrutura, fato nem sempre perceptível a distância. Dois fatores se destacam a olho nu: a contração das dimensões que se observam em todos os elementos urbanos - ruas, quadras, lotes, edificações, se comparados às dimensões e geometrias dos mesmos elementos na cidade dita formal; e a desfiguração do território pelas formas desavisadas de implantação em terrenos, cuja ocupação adequada, geralmente, requer domínio das tecnologias e técnicas construtivas e disponibilidade de recursos financeiros. Gottdiener (1997, p. 130) destaca como contradição fundamental do espaço capitalista sua pulverização pelas relações sociais da propriedade privada:

[...] essa divisão e reivindicação de espaço por uma multidão de atores e instituições produziu, na expressão de Lefebvre, uma 'explosão de espaços' [...] pela demanda de fragmentos intercambiáveis [...]

Nas favelas, com a produção do espaço na informalidade e na emergência da busca de uma localização urbana, o fenômeno da fragmentação é atomizante, ilustrando uma cidade "liliputiana" com semelhanças, nas proporções mínimas de seus elementos, àquela encontrada nas viagens de Gulliver, personagem de Swift (1667-1745). Fracionamento dos espaços privados em parcelas inferiores a 40 m2, densidades acima de 600 hab/ha são materializados em tecido urbano desordenado, malha intrincada, lotes minúsculos e habitações amontoadas, acentuadamente insalubres; moradias precárias - exíguos espaços, fragilidade dos elementos construtivos, condições inadequadas de ventilação, insolação e iluminação; baixa inserção de vias veiculares, bolsões impenetráveis e zonas isoladas. Os terrenos, por sua vez, acidentados, com modificações abruptas, fortes recortes, declividades acentuadas, várzeas inundáveis ou mesmo solos instáveis; linhas naturais de escoamento das águas cerradamente obturadas por edificações a elas sobrepostas, sujeitas a inundações nos períodos chuvosos; transtornos, prejuízos e risco permanentes; precariedade dos serviços urbanos e infraestrutura; precariedade da segurança física: risco de inundação, deslizamento, incêndio, presença de roedores, malha propícia a abrigar marginalidade.

Porém, contraditoriamente, ao mesmo tempo em que são produzidas as situações adversas para o habitat humano, o assentamento precário é também um lugar para morar e abrigar a família, desenvolver atividades econômicas e usufruir dos serviços disponíveis; referência de lugar de repouso e de relações afetivas (pai/filho, homem/mulher, sujeito/comunidade), que revela alguma capacidade inventiva no construir e criatividade nas estratégias de sobrevivência de seus moradores.

As contradições se revelam no espaço e é comum que os assentamentos precários encerrem, num mesmo território, recortes espaciais subjugados por problemas, junto a outros onde se manifestam as potencialidades que os justificam como potencial estoque habitacional. Como distingui-los? Não está suficientemente elucidado o conjunto de indicadores, aquilo a que Gregotti (1999, p. 12) se refere como um "[...] esforço em organizar uma série de fenômenos voltados para uma finalidade [...]", que possa vir a expressar a diversidade em sua verdadeira grandeza e enunciá-la como base de projeto defensável e sustentável. É essa uma das funções da etapa de Diagnóstico de um projeto de urbanização de assentamentos precários: distinguir, através de meios defensáveis, os tecidos urbanos que reúnam condições de se tornar permanentes (consolidação) daqueles cujas características acumuladas justificam sua substituição. Nesse caso específico, o diagnóstico é uma fase de permanente diálogo entre o Consolidar e o Substituir, polos opostos de um gradiente de situações urbanas intermediárias, para as quais as diretrizes de intervenção variam e oscilam em função de fatores nem sempre enunciados claramente.

A tarefa do arquiteto ao realizar o diagnóstico urbanístico de um assentamento precário é identificar padrões e relações espaciais num tecido urbano vivo - habitado e construído - sob o propósito de ordenar uma futura transformação, equacionar uma problemática, de tal modo que as diferenças e assimetrias sejam formuladas num REGISTRO preciso em que as disparidades sociais refletidas no espaço sejam nomeadas como problema (TELLES, 2004).

A realização dessa tarefa enfrenta outra ordem de dificuldades:

Como definir os meios/métodos se há imprecisão no enunciado da finalidade e as ideias subjacentes e valores estão envoltos em névoa?

É possível configurar um referencial de situação urbana a atingir ao recuperar assentamentos precários?

Uma vez elaborado o Planhab (BRASIL, 2009), o capítulo referente à Linha Programática para Integração Urbana de Assentamentos Precários seria a fonte mais apropriada para se encontrar a expressão clara das finalidades e valores que deveriam condicionar a definição de metodologias para essa tipologia de projeto urbanístico. Repetindo, com base nesse plano, exercício semelhante ao praticado no Quadro 1, obtivemos o resultado fixado no Quadro 2, a seguir.


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As expressões inclusão territorial e integração do assentamento à cidade ocupam lugares centrais no texto, claramente referidas como objetivo/finalidade da intervenção de urbanização de assentamentos precários. Aparecem sem o resguardo de concepções claras, como se ambas as acepções fizessem parte do domínio comum, primeiro como significado (GREGOTTI, 1994), depois como termo final de um processo cujo valor é estimado, mais ou menos conscientemente, por todas as classes e grupos (BOSI, 1996); por último, como parâmetro para a transformação do espaço (LEFEVBRE,1999). O que significa integrar à cidade/incluir no território? Como antecipar a materialização dessas finalidades através do Projeto no estado de indefinição, imprecisão e falta de rigor na concepção.

Mais difundido no Brasil, ao menos no meio acadêmico, é o conceito de exclusão social. Contudo, como ressalta Wanderley (2001, p. 17), mesmo no momento em que a questão social se encontra no "epicentro da humanidade", "[...] a concepção de exclusão continua ainda fluida como categoria analítica, difusa, apesar dos estudos existentes, provocadora de intensos debates [...]". Recorrendo somente aos autores franceses contemporâneos, Wanderley (2001) destaca conceitos para diferentes matizes da questão:

(a) a desqualificação, atribuída a Paugam (19962 2 PAUGMAN, S. L'Exclusion L'État de Savoir. Paris: La Découverle, 1996. (apud WANDERLEY, 2001), aparece como o inverso da integração social e passa pela questão do emprego;

(b) a desinserção, trabalhada por Gaujelac e Leonetti (19943 3 GAUJELAC, V. DE; LEONETTI, I. T. La Lutte de Places. Marseille: Épi "Hommes et Perspectives" et Paris, Desclée de Brower, 1994 apud WANDERLEY, 2001), explora outros valores, principalmente o papel da dimensão simbólica nos fenômenos de exclusão, e não mantém uma relação exclusiva com a pobreza;

(c) a desafiliação, termo cunhado por Castel (19984 4 CASTEL, R. As Metamorfoses da Questão Social: uma crônica do salário. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. apud WANDERLEY, 2001), tem o significado de ruptura de pertencimento, ou de perda de vínculo societal, e a reflexão se dá a partir dos eixos integração/não integração do mundo do trabalho e do mundo das relações sociais.

Sposati (1996) distingue as múltiplas situações de privação que constituem a exclusão social: privação de autonomia, do desenvolvimento humano, da qualidade de vida, da equidade e da igualdade.

Onde se vincula e como se materializa a inclusão territorial/integração à cidade?

Ademais, como estabelecer parâmetros para padrões mínimos de habitabilidade se há uma variação infinita de padrões e as referências mudam de acordo com o contexto? Uma coberta de palha de coqueiro pode ser plenamente habitável na costa do Nordeste e inaceitável no Sudeste, onde o frio é rigoroso no inverno. Um lote de 80 m2 pode ser inadmissível em cidades onde o preço da terra é baixo, e uma utopia nos grandes centros urbanos do Sudeste. Como amarrar essa questão para aferi-la nos resultados das intervenções?

Se as finalidades não se encontram plenamente definidas nessa fonte, as ideias subjacentes/valores não têm sequer menção. Lefevbre (1999, p. 165) observa:

[...] os autores de projeto não parecem compreender que: (a) não existe pensamento sem utopia, sem exploração do possível; e (b) não existe pensamento sem referência a uma prática [...].

Se a finalidade refere a integração à cidade, inserção no território (da cidade), a que desejo/intenção, cultura ou utopia de cidade deve-se reportar o responsável por produzir a almejada transformação por meio do Projeto?

Enquanto trafegarmos na névoa da imprecisão de valores e finalidades como transferi-los para a esfera da decisão projetual? Este status quo reivindica um papel diferenciado para o diagnóstico dos projetos urbanísticos de assentamentos precários:

(a) figurar, medir e avaliar, nas situações preexistentes, as assimetrias que distinguem os assentamentos precários da cidade formal; e

(b) tornar reconhecível a escala de matizes de degradação dos padrões urbanos no interior dos próprios assentamentos.

Diagnóstico e análise urbanística: uma proposta metodológica

A Análise Urbanística, na formulação da autora, é parte integrante do Diagnóstico de um Projeto de Urbanização de Assentamentos Precários - especificamente favelas e loteamentos irregulares - abrangendo os aspectos físico-ambientais dessa etapa de trabalho. Os procedimentos analíticos empregados utilizam como fonte primordial, em vez de dados estatísticos, as formas materiais dos assentamentos precários. É análise espacial, uma aplicação prática literal da teoria da produção social do espaço, defendida, entre outros, por Gottdiener (1997), Lefevbre (1999) e Marcuse (2004). Esses autores sustentam que as crescentes desigualdades sociais encontram-se cimentadas no espaço urbano, que, através de suas formas materiais, revela os segredos da organização social.

A pesquisa fornece elementos para confirmar que na análise das formas espaciais vamos encontrar o registro das desigualdades, tanto nos padrões quanto nas relações entre elementos urbanos. Se o pressuposto é encontrar na forma as respostas, o processo de análise adota como objeto a própria forma material dos assentamentos precários e suas representações - bases cartográficas aerofotogramétricas. A evolução da tecnologia cartográfica e o recurso de programas informáticos de representação gráfica vieram facilitar sobremaneira o tipo de análise proposta no método.

É viável identificar e demarcar os fatores envolvidos na erosão dos padrões espaciais e alçá-los a categorias de análise? O meio utilizado para lidar com as complexidades desse problema é decompô-lo em partes para que estas possam ser abordadas separadamente. A análise urbanística se constitui de uma série de estudos temáticos, cujos temas funcionam como "medidores" do gradiente de deterioração dos padrões urbanístico-ambientais no interior dos assentamentos precários, contribuindo para identificar e demarcar setores de acordo com seu potencial para consolidação ou substituição. Essa organização metódica do conteúdo urbano-ambiental denomina-se estrutura temática. Cada um dos temas assinala um fator que caracteriza a precarização e a erosão de padrões urbanos em relação aos praticados na cidade formal. Cada tema/estudo é representado por uma síntese em que a versão cartográfica (mapa) tem um texto de apoio como complemento. Cada tema contribui com informações analíticas para o processo de síntese da dimensão urbanístico-ambiental. O diagrama da Figura 1, abaixo, representa a lógica do sistema.


A mesma estrutura temática que orienta os estudos é explorada em Oficinas de Diagnóstico, sessões de trabalho com pequenos grupos comunitários, nas quais se busca captar, de forma ordenada, o conhecimento vivencial dos moradores sobre os problemas urbano-ambientais que os afetam diretamente, seja no cotidiano, seja em eventos marcantes. As oficinas produzem material informativo precioso para a condução de todos os estudos técnicos, os de situações de risco, inclusive (LIMA, 2006).

O tópico a seguir apresenta os componentes da estrutura temática, realçando os aspectos significativos que explicam sua inclusão como categoria de análise. Os resultados desses estudos são indissociáveis dos mapas que os representam espacialmente; a leitura destes é indispensável para a apreensão do método. Assim, para ilustrar a exposição, selecionamos uma aplicação da metodologia: os Mapas do Diagnóstico da Favela Paraisópolis, elaborados em 2004 pela Secretaria de Habitação da Prefeitura Municipal de São Paulo.

Componentes da estrutura temática

Tema 1: morfologia do sítio

Um dos quatro imperativos do projeto arquitetônico apontados por Mahfuz (1995) é a característica do sítio. Lamas (1993, p. 81) também destaca o papel do suporte geográfico no processo de composição arquitetônica ao afirmar que "o sítio contém já em muitos casos a gênese e o potencial gerador das formas construídas".

O que dizer da função da base territorial num processo de apropriação de espaço que é realizado sem plano e sem desenho, em áreas quase sempre inadequadas à habitação? Rolnik e Nakano (2001, p. 30) asseveram que

[...] as terras onde se desenvolvem os mercados de moradias para os pobres são, normalmente, justamente aquelas que pelas características ambientais são mais frágeis, perigosas e difíceis de ocupar com urbanização [...].

Nos assentamentos precários, as características adversas do sítio são potencializadas pela emergência do construir e habitar na ausência tanto do domínio da técnica construtiva quanto do acesso às tecnologias apropriadas - deficiências inerentes à autoconstrução. Essa relação desvantajosa entre o suporte geográfico e a forma de apropriação contribui para inserir nos arranjos urbanos grandes parcelas de condição insustentável, seja por risco, insalubridade e/ou deseconomias na execução das moradias e infraestruturas. O estudo da morfologia, realizado através de análise cartográfica, tem o objetivo de localizar e mapear impedimentos físicos ao exercício satisfatório de funções urbanas básicas, como habitar e circular. Cada um dos acidentes do terreno condiciona as soluções de implantação espontânea de modo mais ou menos favorável. As faixas de declividade adotadas na análise delimitam níveis de propriedade ou de incompatibilidade entre uso e ocupação e o sítio (LIMA, 2006).

Tema 2: categorias dos acessos

A rede de percursos é um dos fatores de maior contraste entre os padrões da cidade formal e os das favelas e loteamentos periféricos: baixa inserção de vias veiculares, zonas isoladas, emaranhada e extensa rede de pedestres são a marca registrada das favelas. Nos loteamentos irregulares onde se observa uma tentativa de malha reticulada, os padrões de circulação também se encontram invariavelmente depreciados. Os sinais de depreciação variam:

(a) pode ser a incompatibilidade entre a função da via e suas características físicas - a caixa;

(b) também se deixam entrever no descumprimento da função de assegurar a permeabilidade dos percursos;

(c) fazem-se notar na incidência de barreiras; e

(d) obstruções resultantes ora das características do sítio, ora da ocupação desordenada.

O objetivo do estudo temático (Figura 2) é obter uma visão dos potenciais de uso futuro da rede de percursos preexistente, identificando o estado das conexões internas e externas e zonas isoladas; levantando as possibilidades e necessidades de interligação; mapeando nós e pontos críticos. Dois recursos são utilizados para esse fim:


(a) classificar as vias distinguindo diferentes categorias para as de pedestres e outras para as veiculares; e

(b) medir a extensão de cada uma das categorias de via apreciadas no estudo.

Ambos produzem uma referência importante para comparar a situação preexistente à intervenção com a proposta contida no projeto, permitindo aferir a evolução qualitativa deste pelo incremento de vias de melhor padrão (LIMA, 2006).

Tema 3: densidades por quarteirão

Tecendo considerações sobre os aspectos urbanísticos dos assentamentos degradados urbanos, Taschner (2004) aborda o indicador densidade como parâmetro urbanístico, trazendo à discussão a relação entre densidade demográfica e qualidade urbanística nos espaços intraurbanos. Ainda que admita o padrão de densidade como parâmetro urbanístico, o texto explicita as incertezas e o cepticismo do autor a respeito do emprego do indicador. A questão da densidade ideal quiçá não seja a mais importante no trato do espaço construído. Entender o significado dos valores de densidade identificados no espaço intra-assentamento e as formas de utilizar o índice para distinguir padrões espaciais é o centro das preocupações da análise. O estudo temático (Figura 3) analisa a superfície do sistema de espaços privados dos assentamentos e associa duas relações:


(a) a área de cada quarteirão pelo número de habitantes; e

(b) a mesma área pelo número de domicílios encontrados naquela unidade espacial.

A primeira, mais abstrata, é reforçada pela objetividade da segunda. Esta última revela a "fração ideal" de terreno de que cada família disporia para habitar e tem maior aplicação no espaço irregular das favelas, ainda que nos loteamentos permita verificar a redensificação pela subdivisão interna dos lotes originais. A densidade é tomada como referencial de salubridade de um conjunto de moradias no que tange aos requisitos de insolação, iluminação, aeração e ainda de privacidade (LIMA, 2006).

Tema 4: padrão de qualidade das habitações

O estudo da qualidade das edificações por predominância é um dos indicadores da perspectiva de consolidação das habitações. Nos últimos trinta anos, no município de São Paulo, apresenta-se uma feliz inversão de indicadores (TASCHNER, 2004): verifica-se uma mudança do estado transitório das habitações, para o durável e permanente. Entretanto, ainda hoje as casas da favela apresentam grandes variações qualitativas mesmo quando o material predominante é a alvenaria. Um índice representativo das alvenarias aparece com quase o mesmo grau de fragilidade dos materiais aproveitados. A distinção é dada pela deficiência gritante na técnica construtiva, na amarração dos elementos portantes e de vedação, no traço das argamassas utilizado, em primeiro plano; em segundo, os pés-direitos muito baixos e as cotas de soleira negativas. No geral, o resultado é uma habitação frágil, úmida, escura e insegura, quase tão precária quanto a de material improvisado. Identificar as estruturas habitacionais precárias sob os aspectos mencionados (Figura 4) é o objetivo do estudo realizado através de análises cartográficas e vistorias técnicas (LIMA, 2006).


Tema 5: uso dos espaços

Este estudo abre o campo para a observação dos elementos urbanos dinâmicos ao focalizar a apropriação da estrutura espacial pela coletividade (Figura 5). O mapeamento dos usos tem a finalidade de fornecer elementos para a futura estruturação do espaço, seja para consolidá-los ou impedi-los, restringi-los ou normalizá-los, conforme se apresentem como problema ou potencialidade. Registram-se as diferentes concentrações de usos das edificações; a localização dos principais equipamentos urbanos e os afluxos por estes gerados; área de influência, grau de estruturação e conservação, grau de vitalidade ou deterioração dos espaços públicos. Os obstáculos e as interferências na dinâmica de deslocamentos são apurados. Tratamento similar recebem as linhas/campos de atrito entre diferentes usos que ocasionam conflito, transtorno e até mesmo risco para a população. Os pontos de convergência, as centralidades, quando existem, além de localizados, têm examinadas as atividades das quais são o suporte. Os vazios na estrutura e os potenciais que representam também são objeto de análise. Este veio analítico contribui decisivamente para a formulação do programa de necessidades de uma intervenção urbanística. As técnicas utilizadas são observações em campo, complementadas por depoimentos em oficinas de diagnóstico (LIMA, 2006).


Tema 6: estudos de saneamento

As análises de Taschner (2004) sobre as favelas do município de São Paulo indicam a principal deficiência quanto aos serviços urbanos: destinação de dejetos sólidos ou efluentes de águas servidas e esgotos. Decerto, não há como questionar os atuais 38,50% de domicílios em favelas com destinação de dejetos ao ar livre ou córrego. É preciso desmascarar, mediante pesquisa qualitativa, o tipo de serviço a que têm acesso os 51,98% dos domicílios restantes. À exceção de algumas ruas principais onde a concessionária do serviço tem condições de operar, grande parte das redes de esgotos implantadas nas favelas é iniciativa dos próprios moradores, e o problema consiste na variedade e quantidade de problemas técnicos que estas apresentam:

(a) refluxo;

(b) obstruções;

(c) declividades inadequadas na tubulação;

(d) inexistência de conexões; e

(e) ramais sob áreas edificadas sem manutenção.

Tanto as redes oficiais como as informais conduzem os esgotos para os mesmos córregos, onde são despejados. Outro problema é a drenagem. É enorme a extensão de córregos e linhas de drenagem obturadas por construções irregulares em suas margens e várzeas, causando transtornos, perdas e risco permanentes para a população ribeirinha. Contrariando as estatísticas, os ramais clandestinos de abastecimento d'água continuam a multiplicar-se nas favelas, em contato com o esgoto e a sujeira. A estrutura espacial desses assentamentos concorre para dificultar o suprimento adequado dos serviços independentemente da urbanização. Os estudos de saneamento são realizados justamente para identificar e mapear as situações que não se explicitam nas pesquisas socioeconômicas, mas são importantes para o projeto (LIMA, 2006).

Tema 7: situações de risco

As condições morfológicas dos sítios onde habita a pobreza, a forma de ocupação, a fragilidade das técnicas construtivas e o adensamento estão na origem das situações de risco encontradas nas favelas e loteamentos irregulares. A convivência com situações de risco faz parte do cotidiano de seus moradores. A variação da natureza do risco e a repetição sistemática de algumas situações justificam a abordagem tipológica do tema realizada por Taschner (2000) para a cidade de São Paulo:

(a) enchentes e solapamento das margens para os domicílios apinhados às margens dos córregos;

(b) enchentes e alagamento para os domicílios em fundos de vale e várzeas dos rios e córregos - em cerca de 49% das favelas;

(c) erosão e escorregamento nas encostas íngremes, com desabamento e soterramento de moradias - em cerca de 50% das favelas;

(d) atropelamento e colisão nos assentamentos marginais às vias expressas e ferrovias - em torno de 16%; e

(e) o risco de incêndio, que vem ocupando um lugar de destaque nos últimos anos.

Os estudos para identificação e classificação dos riscos geotécnicos são realizados por profissionais especializados (Figura 6). As Oficinas de Diagnóstico (Figura 7) contribuem de forma preciosa para a identificação e a localização dos tipos de risco em cada assentamento precário (LIMA, 2006).



Processo de síntese

Observamos, na seção anterior, como foi decomposta a totalidade espacial para efeito de análise. Vamos percorrer agora o caminho oposto, que parte das sínteses temáticas em direção à síntese dimensional urbanístico-ambiental.

Sínteses por categoria

Compilando o verbete síntese em Ferreira (1999), o emprego do termo, neste caso, assume o sentido de composição, fusão, determinação de proposições compostas com base em proposições mais simples, uma proposição nova que retém o que elas têm de legítimo e as combina mediante a introdução de um ponto de vista superior. A síntese e a análise podem ser referidas uma à outra, quer em sua oposição como operações contrárias, quer em sua conexão como operações inversas e complementares, constituindo em conjunto o raciocínio demonstrativo: "[...] supõe-se que o que é próprio da síntese é compor as nossas ideias e o que é próprio da análise é decompô-las [...]" (LALANDE, 1999, p. 1030).

A questão que se coloca é: como fazer a transição da análise para a síntese? Que ponto de vista superior seria capaz de combinar e fundir atributos espaciais reconhecidos pela análise numa proposição nova, num patamar de conhecimento que transcenda e reorganize o anterior? Concluímos que a transição da análise para a síntese reclamava uma linguagem e que para articulá-la recorremos à utilização da noção de Problema já empregada por Matus (1996) no método de Planejamento Estratégico Situacional (PES). Matus (1996, p. 35) defende que problema "[...] é um conceito muito prático, reclamado pela própria realidade, que faz o planejamento aterrizar [...]" e o define como

[...] fenômeno que afeta os atores sociais negativamente e sua potência como mecanismo torna-se plena quando é descrito apropriadamente, momento em que deixa de significar apenas um 'mal-estar impreciso [...].

À necessidade de descrever apropriadamente um problema identificado acrescentamos, ainda, a de expressar sua magnitude e sua localização espacial, esta última representada da forma como observamos nos Mapas Temáticos da Favela Paraisópolis. Porém, verificamos que nem a localização espacial nem a expressão da magnitude seriam suficientes para obter uma hierarquia entre os fenômenos, sendo ainda necessário reconhecê-los pela natureza do impacto que provocam sobre o ambiente e sua população. Neste ponto adotamos o

artifício metodológico de eleger categorias que permitissem, simultaneamente, explicar a natureza e o tipo de impacto dos problemas, para organizá-los em representação espacial hierarquizada. Da atenta e prolongada observação dos assentamentos emergiram três categorias passíveis de classificar as situações-problema. Essas categorias e suas definições têm registro no Quadro 3, a seguir.


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O recurso das categorias é decisivo para a síntese espacial, já que cada uma das três funciona como um filtro através do qual se absorvem graficamente, por contraposição e releitura, os problemas expressos nas sínteses temáticas, dando origem a três mapas-síntese, um para cada categoria:

(a) Mapa-Síntese de Risco e Insalubridade (Figura 8);


(b) Mapa-Síntese de Degradação e Isolamento (Figura 9); e


(c) Mapa-Síntese de Transtorno e Conflito (Figura 10).


O mapeamento dos Problemas por Categoria no território é uma forma de hierarquizá-los e de aferir sua magnitude espacial. O concurso de dados complementares permite calcular o conjunto de famílias ou grupos submetidos aos respectivos fenômenos. Finaliza o processo de síntese a identificação das potencialidades, importantes recursos a serem manipulados nas intervenções de urbanização. As potencialidades podem ser definidas como forças ou poderes locais subjacentes à configuração espacial dos assentamentos ou na forma como esta última é apropriada pelos usuários. Em princípio, as potencialidades guardam capacidades de produzir ou acomodar mudanças, se reforçadas, estruturadas ou organizadas (LIMA, 2006).

Padrões urbanísticos, diretrizes de intervenção

A observação dos Mapas-Síntese da favela Paraisópolis demonstra que esse assentamento é constituído internamente de tecidos urbanos distintos. A diversificação de matizes de degradação está apurada e projetada no território além de devidamente mensurada quantitativa e qualitativamente. Já está fixado um marco de referência a partir do qual é possível avaliar o quanto se aproximam ou se distanciam esses padrões de parâmetros técnica e humanisticamente aceitáveis. É possível compará-los com outros tecidos urbanos, seja do entorno, da cidade ou de outros assentamentos precários. No entanto, as possibilidades criadas pelas Sínteses por Categoria não estão inteiramente exploradas. A finalidade última de um processo de diagnóstico é realizar a transição entre uma situação no presente e suas perspectivas de transformação, que serão exploradas cabalmente no projeto urbanístico. O elo de contato são as diretrizes de intervenção. Nesse contexto o papel das diretrizes é distinguir os diversos níveis de intervenção necessários no interior dos assentamentos a partir das sínteses, demarcando as linhas de alternância de padrões espaciais pela acumulação de problemas ou potencialidades; um novo exercício de decomposição, que dá margem a optar por distintas posições entre os extremos da escala a que nos referimos nas seções anteriores. Recortes críticos, que se aproximam da substituição do tecido, apresentam, em maior ou menor grau, a superposição de aspectos comprometedores da vida e desenvolvimento de funções urbanas vitais, envolvendo características desfavoráveis do terreno. Os recortes de potencial positivo avizinham-se do limite inferior da escala, expondo arranjos e padrões urbanísticos mais propícios, guardando condições básicas para o desenvolvimento da vida familiar e coletiva, e a introdução de serviços essenciais. A segunda necessidade, complementar à primeira, acerca-se ainda mais do projeto: consiste em atribuir padrões ou tipologias de intervenção para os distintos recortes territoriais. Refere-se a futuros usos e à renovação dos padrões de ocupação. Recortes territoriais selados para a substituição total do tecido podem receber diferentes indicações de tipologias de intervenção com usos e padrões contrastantes, em função de potenciais advindos da localização na estrutura do assentamento, como se observa no Mapa de Diretrizes (Figura 11) (LIMA, 2006).


Conclusão

O espaço dedicado à urbanização de assentamentos precários no Planhab e os recursos destinados a esse fim pelo Governo Federal através do PAC5 5 Entre 2003 e 2009 foram investidos R$ 68,5 bilhões em habitação, dos quais R$ 11,6 bilhões em urbanização de favelas (MARICATO, 2011). demonstram o relevo dessa questão. Na prática, isso significa um volume de intervenções e, por conseguinte, de projetos de urbanização nunca vistos no país. Esse avanço institucional acompanha um contexto de crescimento mais rápido da população dos assentamentos precários em relação à do município em grande parte das cidades brasileiras nos últimos anos6 6 Ver dados do Censo 2000 e 2010 do IBGE (IBGE, 20111). . Paralelamente à expansão desse fenômeno, observa-se uma explosão espetacular no número de estudos eruditos e publicações sobre o tema (VALLADARES, 2005). Contudo, essa abundância contrasta a caquexia quando se trata da formulação de instrumentais metodológicos a serviço da transformação física dessa realidade. Maricato, Arantes e Vainer (2000) já observaram que

[...] grande parte das análises [...] do urbanismo brasileiro se restringem à pesquisa das ideias, como se objeto se restringisse a elas e não incluísse a evolução do espaço e da praxis social [...].

E, de fato, no campo metodológico específico, o volume de contribuições é restrito, e diminuto o número de publicações, embora se verifique patente qualidade nos estudos realizados. Neste pequeno leque merecem destaque os trabalhos de BUENO (2000), MARTINS (2006), TRAVASSOS (2010), SAMORA (2009) e, ainda, estudos específicos realizados pelo Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos e Instituto de Pesquisas Tecnológicas, ambos vinculados à Universidade de São Paulo. As pesquisas mencionadas trazem significativo aporte à tarefa de elaborar projetos de urbanização para assentamentos precários: comparam conceitos e partidos urbanísticos; realizam análises comparativas de soluções e custos de urbanização; apresentam parâmetros técnicos específicos e procedimentos e recomendações para diferentes fases projetuais. O IPT sistematiza metodologias de identificação e classificação de situações de risco, iluminando uma face específica do diagnóstico.

A despeito do valor das contribuições mencionadas, as referidas pesquisas não se inscrevem na definição sistemática e integrada de procedimentos para a etapa de diagnóstico urbanístico-ambiental. Nesta fase do projeto ainda predomina o laissez-faire metodológico e as desvantagens dele decorrentes. Cada equipe de projetos aplica procedimentos próprios, que nem sempre atendem ao papel fundamental do diagnóstico, destacado nas demais seções deste artigo.

A ausência de base científica para esse tipo particular de diagnóstico urbanístico-ambiental deixa aberto o campo para soluções de aceno cenográfico - muito convenientes para o marketing político - em que são consolidados padrões de assentamento indesejáveis, perpetuando, assim, o que Maricato, Arantes e Vainer (2000) classificam como radical flexibilidade da cidade ilegal. Observadores da academia mencionam problemas funcionais em favelas urbanizadas que afetam a qualidade de vida da população residente (DENALDI, 2003). Por outro lado, esse laissez-faire dificulta sobremaneira a tarefa das equipes públicas responsáveis pela gestão de projetos no momento de avaliar as alternativas de solução propostas por seus contratados.

O corpo teórico-metodológico apresentado neste artigo foi elaborado com a finalidade de preencher essa lacuna de método, colocando à disposição da comunidade técnico-científica um instrumental sistematizado e codificado de análise para o diagnóstico urbanístico-ambiental de assentamentos precários, uma ferramenta capaz não só de figurar, medir e avaliar as assimetrias que distinguem os assentamentos precários da cidade formal, como também de tornar reconhecíveis os matizes de padrões no interior dos próprios assentamentos, dados essenciais para o Projeto. Sua aplicação também nos traz a possibilidade de identificar e mensurar, nas etapas de monitoramento, o grau de transformação advindo das intervenções públicas e, também, de comparar, de forma qualitativa e quantitativa, diferentes projetos para contextos diversos. Esta última aplicação poderá, no futuro, fundamentar estudos para a normalização de padrões urbanísticos mínimos a atender nos projetos de urbanização de assentamentos precários, como acontece para a cidade dita formal.

Contudo, esta metodologia ainda é uma abordagem unilateral. Outro desafio precisa ser enfrentado: um Diagnóstico Integrado cuja abordagem envolva também a face social e fundiária da questão.

Recebido em 16/10/12

Aceito em 28/02/13

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  • 5
    Entre 2003 e 2009 foram investidos R$ 68,5 bilhões em habitação, dos quais R$ 11,6 bilhões em urbanização de favelas (MARICATO, 2011).
  • 6
    Ver dados do Censo 2000 e 2010 do IBGE (IBGE, 20111).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013

    Histórico

    • Recebido
      16 Out 2012
    • Aceito
      28 Fev 2013
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