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RESENHAS REVIEWS

Ludmila Fontenele Cavalcanti

Núcleo de Estudos e Ações em Saúde Reprodutiva, Escola de Serviço Social/UFRJ

Araújo C & Scalon C (orgs.) Gênero, família e trabalho no Brasil. Clara Araújo & Celi Scalon, Rio de Janeiro, Editora FGV, 2005, 304p.

A coletânea de textos Gênero, família e trabalho no Brasil, organizada por Clara Araújo e Celi Scalon, é resultado de uma pesquisa integrante do International Social Survey Programme (ISSP). A pesquisa baseia-se no survey nacional de atitude e opinião "Gênero, trabalho e família em perspectiva comparada", que contempla vários aspectos das relações de gênero no âmbito da família, especialmente no que diz respeito às percepções quanto à inserção da mulher na força de trabalho, à divisão do trabalho doméstico, ao papel da maternidade e do casamento, e à relação entre satisfação individual e vida familiar.

Através da reflexão teórica profunda na área da sociologia contemporânea, essa coletânea representa uma grande contribuição para quem quer compreender as várias dimensões das relações de gênero que se estabelecem na dinâmica entre família e trabalho.

Araújo & Scalon procuram no primeiro capítulo analisar os resultados mais gerais do survey, que consistiu em um questionário padrão, aplicável a todos os países que compõem o programa, acrescido de perguntas relacionadas com a realidade brasileira. A coleta dos dados foi realizada em novembro de 2003, abrangendo 195 municípios de 24 Estados brasileiros com uma amostra de 2 mil indivíduos maiores de 18 anos, controlados por setor censitário urbano e rural, com cotas para sexo, idade, escolaridade e região.

As autoras têm como ponto de partida referências teóricas fundamentais que tomam as transformações nas relações familiares e de gênero como indicadoras do enfraquecimento das características hierárquicas da sociedade e do surgimento de formas mais horizontais ou simétricas de interação.

Os resultados da pesquisa apontam mudanças importantes nos padrões de organização familiar brasileira e na forma pela qual as relações de gênero se constituem e recortam essa dinâmica, visando à conciliação com o trabalho pago. Esse processo de mudança nas percepções de homens e mulheres em direção a uma cultura mais igualitária convive com a persistência de práticas mais tradicionais, que parecem mudar de forma lenta e pontual em aspectos determinados.

As relações de gênero na família mantêm na natureza de sua interação o princípio tradicional da divisão sexual do trabalho – mulheres e homens com papéis diferenciados – e a predominância do padrão de domesticidade, que confere desvantagens às mulheres na vida social em geral. Todavia, esse padrão possui variações internas. Ele é mediado por aspectos culturais e socioeconômicos que lhes determinam configurações particulares de acordo com determinadas variáveis socioeconômicas e/ou com os valores mais gerais que orientam as ações.

Visando enriquecer o olhar analítico e propiciar abordagens mais diversificadas dos dados, pesquisadoras de diferentes instituições acadêmicas foram convidadas a participar da pesquisa, aprofundando aspectos e dialogando com informações quantitativas e qualitativas contidas em outras pesquisas, o que deu origem a oito artigos.

Na busca de identificar algumas tendências na percepção das desigualdades relativas à divisão sexual do trabalho, Sorj compara as respostas de homens e mulheres a dez questões selecionadas no survey que revelam uma significativa convergência, tanto no que diz respeito às atitudes mais igualitaristas, quanto àquelas em que o papel tradicional de gênero é mais valorizado. Não é possível identificar padrões contrastantes/opostos de valores culturais sustentados por homens e mulheres. Entretanto, há importantes variações na intensidade com que homens e mulheres aderem aos valores tradicionais e igualitários.

Os resultados permitem concluir, portanto, que as atitudes em relação à igualdade de gênero não se distribuem aleatoriamente. A participação no mercado de trabalho, níveis mais elevados de instrução e o pertencimento a gerações mais jovens correlacionam-se positivamente com um ideário mais igualitarista. O impacto da educação formal é mais pronunciado entre os homens. A educação, em particular, se destaca como um vetor importante na aquisição de um sistema de crenças mais igualitário sobre a relação entre os sexos.

Com base na tese da coexistência de elementos tradicionais e do processo de destradicionalização, Matos, a partir do survey, investiga, sob uma ótica quantitativa e mais abrangente da população masculina e feminina brasileira, as práticas e percepções de gênero no trabalho doméstico e no cuidado dos filhos, a possibilidade da existência (ou não) desse processo de destradicionalização. Sua intenção foi criar dois índices, um de tradicionalismo de gênero e outro de destradicionalização de gênero.

É possível constatar um processo de destradicionalização nos padrões valorativos de gênero, pelo menos no que se refere a essa temática em sua articulação mais direta com o trabalho doméstico e a família no Brasil.

Identifica um processo de transformação nas percepções e apresentações de si masculinas que já tomam, consistentemente, a direção do vetor da destradicionalização e da democratização dos valores de gênero. Contudo, essa transformação parece incompleta, não tendo se expandido, concretamente, para além das fronteiras identitárias e transbordado para a práxis de gênero.

Do ponto de vista feminino, o que mais chama a atenção da autora foi o grande descompasso entre a instância da percepção e da apresentação pública de si e a práxis, que permanece arraigadamente tradicional. A experiência da destradicionalização de gênero vivida no feminino ancora-se ainda na compatibilização do trabalho público com aquele que precisa ser exercido na esfera privada.

Oliveira discute no tema da provisão familiar a dissociação ocorrida entre o papel de "chefe de família" e a função de provedor. Essa mudança reflete, em última instância, o rearranjo da participação dos homens e, de modo, particular, das mulheres na sociedade, em resposta aos processos mais amplos de transformação social.

A autora conclui que a função de provedor continua sendo associada, no plano simbólico, ao papel da pessoa de referência na família. E como esse papel é de atribuição masculina, a função de provedor continua também expressando a figura masculina. Essa associação faz com que a presença significativa da mulher cônjuge assalariada em tempo integral na co-provisão das famílias encabeçadas pelo homem de referência não tenha ainda a necessária visibilidade social. Por outro lado, a presença ainda pronunciada de parte do conjunto das mulheres cônjuges na categoria de dependentes econômicas contribui, em grande medida, para a permanência da associação entre a função de provisão, o papel de referência na família e a figura masculina.

O descompasso entre as práticas sociais e os valores calcados na cultura patriarcal dificulta a identificação da nova identidade social do homem, que não é mais o único provedor da família, nem o provedor principal, no caso do grupo mais escolarizado. Esse descompasso também impede a identificação da nova identidade social da mulher cônjuge ativa ocupada, sobretudo da trabalhadora assalariada em tempo integral, que passou a compartilhar efetivamente da provisão da família.

No contexto de preocupação com a visibilidade do trabalho doméstico, Picanço objetiva mapear a adesão dos grupos sociais (homens e mulheres) a valores mais desiguais e a valores mais igualitários bem como mapear a adesão desses grupos a opiniões que expressam percepções do impacto do trabalho da mulher na vida familiar. Assim, investiga se e de que modo o fato de estar trabalhando altera a percepção das mulheres e dos homens chefes e cônjuges com relação à compatibilização vida familiar/trabalho.

Os resultados desse trabalho apontam que a situação ocupacional consegue criar diferenças significativas entre as mulheres, mas a participação na renda familiar não. Tal como esperado e observado, continua existindo um conjunto de homens e mulheres que reproduz os valores tradicionais, mas mesmo assim há uma forte rejeição ao papel do homem provedor e da mulher exclusivamente dona de casa. Os lugares da mulher são conhecidos dentro e fora de casa, mas não reconhecidos de maneira eqüitativa.

Ribeiro procura definir algumas formas de interação ou não-interação entre classe e gênero em casais heterossexuais na sociedade brasileira contemporânea. Nesse sentido, contribui para o entendimento da desigualdade de gênero e classe no Brasil e discute mecanismos mais gerais de estratificação social nas sociedades contemporâneas. Mais especificamente, trata de três temas relevantes para o entendimento das relações de classe e gênero na sociedade brasileira: a) mobilidade e classes sociais; b) casamento e classes sociais; e c) divisão doméstica do trabalho e classes sociais.

Os dados analisados nesta seção indicam forte homogamia de classes no Brasil. Os homens tendem a se casar seja com mulheres que tenham posições de classe semelhantes às suas ou que sejam donas de casa. Os eventuais casais interclasse são geralmente compostos por maridos que têm posição de classe direta superior à de suas mulheres. Esses padrões revelam forte rigidez e tradicionalismo no mercado matrimonial brasileiro.

As análises levaram às seguintes conclusões: os padrões de mobilidade intergeracionais são definidos pela classe de origem dos indivíduos, sendo os mesmos para homens e mulheres; os maridos continuam a ter posições de classe superiores às de suas esposas; e a maioria do trabalho doméstico é realizado pelas mulheres.

Observando a composição de um cenário de desigualdades entre homens e mulheres à luz da questão racial no Brasil, Heringer e Miranda examinam em que medida as desigualdades raciais são fatores relevantes para se compreender a natureza de valores e práticas que se constituem e se reforçam no cotidiano dos indivíduos entrevistados, levando em conta as diferenças intra-raciais (entre homens e mulheres negras) e inter-raciais (entre mulheres negras e brancas).

Pode-se concluir que as diferenças entre as percepções estão associadas quando se analisam as variáveis demográficas (ter filhos ou não), econômicas (renda) e de níveis de escolaridade e, em alguma medida, quando é introduzido na análise o efeito das desigualdades raciais sobre as relações de gênero.

Peixoto analisa alguns aspectos da solidariedade familiar apontados pelos dados do survey. Foi selecionada a população de mais de 50 anos para verificar a existência de trocas e apoios diversos entre três gerações (avós, pais e netos) com base nas informações sobre o cuidado das crianças.

A maior parte dos indivíduos entrevistados está concentrada nas faixas de renda mais baixa, revelando que, neste universo, a solidariedade familiar se expressa principalmente através dessas ajudas de "subsistência", ou seja, apoios a todos aqueles serviços que possibilitem a preservação de uma autonomia mínima no modo de vida e em iniciativas individuais.

O que se pode perceber nas informações disponíveis e nas inferências possíveis é que os apoios familiares parecem ser constitutivos da identidade feminina e que são praticados visando garantir a proximidade entre as gerações, o que indica uma tendência sociologicamente já analisada sobre o vínculo privilegiado entre mães-avós e filhas-mães.

Os resultados do survey comparando as ponderações na diversidade centro-periferia da residência urbana das mulheres e dos homens entrevistados são apresentados por Cappellin. Primeiramente, explicita algumas dinâmicas do contexto dos anos 2000-2004, para então analisar os resultados refletindo sobre os registros de satisfações, avaliações e desafios relativos ao projeto profissional. A seguir, procura evidenciar as opiniões e os significados atribuídos ao trabalho da mulher. Examina a conciliação pelo eixo oposto: como os compromissos familiares pressionam para remodelar as aspirações e manter a atividade profissional. Por fim, retoma a construção da individualização para evidenciar as percepções de homens e mulheres em seus contrastes ou aproximações.

As mulheres residentes nos pequenos centros têm opiniões que se assemelham, em nível nacional, às opiniões das mulheres dos grandes centros. Há bem mais tensões, mais agudas, entre homens e mulheres. O núcleo duro das resistências provém das opiniões do "sexo forte" e não da falta de renovação das tradições culturais brasileiras sugeridas pelas mulheres. O acesso das mulheres, em todo o território nacional, aos direitos individuais é uma referência marcante, que parece ter tido sucesso.

Nos anexos são apresentados o questionário-padrão e o perfil geral dos entrevistados.

Enfim, Gênero, família e trabalho no Brasil é uma experiência relevante e pioneira, de abordagem quantitativa, na investigação acerca das representações sociais sobre família e trabalho, focalizando as relações de gênero. As várias dimensões abordadas pelos autores dessa coletânea, a partir de uma base empírica comum, fornecem elementos para identificar as características dessa questão na sociedade brasileira contemporânea e permitem a comparação com os demais países. O compromisso com a consolidação de práticas mais igualitárias na esfera privada convida o leitor a uma reflexão que estabeleça correlação entre os diferentes fatores que influenciam tais representações sociais e as ações das políticas sociais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
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