Advocacia em enfermagem: contribuição para a reorientação do modelo assistencial no Brasil

RESUMO

As desigualdades são resultado das distintas posições ocupadas pelos indivíduos em diferentes espaços sociais; e são relacionadas à repartição de poder e propriedade. A advocacia em saúde é uma estratégia para a redução de tais desigualdades, principalmente as consideradas injustas e desnecessárias, com vistas ao alcance pleno do direito à saúde. O presente estudo pretende discutir a contribuição da Enfermagem no campo da advocacia em saúde, no qual se inclui o direito de todos a uma vida saudável, como uma das estratégias para reorientação do modelo assistencial no Brasil.

Descritores:
Advocacia em Saúde; Enfermagem; Serviços de Saúde; Desigualdades em Saúde; Direitos Humanos

ABSTRACT

Inequalities are the result of the different positions held by individuals in different social spaces, and are related to the distribution of power and property. Health advocacy is a strategy to reduce such inequalities, especially those considered unfair and unnecessary, aiming to fully promote the right to health. This study aims to discuss the contribution of nursing in the field of health advocacy, which includes the right of everyone to a healthy life as one of the strategies for the reorientation of the Brazilian healthcare model.

Descriptors:
Health Advocacy; Nursing; Health Services; Health Inequalities; Human Rights

RESUMEN

Las desigualdades son el resultado de las distintas posiciones ocupadas por los individuos en distintos espacios sociales; y son relacionadas a la repartición de poder y de propiedad. La defensa de la salud es una estrategia para la reducción de tales desigualdades, principalmente, las consideradas injustas y desnecesarias. Con el objetivo del alcance pleno del derecho a la salud, el presente estudio pretende discutir la contribución de la Enfermería en el campo de la defensa de la salud, en el cual se incluye el derecho de todos a una vida saludable, como una de las estrategias para reorientación del modelo asistencial en Brasil.

Descriptores:
Defensa de la Salud; Enfermería; Servicios de Salud; Desigualdades en la Salud; Derechos Humanos

INTRODUÇÃO

A contribuição da Enfermagem para a reorientação do modelo assistencial no Brasil é expressiva. Possivelmente, é a mais substantiva dentre os trabalhadores da saúde, haja vista a presença maciça de enfermeiras, enfermeiros e demais membros da equipe de Enfermagem em todos os níveis de atenção do Sistema Único de Saúde (SUS), com destaque para a Atenção Básica, em que sua atuação é capilarizada em milhares de equipes de saúde em todos os locais do país. Mesmo onde não há médicos e outros profissionais de saúde, existem enfermeiras, técnicos e auxiliares de Enfermagem; e não de modo transitório, até que consigam outra posição, mas de forma permanente e contínua, assumindo o cuidado a famílias, grupos sociais e coletividades, especialmente os mais vulneráveis, que contam unicamente com a rede pública de serviços do SUS.

O cuidado ampliado e a responsabilização por indivíduos, grupos sociais, famílias e coletividades em um território adstrito são algumas das atribuições previstas para os profissionais de enfermagem da Atenção Básica descritas na Política Nacional de Atenção Básica - PNAB⁽¹⁾. Esta tem como norteadores os princípios de integralidade e equidade para o atendimento das necessidades em saúde da população adstrita com vistas ao alcance pleno do direito à saúde⁽¹⁾.

O direito à saúde é um direito inalienável promulgado por meio da Constituição Federal brasileira de 1988. No entanto, esse direito não está plenamente assegurado, de modo que nem todos desfrutam das mesmas possibilidades de acesso a tecnologias capazes de melhorar a saúde e prolongar a vida, em razão das desigualdades nos processos produtivos e de acesso às condições de uma vida digna⁽²⁾.

As desigualdades em saúde têm suas bases na determinação social do processo saúde-doença, nas influências políticas e econômicas de uma sociedade. Além de serem produtos da determinação social, tais desigualdades também influenciam a organização dos sistemas de saúde, impactando a garantia dos direitos à saúde no Brasil⁽²⁾.

Este artigo busca situar a contribuição da Enfermagem no campo da advocacia em saúde, especialmente no campo dos direitos humanos, no qual se inclui o direito de todos a uma vida saudável. Pretende trazer subsídios para a defesa do direito à saúde, como parte de uma estratégia de reorientação do modelo assistencial à saúde no Brasil e de enfrentamento das desigualdades em saúde.

DESIGUALDADES EM SAÚDE

O termo desigualdade é bastante utilizado na área da saúde. Além de ser encontrado em discussões sobre a distribuição de recursos financeiros na área e sobre o acesso aos serviços, também é frequentemente utilizado para explicar a saúde de indivíduos e grupos como produto da organização social^(3-4).

Sabe-se que as condições sociais, econômicas e culturais influenciam a saúde dos diferentes grupos populacionais e refletem desigualdades produzidas pela própria sociedade⁽⁴⁾.

O termo desigualdade parte de um conceito amplo e genérico, utilizado no campo dos direitos humanos, para descrever diferenças entre indivíduos ou grupos sociais que não são evitáveis ou remediáveis. Quando podem ser evitadas e resultam em situações de adoecimento ou vulnerabilidade, são consideradas injustas e demandam superação⁽³⁾.

Situações de desvantagens sociais provocadas por desigualdades injustas aumentam a vulnerabilidade de pessoas e grupos sociais a processos de desgaste e adoecimento^(3-4). Em situações de injustiça persistente, a vulnerabilidade de pessoas e grupos sociais pode ser severamente agravada. A persistência de situações de exclusão social, pobreza, acesso difícil a bens e produtos da sociedade ou prejuízo nas oportunidades de reproduzir a vida com dignidade reforça situações de injustiça e iniquidade em saúde^(3-4).

Iniquidades em saúde são formas de injustiça evitáveis e redutíveis, vinculadas a diferentes situações de vida em sociedade⁽³⁾. Estão relacionadas a falta de liberdade de escolha, exposição a condições de vida desgastantes, prejuízo no acesso a serviços essenciais e mudanças na posição social atrelada a condições de saúde⁽³⁾. Trata-se de desigualdade que, a depender do contexto social, assume características de exclusão e injustiça que podem ser superadas ou redutíveis, porém não o são^(3-4). A advocacia em saúde pode ser uma estratégia para superá-las.

ADVOCACIA EM SAÚDE

O termo advocacy ou advocacia está relacionado à reivindicação de um direito. A advocacia em saúde, portanto, pode ser compreendida como o conjunto de ações que buscam reivindicar direitos na saúde de indivíduos e grupos sociais, principalmente os menos favorecidos^(5-6).

O conceito de advocacia em saúde é parte de uma teoria fundamentada na ideia de defesa contra as iniquidades em saúde. O termo está relacionado com a construção de ações e políticas que visam reduzir tais iniquidades, caracterizadas por condições de vida relacionadas à distribuição desigual de poder, renda e recursos entre países, grupos sociais e pessoas^(5-6).

Pode ser uma iniciativa poderosa para promover a melhoria das condições de vida e saúde, mas exige dos profissionais de saúde uma ação orientada pelos princípios norteadores da justiça e da equidade^(5-6). Seu propósito é defender e proteger os direitos em saúde de pessoas e grupos sociais em situação de desvantagem, bem como os auxiliar a obter cuidados em saúde por meio do empoderamento (empowerment)^(5-7).

Ao buscar, na literatura, práticas de advocacia em saúde para superação ou minimização das iniquidades em saúde, Farrer et al.⁽⁵⁾ identificaram seis dimensões de advocacia que contribuem para a promoção da equidade em saúde: 1) produzir tipos de provas necessárias para defender a equidade em saúde e formas de transferir este conhecimento para outros processos políticos; 2) destacar a importância da participação dos diversos sujeitos na defesa da equidade em saúde; 3) veicular à sociedade mensagens da saúde como um valor e uma forma de justiça social, direito dos indivíduos e responsabilidade do Estado; 4) adaptar argumentos para os diferentes pontos de vista políticos; 5) identificar barreiras e facilitadores da defesa eficaz para a equidade em saúde; 6) instituir práticas e atividades que aumentem a eficácia da advocacia em saúde.

Estudo de revisão da literatura encontrou diferentes definições para o termo advocacy no campo da saúde pública. Identificou ainda que poucas publicações sobre o tema fazem referência aos princípios da equidade e da justiça social como meta principal da advocacia em saúde a favor de grupos em desvantagem social. Seus autores classificaram a advocacia segundo o tipo de ação realizada: 1) ações diante de uma determinada causa particular para proteger ou promover a saúde de uma determinada população ou grupos sociais; 2) ações para fortalecer a capacidade das pessoas de agir de forma autônoma a fim de melhorar a própria saúde; 3) ações que se destinam a diminuir barreiras estruturais para a saúde; e, por fim, 4) ações que utilizam meios de comunicação para influir em iniciativas de políticas públicas⁽⁶⁾.

As principais barreiras estruturais relacionadas à defesa da saúde pública relacionam-se ao caráter biomédico do modelo hegemônico de atenção à saúde; à pouca argumentação que utilize os conceitos de determinação social e desigualdades sociais em saúde para a defesa do direito à saúde; ao pouco envolvimento dos profissionais na defesa da saúde pública; à pouca vontade política; ao baixo envolvimento intersetorial; e à falta de independência de alguns setores da saúde para a advocacia da saúde pública⁽⁶⁾.

A Reforma Sanitária brasileira pode ser considerada uma ação de advocacia em saúde, pois buscou a redução das iniquidades sociais e mudanças de ordem estruturais no modelo de atenção à saúde. Porém, ainda assim, o maior desafio para a efetivação do direito à saúde no Brasil está em desenvolver a democracia sanitária, relacionada à efetiva participação da sociedade nas tomadas de decisões estratégicas que têm como consequência a efetivação do direito universal, igualitário e integral à saúde⁽⁸⁾. A utilização dos meios de comunicação para a defesa da saúde pública, inclusive ferramentas digitais, possibilita ampliar a mobilização social em defesa da saúde.

ADVOCACIA E ENFERMAGEM

As discussões sobre a advocacia na área da Enfermagem tiveram início por volta da década de 1970, a partir de movimentos sociais que reivindicavam mais autonomia para as pessoas no cuidado à saúde ante as práticas até então vigentes de cuidado paternalista^(7,9). Tais movimentos, ao buscar direcionar o poder de decisão dos cuidados de saúde para o próprio paciente, provocaram o início das discussões sobre o papel dos enfermeiros como defensores desses direitos, já que, por estarem próximos aos pacientes, seriam os mais indicados para trabalhar com o conceito de empoderamento (empowerment)⁽⁹⁾.

Em 1976, a Associação Americana de Enfermagem (American Nurses Association - ANA) reconheceu a advocacia como inerente à prática profissional da Enfermagem. O termo ganhou maior ênfase na década de 1980 nas discussões sobre o processo de trabalho dos enfermeiros, sobre seu maior tempo de permanência nos serviços de saúde, se comparado com os demais profissionais, e sobre a proximidade com os pacientes⁽⁹⁾.

Ainda que o conceito de advocacia não esteja claramente definido na Enfermagem, seu exercício está relacionado a: oferecer os subsídios necessários para o alcance da saúde por indivíduos e grupos sociais; defender os direitos dessas pessoas por meio da qualidade do cuidado; e atuar como elo entre os indivíduos ou grupos e os serviços de saúde⁽⁷⁾.

A advocacia em saúde representa um elemento-chave para a ética na Enfermagem, pois considera que o respeito aos direitos humanos, à vida e à dignidade humana é inerente à prática profissional da Enfermagem⁽¹⁰⁾. Além disso, destaca que, assim como outros profissionais da área da saúde, os enfermeiros têm uma obrigação ética de defesa de indivíduos e famílias vulneráveis em diferentes contextos e em sistemas de saúde hierárquicos, pois a advocacia reconhece que tantos os indivíduos quanto as famílias, quando ocupam determinadas posições na sociedade, necessitam de alguém que os defenda quando não são capazes de falar por si mesmos ou quando suas vozes não são escutadas.

Além de ser um imperativo ético na área da Enfermagem, ações sobre a determinação social da saúde podem ser consideradas meios para o alcance da equidade em saúde. A advocacia em saúde também é importante para o alcance da justiça social. Ações de saúde pública que envolvem a defesa da equidade também favorecem o desenvolvimento da autonomia dos grupos sociais.

Enfermeiras e enfermeiros podem atuar de diferentes maneiras na defesa de indivíduos, famílias e grupos sociais vulneráveis no SUS. Certamente se espera que assegurem cuidados de saúde adequados e consistentes e favoreçam o acesso dos usuários a serviços de saúde. Podem, ademais, se engajar em pesquisas que produzam evidências para mudanças nas práticas assistenciais; atuar em favor da revisão das políticas de saúde, a fim de desenvolver políticas sensíveis às necessidades de usuários; ou ainda se inserir na arena política em prol da equidade em saúde⁽⁹⁾.

A equidade e a justiça social são a meta principal de advocacia em saúde em prol de grupos em desvantagens sociais. Ações sobre as condições sociais que produzem resultados em saúde são importantes meios de alcance da equidade, além de um imperativo ético na área da Enfermagem⁽⁶⁾.

A reorientação do modelo assistencial é parte do compromisso da Enfermagem na advocacia por equidade em saúde. Supera, no sentido dialético do termo, o plano individual ou microssocial da relação enfermeiro-paciente em que usualmente atuamos e avança em direção à justiça social. A organização estrutural do sistema de saúde certamente não é a única ação para a redução das desigualdades sociais. A Atenção Primária em Saúde (APS), particularmente, tem um papel fundamental para o alcance desse objetivo, sobretudo para os grupos em situação de desvantagem social.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  2018

Histórico

• Recebido
  14 Set 2017
• Aceito
  16 Out 2017