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O processo histórico do trabalho de enfermagem no município de Cuiabá - Mato Grosso

El proceso histórico del trabajo de la enfermería en el distrito municipal de Cuiabá-MT

The historical process of the nursing work in the city of Cuiabá - Mato Grosso

Resumos

O estudo trata-se de uma pesquisa histórica, cujo objetivo foi historicizar a singularidade do processo de trabalho de enfermagem no município de Cuiabá/MT. Os dados foram coletados a partir de fontes primárias e secundárias. Pelos dados analisados a enfermagem surgiu com o atendimento e cuidados aos enfermos, prestados por pessoas voluntárias, negros e escravos. A primeira instituição criada foi a Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá. A assistência de enfermagem era prestada por religiosas, leigos e escravos, calcados na abnegação, acolhimento e apadrinhamento. Sucessivos eventos importantes como a implantação da ABEn/MT, o Curso de Graduação em Enfermagem e o COREN/MT marcaram a trajetória do trabalho de enfermagem, os quais, estiveram vinculados ao empresariamento na área da saúde no contexto estudado.

história de enfermagem; trabalho de enfermagem; trabalho hospitalar


El estudio se trata de una investigación histórica, cuyo objetivo fue hablar de la historia de la singularidad del proceso de trabajo de enfermería en el municipio de Cuiabá/MT. Los datos se colectaron a partir de fuentes primarias y secundarias. Por los datos analizados la enfermería surgió con la atención y cuidados a los enfermos, prestados por personas voluntarias, negros y esclavos. La primera institución creada fue la Santa Casa de Misericordia de Cuiabá. La asistencia de enfermería era prestada por religiosas, laicos y esclavos, calcados en la abnegación, acogida y apadrinamiento. Sucesivos eventos importantes como la implantación de la ABEn/MT, el Curso de Graduación en Enfermería y el COREN/MT marcaron la trayectoria del trabajo de enfermería, los cuales, estuvieron vinculados al empresariamiento en el área de la salud en el contexto estudiado.

historia de enfermería; trabajo de enfermería; trabajo hospitalario


The study is a historical research whose aim was to historicize the singularity of the nursing work process in the city of Cuiabá/MT. The data were collected from primary and secondary sources. According to the analyzed data, nursing appeared with the attention and care for the sick, and volunteers, blacks and slaves were the ones who performed it. The first created institution was the Santa Casa de Misericórdia of Cuiabá. The religious, lay people and slaves performed nursing assistance on the basis of abnegation, friendliness, and godfathering. Successive important events such as the implementation of ABEn/MT, the Undergraduate Course in Nursing, and COREN/MT have marked the course of the nursing work, the three of which were linked to the business community in the health sector in the studied context.

history of nursing; nursing work; Hospital work


HISTÓRIA DA ENFERMAGEM/HISTORY IN NURSING/HISTORIA DE LA ENFERMERÍA

O processo histórico do trabalho de enfermagem no município de Cuiabá - Mato Grosso

The historical process of the nursing work in the city of Cuiabá - Mato Grosso

El proceso histórico del trabajo de la enfermería en el distrito municipal de Cuiabá-MT

Leocarlos Cartaxo MoreiraI; Flávia Regina Souza RamosII

IEnfermeiro. Mestre em Enfermagem Fundamental. Professor da Faculdade de Enfermagem e Nutrição da Universidade Federal de Mato Grosso; Doutorando do Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista do CNPq

IIEnfermeira. Doutora em Filosofia em Enfermagem. Professora do Programa de Pós-graduação nível de Doutorado em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina

E-mail do autor: lcartaxo@terra.com.br

RESUMO

O estudo trata-se de uma pesquisa histórica, cujo objetivo foi historicizar a singularidade do processo de trabalho de enfermagem no município de Cuiabá/MT. Os dados foram coletados a partir de fontes primárias e secundárias. Pelos dados analisados a enfermagem surgiu com o atendimento e cuidados aos enfermos, prestados por pessoas voluntárias, negros e escravos. A primeira instituição criada foi a Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá. A assistência de enfermagem era prestada por religiosas, leigos e escravos, calcados na abnegação, acolhimento e apadrinhamento. Sucessivos eventos importantes como a implantação da ABEn/MT, o Curso de Graduação em Enfermagem e o COREN/MT marcaram a trajetória do trabalho de enfermagem, os quais, estiveram vinculados ao empresariamento na área da saúde no contexto estudado.

Descritores: história de enfermagem; trabalho de enfermagem; trabalho hospitalar

ABSTRACT

The study is a historical research whose aim was to historicize the singularity of the nursing work process in the city of Cuiabá/MT. The data were collected from primary and secondary sources. According to the analyzed data, nursing appeared with the attention and care for the sick, and volunteers, blacks and slaves were the ones who performed it. The first created institution was the Santa Casa de Misericórdia of Cuiabá. The religious, lay people and slaves performed nursing assistance on the basis of abnegation, friendliness, and godfathering. Successive important events such as the implementation of ABEn/MT, the Undergraduate Course in Nursing, and COREN/MT have marked the course of the nursing work, the three of which were linked to the business community in the health sector in the studied context.

Descriptors: history of nursing; nursing work; Hospital work

RESUMEN

El estudio se trata de una investigación histórica, cuyo objetivo fue hablar de la historia de la singularidad del proceso de trabajo de enfermería en el municipio de Cuiabá/MT. Los datos se colectaron a partir de fuentes primarias y secundarias. Por los datos analizados la enfermería surgió con la atención y cuidados a los enfermos, prestados por personas voluntarias, negros y esclavos. La primera institución creada fue la Santa Casa de Misericordia de Cuiabá. La asistencia de enfermería era prestada por religiosas, laicos y esclavos, calcados en la abnegación, acogida y apadrinamiento. Sucesivos eventos importantes como la implantación de la ABEn/MT, el Curso de Graduación en Enfermería y el COREN/MT marcaron la trayectoria del trabajo de enfermería, los cuales, estuvieron vinculados al empresariamiento en el área de la salud en el contexto estudiado.

Descriptores: historia de enfermería; trabajo de enfermería; trabajo hospitalario

1 Projetando a temática do estudo

Retratar realísticamente um trabalho profissional não é tarefa fácil, especialmente quando se leva em consideração que o mesmo (seja ele de que natureza for) está condicionado por processos de mudanças, por multiplicidade de agentes e, principalmente, por se conformar dentro de movimentos históricos através de episódios concretos, descritos na literatura por meio de fontes fragmentárias e nunca de forma completa. Neste estudo, buscou-se delinear sinteticamente os aspectos marcantes do processo histórico do trabalho de enfermagem em Cuiabá, ou seja, no marco do desenvolvimento do município de Cuiabá, e neste, o contexto do trabalho institucional. Assim sendo, a pesquisa em tela é de natureza qualitativa com abordagem histórica, tendo sido estabelecido o seguinte objetivo:

- Historicizar a singularidade do processo de trabalho de enfermagem, focados no sucedâneo de eventos históricos na construção do município de Cuiabá/MT.

2 Historiando e analisando as singularidades históricas do trabalho de enfermagem no contexto cuiabano

São escassos os estudos relacionados especificamente aos serviços de saúde de Cuiabá, durante seu processo de desenvolvimento histórico. Em geral, a saúde tem sido tratada na literatura mato-grossense de forma pontual, atrelada aos estudos da história da ocupação do Estado e do processo de evolução da cidade. Mesmo dentro dessa escassez, ainda foi possível localizar alguns estudos. Entre aqueles que têm focalizado a saúde, merece destaque o de Maciel(1) que, ao retratar a história da capital do Estado, descreve facetas importantes sobre o processo de urbanização de Cuiabá, apontando os problemas de saúde e seus desdobramentos durante o povoamento da cidade, ao mesmo tempo em que mostra como esses problemas foram encarados pelas classes dominantes e governantes públicos, ao longo da construção da cidade.

Outro estudo mais atualizado e especificamente voltado para a democratização da saúde de Cuiabá, é o de Silva(2) que, embora tendo como foco de análise o Conselho Municipal de Saúde, faz um apanhado consistente da história da saúde no município, o qual, também, foi tomado como referência no presente estudo para o resgate do processo de trabalho de enfermagem nas instituições hospitalares de Cuiabá.

Cuiabá passou para a história no ano de 1719, com a descoberta aurífera no rio Coxipó, pela bandeira capitaneada por Pascoal Moreira Cabral, sendo elevada à condição de vila, em 1727, e tornada cidade em 1818. Ao aportarem em Cuiabá os bandeirantes logo trataram de dar as notícias do descobrimento do ouro, repassando-as para a Capitania de São Paulo, da qual as terras cuiabanas faziam parte.

Em decorrência disso, um grande fluxo migratório invadiu a região. As pessoas que desembarcavam em Cuiabá visavam o enriquecimento e o estabelecimento da agro-pecuária, de modo que pudessem comercializar alimentos junto à população, passando a ser a economia de base da época e dos séculos seguintes(3).

Com o aumento da população, em decorrência do processo migratório acentuado, as condições de vida e até de sobrevivência ficaram comprometidas, pois a cidade não tinha estrutura para acomodar o contingente de exploradores do ouro e viajantes. Toda e qualquer espécie de mantimentos, víveres básicos, vestuários, bebidas, escravos, medicamentos e instrumentos de trabalho eram transportados por via fluvial, partindo da Capitania de São Paulo, através do rio Tietê até o rio Cuiabá, seguindo vários roteiros.

A compra de produtos comercializados nesta época era difícil, em face dos elevados custos do transporte, que oneravam significativamente as mercadorias, subindo seus preços acima do poder aquisitivo dos trabalhadores(4). Imperava nas minas cuiabanas um comércio marcado pelas trocas desiguais, e isso, de certo modo, interferia nas condições de vida junto às zonas mineradoras, fazendo com que a fome e outras formas de violência, inclusive as doenças, passassem a fazer parte dos problemas vividos pela população.

Esse panorama perdurou por longo período e foi sucedendo-se secularmente na história do município. Nesse sentido, os problemas apresentados na capital mato-grossense nasceram com a própria cidade. Entretanto, em alguns momentos, certos problemas foram mais marcantes que outros ou tiveram outras conotações, assumindo maior relevância no conjunto das preocupações sobre a cidade, destacando-se os episódios das epidemias, configurando-se como pano de fundo inalterável para o atraso e a decadência de Cuiabá(1).

Antes de ultrapassar o século XVIII, não se encontram registros na literatura histórica cuiabana que mencionem algum tipo de instituição de assistência à saúde individual, que viesse tratar das pessoas adoecidas. Como a atividade primordial era a garimpagem de metais - considerada de aluvião, isto é, emergia à flor da terra, misturada com areia dos leitos e margens dos rios, sendo portanto, o núcleo de trabalho da época, logo se conclui que grande parte dos processos de doenças daí se originavam e que o atendimento e cuidados aos enfermos davam-se por pessoas voluntárias em locais de trabalho e espaços domiciliares.

Passada a efervescência do ouro, somente em 1816, ou seja, quase cem anos após a descoberta de Cuiabá, é que se tem conhecimento das primeiras instituições de saúde nela fundada. Inicialmente, foi fundado o Hospital São João dos Lázaros e, posteriormente, a Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá, passando a fazer parte do espaço urbano, localizada nas imediações onde hoje encontra-se instalada. Mesmo assim, parece controversa a questão das primeiras instituições de saúde de Cuiabá, uma vez que no âmbito da literatura cuiabana algumas fontes bibliográficas mostram posições diferentes, na medida em que é mencionado o Hospital Militar, demonstrando ser o pioneiro, passando este, posteriormente, a ocupar enfermarias exclusivas na Santa Casa(5, 6).

Dadas as condições da época e pela própria natureza desses hospitais, os médicos desenvolviam atividades de tratamento, inclusive procedimentos, como curativos e outros, ficando as atividades elementares como limpeza de ambiente, higiene e alimentação nas mãos dos internos e escravos que lá residiam, conforme descrições históricas publicadas(7).

Independente de ser ou não pioneira, a Santa Casa teve um papel importante na história da cidade, na medida em que prestava assistência às pessoas doentes, em função do quadro sanitário do município e, nesse particular, alguns cirurgiões já desenvolviam suas práticas, inclusive gratuitamente, combatendo veementemente outras práticas da época, como as de charlatães e curandeiros(6). Aqui, já se apresentam os primeiros movimentos de contraposição da classe médica em relação a outros profissionais no contexto cuiabano, o que deixa transparecer uma tendência hegemônica, provavelmente decorrente da invasão do campo profissional desta categoria.

No tocante à infra-estrutura e às características da cidade estas denotavam certa precarização, pois, para as autoridades que chegavam a Mato Grosso em meados do século XIX, era decepcionante encontrar uma cidade tão longe dos padrões já definidos de cidade civilizada. Assim, os hábitos de higiene da população e a falta de conforto da cidade eram alvos de críticas como também o eram as opções de lazer que Cuiabá oferecia(8).

O saneamento básico, o sistema deficiente de abastecimento de água e a higienização da cidade exigiam a incorporação de novos padrões de comportamento, determinados pelo médico sanitarista, o qual tinha grande reconhecimento, ao tratar as pessoas quer no domicílio, quer no hospital(8). Este fato, mais uma vez vem reforçar a questão do poder médico proveniente da autoridade a ele atribuída em função do seu saber, que também passa a ser reproduzido no contexto do espaço coletivo em Cuiabá.

Por sua vez, a assistência de enfermagem, durante o transcurso do século XIX, era prestada por leigos e escravos, que iniciavam as atividades práticas por abnegação, acolhimento e indicação por apadrinhamento. Estes, primeiramente, desenvolviam tarefas distantes do doente como limpeza e outras, passando, em seguida, a atuar na área de enfermagem.

Um fato estarrecedor decorrente do término da Guerra contra o Paraguai, que durou cinco anos (1865 a 1870), afetando sobremaneira o único hospital da cidade, a Santa Casa, foi a epidemia de varíola, trazida pelos soldados combatentes durante a viagem de volta a Cuiabá. A disseminação da doença fez eclodir um quadro epidêmico trágico na capital mato-grossense, quando 2/3 de sua população, que não havia sido atingida pela guerra, veio a falecer vitimada pela terrível doença que, na época, era popularmente conhecida como bexiga(7). Para os trabalhadores de enfermagem, este foi certamente um momento de alta demanda de cuidados, uma vez que nessa época existia apenas a Santa Casa como instituição prestadora de assistência à população, sendo, portanto, a instituição de referência para tratamento de pessoas internadas.

A propagação da varíola tomou grande vulto, havendo um quadro insuficiente e desqualificado de pessoas para cuidar dos doentes e, especialmente, de vacinas para imunizar a população. As medidas tomadas para conter seu avanço não surtiram mais efeitos; nesse caso, a solução adotada para o momento, com o qual a cidade pôde contar, foi a vinda do 2º batalhão de Artilharia a Pé, que tinha a maioria de seus homens vacinados, os quais passaram a realizar os trabalhos necessários ao atendimento e cuidados aos enfermos. Entretanto, essa situação tornou-se propícia para que os soldados cobrassem seus préstimos, e as pessoas não tinham como se furtar ao pagamento(8).

Os estudos acerca da varíola que se alastrou em Cuiabá, no pós-guerra, são praticamente inexistentes, apenas o livro de Joaquim Ferreira Moutinho, datado de 1869, comerciante português que viveu por 18 anos em Cuiabá, faz um relato pungente e detalhado da situação da doença na cidade. Em sua análise, a descrição apresentada é de um quadro de horror, onde não havia pessoas que cuidassem dos doentes, pois todos, inclusive os trabalhadores da saúde da época, estavam de alguma forma atingidos pelo mal. Famílias inteiras pereceram, tendo as portas de suas casas arrombadas para que pudessem ser retirados os corpos; os que ainda resistiam, saiam às ruas em busca de socorro e acabavam mortos nas vias públicas. Mortos insepultos, desprezados nas ruas ou em casas abandonadas, permitiam que cachorros e corvos arrastassem pela cidade restos humanos(8).

Diante desse quadro, não se podia precisar exatamente a quantidade de mortos, até a debelação da doença e esses fatos impuseram ao governo do Estado a criação, em 1892, de uma Inspetoria de Higiene Pública. Assumindo várias atribuições, esta ganhou contornos mais nítidos e maiores poderes através da Polícia Sanitária, que era responsável pelo controle da propagação das doenças transmissíveis e pela fiscalização do cumprimento do Código Sanitário, inclusive de atendimentos de caráter de socorros públicos, bem como de inspeção sanitária em hospitais(9).

No ano de 1895, desembarcaram em Cuiabá as Filhas de Maria Auxiliadora, as Irmãs Salesianas, da mesma Congregação fundada por Dom Bosco. Foram elas que desenvolveram um trabalho relevante envolvendo educação, evangelização, atuação nos asilos e, posteriormente, em hospitais. Oficialmente, a entrada das freiras salesianas na Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá deu-se no ano de 1910, deixando aquela instituição em 1990. No período em que permaneceram, exerceram múltiplas funções, desde administrativas com cargos de diretorias, supervisão dos diferentes setores do hospital (farmácia, portaria, serviço de alimentação, lavanderia, rouparia, manutenção) e até mesmo de cuidados e administração de medicamentos, tendo certa autonomia e credibilidade junto aos médicos e à sociedade.

No conjunto das doenças predominantes no desenrolar do século XIX, o impaludismo (febre amarela), era considerada a doença mais comum. Durante a construção das linhas telegráficas (1890-1915), comandada por Cândido Rondon, diversas doenças acometiam os trabalhadores, como a varíola, a tuberculose e outras. As condições de saúde das pessoas, nesse período, eram fundamentais para o sucesso da construção das linhas telegráficas, assim, dada à elevada importância do trabalho de Rondon para a região, médicos e outros profissionais faziam parte da comissão, tratando os doentes inaptos no próprio local das obras(10).

Observa-se que, a partir do século XX, e mais precisamente, a partir da década de 30, toma impulso uma política nacional de saúde, provocando mudanças profundas no Estado. Nesse processo, cria-se o ministério da Educação e Saúde tendo como foco predominante na saúde os movimentos campanhistas de cunho centralizador, face à explosão de epidemias que se alastrava pelo país.

Por outro lado, em Cuiabá, autoridades e jornalistas, num forte movimento declaravam combate à vadiagem e desocupação dos indivíduos que perambulavam pela cidade. Entre eles incluíam-se os pedintes, bêbados, desempregados e loucos, que segundo os jornais da época, eram tidos como maus elementos e taxados de perigosos sociais(1).

A partir de 1930 começou-se a utilizar para abrigo e reclusão dos loucos de Cuiabá e da região, uma chácara denominada a "Chácara dos Loucos", às margens do rio Coxipó, a qual, além da guarda feita por policiais, dispunha de um atendimento médico e de enfermagem. Mais tarde, em 1957, face aos reclamos da população, foi inaugurado o segundo hospital psiquiátrico, Hospital Adauto Botelho, onde o trabalho da enfermagem em nível institucional público se fazia presente(11).

Desse modo, os indícios do progresso, ainda que de forma morosa, aqui ia se instituindo, e o ritmo do desenvolvimento econômico, político e social em vigência no Estado impõe à Cuiabá processos de transformações, com impactos nas práticas de saúde. Diante disso, há que se concordar que a organização dos serviços de saúde em Mato Grosso se assemelha ao modelo nacional.

Expande-se a nível nacional a rede de serviços de saúde, inclusive de hospitais, estabelecendo e ampliando os convênios aos serviços privados e filantrópicos. No bojo dessa expansão surge no ano de 1942, a Maternidade e Hospital Geral de Cuiabá, que vai se configurar como o segundo hospital de assistência médica individualizada, constituindo-se, portanto, como mais um espaço do trabalho para a enfermagem. Entretanto, na literatura consultada, dessa época, não foi encontrado nenhum registro da presença ou contratação de enfermeiros graduados nessa e nem em outras instituições hospitalares de Cuiabá.

Assim, observa-se que, no contexto de Cuiabá, ao longo dos dois primeiros séculos de sua criação, o trabalho da enfermagem não pareceu impactante e tampouco ressaltado o seu reconhecimento, quer no âmbito hospitalar quer no âmbito do espaço coletivo. A expressividade da enfermagem enquanto prática não se apresenta revelada nas fontes e documentos pesquisados, demonstrando absoluto silêncio e anonimato das categorias de enfermagem em seus espaços de trabalho.

Dentro dessas condições, pode-se inferir que a história do trabalho de enfermagem, no espaço urbano de Cuiabá, a exemplo do que ocorreu com a história geral do trabalho de enfermagem, esteve centrada em atividades técnicas desenvolvidas por praticantes, sem ressonância social, ficando restrita à ocupação de expressão caritativa e de abnegação, e dependente, sobretudo, de uma racionalidade capitalista, subjugada às classes burguesas e dominantes.

Ao final da década de 50 do século passado, a enfermagem passa a despontar no cenário local, com a divulgação e a implantação da Associação Brasileira de Enfermagem de Mato Grosso (ABEn/MT) por um grupo de enfermeiras pioneiras, grande parte delas de naturalidade cuiabana e graduadas fora do Estado, com o intuito de socializar a profissão e divulgar sua cientificidade. Neste particular parece oportuno registrar parte do discurso da primeira presidente da ABEn/MT quando da comemoração dos 40 anos da associação realizada em julho de 1999:

Convidada a expor sobre o tema 'ABEn-MT - 40 anos de luta, avanço e conquista no cuidado à saúde "(...) assumir o papel de enfermeira naquela época, em que a população só conhecia leigos, foi realmente um árduo desafio, porém muito gratificante, uma vez que poucas enfermeiras engajavam-se na luta, com muito amor e união"(12:02).

A ABEn/MT funcionou durante muitos anos na Escola Estadual de Auxiliar de Enfermagem Mário Correia da Costa, fundada na década de 50, a qual teve um papel importante na formação de profissionais de nível médio no Estado.

No decorrer da década de 60, novos rumos são traçados no Sistema de Saúde de Cuiabá, com a criação de vários serviços e da Fundação Estadual de Saúde de Mato Grosso - FUSMAT, subseqüentemente, criando-se a rede básica de saúde do Estado. Ao mesmo tempo foi criado o primeiro Pronto Socorro Municipal de Cuiabá, ampliando-se, assim, os espaços de trabalho para a enfermagem no setor público.

Desse modo, na década de 70, ocorre a ampliação do mercado de trabalho de enfermagem no município, onde os trabalhadores passam a ter mais oportunidades de emprego em instituições hospitalares do tipo geral e especializadas, em decorrência do crescimento do número de hospitais, clínicas, ambulatórios e, nos anos seguintes, dos Postos de Assistência Médica (PAMs) do extinto INAMPS.

Face ao aumento do número de hospitais na década de 70 e as conseqüentes possibilidades de trabalho no setor público, tanto na capital quanto no interior, começa também a surgir a oferta do número de cursos de auxiliar de enfermagem. Em meados dessa mesma década, ou seja, em 1976 foi criado o Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso (CGEUFMT).

A criação do CGEUFMT foi um marco importante na história da profissão no Estado, uma vez que ele veio preencher uma lacuna, por não existir nenhum outro curso no Estado. Sua implantação deu-se em decorrência dos resultados de uma política de expansão adotada pelo MEC, com o objetivo de suprir a falta do profissional enfermeiro no mercado de trabalho em todo território nacional. Dessa forma, para que o curso fosse iniciado foram contratados professores vindos de várias regiões do país, formando a primeira turma em 1978.

Nesse contexto, em decorrência da expansão do campo de trabalho e mediante a legislação aplicada ao trabalho de enfermagem, é implantado em Mato Grosso, em 1975, o Conselho Regional de Enfermagem (COREN).

Com a divisão do Estado em 1979, ocorreram transformações no Sistema de Saúde de Cuiabá, tomando novos contornos tanto no plano público como no privado. Em 1984 foi inaugurado o Hospital Universitário Júlio Muller, como hospital cedido pelo governo estadual em regime de comodato. Foi estruturado para atender as necessidades do ensino na área da saúde, proporcionando para a enfermagem de Mato Grosso um novo campo de prática acadêmica, bem como para os estudantes do CGEUFMT. Mesmo classificado como hospital de ensino, sua implantação propiciou possibilidades de frente de trabalho para as várias categorias profissionais de enfermagem, funcionando com metodologias de trabalho e assistencial diferenciadas.

O advento da criação do CGEUFMT representou, para o contexto dos serviços de saúde em Cuiabá, um marco importante, pelo fato de formar profissionais de nível superior para atuação no mercado da saúde em expansão. Ao mesmo tempo, muitos professores deste curso desenvolviam, simultaneamente, múltiplas atividades, subsidiando os serviços públicos e privados de saúde, em implantações e reestruturações de hospitais e centros de saúde. Assim, o corpo docente juntamente com egressos do curso desempenharam em vários momentos projetos de cooperação técnica, tanto na preparação de campo para a prática acadêmica, quanto na adequação da infra-estrutura para otimização do atendimento aos usuários.

Observou-se nas décadas de 80 e 90 uma acelerada expansão de hospitais privados e um ritmo lento de implantações de hospitais na rede pública, tornando-se visível a consolidação da privatização da saúde em Cuiabá, com um número crescente de hospitais e clínicas com tecnologia avançada e de última geração. Este panorama é resultado de um processo gradativo do empresariamento na área da saúde, que avançou com mais impulso a partir da década de 70 no país.

Essa tendência privatista na saúde, sem dúvida tem imprimido uma série de mudanças no trabalho desta área e, particularmente, no de enfermagem, onde os processos de trabalho buscam se moldar à atual conjuntura, especialmente no que tange à qualificação de profissionais em diferentes níveis. Nesse sentido, é notória a exigência do mercado de trabalho selecionando trabalhadores com melhor capacitação e experiência profissional, particularmente no trabalho das instituições hospitalares do setor privado.

Mesmo considerando todos os avanços tecnológicos e a expressiva privatização da saúde que a enfermagem vem vivenciando em Cuiabá, a partir da década de 70 até o momento, não se pode afirmar com convicção melhorias em relação às condições de trabalho oferecidas pelas instituições de saúde. Isso tem sido divulgado, em encontros, práticas acadêmicas e trabalhos de pesquisa(13-15) que retratam o contexto local. Estes estudos demonstram as reais fragilidades do trabalho no setor saúde com conseqüências para a enfermagem, especialmente na última década, face às determinações macroestruturais, envolvendo as políticas de saúde.

As condições de trabalho em saúde e de enfermagem em Cuiabá têm sido objeto de constantes denúncias veiculadas pela imprensa e também pelo Sindicato dos Médicos e Profissionais de Enfermagem do Estado de Mato Grosso (SIPEN), os quais tem publicado com certa freqüência as deletérias condições sanitárias e de trabalho dos trabalhadores nas unidades de saúde da capital, notadamente no serviço público de saúde.

3 Considerações finais

Pelos dados históricos levantados observa-se que o trabalho de enfermagem no contexto cuiabano até meados do Século XX, caracterizou-se por ser exclusivamente manual, não especializado e desprovido de qualquer conhecimento sistematizado. O sujeito trabalhador nessas configurações exercia um trabalho que não era alicerçado nem no poder nem no prestígio. A exemplo de outras realidades brasileiras o produto do trabalho, ou seja, os resultados obtidos pelos cuidados de enfermagem prestados à clientela assistida estiveram marginalizados da esfera das trocas econômicas não desfrutando de ressonância social, exceto pelo trabalho realizado pelas irmãs salesianas que desfrutavam de um certo respeito e reconhecimento pela vocação de benemerência religiosa.

Pelos avanços que vem ocorrendo, no setor saúde o processo de trabalho de enfermagem embora com algumas mudanças decorrentes da organização tecnológica do trabalho, ainda preserva uma forte característica de um trabalho parcelado e fragmentado. Deste modo, verifica-se uma dicotomização entre a concepção e execução, situando-se de um lado o trabalho médico mais valorizado socialmente e do outro o trabalho dos demais profissionais.

Portanto, verifica-se nas reflexões postas neste texto que o trabalho de enfermagem tanto na realidade estudada como em outras realidades do país, vem ao longo da história apontando diferentes conformações, ao mesmo tempo em que mostra um sujeito se constituindo em seu trabalho conforme se institui determinadas racionalidades nos processos de significação e ressignificação do trabalho.

Data de Recebimento: 20/09/2004

Data de Aprovação: 22/12/2004

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2009
  • Data do Fascículo
    Dez 2004

Histórico

  • Aceito
    22 Dez 2004
  • Recebido
    20 Set 2004
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