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Trabalho e educação na saúde: ampliação da abordagem de recursos humanos

Work and education in health: broadening the human resources approach

DEBATEDORES DISCUSSANTS

Trabalho e educação na saúde: ampliação da abordagem de recursos humanos

Work and education in health: broadening the human resources approach

Marina Peduzzi

Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo. marinape@usp.br

O artigo apresenta análise da produção científica sobre Trabalho e Educação na Saúde com base em revisão da produção nacional das últimas duas décadas, e mostra resultados instigantes. Enquanto fruto de revisão de literatura constitui evidencia de uma marcante mudança de abordagem do que era usualmente referido como recursos humanos em saúde (RHS) e passa, no Brasil, a ser reconhecido como Trabalho e Educação na Saúde.

Cabe ressaltar, no entanto, que em outros países do mundo e especialmente na America Latina, o termo RHS também vem sendo substituído por termos como Talento Humano em Saúde (Colômbia), Gestão de Pessoas (Chile), Capital Humano (Argentina), ou Capacidades Humanas (Estados Unidos), demonstrando o esgotamento da concepção funcionalista que inventou o termo recursos humanos na década dos 70. Contudo essas denominações não contemplam as tensões presentes no mundo do trabalho, a cisão entre o momento de formação e a atuação profissional, entre outras.

Como apontam os autores do artigo, no âmbito do trabalho e educação se articula um amplo conjunto de questões relacionadas tanto à esfera da formação e educação profissional quanto à inserção dos profissionais na rede de atenção à saúde, com todas suas nuanças. A nova denominação expressa o reconhecimento de que as práticas de saúde e a educação e a formação dos profissionais não representam dois momentos distintos e independentes da dinâmica de prestação de serviços de saúde, mas sim esferas de ação profundamente imbricadas, com relações recíprocas, de mútua influência.

Portanto, trata-se não apenas de alteração de denominação, mas, sobretudo, de uma mudança de abordagem que expressa a possibilidade de ressignificação de temas, reflexões e intervenções atinentes às atividades de saúde e à formação para o desempenho de ações que requerem a presença e a participação direta de profissionais/trabalhadores de saúde.

A crescente incorporação tecnológica na sociedade contemporânea e, em particular no setor saúde, tem permitido que intervenções ocorram sem a demanda imediata por trabalho humano e pode-se imaginar que ações que requerem precisão absoluta ou configuram operações repetitivas sem interação social, possam ser melhor desempenhadas pelas máquinas. No entanto, estudos mostram que o setor continua demandando intensa absorção de profissionais e que a incorporação tecnológica não os substitui na mesma medida, visto que as ações de cuidado em saúde ocorrem no encontro entre o profissional e o usuário, e contemplam avaliação das necessidades de saúde, negociação e tomadas de decisão, e estas tendem a ocorrer cada vez mais centradas nos cidadãos e usuários dos serviços de saúde de forma compartilhada, demandando uma mudança de posição dos profissionais.

Os autores também apontam que a articulação de ambas perspectivas – trabalho e educação, ocorre, no Brasil, no contexto de construção do Sistema Único de Saúde (SUS) e no interior do campo da Saúde Coletiva. Por um lado, o processo de construção do SUS mantém o setor privado como complementar ao setor público, o que expõe tanto o confronto de dinâmicas administrativas distintas com as respectivas dificuldades de compreensão de diferenças, virtudes e defeitos, como manifesta gradativamente tensões e contradições do duplo reconhecimento da saúde como direito e como mercadoria, novamente sem a necessária clareza dos processos correspondentes.

Por outro lado, o reconhecimento das dificuldades e desafios apontados instiga a encontrar respostas novas fundamentadas em abordagens diferentes das usuais e, nesse sentido, o campo da Saúde Coletiva, constituído no final dos anos 1970, contribui de forma expressiva ao problematizar e investigar o processo saúde/doença e a organização dos serviços, como fenômenos que além de técnico-científicos são intrinsecamente sociais e culturais. Isso possibilita o reconhecimento tanto dos determinantes sociais do processo saúde doença como da organização social das práticas1,2.

Assim, tanto a educação como a atenção à saúde constituem práticas sociais. É justamente a intervenção efetiva sobre determinados objetos ou necessidades que lhes confere a marca de práticas sociais no sentido de modos de ação social de um grupo de agentes sociais, tendendo de forma variável à sua integração no conjunto de práticas estruturadas, o que quer dizer também sua participação na constituição de uma determinada forma de organização da sociedade3.

Considerar que as práticas sociais são constitutivas da sociedade é pressupor que não há entre as diferentes práticas e a sociedade uma relação de externalidade, mas sim de mútua influência. Portanto, ao se reconhecer que Trabalho e Educação na Saúde constituem uma área comum coloca-se em evidência que seus objetos se constituem historicamente de forma articulada e interdependente. Essa concepção de prática social está fundamentada na vertente dialética marxista, portanto, expressa uma perspectiva filosófica que preconiza o princípio da contradição, da totalidade e da historicidade4.

Os estudos de Cecília Donnangelo tiveram vários desdobramentos, que constituem importante referencial para o campo da Saúde Coletiva e, no presente debate, do Trabalho e Educação na Saúde. Nesses desdobramentos, identificam-se duas grandes vertentes: uma dirigida às políticas e à estruturação da assistência, que derivou em muitos estudos do sistema de saúde brasileiro, até o atual SUS, e a outra direcionada à análise do mercado de trabalho e das profissões e suas práticas. A segunda vertente se desdobra, de um lado, nos estudos da força de trabalho em saúde e, de outro, nos das práticas em saúde como produção de assistência e de cuidados, ou seja, como exercício cotidiano de trabalho em serviços de saúde5.

Os estudos da força de trabalho em saúde contrapõem-se à abordagem funcionalista de recursos humanos e, com base em conceitos peculiares à economia política, introduzem uma análise e compreensão do conjunto de trabalhadores do setor saúde, bem como das diferentes áreas profissionais, de uma perspectiva demográfico-social e de variáveis específicas da saúde como: condição de autonomia/assalariamento, distribuição geográfica e entre setor público e privado dos trabalhadores6.

A análise das práticas como produção de assistência e de cuidado, por sua vez, desdobra-se nos estudos do processo de trabalho em saúde, originalmente desenvolvido por Mendes-Gonçalves3 e que se tornou marcante aporte teórico-conceitual na abordagem dos temas relacionados à formação e inserção dos profissionais na atenção à saúde. Isso se dá pelo reconhecimento da importância do "trabalho" no processo de produção e consumo de serviços de saúde e dos "trabalhadores" das diversas áreas profissionais para a atenção às necessidades de saúde de usuários e população. O referencial do trabalho e processo de trabalho em saúde, em grande medida, fundamenta o deslocamento, observado no Brasil, da concepção de gerenciamento de recursos humanos para a de gestão do trabalho. Cabe destacar também que, a partir de meados dos anos 1990, os estudos do trabalho em saúde articulam à categoria trabalho outras concepções teóricas que elucidam a dimensão intersubjetiva e as relações trabalho e intersubjetividade, em especial com base nas vertentes teóricas do agir comunicativo, da análise institucional e da psicodinâmica do trabalho, mais recentemente acrescidas da ergologia7.

A mudança de enfoque de RHS para Trabalho e Educação na Saúde significou uma ampliação da abordagem dos objetos relacionados à inserção e participação dos trabalhadores/profissionais na produção da atenção e da gestão em saúde, e da sua formação e educação permanente, visto que apresenta maior potência compreensiva e explicativa ao contemplar as interfaces e complexidade desses objetos.

Interessante observar que este movimento também ocorre no plano internacional, o que não poderá ser desenvolvido neste debate, mas merece destaque. Nesse sentido, destaca-se o aporte da teoria dos sistemas que fundamenta o reconhecimento das complexas interações entre ambos os sistemas: educação e saúde. Esta abordagem sustenta que as populações estão na base dos sistemas e geram necessidades reconhecidas como demandas de educação e de serviços de saúde e que as pessoas não constituem meros recipientes de serviços, mas coprodutores de sua própria educação e saúde8. Estes autores apontam a interdependência dos sistemas de educação e saúde, bem como a crucial interconexão entre ambos pelo mercado de trabalho e pela capacidade dos diferentes grupos populacionais demandarem serviços.

Também se destaca o debate promovido pela Organização Pan-Americana da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde acerca do 'campo de recursos humanos em saúde' que assinala a necessidade de tratar as questões da formação dos profissionais, sua inserção no mercado de trabalho e permanência nos serviços de saúde de forma integrada, com base na concepção de campo de Pierre Bourdieu9. Segundo os autores do relatório, a incorporação do conceito de campo social permite analisar a dinâmica existente entre a dimensão técnica e a da subjetividade, presente ao se considerar questões relacionadas aos trabalhadores, bem como as relações de poder, prestígio e influência implicadas nas situações de análise. Na estruturação do campo de recursos humanos destacam-se os espaços privilegiados da educação e trabalho.

Embora se argumente sobre a riqueza da abordagem Trabalho e Educação na Saúde, que possibilita tomar em consideração a interdependência e a mútua influência entre a formação, a inserção no mercado de trabalho e a atuação dos trabalhadores nos diferentes contextos, os resultados da revisão mostram o predomínio da temática formação e capacitação de profissionais de saúde com 71,2% da produção. Por um lado, isto assinala que há um desequilíbrio dos temas tratados, visto que se observa também escassez dos estudos sobre planejamento e gestão do trabalho. Porém, por outro, mostra que estão contempladas as interfaces no tratamento de temas como a educação permanente, que toma o trabalho como princípio educativo, e trabalho em equipe que, mais recentemente, é também abordado da perspectiva da educação interprofissional, com base no reconhecimento da necessidade de debater prática e educação interprofissional10.

O artigo, acertadamente, finaliza assinalando as lacunas do campo, visto que muito precisa ser feito e investigado para adensar e consolidar a abordagem do Trabalho e Educação na Saúde, mas aqui se opta por concluir apostando que a transição de abordagem que o artigo permite reconhecer é promissora para o conhecimento acerca dos complexos objetos de que trata e, sobretudo, para o fortalecimento e consolidação das práticas de saúde no SUS.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Jun 2013
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