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Reestruturação imobiliária:um conceito da urbanização capitalista

Real estate restructuring: a concept from capitalist urbanization

Resumo

Este artigo busca sistematizar a bibliografia que trata da noção reestruturação para referir-se à produção imobiliária no capitalismo contemporâneo, vislumbrando a determinação singular dessa produção no conjunto mais amplo de características da acumulação capitalista desde a crise mundial do início da década de 1970. Para tanto, expõe as teses sobre a especificidade da produção imobiliária e o seu papel nas crises de sobreacumulação do capital. Depois, apresenta estudos urbanos que categorizaram o problema em suas variações terminológicas (reestruturação urbana, socioespacial ou imobiliária). Por fim, conclui sobre o deslocamento dos estudos sobre a reestruturação imobiliária centrada no problema do capital industrial àquelas que passaram a enfatizar a dominância do capital financeiro nas tendências mais recentes da urbanização, inclusive no contexto latino-americano.

reestruturação imobiliária; crítica da economia política; renda imobiliária; desenvolvimento desigual; financeirização

Abstract

The article seeks to systematize the bibliography that deals with the notion of restructuring to refer to real estate production in contemporary capitalism, viewing the singular determination of this production in the broader set of characteristics of capitalist accumulation since the world crisis of the early 1970s. To accomplish this, it presents theses on the specificity of real estate production and its role in capital overaccumulation crises. Then, it addresses urban studies that have categorized the problem in its terminological variations (urban, socio-spatial or real estate restructuring). Finally, it shows that studies on real estate restructuring centered on the problem of industrial capital have been replaced by those that emphasize the dominance of financial capital in the most recent urbanization trends, including the Latin American context.

real estate restructuring; critique of political economy; real estate rent; uneven development; financialization

Introdução

O presente artigo busca apresentar, a partir da discussão bibliográfica, a noção reestruturação imobiliária enquanto mediação conceitual para o entendimento dos processos de valorização imobiliária no capitalismo contemporâneo, vislumbrando sua determinação singular no conjunto mais amplo de características da acumulação capitalista desde a crise mundial do início da década de 1970. Para tanto, expõe as teses sobre a especificidade da produção imobiliária e o seu papel nas crises de sobreacumulação do capital. Depois, apresenta estudos urbanos que categorizaram o problema da reestruturação em suas variações terminológicas (reestruturação urbana, socioespacial ou imobiliária). Por fim, reflete sobre a singularidade do espaço na mundialização do capital financeiro, concluindo a respeito do deslocamento dos estudos sobre a reestruturação imobiliária centrada no problema do capital industrial àquelas que passaram a enfatizar a dominância do capital financeiro nas tendências mais recentes da urbanização, inclusive no contexto latino-americano.

Como metaforiza Harvey (2013HARVEY, D. (2013). Os limites do capital. São Paulo, Boitempo., p. 150), “As contradições internas do capitalismo expressam-se através da formação e reformação irrequietas das paisagens geográficas. É de acordo com essa música que a geografia histórica do capitalismo tem que dançar, ininterruptamente”. Com a formulação de uma linguagem propriamente musical, examina-se a cadência da dança e, do mesmo modo, permeando a questão da reestruturação do espaço, é que se firma o léxico fundamental da crítica da economia política da urbanização.

O fim do ciclo prolongado de crescimento econômico capitalista no pós-Segunda Guerra e a crise mundial subsequente, no início de 1970, tiveram consequências amplamente discutidas pelas ciências sociais: a reconfiguração da divisão internacional do trabalho; a redistribuição geográfica do poder político e econômico; a refuncionalização dos Estados-nação; a revisão das políticas keynesianas nas economias centrais; a descentralização industrial ao redor do globo; a modificação dos processos produtivos; a implosão e explosão das cidades; o reforço das cadeias, redes e fluxos de capital que circulam na economia global; a crescente subordinação da produção do valor à reprodução financeira do capital, entre outras apreensões e ênfases comuns desse processo totalizante.

O que se busca aqui é compreender a produção do espaço, não como consequência material desse certo momento de transformação da acumulação capitalista, mas identificando as dimensões (categorial e histórica) da singularidade ativa da produção imobiliária no pêndulo imanente do capital: entre a valorização e a desvalorização, entre a criação e a destruição, entre o real e o fictício, entre a eliminação do tempo e a criação do espaço.

Considerações metodológicas sobre o conceito reestruturação

É largamente conhecida a nominação de transformações sociais contemporâneas como reestruturação. Decerto tal verbete se mune de vantagens na atribuição de sentido e de significado para as sequências históricas do real, sugerindo semanticamente um refazer do social, um fazer de novo – mas não da mesma forma. A reestruturação, como síntese, exprime o terceiro momento de um movimento, que começa por meio da estruturação, que em seguida é negada por uma desestruturação, a qual, por sua vez, passa novamente a ser estruturada, mas sem a identidade formal do primeiro termo. Ou seja, trata-se de um sentido que alberga tanto o que continua quanto o que rompe com a continuidade.

Reestruturação também é um termo que toma posição no debate metodológico sobre o materialismo histórico contra o historicismo formal e interpretações que enxergam as trajetórias societais como sequências formais ou evoluções lineares, tendo o progresso como lei. Ao contrário dessas visões, reestruturar implica ir e voltar no tempo, acumular tempos contraditórios, condensá-los numa dada concreticidade que ultrapassa as aparências fenomênicas do real.

Vale lembrar aqui que, em Marx, no famoso item sobre o método da economia política nos manuscritos de 1857-1858 (os Grundrisse), o concreto é justamente concreto por ser uma síntese, uma unidade de múltiplas determinações (Marx, 2011MARX, K. (2011). Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858 esboços da crítica da economia política. São Paulo, Boitempo., p. 54). A crítica da economia política vê o concreto não como premissa, mas como o resultado da abstração que reproduz o concreto como concreto mental (ibid., p. 55). O método dialético implica a mediação do imediato, ou seja, ele decupa a aparência caótica do real por meio das mediações categoriais fundamentais – e é aqui que ele se difere do “método da economia política” –, compreendendo os movimentos e os nexos entre elas, e consegue, fazendo o tal “caminho de volta”, reproduzir adequadamente no plano cerebral a essência e o movimento histórico do real.

Como Kosik assevera, é possível encarar o “todo concreto” não como uma regra metodológica banal, que degenera o conceito, afirmando que tudo é conectado a tudo, ou, ainda mais frequente, que “o todo é mais que a soma das partes”. Querer reunir “tudo” para chamá-lo de “todo” é um tipo de empreitada teórico-metodológica que torna incognoscível o real, ao proclamá-lo como “todos os fatos” (Kosik, 1969, p. 35). O método marxiano da totalidade concreta assume a realidade como um todo em estruturação, permanentemente tensionado. Partes em movimento significam a totalidade em reestruturação perene, que se afirma, se nega e supera a si mesma para se manter em curso, como no Aufhebung hegeliano, tomado emprestado por Marx: essa é a lógica dialética do movimento descritivo de estruturação-desestruturação-reestruturação.

Na toada da revisão bibliográfica que será feita em torno da palavra reestruturação, Mark Gottdiener (1990GOTTDIENER, M. (1990). “A teoria da crise e a reestruturação sócio-espacial: o caso dos Estados Unidos”. In: VALLADARES, L. do P.; PRETECEILLE, E. Reestruturação urbana: tendências e desafios. Rio de Janeiro, Nobel.; 2016), ao se referir à reestruturação socioespacial, bem como Pereira (2006PEREIRA, P. C. X. (2006). “Reestruturação imobiliária em São Paulo (SP): especificidade e tendência”. In: PEREIRA, P. C. et al. Dinâmica imobiliária e reestruturação urbana na América Latina. Santa Cruz do Sul, Edunisc., p. 49), ao considerar a reestruturação imobiliária, por exemplo, sugerem que são noções de mediação. Entre essência e aparência, a mediação é um momento importante de passagem entre o que é e o que vem a ser.1 1 () “[...] um tornar-se Outro; é uma mediação; mesmo que seja apenas passagem a outra proposição” (Hegel, 2005 [1807], p. 10). A reestruturação é um “momento predominante” da transformação, um “ponto de partida efetivo do processo” (Marx, 2011MARX, K. (2011). Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858 esboços da crítica da economia política. São Paulo, Boitempo., p. 49).2 2 () Georg Lukács, em Para uma ontologia do ser social (2012), atribui o “momento predominante” à essência, na sua interação com a aparência. O momento predominante refere-se a uma duração na mudança, a uma continuidade na transformação, ou seja, uma primazia, algo que perdura como tendência. O que importa, para o desenvolvimento adiante neste texto, é o entendimento da produção imobiliária como uma concreticidade do universal: pretende-se captar como o ambiente construído deixa de ser mera particularidade de um ramo do capital para tornar-se singularidade na totalidade da reprodução capitalista.

A produção do espaço como sobrevida do capitalismo

É possível dizer que a principal proeza de Lefebvre em sua conhecida afirmativa sobre o espaço ser sobrevivência do capitalismo é supor o deslocamento espaço-temporal da economia política da sociedade industrial para a sociedade urbana, nas variadas dimensões que essa transferência impõe, das forças produtivas às relações sociais de produção e sua reprodução, do cotidiano às superestruturas sociais, como o Estado.3 3 () A ideia de que o espaço é estratégico e instrumental ao capital está apregoada e desenvolvida em textos conhecidos do autor, com destaque e do mesmo período, A revolução urbana (1999), Espaço e política (2008) e La producción del espacio (2013). Para o que é relevante aqui, a noção do espaço como força de produção, como recorda Gottdiener sobre a inovação formulativa de Lefebvre (Gottdiener, 2016, p. 129), induz que se veja o espaço como categoria lógica central na crítica marxiana, tanto quanto o capital e o trabalho, ou seja, com a mesma estatura ontológica dos elementos fundamentais do modo de representação capitalista.

Essa afirmação deriva da leitura lefebvriana do capítulo 48 do terceiro volume de O capital, a fórmula trinitária (Marx, 2017MARX, K. (2017). O capital: crítica da economia política: Livro III: o processo global da produção capitalista. São Paulo, Boitempo.). Nesse capítulo, está a apresentação do esquema dos três elementos do modo de produção capitalista, justamente, a terra, o capital e o trabalho – ou, renda fundiária, juros e salário. Marx acusa, nessa fórmula, a expressão mais acabada do modo de reificação das relações sociais sob o capitalismo, um “mundo encantado, distorcido e de ponta-cabeça, em que monsieur Le Capital e madame La Terre vagueiam suas fantasmagorias como caracteres sociais e, ao mesmo tempo, como meras coisas” (ibid., p. 892). Essa crítica sobre a maneira pela qual a economia clássica se utiliza dos elementos terra, trabalho e capital de maneira invertida, como se a terra pura ou o mero trabalho compusessem a distribuição dos rendimentos – e não a propriedade privada da terra e o trabalho especificamente assalariado –, não afasta o fato de que essas representações irreais operam realmente, já que o trabalho criador de todo o valor global é efetivamente separado e distribuído entre essas três classes fundamentais (trabalhadores, capitalistas e proprietários fundiários).

É precisamente aí que a exposição d’O capital finda, sem conclusão, e é a partir da incompletude dessa obra que Lefebvre propõe interrogar a sua atualidade e continuidade, considerando a expansão do capitalismo para o espaço terrestre inteiro, seja por meio da agricultura; da extração de recursos do espaço subterrâneo, submarino e atmosférico; seja por meio das construções sobre o solo oriundas da urbanização mundializada. A questão da terra e da propriedade da terra não desapareceu com o desenvolvimento do capitalismo industrial nos séculos XIX e XX; ao contrário, a integração da terra como meio de produção, como fonte de extração ou como solo urbanizado, determinou singularmente essa expansão. O avanço das forças produtivas e a apropriação do espaço terrestre preexistente ocorrem como criação destruidora da natureza e do tempo da natureza.

Em Espaço e política (2008), Lefebvre expõe que a mundialização histórica do espaço imobiliário como mercadoria socorre o capitalismo de suas próprias crises. Isto evidentemente se inaugura a partir da conquista do espaço mundial para a assimilação desigual da relação social do capital: em suas palavras, “o capitalismo só se manteve estendendo-se ao espaço inteiro” (ibid., p. 117). Essa dinâmica expansiva também se desdobra numa recriação mercantil permanente e intensiva nas sociedades urbanas ao longo do século XX, organizada pela forma da produção imobiliária.

A produção imobiliária, produzida por um setor que historicamente se especializa para recriar o espaço, o setor da construção, é, na tese de Lefebvre, sobrelevada dos demais ramos de capitais pela especificidade de sua composição orgânica, já que, nela, o capital variável empregado (força de trabalho) destaca-se em relação ao capital constante (meios de produção), o que permite a geração de taxas maiores de lucro e da massa de mais-valor, considerando que apenas o trabalho excedente é a sua fonte original. É nesse aspecto que Lefebvre parece encontrar a motivação do deslocamento dos diversos capitais para esse ramo específico em circunstâncias críticas de sobreacumulação.4 4 () “En esas condiciones tiene lugar un proceso ‘económico’ que ya no responde a la economía política clásica y que altera las suposiciones de los economistas. Lo ‘inmobiliario’ (junto con la ‘construcción’) deja de ser un circuito secundario, una rama anexa y rezagada del capitalismo industrial y financiero para situarse en un primer plano, si bien desigualmente según los países, momentos y coyunturas. Lejos de marchitarse, la ley del crecimiento y desarrollo desigual se mundializa, o más bien preside la mundialización (el mercado mundial)” (Lefebvre, 2013, p. 369). Em espaço e política, é feito o mesmo juízo: “É nessas condições que o processo já mencionado se desenrola: o ‘imobiliário’ e a ‘construção’ deixam de ser circuitos secundários e ramos anexos do capitalismo industrial e financeiro para passar ao primeiro plano. Ainda que desigualmente (o que se refere à grande lei, bastante conhecida, do desenvolvimento desigual)” (ibid., 2008, p. 126).

Além disso, a produção do espaço também redunda, à parte do lucro, na formação de renda imobiliária. Em poucas linhas, o autor tece uma síntese interessante sobre o que seria a particularidade da atividade de especulação, afirmando que “a construção proporcionou e ainda proporciona lucros superiores à média. A especulação não entra nesse cálculo, mas superpõe-se a ele; nela e por ela, através de uma mediação – o espaço – o dinheiro produz dinheiro” (ibid., p. 118). Ou seja, há uma apropriação, destacada do processo de produção do mais-valor (a construção), que advém tão somente da propriedade privada imobiliária e que pressupõe um título, um direito à renda. Essa renda é uma forma resultante de um processo de capitalização, qual seja, uma remuneração correspondente a um sobrelucro – e esse lucro extra advém da expectativa de um valor que ainda não foi produzido e que, portanto, não está cristalizado no produto imobiliário construído.

A Fórmula trinitária é imediatamente subsequente à seção em que Marx expõe sua teoria sobre a “transformação do sobrelucro em renda do solo”. Além dos capítulos em que discute a renda fundiária no cultivo agrícola, o capítulo 46 do Livro III alude à renda de terrenos para construção, a qual concerne, justamente, ao espaço imobiliário. Marx inicia a exposição considerando que, mediante o título da propriedade privada, o monopólio de um terreno para a construção que seja bem localizado é a condição primeira para a apropriação do lucro extra na forma de renda (Marx, 2017, p. 833).

Em seguida, na mesma passagem, refere-se a Londres, ao dizer que ali e nas cidades em crescimento rápido em geral, onde as construções são produzidas em escala industrial, não é o produto edificado que é especulado, mas a renda fundiária (ibid., pp. 834-835). O preço imobiliário assume uma forma monopólica, tornando-se “uma fonte mais lucrativa do que as minas de Potosi já foram para a Espanha”, e que, quando articulada com o capital industrial da construção, galga um poder descomunal que “praticamente habilita a excluir da Terra, enquanto sua moradia, os trabalhadores em luta pelo salário” (ibid., p. 833). A renda imobiliária não se revela apenas como tributo que os trabalhadores pagam pelo direito de habitar a Terra, mas também pela renda do capital fixo (empregado como capital constante na produção), inclusive sob a forma de condição geral da produção social.5 5 () Essa discussão está presente no capítulo 8 do segundo volume de O capital (“Capital fixo e capital circulante”).

O momento em que Marx formula sua teoria da renda da terra é o mesmo em que elabora a crítica à teoria da renda em David Ricardo.6 6 () Marx refere-se ao clássico texto de David Ricardo, Ensaio sobre a influência do baixo preço do cereal nos lucros do capital, de 1815 (Ricardo, 1978). Esse momento fundamental viabilizou o exame marxiano mais acabado sobre a diferença entre valor e preço.7 7 () A contextualização dessa discussão está presente em Grespan (2019, p. 29). Marx refuta a clássica tese do economista clássico inglês sobre a expansão da agricultura ir, unilateralmente, dos terrenos mais férteis para os menos férteis, o que significa, em outras palavras, refutar que a agricultura sempre vai requerer maior quantidade de trabalho e, portanto, valorizar-se continuamente, aumentando, assim, os preços agrícolas. Ricardo ignora a existência da renda absoluta, ou seja, aquela que remunera a mera propriedade da terra a despeito do seu grau de fertilidade, algo que Marx elevará à grande importância na exposição da dita seção VI, porque significa o reconhecimento de um preço que não corresponde ao valor do produto, mas que é correspondente à remuneração da propriedade. Similarmente ao capital portador de juros, a renda da terra corresponde a um título jurídico de propriedade que autoriza a cobrança de juros pelo direito de uso da propriedade e pelo capital incorporado à terra na forma de benfeitorias que são capital não monetário, fixo a ela.

Argumentando sobre a associação entre a produção do espaço imobiliário, a produção do valor e a circulação do capital portador de juros por meio da ideia de ajuste espaço-temporal, Harvey publica Os limites do capital, em 1982, obra clássica em que propõe uma tese sobre as crises cíclicas do capitalismo e como o espaço geográfico determina suas formações e superações.8 8 () A teoria de que a crise do capitalismo é, ao mesmo tempo, uma crise econômica e uma crise urbana ficou consagrada em outra obra de Harvey, Paris, a capital da modernidade (Harvey, 2015), na qual discute a reestruturação da cidade de Paris por meio dos planos do Barão de Haussman no governo de Napoleão III, depois da crise política e econômica entre 1847 e 1850. A experiência histórico-concreta de Paris já demonstrava a articulação entre o capital financeiro e o Estado para a reestruturação urbana, processo que foi crucial na dinâmica da luta entre as classes e nos desdobramentos, anos depois, da irrupção proletária que fez erigir a Comuna de 1871. Em Marx, a crise aparece no capítulo 15 do citado Livro III, na seção III, sobre a queda tendencial da taxa de lucro. Essa queda tendencial é, segundo esse capítulo, produtora da sobreacumulação, logo, das crises, e deriva do avanço das forças da produção, que incrementam a composição orgânica de capital e fazem aumentar o capital constante em relação ao capital variável. Essa lei de acrescer a produtividade é uma lei própria, interna à lógica da concorrência capitalista. A produtividade faz baratear o preço de produção de uma mercadoria em uma dada unidade produtiva do capital, e essa unidade se apropria de uma parte do mais-valor produzido pelos capitais concorrentes por conta da sua produtividade. Como tendência, a queda da taxa de lucro está implicada na diferença específica entre, de um lado, o preço de produção do capital com a composição orgânica mais alta e, de outro, o preço médio de mercado.

As crises partem da disfuncionalidade do movimento interno de autovalorização do capital, no interior da produção (preços de produção) e têm sua expressão no âmbito das trocas (preços de mercado).9 9 () Ao que Harvey atribui o “primeiro corte” em sua teoria da crise. Essa incongruência se desdobra, ao longo do percurso do mais-valor, em outras formas da disfuncionalidade de sua reprodução ampliada. Ou seja, a contradição interna à relação do capital tensiona a sua superação e a externaliza para outras dimensões do fluxo do valor. Assim, a crise de superacumulação pode encontrar o excesso irrealizável do capital em seus variados estados – dinheiro, meios de produção, força de trabalho ou mercadorias (Harvey, 2013HARVEY, D. (2013). Os limites do capital. São Paulo, Boitempo., pp. 270-271).

Harvey expõe que o capitalismo se desenvolve produzindo, contraditoriamente, barreiras ao seu próprio desenvolvimento, já que a produção e a circulação do mais-valor constituem uma unidade em permanente tensão. Quando a barreira impossibilita a realização do mais-valor produzido, são exigidos ajustes para superá-la, procedendo à desvalorização do capital para calibrar a sua capacidade de realização. A desvalorização nas crises é útil aos compradores de ativos que, desvalorizados ou depreciados, podem reingressar na circulação e revalorizar-se em sequência.

A ideia original da obra na sua explicação da crise diz respeito ao ajuste espaço-temporal. O desenvolvimento das forças produtivas e do capital constante para o aumento da produtividade, ou seja, o incremento da composição orgânica do capital, que é constitutivo da dinâmica de concorrência entre capitais, realiza-se através da produção do espaço material. O objetivo dos capitalistas é aumentar a velocidade da produção e da circulação das mercadorias de modo a acelerar o retorno do capital inicialmente investido (“tempo de rotação do capital”). A aceleração das trocas, ou seja, a anulação do tempo depende de um rearranjo no espaço, que permite rebaixar os custos de produção e de circulação. Esse aniquilamento do tempo para a aceleração da rotação do capital também requer uma disponibilidade mais veloz do dinheiro para os investimentos na produção, o que reforça o papel do capital portador de juros no adiantamento de crédito, desempenhado por instituições que o fazem sob condição de uma remuneração prestamista. O dinheiro fica involucrado e, nessa vocação, para Marx, deixa de ser meio de circulação para se tornar meio de pagamento, ou seja, um atestado de dívida, uma expectativa de retorno futuro, o que pavimenta a necessidade do capital fictício na operação normal do capital e na lida dos seus desequilíbrios, mesmo que essa solução, pela circulação do capital-dinheiro, redunde no descompasso cada vez mais estrutural entre valores reais e fictícios.10 10 () Ao que Harvey atribui o “segundo corte” em sua teoria da crise.

Harvey, no mesmo livro, passa à categoria capital fixo para esmiuçar os nexos entre a produção do mais-valor, o capital fictício e a propriedade da terra. Na esteira de Marx, refere-se com ela às mercadorias que são empregadas no processo de produção e fazem lentamente a transferência de seu valor ao produto, não se consumindo ao final do ciclo de produção de cada mercadoria, como no caso das matérias-primas. O capital fixo das edificações, do ambiente construído, é constitutivo do processo de produção e, como recorda Harvey, não está sempre circunscrito a uma unidade de produção, podendo revestir-se, como dito, da função de condição geral de produção, atuando como um complexo de infraestruturas que organizam a produção, a circulação e o consumo coletivo (ibid., p. 307). Entre outros elementos, o que caracteriza o ambiente construído como capital fixo é a longa duração do consumo produtivo de todo o seu valor – em geral, tempo maior que o prazo de amortização de outras espécies de capital fixo, como as máquinas. A longa duração temporal para a produção e o consumo desse tipo específico de mercadoria implica altos preços, que são parcialmente resolvidos com o empréstimo pelas instituições de crédito, com grande concentração de capital-dinheiro. O Estado torna-se, então, central no seu papel de “capitalista coletivo”, na garantia de funcionamento do sistema de crédito e na produção das obras de infraestrutura urbana que fazem parte das “condições gerais de produção”.

A longa duração da rotação do capital fixo imobiliário e a vultosa soma de força de trabalho e meios de produção que exige sua produção – além da significativa disponibilidade de capital monetário que requer sua produção e seu consumo – justificam-no como saída para a sobreacumulação. Assim, o excesso de capital pode ser drenado pela produção e consumo de infraestrutura. Como essa operação só pode ser realizada mediante montantes significativos de crédito, é possível concluir que o capital portador de juros tem profunda determinação sobre o tempo de rotação do capital, por ser o meio de saneamento do excesso acumulado, distorcendo de maneira singular os tempos cíclicos das crises.

Assim, em Os limites do capital, Harvey (2013)HARVEY, D. (2013). Os limites do capital. São Paulo, Boitempo. denota que o ajuste temporal (produção de um tipo específico de mercadoria com encurtado ou alongado ciclo de rotação) é, sinonimamente, um ajuste espacial. E a construção de ambientes imobiliários – seu investimento, sua produção, sua circulação e sua realização – pode protelar os efeitos imanentes da crise de reprodução ampliada do capital. Por isso, preconiza Harvey, “A criação de configurações espaciais e circulação do capital no ambiente construído é, podemos concluir com firmeza, um momento extremamente ativo nos processos gerais da formação e resolução da crise” (ibid., p. 506). A essa ideia de rearranjos espaço-temporais está subjacente o legado da obra de Lefebvre.

Como a citação acima indica, a formação do capital fixo imobiliário não é apenas resolvedora das crises, mas também estimula as suas formações. O excesso de crédito para o financiamento da produção e consumo da habitação, por exemplo, implica geralmente a incapacidade de retorno do capital emprestado e de liquidez dos títulos que o representam, como foi amplamente notabilizado durante a crise imobiliário-financeira das hipotecas subprime nos Estados Unidos (Aalbers, 2015AALBERS, M. (2015). “Cities and the financial crisis”. In: WRIGHT, J. (ed.). The encyclopedia of social and behavioral sciences. Oxford, Elsevier.).

Portanto, como se verá adiante, é possível que não apenas a obsolescência e a desvalorização oriundas do capital fixo pelo seu grande tempo de circulação originem barreiras novas à acumulação, como também sua inextricável articulação com o capital fictício intensifique a crise de acumulação. Com o avanço histórico do capitalismo, o capital monetário passa a penetrar generalizadamente os âmbitos da vida social, inclusive por meio da urbanização. Essa capilarização das “soluções financeiras” leva a uma nova contradição elevada, que Harvey apresenta como “segundo corte” da sua teoria da crise, qual seja, a incompatibilidade entre a reprodução fictícia do dinheiro e a acumulação real, substanciada na valorização pelo trabalho abstrato. Quando esse descompasso assume níveis críticos, tanto títulos de crédito operados no mercado quanto mercadorias físicas (no caso, das mercadorias imobiliárias) precisam ser desvalorizados.

A diferença enfática entre a mercadoria imobiliária, que compreende a propriedade da terra e a instalação sobre ela, e as demais mercadorias, como já comentado antes neste texto, é a questão da renda do solo construído, ou seja, o tributo sobre o uso e sobre as melhorias de uma certa localização terrestre. O investimento nesse tipo de mercadoria sempre mira uma certa localização antes de ser realizado, o que é algo distinto certamente da renda do solo agrícola. Isto significa que a localização, ou seja, o meio geográfico específico onde está inserida certa mercadoria imobiliária qualifica-se como componente especial da formação da renda. A justaposição de edificações no solo cria uma paisagem perene, cristalizada, que, em função da dinâmica própria da sua materialidade e perecibilidade, prende no solo certa quantidade e qualidade de capital. Enquanto esse capital imobiliário sobrevive, exige que se paguem as rendas oriundas do seu uso para a produção ou consumo e também em função da sua mera existência. Esse fato se aproxima, como mencionado, da convicção marxiana de que o valor da terra opera como ficção, já que a medida do seu preço é dada pela expectativa da sua remuneração futura.

A mercadoria imobiliária compreende, então, um antagonismo interno particular, pois convivem tanto a mobilidade e recriação ao infinito da propriedade imobiliária enquanto capital fictício, quanto a fixidez material e sua lenta obsolescência física como capital na forma-mercadoria do produto imobiliário. A replicação dessa contradição se estende para toda a atual economia capitalista financeirizada – algo que será adiante tratado, sobre a virada histórica em que se tornam mais drásticos o esgarçamento da diferença entre os produtos do trabalho e a multiplicação do dinheiro. Contudo, no imobiliário, ela acontece por meio de um processo de reprodução fictícia, particular e intrínseco. Não se trata de uma aliança externa entre capitais produtivos, capitais fundiários e capitais portadores de juros, mas de um amálgama que congrega ambas as formas em uma só: a produção imobiliária.

Essa ideia-chave de Os limites do capital (Harvey, 2013HARVEY, D. (2013). Os limites do capital. São Paulo, Boitempo.) leva a concluir que a reestruturação imobiliária e a crise capitalista formam uma unidade.11 11 () Provém, então, dessa combinação lógica o “terceiro corte” na tese de Harvey, a conotação precisamente espacial das crises capitalistas. Que não há, entre economia e produção do espaço, uma relação de causalidade, de ocasião reflexa, mas de uma forma necessária e intransponível da relação social do capital, que é a terra. Vale, nesse aspecto, destacar a inspiração hegeliano-marxista de Lefebvre, prosseguida por Harvey. A elaboração de uma teoria propriamente socioespacial do capitalismo leva à convicção de que o espaço é um devir da essência desequilibrada e destrutiva da reprodução capitalista e da sua necessidade permanente de reestruturações.

A lei da deterioração física, ou da “desvalorização natural”, no âmbito da concorrência capitalista, sempre está submetida às razões econômicas. A obsolescência é parte das disputas por recursos localizacionais ou tecnológicos na cidade. Os custos de manutenção da edificação podem não compensar a sua rentabilidade para o capital fundiário ou seu consumo para o capital produtivo e, assim, a desvalorização das edificações é um meio pelo qual novas bases espaciais podem se assentar. Isto significa que a destruição do capital fixo edificado, tanto quanto sua criação, é constitutiva da superação da sobreacumulação.12 12 () Nesse contexto, o autor está também se remetendo à obra Les promoteurs immobiliers, de Topalov (1974), outro trabalho clássico que trata da mesma temática, mas não será abordado aqui.

O setor imobiliário, seu mercado, seus suportes materiais e suas associações e frações de classe formam um setor específico entre os demais ramos de capitais. A mercadoria imobiliária se adona de um mercado próprio e particular.13 13 () Como recorda oportunamente Gottdiener (2016, p. 179): “[...] enfatizamos a natureza social do espaço, mais do que uma teoria de seu valor segundo o trabalho, quando focalizamos o mercado imobiliário como mecanismo mediador que traduz os valores de uso produzidos pela matriz espacial das atividades de acumulação do capital em valores de troca de mercadoria refletidos no preço do bem imóvel”. A ideia do mercado imobiliário como “um elo mediador no processo de acumulação de capital” (Gottdiener, 2016GOTTDIENER, M.(2016). A produção social do espaço urbano. São Paulo, EdUSP., p. 180) faz justificar a especificidade do termo imobiliário como nervo histórico da tese da reestruturação do espaço, em sua identidade contraditória com a reestruturação capitalista. Serão revistos, agora, os usos do conceito reestruturação no pensamento teórico-crítico sobre a urbanização capitalista.

Variações no estudo da reestruturação: urbana, socioespacial e imobiliária

O termo reestruturação, como comentado, serviu, conceitualmente, a variados propósitos críticos para designar as periodizações históricas da acumulação capitalista, entrevendo as dinâmicas processuais do desenvolvimento das forças produtivas, das relações de produção e de seu modo de regulação. A teoria marxista que se dedicou às transformações das cidades a partir dos anos 1970 atrelou a crítica da produção do espaço urbano à periodização histórica da economia capitalista mundial.

Os autores que trabalharam conceitualmente a noção de reestruturação para tratar da produção e apropriação do espaço urbano enfatizaram distintas facetas da transformação capitalista nos últimos cinquenta anos. É possível afirmar que duas referências ocorrem com mais força entre as suas explicações. Uma delas é a obra de Ernest Mandel, O capitalismo tardio, publicada em 1972 (Mandel, 1985MANDEL, E. (1985). O capitalismo tardio. São Paulo, Nova Cultural.). Como explica esse autor, o período do capitalismo tardio – cuja melhor tradução talvez fosse “capitalismo maduro” – é inaugurado depois da II Guerra Mundial e não se trata de uma época nova do capitalismo, e sim da continuidade do capitalismo monopolista na sua fase de declínio, quando as leis fundamentais das contradições imanentes do capital encontram sua face mais extremada.

Do que autores aqui trazidos, como Gottdiener (2016)GOTTDIENER, M.(2016). A produção social do espaço urbano. São Paulo, EdUSP. e Soja (1993)SOJA, E. W. (1993). Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria social crítica. Rio de Janeiro, Zahar., extraem de Mandel para pensar sobre a reestruturação espacial do Capitalismo Tardio é oportuno sublinhar a questão-chave da centralização e a concentração do capital por meio da formação conglomerada da empresa, modelo dominante que se expressa nas novas e variadas combinações empresariais entre indústrias, finanças, imóveis, informações, etc. Essas associações dão outra conotação às fusões do capital e se diferem, em função da flexibilidade, das conglomerações horizontais do imperialismo do fim do século XIX e da verticalidade do capital industrial fordista no século XX.

Consoante Mandel (1985)MANDEL, E. (1985). O capitalismo tardio. São Paulo, Nova Cultural., os autores tratados dissertam que o capital produtivo e financeiro internacional passa a incidir sobre as economias locais com uma ingerência muito maior. No que se refere à urbanização, os investimentos do capital globalizado em diversas atividades econômicas, incluindo o setor tecnológico, produziram desconcentrações e reconcentrações geográficas. Essas reconfigurações corresponderam ao enfraquecimento da regulação dos Estados nacionais sobre a circulação interna do capital internacional e ao fortalecimento das cidades e metrópoles como unidades econômicas.

Gottdiener e Soja indicam que as mudanças na divisão internacional do trabalho, com o declínio da indústria nos países centrais e seu crescimento em regiões periféricas ou semiperiféricas – desarticulando o léxico clássico do “primeiro”, “segundo” e “terceiro” mundos –, expressaram-se no processo de fragmentação e segmentação dos mercados de trabalho nas cidades, por meio do qual os capitais ficam mais especializados e menos onerados com os custos com a força de trabalho. O declínio da indústria nas cidades europeias e norte-americanas representou, ao mesmo tempo, um aumento nos empregos do setor de serviços, âmbito no qual há menos sindicalização, por exemplo.

Os autores também convergem no reconhecimento de um acirramento da concorrência regional por novos investimentos (“guerras regionais por empregos e dólares”), o que se traduziu frequentemente num domínio sobre o planejamento urbano e regional, combinado com políticas crescentes de austeridade e dilapidação dos fundos públicos para a reprodução social. Ou seja, uma cooperação cada vez maior do capital que, paradoxalmente, implicou uma competitividade crescente entre as comunidades. Sobre esse aspecto contraditório entre as dimensões local e global, com rebaixamento de custos e desorganização da força de trabalho nas diversas regiões para poderem disputar o mercado na concorrência de âmbito internacional, implica que também a tecnologia seguisse desigualmente combinada, com localidades onde há exploração extensiva e economias informais de um lado, e, do outro, polos altamente tecnológicos. A diferenciação produzida por meio do desenvolvimento das forças produtivas em certas regiões opera os superlucros correspondentes a essas “rendas tecnológicas”. Conforme Mandel desenvolve, embora em outros períodos da acumulação capitalista essas rendas já existissem, é apenas no nível elevado de centralização e concentração de capital no capitalismo tardio que elas reforçam a sua importância sistêmica.

A outra grande referência para o campo marxista de estudos urbanos é a chamada teoria da regulação francesa (Aglietta, 1979AGLIETTA, M. (1979). Regulation y Crisis del Capitalismo. Madrid, Siglo Veintiuno Editores.; Coriat, 1985CORIAT, B. (1985). “O taylorismo e a expropriação do saber operário”. In: PIMENTEL, D. et al. Sociologia do trabalho – Antologia: a regra do jogo. Lisboa, Edições.; Lipietz, 1986LIPIETZ, A. (1986). Por detrás da crise: a tendência à queda da taxa de lucro; a contribuição de alguns trabalhos franceses recentes. Questões de Economia Política, CEDE, n. 3.), que teve ascendência nas leituras marxistas sobre a urbanização desde a década de 1970. A Escola da Regulação caracterizou-se, num primeiro momento, pela premissa de que as formas sociais do capitalismo são mutáveis e, variando no tempo e no espaço, exigem tipos institucionais distintos, produzidos pela luta de classes. Essas estruturas medeiam as relações entre o capital e o trabalho, entre capitais em sua relação concorrencial, e também regulam as políticas monetárias.

Aglietta (1979)AGLIETTA, M. (1979). Regulation y Crisis del Capitalismo. Madrid, Siglo Veintiuno Editores., bem como Mandel, buscou periodizar a história do capitalismo, classificando-a em duas fases, uma primeira de acumulação extensiva e a segunda de acumulação intensiva. Enquanto à primeira corresponderia um regime concorrencial, a segunda seria compatível com uma regulação monopolista (ou administrada). Como a Escola se forma no mesmo período da crise deflagrada no início dos anos 1970, sua produção se dedicará a pensar, então, o desgaste do regime fordista e o fim do período que vigeu desde 1945, depois da II Guerra, que ficou conhecido como os “trintas anos gloriosos”.

Muito rapidamente, a referida crise é inaugurada pelo aumento dos preços do petróleo pelos países-membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), em razão da Guerra de Yom Kipur. Essa elevação dá consequência ao aumento dos custos de produção e dos preços de consumo. Para os autores regulacionistas, a crise se dá em razão da diminuição da produtividade do trabalho (que há décadas vinha em crescente) e de um descompasso entre o setor I (bens de produção) e o setor II em decrescimento (bens de consumo) na economia.14 14 () Aqui a referência é aos esquemas de reprodução delineados por Marx nos últimos capítulos do segundo volume d’O capital (2014). A crise dos anos 1970, nessa perspectiva, seria, então, uma crise de subconsumo, movida pela estagflação, ou seja, uma combinação entre a recessão e a inflação que inibiu drasticamente o consumo dos trabalhadores.

Essa escola econômica teve ascendência no exercício teórico-crítico inscrito no livro de artigos Reestruturação urbana: tendências e desafios, organizado por Lícia Valladares e Edmond Preteceille, publicado em 1990, resultante da primeira conferência sobre Reestruturação Urbana da Associação Internacional de Sociologia, no Rio de Janeiro, em 1988. O livro organiza sua argumentação em torno da teoria da regulação para refletir sobre o exercício de periodização do processo de reestruturação urbana, questionando em que medida exatamente as transformações urbanas acontecem por meio da condicionalidade econômica pura da crise do regime fordista e do novo regime flexível. As notas introdutórias dos organizadores questionam se as “dificuldades relativas à periodização, tanto econômica quanto urbana, estão intimamente ligadas à questão da univocidade do conceito de regime de acumulação e da universalidade de suas características” (Valladares e Preteceille, 1990VALLADARES, L. do P.; PRETECEILLE, E. (1990). Reestruturação urbana: tendências e desafios. Rio de Janeiro, Nobel., p. 11). Ou seja, é possível atribuir à predominância e à decadência do fordismo um complexo de mudanças socioespaciais, quando este processo foi uma experiência histórica e geograficamente localizada e sempre combinada com o “não fordismo”? Essa pergunta será retomada no próximo item.

Reconhecido pelo debate sobre o tema em sua obra A produção social do espaço, Gottdiener refuta a explicação assentada na teoria da regulação para pensar a urbanização nos Estados Unidos, arrazoando que processos mais lentos e longos do que a crise do modelo fordista responderiam pelas mudanças socioespaciais.15 15 () “Consequentemente, o que os teóricos da reestruturação têm apresentado como algo relativamente recente nas suas explicações é, na verdade, parte de um intrincado conjunto de causas que, no caso dos Estados Unidos, vem operando durante algum tempo. Como foi mencionado antes, as teorias da reestruturação compartem o ponto de vista de que as mudanças que vêm são consequência de novas tendências da crise. Isto ocorre em abordagens tão distintas quanto as que enfatizam a flexibilização (Leborgne e Lipietz, 1987; Harvey, 1987), aquela que destaca a alta tecnologia (Castells, 1985) e a que ressalta a nova divisão internacional do trabalho (Feagin e Smith, 1987). Em contraposição a isso, eu sustento que, embora as mudanças provocadas pela crise cumpram um papel importante na produção do espaço, as novas formas espaciais são produto de fatores que vêm operando há mais tempo [...]” (Gottdiener, 1990, pp. 61-62). Apoiado em Mandel, Gottdiener remonta às ondas longas da acumulação capitalista e ao desenvolvimento geográfico desigual a elas correspondente – em particular, à combinação geográfica desigual do capitalismo tardio, para considerar que a sua forma fenomênica espacial “reestruturante” é a desconcentração da metrópole.

Para o autor, a diferenciação horizontal e vertical do capitalismo tardio tem sua força motriz na empresa multinacional, que se espraia e se intensifica mediante unidades produtivas geograficamente diversificadas, gerando o espraiamento das metrópoles, nelas fazendo surgir uma multiplicidade de centralidades. Como dito, a categoria-chave na revisão que Gottdiener faz da reestruturação socioespacial, como ele chama em artigo no livro de Valladares e Preteceille (1990)VALLADARES, L. do P.; PRETECEILLE, E. (1990). Reestruturação urbana: tendências e desafios. Rio de Janeiro, Nobel., e em sua obra clássica de 1985 (Gottdiener, 2016GOTTDIENER, M.(2016). A produção social do espaço urbano. São Paulo, EdUSP.), é a desconcentração espacial (Gottdiener, 1990GOTTDIENER, M. (1990). “A teoria da crise e a reestruturação sócio-espacial: o caso dos Estados Unidos”. In: VALLADARES, L. do P.; PRETECEILLE, E. Reestruturação urbana: tendências e desafios. Rio de Janeiro, Nobel., p. 60).

Criticando o reducionismo da desconcentração como sinônimo do crescimento da alta tecnologia, como em Castells (1983)CASTELLS, M. (1983). A questão urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra., a desconcentração como teoria da reestruturação socioespacial significa a assimilação de outros fatores que Gottdiener sistematiza: o racismo; os gastos militares e a permanente economia de guerra; o setor imobiliário como um circuito secundário do capital (o que foi tratado no item anterior deste artigo); a intervenção ativa do Estado na transferência global do valor; o papel da tecnologia e do conhecimento informacional na transformação das forças de produção; e as decisões práticas de relocalização baseadas no menor custo da força de trabalho em países ou regiões periféricos ou semiperiféricos (Gottdiener, 1990, p. 61).

Embora refute a univocidade da questão tecnológica para definir a estruturação das modificações espaciais urbanas, o autor recorda que os avanços das forças produtivas, sobretudo ligados à microinformática, resultaram numa sociedade processadora de informações, que modula as relações entre capital e trabalho por meio da flexibilização das formas de produção do regime fabril, com a automação e a subcontratação, por exemplo. A implicação espacial é a criação de novos polos de tecnologia associados à empresa multinacional, que se desintegrou verticalmente, propalando-se para localidades diversas e distribuindo, entre elas, suas funções produtivas, administrativas, corporativas, etc.

Do mesmo modo, a persecução por diminuir o custo de produção e a busca por força de trabalho mais barata também recriaram formas laborativas mais exploratórias em novos mercados. A reestruturação socioespacial, portanto, seria uma espécie de dois eixos sobreplantados de vias opostas: entre economia e espaço, entre a descentralização e a centralização, entre a desindustrialização e a reindustrialização. A base do regime fordista nos países de industrialização originária fez garantir alguma correspondência simbólica e material entre os ganhos do capital industrial e os ganhos do trabalho. Segundo Gottdiener, o fordismo constituía-se por meio de um circuito interno, um modo de regulação que não atravessava a internacionalização da circulação e que, quando esta ampliação mundial passa a ocorrer, entra em crise.

De modo similar a Gottdiener, o capítulo “A geografia histórica da reestruturação urbana e regional” de Edward Soja em seu livro Geografias pós-modernas, publicado logo depois, em 1989, utiliza o termo reestruturação urbana e regional para se referir aos choques e lutas para disputar as forças materiais da sociedade. Para Soja (1993SOJA, E. W. (1993). Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria social crítica. Rio de Janeiro, Zahar., p. 193), a reestruturação é um “período contínuo” deflagrado por uma cadeia complexa de crises políticas e econômicas no período referido, de fim do crescimento capitalista do pós-guerra.

Soja também acorda com as teses que situam uma nova divisão internacional do trabalho, que, por sua vez, reestabeleceu a distribuição do poder político no mundo; refuncionalizou o Estado nacional e desgastou os sistemas de sustentação keynesiana; modificou os padrões de desenvolvimento urbano e regional desigual; transformou as formas e funções das metrópoles, com novos papéis especializados do capital industrial e do capital financeiro; além de ter produzido novos dilemas espoliativos para a reprodução da vida e do cotidiano urbano (ibid., pp. 194-195). Segundo ele, as regiões atravessam inversões com o declínio da indústria tradicional em algumas regiões centrais, na medida em que a industrialização ocorre em regiões periféricas (ibid., p. 197). Porém, Soja não admite um determinismo funcional na análise sobre a disjuntiva regional entre industrialização ou desindustrialização, reiterando que não há determinações automáticas para como ocorre a reestruturação das regiões, já que são produtos permanentes das lutas, conflitos e competições pelo espaço.

Assim como Gottdiener, Soja arroga-se da teorização das ondas longas de Mandel para explicar a regionalização geográfico-histórica do capitalismo, considerando a explicação mandeliana de que o capitalismo se fratura em diversos níveis regionais de produtividade na busca de superlucros e se desenvolve, portanto, desigualando Estados, regiões, ramos da indústria e empresas. Os superlucros são expressão da desigualdade combinada, que se dará em torno da diferenciação geográfica subnacional, nacional ou internacional.

Enquanto Soja enfatiza o problema da região na reestruturação socioespacial, Neil Brenner defende a centralidade da noção de escala para pensar “as geografias cambiantes e polimórficas da reestruturação urbana” (Brenner, 2013, p. 202). Embora atribua também a outros termos esse câmbio espacial permanente, o autor debruça-se, sobretudo, sobre a questão escalar, ou seja, sobre o exercício de diferenciação das unidades geográficas da vida societal (escala local, regional, nacional, supranacional e global). Para Brenner, essas unidades devem ser pensadas como produtoras e produtos das relações da economia política; e, pelo menos desde a década de 1990, momento em que Soja e Gottdiener já dissertavam sobre a questão, o problema da reestruturação do espaço urbano vem sendo teoricamente deslocado da dimensão funcional para ser organizado em torno da dimensão escalar.

Brenner retoma as dimensões do urbano como sendo funcional e escalar. Como exemplo clássico da dimensão funcional, o autor recorda a conceituação de Castells em A questão urbana (1983), segundo a qual a cidade aparece como “meio de reprodução da força de trabalho”, ou seja, como um conteúdo social. Por dimensão escalar, Brenner (2013BRENNER, N. (2013). Reestruturação, reescalonamento e a questão urbana. Geousp – Espaço e Tempo (Online). São Paulo, n. 33, pp. 198-220. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/geousp/article/view/74311/77954. Acesso em: 22 nov 2022.
http://www.revistas.usp.br/geousp/articl...
, p. 202) entende “as unidades espaciais diferenciadas das quais o capitalismo é constituído” e critica autores, como o próprio Castells, por não compreenderem a função social da escala geográfica, reduzindo especificamente a escala urbana ao consumo coletivo e restringindo a noção de escala, ao pensarem fragmentariamente a escala urbana e supraurbana, desconsiderando as determinações relacionais entre elas (ibid., p. 208).

Bem como visto em Soja, a escala urbana é uma geografia material das relações sociais capitalistas, ou seja, não é mera expressão espacial de funções sociais, mas a justaposição material de múltiplos processos políticos e econômicos. A tese de Brenner a respeito da reestruturação urbana então se define pelo processo de reescalonamento, por uma crise das próprias escalas definidas historicamente, uma “situação de instabilidade escalar [scalar flux]” (ibid., p. 207), especialmente em função das mudanças dos arranjos nacionais e de uma série de estratégias para reorganizar as escalas que encontram nas cidades laboratórios de experimentação.

O autor define o desafio como a elaboração de “uma gramática conceitual apropriada para representar o caráter processual, dinâmico e politicamente contestado da escala geográfica e dos arranjos institucionais interescalares” (ibid.). Não a escala, mas o escalonamento como processo é o desafio metodológico inscrito no objetivo de entender o urbano nesse movimento. Para tanto, Brenner, numa toada mais recente dos intentos clássicos de Gottdiener e Soja, busca sistematizar os elementos de sua teoria sobre a diferenciação entre níveis escalares, a partir de processos sociais específicos do capitalismo tardio, ou seja, a partir da configuração do espaço como forma histórica de articulação hierárquica, socialmente produzida, das escalas.

O fato de as escalas não serem fixas implica, para Brenner, que a concepção que dualiza o local e o regional, por exemplo, deve ser refutada, justamente por entender que uma das tarefas intelectuais nesse campo de estudos deve ser a análise sobre os processos de escalonamento e reescalonamento próprios da urbanização contemporânea, mediados por estratégias e conflitos de interesses permanentes entre forças sociais e articulações territoriais. Para Brenner, o projeto neoliberal, marcado pela intensificação e expansão geográfica da mobilidade do capital, é responsável por uma erosão nos sistemas escalares de regulação sociopolítica, em meio à qual a concorrência mundial de capitais elege as cidades como escalas estratégicas de implantação econômica e institucional.

Concernido pelos mesmos problemas do capitalismo contemporâneo, contudo baseado na análise sobre a periferia do sistema mediante a observação da metrópole de São Paulo, Pereira (2006)PEREIRA, P. C. X. (2006). “Reestruturação imobiliária em São Paulo (SP): especificidade e tendência”. In: PEREIRA, P. C. et al. Dinâmica imobiliária e reestruturação urbana na América Latina. Santa Cruz do Sul, Edunisc. nomeia a reconfiguração do espaço urbano como reestruturação imobiliária. Para o autor, esse conceito funciona como uma síntese entre processos globais e locais da economia urbana, cuja aparência expressiva são os novos artefatos arquitetônicos. A particularidade destacada no texto é o esgotamento do sistema explicativo da divisão entre centro e periferia, em função da reestruturação da metrópole pelo processo de desconcentração industrial. O imobiliário em reestruturação, em sua acepção, seria o elo singular de mediação entre a globalização como reconfiguração econômica (global) e a metropolização, que impinge uma forma nova de planejamento e políticas públicas (local). O particular passa a guardar o universal, precisamente a partir de um papel inovador que as metrópoles assumem nessa economia global. Diz Pereira sobre a especificidade do imobiliário como elemento composto da noção de reestruturação:

[...] esta palavra tem servido para os pesquisadores se referirem às diferentes transformações de São Paulo utilizando adjetivações diversas para reestruturação: metropolitana, industrial, produtiva, urbana, etc. Em textos recentes nos referimos a essa época de mudança e crise, a sua pluralidade, mas buscando algo essencial, uma ideia-síntese que permitisse compreender a multiplicidade dessas transformações socioespaciais numa totalidade, sem se perder numa visão de calidoscópio dos artefatos urbanos e arquitetônicos. Vimos que os estudos sobre São Paulo que muitas vezes se reduzem à visibilidade fragmentada da metrópole e indicam mudanças socioespaciais sem se dar conta de sua profundidade, algumas estruturais envolvendo a simultaneidade e o imbricamento de processos globais e de processos locais, daí nos parecer adequado, num esforço de síntese, denominar essas transformações como uma reestruturação imobiliária. (Ibid., pp. 47-48)

Ou seja, o imobiliário, o ambiente construído, necessariamente parte de uma localidade fixa, mas determinada por processos globais. A mudança do espaço urbano então guarda essa singularidade de atrelar o global ao local. Pereira confere especificidade ao “imobiliário”, por ser a característica-chave nas mudanças da produção da cidade e da arquitetura, engendrada pela reorganização do próprio setor do capital correspondente aos negócios imobiliários, ou seja, à construção e à incorporação.

Para esse autor, a reestruturação contém a vantagem de transmitir a ideia de que persistem estruturas no urbano, mesmo que com funções, formas e predominâncias qualitativamente distintas. No caso da metrópole de São Paulo, o processo de desconcentração industrial deu lugar a uma economia mais profundamente associada às finanças internacionais e à centralidade das empresas corporativas, que demandaram, por sua vez, uma paisagem de novos artefatos arquitetônicos. Como explica o autor, as várias formas de valorização imobiliária que se sucederam à desconcentração industrial na metrópole de São Paulo só reforçaram as condições socioespaciais de dilapidação do trabalho, ao intensificarem a exploração e diversificarem a espoliação urbana.

Outros autores brasileiros que estudaram São Paulo, no mesmo momento ou pouco depois, como Carlos (2005)CARLOS, A. F. A. (2005). “A reprodução da cidade como ‘negócio’”. In: CARLOS, A. F. A.; CARRERAS, C. (orgs.). Urbanização e mundialização: estudos sobre a metrópole. São Paulo, Contexto., Botelho (2007)BOTELHO, A (2007). A cidade como negócio: produção do espaço e acumulação do capital no município de São Paulo. Cadernos Metrópole. São Paulo, n. 18, pp. 15-38. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/metropole/article/view/8727/6474. Acesso em: 22 nov 2022.
https://revistas.pucsp.br/index.php/metr...
, Simoni-Santos (2006)SIMONI-SANTOS, C. (2006). Dos negócios na cidade à cidade como negócio: uma nova sorte de acumulação primitiva do espaço. Cidades, v. 3, n. 5, pp. 101-122. Disponível em: https://periodicos.uffs.edu.br/index.php/cidades/article/view/12784). Acesso em: 15 dez 2022.
https://periodicos.uffs.edu.br/index.php...
, Volochko (2008)VOLOCHKO, D. (2008). “Considerações sobre a produção ‘imobiliária’ do espaço sob as finanças”. In: VOLOCHKO, D. A produção do espaço e as estratégias reprodutivas do capital: negócios imobiliários e financeiros em São Paulo. São Paulo, FFLCH., Alvarez (2015)ALVAREZ, I. P. A. (2015). “A produção e reprodução da metrópole como negócio e como segregação”. In: CARLOS, A. F. A.; VOLOCHKO, D.; ALVAREZ, I. P. (orgs.). A cidade como negócio. São Paulo, Contexto., também atentaram para a reestruturação imobiliária, nomeando esse mesmo processo de transformação dos negócios na cidade em cidade como negócio. Essa bibliografia se dedica a analisar o papel da produção das centralidades do espaço imobiliário em São Paulo em combinação com a segregação urbana como complexos de atividades cruciais na acumulação capitalista contemporânea. Os autores buscaram conhecer como essa crescente importância acirra as disputas de interesses lucrativos entre agentes econômicos diante da aceleração dos ciclos da crise capitalista neste século XXI.

A financeirização no desenvolvimento desigual do imobiliário

Haja vista a forte atribuição, pelos autores trabalhados neste texto, à crise global de 1973 como determinação do processo de reorganização mundial da produção do capital e seus correspondentes movimentos de desconcentração/relocalização da indústria, pretende-se, neste item, discutir como se atualiza o problema da reestruturação imobiliária neste século, dado que se pode considerar a existência atual de uma nova crise (iniciada em 2008) e, desde então, de um novo período recessivo (no interior da fase já recessiva) do capitalismo tardio.

Impende dizer que várias referências teóricas mobilizadas no item anterior, em razão de terem sido escritas em um momento posterior à crise de 1973, mas anterior a esse novo período recessivo do capital marcado pelo ano de 2008, utilizam-se, como já comentado, da tese sobre o capitalismo tardio de Mandel e o pós-fordismo da Escola Francesa de Regulação. O termo neoliberalismo como conceituação da reorganização do capital passa a ser sublinhado na literatura mais recentemente, sobretudo a partir dos anos 1990,16 16 () Em explicação mais recente sobre o neoliberalismo, Harvey disserta que “Tudo isso se vinculava à forte expansão da atividade e do poder no mundo financeiro. Cada vez mais liberta das restrições e barreiras regulatórias que até então limitavam seu campo de ação, a atividade financeira pôde florescer como nunca antes, chegando a ocupar todos os espaços. Uma onda de inovações ocorreu nos serviços financeiros para produzir não apenas interligações globais bem mais sofisticadas, como também novos tipos de mercados financeiros baseados na securitização, nos derivativos e em todo tipo de negociação de futuros. Em suma, a neoliberalização significou a “financialização" de tudo. Isso aprofundou o domínio das finanças sobre todas as outras áreas da economia, assim como sobre o aparato de Estado e, como assinala Randy Martin, a vida cotidiana” (Harvey, 2005, p, p. 39; grifos nossos). Há um crescente emprego do termo “ultraliberalismo” (ou “ultraneoliberalismo”) para designar o estágio atual do neoliberalismo, marcado por uma radicalização de seus preceitos ideológicos e políticas, originalmente desempenhadas para combater a estrutura keynesiana do bem-estar social nos países centrais. O ultraliberalismo (ou “ultraneoliberalismo”) seria, portanto, uma atualização nominal relativa à agudização da expropriação do trabalho, para concentração e centralização do capital ao redor do globo, a partir da crise de 2008. e alarga o significado do domínio econômico das finanças na acumulação capitalista atual. Ou seja, enfatizam a subordinação da produção da riqueza social à representação autonomizada do dinheiro, pela geração de títulos que portam juros e, portanto, trabalho futuro, ainda não realizado. Como uma miragem, papéis financeiros multiplicam-se e, ao mesmo tempo, respondem pela ultraconcentração e centralização de capitais ao redor do globo. O crescente domínio das finanças significa a dissociação mais radical entre a representação do dinheiro e os valores dos bens e serviços que reproduzem a vida e a sociedade.

A lógica das finanças foi gestada no seio do capital produtivo, na indústria, na função de crédito, mediação necessária para a produção, como já recordado aqui, para, sob uma tendência mais recente historicamente, subordinar o capital produtivo à sua própria forma e finalidade, como aponta Chesnais (2013)CHESNAIS, F. (2013). As raízes da crise econômica mundial. Revista Em Pauta. Rio de Janeiro, n. 31, v. 11, pp. 21-37.. O domínio das finanças reconfigurou as empresas, os Estados, o trabalho (a sua organização e gestão), o consumo das famílias. Esse autor, vinculado à Escola Francesa da Regulação e conhecido por seu estudo sobre a mundialização financeira, dialoga com Aglietta, interrogando se o regime patrimonialista de reprodução financeirizada sobre o qual Chesnais disserta não é incompatível com as necessidades de compromissos sólidos da economia política expressos pelas estruturas de regulação, considerando justamente que não há condições de estabilidade no estado atual de acumulação, como havia quando Aglietta notabilizou a crise do fordismo nos anos de 1970. Nas quase quatro décadas que se prolongaram de uma crise mundial à outra, não é irrelevante lembrar que crises locais e regionais se irromperam nesse meio tempo, mas apenas as duas datações, 1973 e 2008, concernem efetivamente a crises em escala internacional.

Na posição de Aalbers (2015)AALBERS, M. (2015). “Cities and the financial crisis”. In: WRIGHT, J. (ed.). The encyclopedia of social and behavioral sciences. Oxford, Elsevier., inspirado por Harvey, a financeirização consiste na passagem do capital do circuito primário (produção industrial), secundário (imobiliário), terciário (ciência e tecnologia) para um circuito quaternário do capital; isto significa, em outras palavras, não apenas uma ligação crescentemente orgânica entre mercados produtores e consumidores, de um lado, e mercados financeiros, de outro, e sim a ascendência do mercado financeiro para si, reinando imperioso sobre a economia real e reescrevendo a dinâmica de acumulação nessa fase histórica; um selamento histórico do fetichismo do dinheiro. A mundialização do capital financeiro para explicar a produção imobiliária evidentemente se relaciona com o fato de que a crise de 2008 foi de natureza imobiliária, de evidência cristalina: eclode a partir do mercado hipotecário, muito embora tenha afetado grande parte dos ramos econômicos em escala mundial, tornando-se o terceiro momento da história do capitalismo em que essa amplitude crítica se expressou, depois de 1929 e 1973.

Embora o mercado imobiliário seja essencialmente fixo, a propriedade imobiliária não é e pode ser desabsolutizada. O capital portador de juros das hipotecas, por exemplo, é um capital que deixou de ser local para tornar-se, no caso dos Estados Unidos, um mercado nacional e crescentemente global. Nesse aspecto, a crise imobiliária de 2008 demonstra como se associam, via capital portador de juros (empréstimo), o local e o global na formação da bolha especulativa. Como estopim de uma combinação explosiva entre o aumento do desemprego e dos empréstimos para financiamento habitacional, a execução em massa das hipotecas subprime assolou comunidades pobres e trabalhadoras inteiras ao redor do País. Embora a hipoteca não fosse uma instituição nova nos Estados Unidos, fortalecendo-se como mercado desde os anos 1990, as altíssimas taxas de inadimplência em 2008 abalaram as históricas promessas de altos retornos financeiros na securitização hipotecária tanto quanto a minimização dos riscos de investimento nesses papéis. Em nível local e regional, uma drástica combinação espoliativa (urbana, imobiliária e financeira) realizou-se; em outra dimensão, em razão da mundialização do mercado de crédito, ramos financeiros e setores econômicos inteiros foram abalados em diversos países.

Considerando o legado vigoroso de Os limites do capital, Christophers (2011)CHRISTOPHERS, B. (2011) Revisiting the urbanization of capital. Annals of the Association of American Geographers, v. 101, n. 6, pp. 1-18. também se propôs, mais recentemente, ao exercício de um exame crítico sobre a tese do ajuste espaço-temporal para as crises de sobreacumulação (pela troca de circuitos – capital switching), na sua empreitada de estudar o problema da ascendência da reprodução fictícia do capital no século XXI. Seu estudo aponta que a troca para o circuito secundário, ou o capital switching, ocorreu nas crises nos Estados Unidos e no Reino Unido, na década de 1970 e no ano de 2008. No entanto, o autor questiona a versão mais frequente do nexo de causalidade da troca de circuito, pela qual a sobreacumulação força o emprego de capital no circuito secundário. A direção contrária, ou seja, a produção do ambiente construído precipitando o momento de sobreacumulação também é verificável no boom da propriedade imobiliária que antecede as recessões históricas. Em outros termos, a passagem da alocação de capital para o espaço urbano contribui positivamente para absorver o excesso de capital ocioso, contudo, é igualmente verificável que esse tipo de investimento enfrenta limitações especiais de retorno que se tornam barreiras à acumulação, consoante as observações de Harvey.

Christophers propõe então analisar, por meio de dados financeiros, as ondas de investimento no ambiente construído como o movimento precedente da datação das crises globais, atestando a atualidade (ou atualização) da tese nerval de Harvey sobre a singularidade do investimento no ambiente construído na dinâmica da acumulação. É perceptível que a ênfase contemporânea aprofunda o problema da autonomização da aposta imobiliária em relação às outras esferas da produção, tal como Harvey dissertou na obra de 1982, isto em razão do entrançamento crescente e complexificado entre o capital portador de juros e a renda capitalizada oriunda da propriedade imobiliária urbana.

Os anos antecedentes à crise de 2008 foram ilustrativos nesse sentido: a acelerada urbanização chinesa, o crescimento contundente do mercado imobiliário na Grã-Bretanha e na Espanha, além da crise das hipotecas subprime nos Estados Unidos (Harvey, 2018HARVEY, D. (2018). A loucura da razão econômica. São Paulo, Boitempo.). A aceleração dos ciclos de crise e a sua profundidade estrutural (algo sobre o que o próprio Harvey dá pistas desde pelo menos a publicação de 1982) dirigem-se mais e mais para a especulação do preço de ativos patrimoniais. Daí as novas elaborações sobre a crise contemporânea ser urbana, não apenas financeira, ou ser uma crise financeira da urbanização.

Embora as finanças assolem o mundo e o redesenhem de múltiplas maneiras e dimensões, isto não autoriza a generalização formal do fenômeno. Os impactos daí decorrentes se expressam e se plasmam nas diversas realidades locais. Como já refletido no item anterior, o fato de a Escola da Regulação ter seus fundamentos na leitura sobre a transição do fordismo e de ser essa experiência historicamente localizada na Europa e nos Estados Unidos implicam um zelo extraordinário para que não sejam feitas aplicações automáticas de fórmulas abstratas e explicações “tampões”, que não observam a realidade concreta como condição do exercício conceitual.

Já foi resgatada a sugestão de Pereira (2006)PEREIRA, P. C. X. (2006). “Reestruturação imobiliária em São Paulo (SP): especificidade e tendência”. In: PEREIRA, P. C. et al. Dinâmica imobiliária e reestruturação urbana na América Latina. Santa Cruz do Sul, Edunisc. de que a reestruturação especificamente imobiliária cumpre um papel de mediação na explicação de escalonamentos processuais entre as dimensões do local e do global, ao mesmo tempo que reúne o problema eminente da urbanização e a questão da industrialização, haja vista ser o setor imobiliário uma fusão entre os dois processos. Nas palavras do autor, “a noção de reestruturação imobiliária é uma unificação de processos que são entendidos como se eles pudessem existir em separado, tal como se supõe quando se observa a relação tempo e espaço” (ibid., p. 49).

No caso latino-americano, não é possível estabelecer os mesmos marcos periódicos que nos países de acumulação fordista para a abertura do neoliberalismo como nova diretriz hegemônica da política econômica, a não ser, sem dúvida, para o caso chileno, que é inaugural dessa orientação político-econômica com o golpe pinochetista no ano de 1973, ano da crise mundial. Enquanto a crise fez recair sobre os países centrais do imperialismo o estabelecimento de uma nova direção representada politicamente pelos governos de Margaret Thatcher, na Inglaterra, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, a introdução mais robusta da política neoliberal no Brasil, por exemplo, deu-se apenas nos anos 1990.

Enquanto os autores da reestruturação urbana nos países centrais desenvolviam seus estudos a respeito dessa nova fase pós-1970, a literatura latino-americana elaborava contributos clássicos reconhecidos para a discussão da urbanização desigual no continente. É notável que o problema da industrialização tardia em alguns países do continente latino-americano foi chave para as teses sobre a urbanização, como a tese da espoliação urbana de Kowarick (1979)KOWARICK, L. (1979). A espoliação urbana. São Paulo, Paz e Terra. e tese sobre as formas de produção do espaço urbano de Jaramillo (1982)JARAMILLO, S. (1982). “Las formas de producción del espacio construido en Bogotá”. In: PRADILLA, E. (org.). Ensayos sobre el problema de la vivienda en México. Cidade do México, Latina Unam.. Como já considerado, a própria bibliografia apresentada no item anterior, em geral concentrada entre os anos 1980 e 1990, registrava a ênfase do problema industrial para pensar na transição ao setor imobiliário como força nuclear de mudanças econômicas. É inegável que os estudos críticos sobre a reestruturação imobiliária mais recentes deslocaram seu interesse para a financeirização, sobretudo depois da recessão mundial que se seguiu a 2008.

Distintamente do sistema imobiliário nos Estados Unidos, no Brasil, a vultosa ampliação do crédito para operação imobiliária foi conduzida e garantida pelo Estado, seja em sua função de legislar uma regulação para o setor, seja para organizar os mecanismos e fontes de financiamento imobiliário, seja, ainda, para promover grandes projetos. A financeirização urbana ou a urbanização financeirizada no Brasil enredou uma nova engenharia do crédito imobiliário, gestada a partir dos anos de 1990, por meio de inovações na regulação da política imobiliária e nos mecanismos de financiamento, e teve, nos anos 2000, o seu auge, muito afeito ao crescimento econômico pelo qual o Brasil passava e aos fundos de pensão que ganharam centralidade econômica nesse período. Vultosos índices de valorização imobiliária nas cidades impuseram, no mesmo momento, um processo recobrado de expulsão e despossessão dos segmentos mais pobres entre os trabalhadores, além de acirrar níveis e qualidades de segregação urbana. O Estado, como administrador do fundo público, solidificou a organização do financiamento e emissão de crédito pelo endividamento interno e traduziu politicamente essa lógica financeira no planejamento urbano (Shimbo e Rufino, 2019SHIMBO, L.; RUFINO, B. (orgs.) (2019). Financeirização e estudos urbanos na América Latina. Rio de Janeiro, Letra Capital.).

O papel dúplice do fundo público, ao custear tanto a reprodução social como o capital privado, natureza problematizada por Oliveira (1988)OLIVEIRA, F. de (1988). O surgimento do antivalor: capital, força de trabalho e fundo público. Novos Estudos Cebrap, n. 22, pp. 8-28., foi objeto de amplo debate durante o período de boom imobiliário no País entre os anos de 2000 e 2010. Nesse período, os governos chefiados pelo Partido dos Trabalhadores abriram uma janela na história do neoliberalismo brasileiro em razão de sua orientação social-liberal (Castelo, 2013CASTELO, R. (2013). O social-liberalismo: auge e crise da supremacia burguesa na era neoliberal. São Paulo, Expressão Popular.). O Programa Minha Casa Minha Vida é o exemplo por excelência dessa orientação, porque consagrou a conciliação entre um protagonismo recauchutado do mercado da construção civil, com a mediação de instituições financeiras no desenho de um macroprojeto de política pública, e, ao mesmo tempo, mecanismos inéditos de subsídio e financiamento para a aquisição de habitação pelas famílias trabalhadoras de baixa renda. Isto corresponde à afirmativa de Marques (2016)MARQUES, E. (2016). Os capitais do urbano no Brasil. Dossiê especial. Novos Estudos Cebrap, v. 35, n. 2, pp. 15-33. de que a engrenagem da “coalizão urbana” no Brasil está associada sobretudo à contratação e realização de obras.

Mesmo que a expansão imobiliária por meio do crédito deva ser considerada desde o Sistema Financeiro Habitacional (SFH) nos anos de 1960 no Brasil, foram os anos da década de 1990 que marcaram um avanço na lógica das finanças na política do mercado imobiliário, com a criação dos Fundos de Investimento Imobiliário, em 1993, das Carteiras Hipotecárias, em 1994, e, finalmente, do Sistema Financeiro Imobiliário, em 1997 (Carlos, 2005CARLOS, A. F. A. (2005). “A reprodução da cidade como ‘negócio’”. In: CARLOS, A. F. A.; CARRERAS, C. (orgs.). Urbanização e mundialização: estudos sobre a metrópole. São Paulo, Contexto.; Simoni-Santos, 2006SIMONI-SANTOS, C. (2006). Dos negócios na cidade à cidade como negócio: uma nova sorte de acumulação primitiva do espaço. Cidades, v. 3, n. 5, pp. 101-122. Disponível em: https://periodicos.uffs.edu.br/index.php/cidades/article/view/12784). Acesso em: 15 dez 2022.
https://periodicos.uffs.edu.br/index.php...
; Volochko, 2008VOLOCHKO, D. (2008). “Considerações sobre a produção ‘imobiliária’ do espaço sob as finanças”. In: VOLOCHKO, D. A produção do espaço e as estratégias reprodutivas do capital: negócios imobiliários e financeiros em São Paulo. São Paulo, FFLCH.; Botelho, 2007BOTELHO, A (2007). A cidade como negócio: produção do espaço e acumulação do capital no município de São Paulo. Cadernos Metrópole. São Paulo, n. 18, pp. 15-38. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/metropole/article/view/8727/6474. Acesso em: 22 nov 2022.
https://revistas.pucsp.br/index.php/metr...
; Fix, 2007FIX, M. (2007). São Paulo cidade global: fundamentos financeiros de uma miragem. São Paulo, Boitempo.; Royer, 2009ROYER, L. (2009). Financeirização da política habitacional: limites e perspectivas. Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo., Alvarez, 2015ALVAREZ, I. P. A. (2015). “A produção e reprodução da metrópole como negócio e como segregação”. In: CARLOS, A. F. A.; VOLOCHKO, D.; ALVAREZ, I. P. (orgs.). A cidade como negócio. São Paulo, Contexto.). Nessa última criação, passaram a existir os instrumentos financeiros para produção imobiliária por meio de títulos negociáveis de dívidas, como os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs) e os Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepacs).

Tanto a operação dos fundos de investimento como a dos créditos de recebíveis imobiliários foram articuladas com as grandes empresas de construção e incorporação atuantes no País, mas também dependeram, para a sua circulação, dos investidores institucionais, como seguradoras e fundos de pensão – instituições não bancárias que foram intermediadoras do capital portador de juros, viabilizando a transformação de ativos fixos em ativos fictícios. Como concluem Shimbo e Rufino (2019)SHIMBO, L.; RUFINO, B. (orgs.) (2019). Financeirização e estudos urbanos na América Latina. Rio de Janeiro, Letra Capital., a forte e marcante presença do financiamento público e semipúblico na produção imobiliária brasileira não foi contraditória, mas coerente com uma entrada mais robusta das finanças internacionais no circuito imobiliário brasileiro nos anos 2000, haja vista constituir-se como elemento de segurança para investidores dos capitais localizados no centro ingressarem na periferia. O reforço combinatório entre o global e o local com o ingresso de capitais estrangeiros a juros renovou a realidade desigual do continente e a fragmentação das suas cidades.

Algumas considerações sobre um conceito em processo

Este artigo buscou apresentar referências que se muniram do conceito de reestruturação para tratar do papel da produção do espaço urbano nos ciclos de crise do capital. O estudo reforça o projeto do campo marxista que intentou considerar a singularidade da produção do espaço na reprodução capitalista. Essa singularidade, embora já estivesse alertada na obra de Henri Lefebvre e David Harvey, nos anos de 1970 e 1980, e nos trabalhos dos autores que a nomearam sob a noção de reestruturação, foi adensando sua pertinência para a compreensão da economia política até ser assimilada com mais contundência em razão da natureza da crise financeira de 2008, uma crise mundial, eminentemente imobiliária.

Buscou-se contribuir para uma sistematização bibliográfica desse meio século nos estudos marxistas, por meio de teses que mobilizaram o conceito de reestruturação para se referirem à produção do espaço urbano. Também tentou demonstrar a migração desse campo teórico do problema da desconcentração industrial (presente desde os anos 1970, sobretudo nas análises sobre as transformações na produção e na concorrência capitalista nos centros do capitalismo mundial) para o problema da financeirização desde os anos 1990. O estudo deu luz à produção do espaço e à sua singularidade. Ainda que não seja uma novidade histórica da acumulação capitalista, há um processo progressivo de desembaraçar a questão e conferir-lhe centralidade na interpretação crítica dos ciclos de crise, sobretudo pelo papel proeminente cumprido pelo capital portador de juros e sua livre circulação pelo mundo nessa fase da acumulação, que faz circular cada vez mais sem embaraços o valor produzido e inicialmente fixado no ambiente construído.

Uma questão que também emerge, mas fica aqui em aberto, é o caráter da crise atualmente, considerando que a expansão da relação social do capital para todo o globo exige uma intensificação do ajuste espacial atrelado às formas de reprodução do capital fictício, em fronteiras espaciais já previamente conquistadas, mas que vão sendo reabilitadas de maneira mais crítica e elevadamente destrutiva, saturando os ciclos sob a forma de uma crise permanente (ou estrutural).

Embora seja necessário o retorno às categorias marxianas da teoria da crise para compreender a aceleração dos ciclos críticos da sobreacumulação do capital nos dias de hoje, está lançada a tarefa contínua de pensar a emergência da reconfiguração do ambiente construído, que não só efetivamente dissolve e remonta o espaço urbano, mas rebate (lembrando o concreto mental de Marx nos Grundrisse) o próprio repertório da crítica da economia política para pensar para onde rumam as contradições da acumulação capitalista.

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Notas

  • 1
    () “[...] um tornar-se Outro; é uma mediação; mesmo que seja apenas passagem a outra proposição” (Hegel, 2005HEGEL, G. W. F. (2005). Fenomenologia do espírito. Petrópolis, Vozes. [1807], p. 10).
  • 2
    () Georg Lukács, em Para uma ontologia do ser social (2012), atribui o “momento predominante” à essência, na sua interação com a aparência. O momento predominante refere-se a uma duração na mudança, a uma continuidade na transformação, ou seja, uma primazia, algo que perdura como tendência.
  • 3
    () A ideia de que o espaço é estratégico e instrumental ao capital está apregoada e desenvolvida em textos conhecidos do autor, com destaque e do mesmo período, A revolução urbana (1999), Espaço e política (2008) e La producción del espacio (2013).
  • 4
    () “En esas condiciones tiene lugar un proceso ‘económico’ que ya no responde a la economía política clásica y que altera las suposiciones de los economistas. Lo ‘inmobiliario’ (junto con la ‘construcción’) deja de ser un circuito secundario, una rama anexa y rezagada del capitalismo industrial y financiero para situarse en un primer plano, si bien desigualmente según los países, momentos y coyunturas. Lejos de marchitarse, la ley del crecimiento y desarrollo desigual se mundializa, o más bien preside la mundialización (el mercado mundial)” (Lefebvre, 2013LEFEBVRE, H. (2013). La producción del espacio. Madri, Capitán Swing Libros., p. 369). Em espaço e política, é feito o mesmo juízo: “É nessas condições que o processo já mencionado se desenrola: o ‘imobiliário’ e a ‘construção’ deixam de ser circuitos secundários e ramos anexos do capitalismo industrial e financeiro para passar ao primeiro plano. Ainda que desigualmente (o que se refere à grande lei, bastante conhecida, do desenvolvimento desigual)” (ibid., 2008, p. 126).
  • 5
    () Essa discussão está presente no capítulo 8 do segundo volume de O capital (“Capital fixo e capital circulante”).
  • 6
    () Marx refere-se ao clássico texto de David Ricardo, Ensaio sobre a influência do baixo preço do cereal nos lucros do capital, de 1815 (Ricardo, 1978RICARDO, D. (1978). “Ensaio acerca da influência de um baixo preço do cereal sobre os lucros do capital”. IN: NAPOLEONI, C.; SMITH, R.; MARX, C. Considerações sobre a historia do pensamento econômico. Rio de Janeiro, Graal.).
  • 7
    () A contextualização dessa discussão está presente em Grespan (2019GRESPAN, J. L. da S. (2019). Marx e a crítica do modo de representação capitalista. São Paulo, Boitempo., p. 29).
  • 8
    () A teoria de que a crise do capitalismo é, ao mesmo tempo, uma crise econômica e uma crise urbana ficou consagrada em outra obra de Harvey, Paris, a capital da modernidade (Harvey, 2015HARVEY, D. (2015). Paris: capital da modernidade. São Paulo, Boitempo.), na qual discute a reestruturação da cidade de Paris por meio dos planos do Barão de Haussman no governo de Napoleão III, depois da crise política e econômica entre 1847 e 1850. A experiência histórico-concreta de Paris já demonstrava a articulação entre o capital financeiro e o Estado para a reestruturação urbana, processo que foi crucial na dinâmica da luta entre as classes e nos desdobramentos, anos depois, da irrupção proletária que fez erigir a Comuna de 1871.
  • 9
    () Ao que Harvey atribui o “primeiro corte” em sua teoria da crise.
  • 10
    () Ao que Harvey atribui o “segundo corte” em sua teoria da crise.
  • 11
    () Provém, então, dessa combinação lógica o “terceiro corte” na tese de Harvey, a conotação precisamente espacial das crises capitalistas.
  • 12
    () Nesse contexto, o autor está também se remetendo à obra Les promoteurs immobiliers, de Topalov (1974)TOPALOV, C. (1974). Les Promoteurs immobiliers: contribution à l ́analyse de la production capitaliste dulogement en France. Paris, Mouton., outro trabalho clássico que trata da mesma temática, mas não será abordado aqui.
  • 13
    () Como recorda oportunamente Gottdiener (2016GOTTDIENER, M.(2016). A produção social do espaço urbano. São Paulo, EdUSP., p. 179): “[...] enfatizamos a natureza social do espaço, mais do que uma teoria de seu valor segundo o trabalho, quando focalizamos o mercado imobiliário como mecanismo mediador que traduz os valores de uso produzidos pela matriz espacial das atividades de acumulação do capital em valores de troca de mercadoria refletidos no preço do bem imóvel”.
  • 14
    () Aqui a referência é aos esquemas de reprodução delineados por Marx nos últimos capítulos do segundo volume d’O capital (2014).
  • 15
    () “Consequentemente, o que os teóricos da reestruturação têm apresentado como algo relativamente recente nas suas explicações é, na verdade, parte de um intrincado conjunto de causas que, no caso dos Estados Unidos, vem operando durante algum tempo. Como foi mencionado antes, as teorias da reestruturação compartem o ponto de vista de que as mudanças que vêm são consequência de novas tendências da crise. Isto ocorre em abordagens tão distintas quanto as que enfatizam a flexibilização (Leborgne e Lipietz, 1987LEBORGNE, D.; LIPIETZ, A. (1987). New technologies, new modes of regulation: some spatial implications. Paris, Cepremap.; Harvey, 1987HARVEY, D. (1987). Flexible accumulation through urbanization. Antipode, v. 19, n. 3, pp. 210-286.), aquela que destaca a alta tecnologia (Castells, 1985CASTELLS, M. (1985). “High tecnology, economic restructuring and the urban-regional process in the United States”. In: CASTELLS, M. (ed.). High technology, space and society. Beverly Hills, Sage.) e a que ressalta a nova divisão internacional do trabalho (Feagin e Smith, 1987FEAGIN, J.; SMITH, M. (1987). Cities and the new international division of labor. In: SMITH, M.; FEAGIN, J. (eds.). The capitalist city. Oxford, Basil Blackwell.). Em contraposição a isso, eu sustento que, embora as mudanças provocadas pela crise cumpram um papel importante na produção do espaço, as novas formas espaciais são produto de fatores que vêm operando há mais tempo [...]” (Gottdiener, 1990GOTTDIENER, M. (1990). “A teoria da crise e a reestruturação sócio-espacial: o caso dos Estados Unidos”. In: VALLADARES, L. do P.; PRETECEILLE, E. Reestruturação urbana: tendências e desafios. Rio de Janeiro, Nobel., pp. 61-62).
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    () Em explicação mais recente sobre o neoliberalismo, Harvey disserta que “Tudo isso se vinculava à forte expansão da atividade e do poder no mundo financeiro. Cada vez mais liberta das restrições e barreiras regulatórias que até então limitavam seu campo de ação, a atividade financeira pôde florescer como nunca antes, chegando a ocupar todos os espaços. Uma onda de inovações ocorreu nos serviços financeiros para produzir não apenas interligações globais bem mais sofisticadas, como também novos tipos de mercados financeiros baseados na securitização, nos derivativos e em todo tipo de negociação de futuros. Em suma, a neoliberalização significou a “financialização" de tudo. Isso aprofundou o domínio das finanças sobre todas as outras áreas da economia, assim como sobre o aparato de Estado e, como assinala Randy Martin, a vida cotidiana” (Harvey, 2005, pHARVEY, D. (2005). O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo, Loyola., p. 39; grifos nossos). Há um crescente emprego do termo “ultraliberalismo” (ou “ultraneoliberalismo”) para designar o estágio atual do neoliberalismo, marcado por uma radicalização de seus preceitos ideológicos e políticas, originalmente desempenhadas para combater a estrutura keynesiana do bem-estar social nos países centrais. O ultraliberalismo (ou “ultraneoliberalismo”) seria, portanto, uma atualização nominal relativa à agudização da expropriação do trabalho, para concentração e centralização do capital ao redor do globo, a partir da crise de 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2022
  • Aceito
    16 Nov 2022
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