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Dificuldade de aprendizagem de crianças escolares: percepções dos profissionais da saúde e da educação

RESUMO

Objetivos:

conhecer as percepções dos profissionais da saúde e da educação acerca da dificuldade de aprendizagem de crianças da rede pública de ensino.

Métodos:

pesquisa qualitativa, do tipo ação participante, articulada ao Itinerário de Pesquisa de Paulo Freire. Participaram 45 profissionais, por meio de entrevistas e um Círculo de Cultura Virtual. A análise desenvolveu-se na leitura cuidadosa, reflexão e interpretação dos temas destacados.

Resultados:

os profissionais dialogaram sobre a (in)visibilidade da dificuldade de aprendizagem, as estratégias e os recursos do setor educacional e a busca por resolutividade no setor saúde. Verificou-se que a produção das queixas relacionadas à aprendizagem escolar está atribuída predominantemente como problema individual da criança ou de sua família, isentando a instituição educacional desse processo.

Considerações Finais:

é premente maior investimento em políticas de formação e aperfeiçoamento dos profissionais para propiciar a articulação entre os setores, com vistas a superar modelos pedagógicos e de saúde ultrapassados.

Descritores:
Saúde da Criança; Serviços de Saúde Escolar; Baixo Rendimento Escolar; Deficiências da Aprendizagem; Atenção Primária à Saúde

ABSTRACT

Objectives:

to understand health and education professionals’ perceptions regarding children’s learning difficulties in public schools.

Methods:

qualitative research, of the participatory action type, linked to Paulo Freire’s Research Itinerary. Forty-five professionals participated, through interviews and a Virtual Culture Circle. The analysis was developed through careful reading, reflection and interpretation of highlighted topics.

Results:

professionals discussed the (in)visibility of learning difficulties, strategies and resources in the educational sector and the search for solutions in the health sector. It was found that the production of complaints related to school learning is attributed predominantly as an individual problem of children or their family, exempting the educational institution from this process.

Final Considerations:

greater investment in professional training and development policies is urgently needed to facilitate coordination between sectors, with a view to overcoming outdated pedagogical and health models.

Descriptors:
Child Health; School Health Services; Low School Performance; Learning Disabilities; Primary Health Care

RESUMEN

Objetivos:

comprender las percepciones de los profesionales de la salud y la educación sobre las dificultades de aprendizaje de los niños en las escuelas públicas.

Métodos:

investigación cualitativa, del tipo acción participativa, vinculada al Itinerario de Investigación de Paulo Freire. Participaron 45 profesionales, a través de entrevistas y un Círculo Virtual de Cultura. El análisis se desarrolló a través de una atenta lectura, reflexión e interpretación de los temas destacados.

Resultados:

los profesionales discutieron la (in)visibilidad de las dificultades de aprendizaje, las estrategias y los recursos en el sector educativo y la búsqueda de soluciones en el sector salud. Se encontró que la producción de quejas relacionadas con el aprendizaje escolar se atribuye predominantemente como un problema individual del niño o de su familia, eximiendo a la institución educativa de este proceso.

Consideraciones Finales:

urge una mayor inversión en políticas de formación y desarrollo profesional para facilitar la coordinación entre sectores, con miras a superar modelos pedagógicos y sanitarios obsoletos.

Descriptores:
Salud Infantil; Servicios de Salud Escolar; Rendimiento Escolar Bajo; Discapacidades Para el Aprendizaje; Atención Primaria de Salud

INTRODUÇÃO

A dificuldade de aprendizagem é uma problemática educacional que se apresenta de forma emergente no campo da saúde pública infanto-juvenil nas últimas décadas, denominada como queixa escolar. As crianças que apresentam essa condição têm sido encaminhadas para o atendimento especializado, no intuito de resolvê-la sob o olhar médico, o que tem suscitado a atenção de profissionais e pesquisadores da área da saúde(11 Brambilla DK, Kleba ME, Dal Magro MLP. Cartography of the implementation of the school health program (pse): implications for the demedicalization process. Educ Rev. 2020;36(e217558). https://doi.org/10.1590/0102-4698217558
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).

Tal dificuldade caracteriza-se pelo desempenho escolar aquém do esperado para as condições gerais do estudante, em consequência de múltiplos fatores, isolados ou em interação, de origem endógena e/ou exógena à criança, o que tende a desaparecer à medida que são sanadas as suas causas(22 Corso LV, Meggiato AO. Quem são os alunos encaminhados para acompanhamento de dificuldades de aprendizagem? Rev Psicopedag [Internet]. 2019[cited 2022 Dec 10];36(109):57-72. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psicoped/v36n109/07.pdf
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). Difere dos distúrbios ou transtornos da aprendizagem, os quais são decorrentes de disfunção do sistema nervoso central, de caráter funcional, que envolvem uma falha no processo de aquisição ou do desenvolvimento infantil(33 Paterlini LSM, Zuanetti ACPF, Fukuda MTH, Hamad APA. Screening and diagnosis of learning disabilities/disorders: outcomes of interdisciplinary assessments. Rev CEFAC. 2019;21(5):e13319. https://doi.org/10.1590/1982-0216/201921513319
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).

A demanda tornou-se mais evidente a partir da universalização do ensino fundamental, revelando fragilidades no processo ensino-aprendizagem, especialmente na faixa etária entre seis e dez anos(44 Lopes TSS, Rossato M. A dimensão subjetiva da queixa de dificuldades de aprendizagem escolar. Psicol. Esc. Educ. [Internet]. 2018 [cited 2022 Dec 11]; 22(2):385-94. Available from: https://doi.org/10.1590/2175-35392018011363
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). As estatísticas educacionais apontam que uma parcela grande de estudantes apresenta defasagens no aprendizado desde os primeiros anos da trajetória escolar. No Brasil, mais da metade dos estudantes das escolas públicas chega ao final do terceiro ano do ensino fundamental sem saber ler, ou lendo precariamente, com sua trajetória escolar comprometida. Isso se reflete em altas taxas de reprovação, distorção idade-série, abandono e evasão(22 Corso LV, Meggiato AO. Quem são os alunos encaminhados para acompanhamento de dificuldades de aprendizagem? Rev Psicopedag [Internet]. 2019[cited 2022 Dec 10];36(109):57-72. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psicoped/v36n109/07.pdf
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).

Assim, deve-se considerar que a entrada na etapa da escolarização faz com que as crianças vivenciem mudanças importantes em seu processo de desenvolvimento que repercutem em suas relações consigo mesmas e com os outros. Nesse sentido, experienciar a dificuldade de aprendizagem constitui-se um obstáculo para o sucesso na vida escolar infantil, sendo que, quanto mais cedo for identificada, maior a possibilidade de intervir e/ou superá-la, haja vista que pode resultar em outros problemas, como emocionais (baixa autoestima, desmotivação) e preocupação familiar, além de repercussão em diversas esferas, como pessoais, familiares, escolares e sociais(55 Ministério da Educação (BR). Secretaria de Alfabetização. PNA Política Nacional de Alfabetização [Internet]. Brasília: MEC; 2019 [cited 2022 Dec 10]. Available from: http://portal.mec.gov.br/images/banners/caderno_pna_final.pdf
http://portal.mec.gov.br/images/banners/...
).

Atualmente, sabe-se que o fracasso ou o sucesso nos processos de ensino e de aprendizagem escolar é menos determinado por questões individuais do que por mecanismos institucionais e políticos(66 Benedetti MD, Bezerra DMMM, Telles CG, Lima LAG. Medicalização e educação: análise de processos de atendimento em queixa escolar. Psicol Esc Educ. 2018;22(1):73-81. https://doi.org/10.1590/2175-35392018010144
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). Diante dessas considerações, despontou a questão de pesquisa: quais as percepções dos profissionais da saúde e da educação acerca da dificuldade de aprendizagem em crianças matriculadas na rede pública de ensino? Salienta-se que é relevante conhecer as abordagens assistenciais realizadas junto às crianças que vivenciam dificuldades no processo ensino-aprendizagem, considerando diferentes categorias profissionais que atuam nas redes de educação e de saúde, o que justifica a realização deste estudo.

OBJETIVOS

Conhecer as percepções dos profissionais da saúde e da educação acerca da dificuldade de aprendizagem em crianças matriculadas na rede pública de ensino.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Foram adotadas as recomendações estabelecidas nas Resoluções no 466/2012 e no 510/2016 e Ofício Circular no 2/2021 CONEP/SECNS/MS, com aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE). Para formalizar o aceite de participação, foi assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, com garantia do anonimato, sendo substituídos os nomes pelas iniciais das palavras “Profissionais da Saúde” e “Profissionais da Educação” junto a um numeral arábico, como PS1, PS2, PE1, PE2, e assim sucessivamente.

Tipo de estudo

Pesquisa qualitativa, do tipo ação-participante, fundamentada nos pressupostos teórico-metodológicos de Paulo Freire. Percorreu-se o Itinerário de Pesquisa de Freire(77 Freire P. Pedagogia do oprimido. 67ª ed. Paz & Terra; 2019. 256p.), o qual compreende três etapas distintas e interligadas entre si: 1) Investigação temática: consiste no diálogo inicial que visa à identificação dos temas geradores extraídos da realidade dos participantes; 2) Codificação e descodificação: ocorre a contextualização e problematização dos temas geradores, ampliando os conhecimentos; 3) Desvelamento crítico: processo de ação-reflexão, tomada de consciência da real situação, com vistas à transformação do contexto vivido(88 Heidemann ITSB, Dalmolin IS, Rumor PCF, Cypriano CC, Costa MFBNA, Durand MK. Reflections on Paulo Freire’s Research Itinerary: contribuitions to health. Texto Contexto Enferm. 2017;26(e0680017). https://doi.org/10.1590/0104-07072017000680017
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).

Cenário do estudo

O estudo foi desenvolvido em quatro municípios da Região da Grande Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Os cenários envolvidos foram a Rede de Atenção à Saúde (RAS), na Atenção Primária, por ser considerada a porta de entrada para o Sistema Único de Saúde (SUS), e na Atenção Secundária, em dois serviços clínicos especializados no atendimento às dificuldades de aprendizagem. Na Rede de Educação Básica, contemplou uma instituição de cada município que atendia escolares vinculados aos anos iniciais do ensino fundamental, além de uma instituição estadual e uma federal, incluídas por serem referência na área educacional da referida região.

Fonte de dados

Contou-se com a participação de 45 profissionais, sendo 27 da saúde e 18 da educação. Como critérios de inclusão, consideraram-se os profissionais acima de 18 anos, atuantes na prática assistencial e/ou gerencial junto às crianças com dificuldades de aprendizagem, independentemente do tipo de vínculo empregatício. Foram excluídos os profissionais com lotação inferior a um ano, ou que estivessem afastados no período da coleta de dados. O processo de seleção ocorreu por conveniência, em virtude da aproximação com o problema de pesquisa, sendo indicados pelos responsáveis de cada instituição. Todos os profissionais convidados aceitaram participar do estudo, não havendo recusas.

Coleta, organização e análise dos dados

A coleta de dados deu-se no período entre novembro de 2020 e abril de 2021. Em virtude das barreiras impostas pelo contexto pandêmico da COVID-19, como a necessidade de distanciamento social e a sobrecarga de atividades do setor da saúde e educação, primeiramente realizaram-se entrevistas individuais do tipo abertas com cada profissional, buscando-se levantar os temas geradores para posterior discussão no Círculo de Cultura Virtual (CCV).

As entrevistas foram agendadas previamente por contato telefônico, e realizadas de forma presencial ou virtual, à escolha de cada profissional, conduzidas por uma pesquisadora enfermeira com experiência nesse tipo de abordagem, com duração aproximada de uma hora. O diálogo foi desencadeado a partir de questões-guias que abordaram dificuldade de aprendizagem escolar e a relação com os determinantes sociais das crianças e suas famílias: I) O que você entende por dificuldade de aprendizagem escolar? II) Quais fatores podem interferir no processo de aprendizagem escolar? III) Como você costuma atuar diante de crianças com dificuldade de aprendizagem escolar? IV) Há alguma forma de encaminhamento/segmento para esta situação? V) Você percebe ou identifica relação entre a saúde e a dificuldade de aprendizagem? De que maneira? VI) O que você entende pelo conceito de determinantes sociais da saúde?

Posteriormente, elaborou-se um quadro em arquivo digital com trechos que refletiam os temas geradores extraídos a partir da realidade dos profissionais, constituindo a investigação temática. Essa etapa representou o primeiro momento do itinerário freireano.

As demais etapas ocorreram no Círculo de Cultura, termo criado por Paulo Freire, que se configura pelo encontro entre pessoas ou grupos para refletirem em torno de temas emergentes, com vistas à construção de uma percepção profunda da realidade e à elaboração de estratégias coletivas de intervenção(99 Antonini FO, Heidemann ITSB. Paulo Freire’s research itinerary: contributions for promoting health in the teaching profession. Rev Bras Enferm. 2020;73(4):e20190164. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0164
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). Para seu desenvolvimento, contataram-se, de modo remoto, os profissionais que participaram da primeira etapa, porém, em virtude da incompatibilidade de horários e/ou férias e licenças, somente 21 profissionais puderam estar presentes, sendo 10 da saúde e 11 da educação. O CCV ocorreu em uma única sessão, com duração de aproximadamente duas horas, mediado por uma enfermeira pesquisadora, com suporte de duas facilitadoras com experiência na condução desse tipo de estratégia.

Para aproximar os participantes, realizou-se uma breve apresentação, e, na sequência, contextualizou-se a proposta metodológica que, visando torná-la mais lúdica e concreta, procedeu-se à analogia do Itinerário freireano com o processo de escrita de um livro, que depende de diferentes fases para sua produção, que são interdependentes: a investigação temática correspondeu ao levantamento de ideias sobre a história a ser narrada; a codificação e descodificação correspondeu à redação do conteúdo; e o desvelamento crítico correspondeu à obra final para ser publicada.

Desse modo, foram projetados, na tela do computador, de modo compartilhado, os temas geradores levantados nas entrevistas realizadas, a fim de validar os seus significados, promovendo o processo de ação-reflexão. Para a fase da codificação e descodificação, segunda etapa do Itinerário de Pesquisa, a mediadora instigou o debate dialogando acerca da dificuldade de aprendizagem infantil, relacionando-a com as temáticas levantadas nas entrevistas. A partir disso, foram codificados e descodificados três temas geradores, que serão apresentados e discutidos a seguir.

Assim, os participantes vivenciaram o último momento do Itinerário freireano, o desvelamento crítico, no qual foi possível (re)significar os três temas geradores, relacionando a percepção sobre a dificuldade de aprendizagem escolar. Discutiram-se no CCV as reais possibilidades de transformar a realidade vivida, que, mediante um processo de ação-reflexão, socializaram novas perspectivas para o enfrentamento das dificuldades de aprendizagem no contexto em que atuavam.

O registro das informações deu-se por meio de gravação de áudio nas entrevistas presenciais por um aplicativo disponível no smartphone, bem como nos encontros virtuais, por meio do recurso audiovisual disponível na plataforma do Google Meet®. Na sequência, as informações foram transcritas, organizadas com auxílio de um editor de texto do programa Google Drive® e armazenadas em pastas digitais.

A análise dos temas ocorreu concomitante ao desenvolvimento do CCV, durante a realização das etapas do Itinerário de Pesquisa, que prevê esse processo analítico contínuo, o qual ocorre com a interação de todos os participantes por meio da leitura, reflexão e interpretação dos temas emergentes. O estudo seguiu as normas dos COnsolidated criteria for REporting Qualitative research (COREQ).

RESULTADOS

Dos 45 profissionais participantes, 18 atuavam na área da educação e 27 na saúde, em sua maioria do sexo feminino (41). A faixa etária predominante foi de 41 a 50 anos, sendo 31 deles com pós-graduação em nível de especialização, cinco com mestrado, dois com doutorado e sete com graduação. Em relação à profissão, 15 eram pedagogos, sete, médicos, cinco, enfermeiros, dois, técnicos de enfermagem, cinco, assistentes sociais, três, fonoaudiólogos, três, odontólogo e três, psicólogo.

Os profissionais elegeram três temas geradores para discussão no CCV, sendo: I) (In)visibilidade da dificuldade de aprendizagem; II) Estratégias e recursos do setor educacional; III) Busca pela resolutividade no setor saúde.

No tema (In)visibilidade da dificuldade de aprendizagem, evidenciou-se que os profissionais possuíam diferentes concepções acerca do assunto, sendo compreendido como a criança que não consegue ter o desenvolvimento esperado para certa idade ou ano escolar, ou que demora um pouco mais que os outros para aprender, mas que não possui diagnóstico, ou ainda que apresenta dificuldade na leitura ou na escrita ou em uma disciplina específica. Nesse sentido, dialogaram sobre a necessidade de diferenciar a dificuldade e os transtornos de aprendizagem, que estão relacionados aos aspectos neurobiológicos da criança, os quais, muitas vezes, são considerados sinônimos pelos profissionais.

As dificuldades são problemas transitórios. A criança pode iniciar o ano com uma certa dificuldade e, a partir da nossa observação, da nossa avaliação em sala de aula, a gente percebe, e a gente atua mais diretamente com ela, investiga a possível causa. Aí ela vai se transformando, avançando e vai melhorando a sua participação, a sua aprendizagem. Os transtornos são algo mais específicos, uma dificuldade muito acentuada, que tem até um fator neurológico, uma disfunção no sistema nervoso central. (PE10)

Alguns profissionais destacaram a questão pedagógica/ metodológica, em que o processo de escolarização, muitas vezes, não é considerado. Abordaram que ocorre a promoção automática dos estudantes nos primeiros anos do ensino fundamental, compreendido pelo ciclo de alfabetização, sendo que a percepção da dificuldade de aprendizagem emerge a partir do terceiro ano escolar.

Nós temos a escola como um ciclo de alfabetização de promoção automática. Então, o aluno não reprova no primeiro, no segundo ano, vai reprovar lá no terceiro ano, que é onde está dando o “bum”. E a criança entra com seis anos de idade no primeiro ano. No terceiro, ela vai estar com oito, que é onde essas dificuldades serão mais latentes. (PS24)

Além disso, identificam dificuldade no público escolar infantil a partir da observação do professor em sala de aula ou de outros membros da equipe pedagógica. Ocasionalmente, esse olhar parte da própria família ou dos profissionais de saúde.

Às vezes, por exemplo, a escola que encaminha pedindo uma avaliação especializada ou pedindo um diagnóstico, ou a família que percebe que tá com dificuldade vem com essa queixa, e às vezes a gente mesmo assim na consulta acaba fazendo algumas percepções. (PS3)

Apontaram que os estudantes podem demonstrar sinais distintos para expressar a dificuldade, que podem passar despercebidos, confundidos com questões neurobiológicas da criança ou mesmo com mau comportamento:

Aquela criança que ela não consegue ficar concentrada, ter atenção em sala de aula, tá sempre se movimentando, ou então é uma criança apática. Também aquelas que são as crianças boazinhas para alguns professores, que não se identificam em sala de aula com o grupo, que são quietinhas, e ali elas ficam quietinha, aí não são lembradas, essas me preocupam muito. (PE16)

Destacaram que a dificuldade de aprendizagem é uma situação comum nas salas de aula das escolas da rede pública de ensino e uma queixa frequente nos serviços de saúde, principalmente nos escolares dos primeiros anos do ensino fundamental. No entanto, há um desconhecimento sobre a real proporção dessa demanda.

Na verdade, a gente não tem noção da demanda, dificulta muito organizar essa situação. A gente tem falas, fala da educação, fala de um Centro de Educação Infantil, a fala de um outro serviço. Os pediatras que vêm com essa demanda, mas ninguém nos traz assim [...] a gente teria que talvez ver um jeito para poder ter noção dessa demanda específica. (PS19)

No segundo tema gerador, Estratégias e recursos do setor educacional, dialogou-se que a criança necessita de intervenções que visem ao desenvolvimento do seu aprendizado. Geralmente, o professor é o principal responsável pela abordagem inicial. Nesse sentido, mencionaram que buscam uma mudança de estratégia de aprendizagem, de método de ensino em sala de aula e/ou a realização de atendimento de forma individual.

No primeiro trimestre, eu faço essa sondagem, daí quem eu já vou conseguindo alcançar sobre o meu olhar, o que ele precisa para melhorar, eu já vou ajudando. Então, lá na minha sala, eu estou trabalhando assim. Eu tenho amiguinho que não sabe nem o “A”, esse amiguinho vai fazer essa atividade do “A”. Mas aquele que está alfabetizado, eu não vou dar atividade do “A”, eu tenho outra leitura para essa criança na minha aula. (PE1)

Entretanto, os participantes ressaltaram que nem sempre isso acontece, sobretudo pela sobrecarga de atividades, número excessivo de estudantes nas turmas e devido à falta de capacitação para manejo das situações. Em caso de não ocorrer evolução diante das intervenções realizadas em sala de aula, em um segundo momento, desvelaram que se discutem os casos nas reuniões pedagógicas. Essas são debatidas com outros professores que atendem a criança e/ou diretamente com o orientador educacional, com vistas a novas intervenções, muitas vezes envolvendo a família nesse processo.

As professoras do primeiro ao quinto ano me solicitam bastante, porque às vezes são três, quatro alunos dentro de sala com dificuldade. Eu tento uma vez na semana estar dando um apoio, porque eu sou sozinha na escola, para ver qual dificuldade a criança está apresentando ali, o que está acontecendo. Trabalho com a criança, falo com a professora pra ter uma interação maior entre nós em relação à criança, e quando chamo a família ou o responsável para conversar, vejo o que que está acontecendo e peço para ver se podem contribuir [...] não podemos jogar a responsabilidade toda pra família. (PE2)

Nas escolas em que há o recurso do apoio pedagógico, referem que essa abordagem realizada de forma mais específica tem favorecido o aprendizado de muitos destes estudantes. Além disso, também mencionaram a importância dos projetos sociais comunitários, que frequentemente dispõem de atividades desse cunho no contraturno escolar.

No início do ano, eu faço uma avaliação diagnóstica para saber aonde que tá a dificuldade de cada criança, e depois para poder separar e planejar as aulas. Junto com a professora, a gente vai selecionando os alunos que precisam de um reforço, precisa de uma orientação. Ele visa ajudar as crianças que estão com dificuldades de aprendizagem a evitar a reprovação, e os pais precisam autorizar. Então, o aluno vai para escola, e duas vezes na semana têm reforço de alfabetização. (PE17)

Alegaram que, em sua maioria, a rede de educação pública não conta com uma equipe multiprofissional, seja interna ou externa à escola, para suporte aos estudantes e professores. Quando disponível, o trabalho conjunto de especialistas na educação oferece maiores oportunidades educacionais para as crianças.

Nós temos psicopedagoga, pedagoga, fonoaudiologia e psicóloga. A demanda é da escola, atendemos no contraturno as crianças que estão com alguma dificuldade na sala de aula. Inicialmente, fazemos a anamnese, conversa e depois a investigação. Temos uma avaliação padrão da psicopedagogia e, dependendo, realizamos as intervenções, com atividades lúdicas que vão auxiliá-la a desenvolver. É um trabalho paralelo, não é um reforço escolar. (PE6)

Em outras situações, esse suporte geralmente limita-se a serviços clínicos, como avaliação e atendimentos diretos aos estudantes. Não obstante, relataram a necessidade de intervenções coletivas na própria instituição, que poderiam colaborar.

Como fono da escola, teriam mais ações coletivas de promoção da aprendizagem, que devo dizer, é difícil de realizar, porque os profissionais da escola, no geral, esperam de mim que eu identifique as crianças que têm alteração para encaminhar para algum serviço fora ali da escola. Isso é difícil, eu não vejo porque também só encaminhar esses estudantes. [...] mas de rotina, eu vou na sala de aula, observo alguns estudantes que os professores pedem, um olhar mais atento, participo das reuniões de conselho de classe, de reuniões de série, no intuito de discutir os casos, e, na maioria das vezes, eu faço muito esse papel de encaminhamento, converso, faço orientações para as famílias. (PE13)

Citaram ainda que a presença da equipe multiprofissional geralmente está atrelada à educação especial, com vistas a atender os estudantes com algum tipo de deficiência ou transtorno específico. No entanto, afirmaram a importância de priorizar abordagens de inclusão a todos as crianças que apresentam dificuldades de aprendizagem no âmbito escolar.

A gente iniciou um projeto esse ano, que é uma oficina de linguagem para alguns estudantes que não têm o diagnóstico. Talvez não tenham nenhum desses dos formais, mas que apresentam bastante dificuldade, especialmente na leitura, na escrita, na resolução de problemas na área de matemática [...] mas também tentar flexibilizar as ações junto a algumas crianças, que têm várias dificuldades, alguns são multi-repetentes, então a gente tem uma preocupação de também dar uma assistência a essas crianças. (PE12)

No terceiro tema gerador, Busca pela resolutividade no setor saúde, os profissionais da educação informaram que, nos casos em que as abordagens realizadas são insuficientes e/ou quando as necessidades da criança ultrapassam os recursos disponíveis no setor, encaminham as famílias para buscar atendimento junto aos serviços de saúde. Mencionaram a importância da realização de uma avaliação neurológica na tentativa de encontrar soluções para a não aprendizagem infantil.

Às vezes, é muito além da dificuldade realmente, do que a gente pode fazer em sala. Aí eu converso com a orientadora, chamamos a família, fazemos um relatório e pedimos que vá na unidade de saúde para passar pelo clínico para tentar um neurologista, daí o neuro que vai conseguir fazer os outros encaminhamentos que a criança precisa realmente. (PE8)

A porta de entrada dos serviços de saúde na rede pública normalmente ocorre pela Atenção Primária à Saúde, sendo recebidas as demandas das dificuldades de aprendizagem dos estudantes nas consultas ou nos atendimentos de demanda espontânea. Neste contexto, ao buscarem a resolução da questão a partir do setor saúde, inferem que seja um fator individual da criança que esteja influenciando no processo, no entanto, relataram preocupação com esta conduta, haja vista que pode acarretar um diagnóstico precipitado ou até mesmo errôneo:

Eu percebo que existe um movimento muito grande, uma angústia de se chegar a um diagnóstico por conta da dificuldade de aprendizagem, de se ter um dado ali concreto para poder se fazer alguma coisa. E aí, depois que chega, o que que a gente vai fazer com isso? Pra mim, o movimento é inverso. A gente não precisa rotular uma criança em desenvolvimento pra poder fazer alguma coisa, porque a gente pode ofertar um modelo de educação mais inclusivo que atenda às especificidades e às particularidades das famílias, isso num âmbito cultural, social, enfim, com o que ela demanda, sem necessariamente apressar um diagnóstico. Porque aquela criança pode estar passando por várias situações que vão influenciar naquele momento, mas depois ela vai desenvolver a aprendizagem. E o que a gente mais vê é diagnóstico equivocado de autismo, de déficit de atenção. (PE11)

Ademais, dialogaram sobre a crescente tendência à medicalização das crianças que apresentam dificuldades no aprendizado, ou não se comportam de forma considerada adequada pela escola. Fato que desvia e reduz o foco apenas à dimensão biológica infantil, e que pode acarretar outras consequências negativas ao estudante.

Eu trabalho aqui muito com as crianças da escola e vejo eles passando de ano em ano sem a questão da alfabetização. Costumo conversar com as famílias porque depois eles vão lá na Unidade de Saúde querendo neuro ou remédio porque a criança não aprende. Mas a verdade é que o medicamento não substitui processos, e o que a gente vê é que as crianças vão passando de um ano para o outro sem os conteúdos básicos, e aí chega lá na frente entendendo que tem uma dislexia, um problema de aprendizagem. (PS17)

Alertaram que as questões neurológicas, como os transtornos de aprendizagem, são problemas existentes, no entanto ocorrem com menor frequência quando comparado ao número de encaminhamentos recebidos. Assim, destacaram a importância de as avaliações serem realizadas por equipes multiprofissionais, seja nas reuniões de matriciamento ou através do Programa Saúde na Escola (PSE).

Era uma prioridade as discussões das situações [de dificuldade de aprendizagem] serem em reuniões do PSE para tentar primeiro atender bastante às demandas no território, e quando extrapolasse e a gente não desse conta desse atendimento, aí sim encaminharia para outra complexidade. [...] era feita uma triagem do que a escola já tinha feito em relação à educação, e a gente enquanto equipe de saúde fazia essa triagem clínica, oftalmológica, de audição, também de conflitos familiares, presença de violências, negligências, falta de apoio, falta de estímulo. (PS9)

Nesse sentido, desvelaram que, ao ampliar o olhar sobre as situações que influenciam a aprendizagem dos estudantes, os participantes têm constatado que, para além dos aspectos pedagógicos e biológicos, deve ser considerado o fator social. Ficou evidente que os profissionais percebem ser premente uma intervenção individualizada para cada estudante com dificuldade de aprendizagem escolar, de modo articulado, entre os setores da saúde e da educação, para, assim, buscar maior resolutividade a essa demanda.

DISCUSSÃO

Existe certa imprecisão nos conceitos relacionados à dificuldade e aos distúrbios/transtornos de aprendizagem entre profissionais. Isso propicia a utilização dos termos de forma inadequada, sem que haja, muitas vezes, distinção do significado. A ausência de consenso sobre a sua compreensão e definição é confirmada na literatura, sendo que o ponto principal dessa discordância reside no fato de que a população com dificuldade de aprendizagem apresenta-se, em geral, de forma muito heterogênea(1010 Moro LGB, Carlesso JPP. Difficulties and Distributions of Learning: in the first years of schooling. Res, Soc Develop. 2019;8(5):e4385966. https://doi.org/10.33448/rsd-v8i5.966
https://doi.org/10.33448/rsd-v8i5.966...
).

Além disso, embora se reconheça a multifatorialidade envolta nesse fenômeno, a responsabilização pela situação geralmente recai sobre o estudante, associando-se a um problema biológico, emocional, ou decorrente dos aspectos sociais, estruturais e organizacionais da sua família, ou seja, fatores externos à escola, conforme observado em estudos(44 Lopes TSS, Rossato M. A dimensão subjetiva da queixa de dificuldades de aprendizagem escolar. Psicol. Esc. Educ. [Internet]. 2018 [cited 2022 Dec 11]; 22(2):385-94. Available from: https://doi.org/10.1590/2175-35392018011363
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,1111 Medeiros ERP, Galvão ES. Experience and professional training in the School Health Program. Rev Esc Enferm USP. 2018;52(e03378). https://doi.org/10.1590/S1980-220X2017048603378
https://doi.org/10.1590/S1980-220X201704...
). Essa tendência minimiza a participação das relações sociais, políticas, econômicas e institucionais na produção da queixa escolar, desconsiderando a interferência do ensino, mecanismos e funcionamentos escolares(66 Benedetti MD, Bezerra DMMM, Telles CG, Lima LAG. Medicalização e educação: análise de processos de atendimento em queixa escolar. Psicol Esc Educ. 2018;22(1):73-81. https://doi.org/10.1590/2175-35392018010144
https://doi.org/10.1590/2175-35392018010...
).

Ressalta-se que as práticas pedagógicas e políticas educacionais apareceram, com menor destaque, como corroboradoras dessa situação, o que indica um movimento de rompimento dessa centralidade na criança e sua família(1111 Medeiros ERP, Galvão ES. Experience and professional training in the School Health Program. Rev Esc Enferm USP. 2018;52(e03378). https://doi.org/10.1590/S1980-220X2017048603378
https://doi.org/10.1590/S1980-220X201704...
). As fragilidades da política de progressão continuada, que visa à não retenção das crianças no primeiro ciclo do ensino fundamental, favorecem o acesso e a permanência dos estudantes na escola, sem grandes distorções entre idade-série. Apresentam-se desprovidas de medidas pedagógicas fundamentais para o processo ensino-aprendizagem, como tempos e metodologias diferenciados, reorganização dos conteúdos, número reduzido de estudantes por sala de aula, atendimento em pequenos grupos, fora do horário de aula, para crianças com atraso ou dificuldades de aprendizagem(1212 Massena JH. Práticas avaliativas e progressão continuada na rede municipal de Eldorado do Sul/RS: a ênfase está nas aprendizagens dos alunos? In: Rodrigues MBC, Rocha FM, Massena JH. Pesquisas e proposições pedagógico-curriculares na escolarização inicial da educação básica [Internet]. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2017 [cited 2022 Nov 21], 324 p. Available from: https://books.scielo.org/id/3vrq5/pdf/rodrigues-9788538604723.pdf
https://books.scielo.org/id/3vrq5/pdf/ro...
).

Tal análise pode explicar a relação das queixas de dificuldades de aprendizagem manifestarem-se em maior proporção nas crianças que cursam os primeiros anos do ensino fundamental, com a faixa etária dos sete aos dez anos, sendo que o maior percentual ocorre no terceiro ano, como destacado pelos participantes deste estudo. Além disso, os resultados evidenciaram o aumento expressivo do número de crianças encaminhadas para atendimento de saúde e profissionais especializados, processo cada vez mais frequente na atualidade, originadas prioritariamente da rede pública de educação, sendo o professor o principal informante, como também verificado em estudos que abordam esse tema(66 Benedetti MD, Bezerra DMMM, Telles CG, Lima LAG. Medicalização e educação: análise de processos de atendimento em queixa escolar. Psicol Esc Educ. 2018;22(1):73-81. https://doi.org/10.1590/2175-35392018010144
https://doi.org/10.1590/2175-35392018010...
).

Frente a essas considerações, observou-se que, apesar dos avanços teórico-metodológicos propostos em novas concepções sobre as queixas escolares, essas ainda não se fazem suficientemente presentes na prática desses profissionais(66 Benedetti MD, Bezerra DMMM, Telles CG, Lima LAG. Medicalização e educação: análise de processos de atendimento em queixa escolar. Psicol Esc Educ. 2018;22(1):73-81. https://doi.org/10.1590/2175-35392018010144
https://doi.org/10.1590/2175-35392018010...
,1111 Medeiros ERP, Galvão ES. Experience and professional training in the School Health Program. Rev Esc Enferm USP. 2018;52(e03378). https://doi.org/10.1590/S1980-220X2017048603378
https://doi.org/10.1590/S1980-220X201704...
). A escola tem se apresentado desinteressante, e as estratégias de ensino utilizadas não têm sido adequadas às expectativas dos estudantes, o que acaba frustrando os profissionais implicados em fazer ou pensar diferente. Com turmas superlotadas, remuneração incompatível com a função, condições laborais inadequadas, tem-se uma realidade profissional desfavorável para o educador realizar o seu trabalho(1313 Schweitzer L, Souza SV. Os sentidos atribuídos à queixa escolar por profissionais de escolas públicas municipais. Psicol Esc Educ. 2018;22(3):565-72. https://doi.org/10.1590/2175-35392018034949
https://doi.org/10.1590/2175-35392018034...
).

A temática da dificuldade de aprendizagem parece distanciada dos estudos e da prática realizados pelos educadores, muitas vezes despreparados para o acolhimento dos escolares que enfrentam essa situação, o que demonstra a relevância da discussão na formação dos profissionais. Além disso, há ausência de investimentos em setores importantes, políticas voltadas para a educação continuada, processos inclusivos e reestruturação física do espaço escolar(44 Lopes TSS, Rossato M. A dimensão subjetiva da queixa de dificuldades de aprendizagem escolar. Psicol. Esc. Educ. [Internet]. 2018 [cited 2022 Dec 11]; 22(2):385-94. Available from: https://doi.org/10.1590/2175-35392018011363
https://doi.org/10.1590/2175-35392018011...
).

Entretanto, embora se considere um avanço a percepção de que as metodologias de ensino utilizadas pelos professores em sala de aula também produzem dificuldades de aprendizagem e, consequentemente, o fracasso escolar, essa visão é questionada por autores que ressaltam que sair da dimensão da culpabilização do estudante e da família para a responsabilização do professor também se caracteriza como uma visão reducionista do fenômeno. As políticas educacionais e o projeto social brasileiro devem ser considerados na compreensão do fracasso escolar(1414 Pozzobon M, Mahendra F, Marin A. Renomeando o fracasso escolar. Psicol Esc Educ. 2017;21(3):387-96. https://doi.org/10.1590/2175-3539201702131120
https://doi.org/10.1590/2175-35392017021...
).

Urge a revisão do modelo pedagógico conteudista que se encontra ultrapassado e não visa à criticidade dos estudantes. Identificaram-se questões estruturais que precisam de atenção, pois as escolas não recebem o apoio necessário do poder público, como a oferta de programas de reforço extraclasse a esses estudantes, bem como de profissionais para suporte aos professores e alunos, tais como psicólogos, pedagogos, psicopedagogos e orientadores educacionais(1111 Medeiros ERP, Galvão ES. Experience and professional training in the School Health Program. Rev Esc Enferm USP. 2018;52(e03378). https://doi.org/10.1590/S1980-220X2017048603378
https://doi.org/10.1590/S1980-220X201704...
).

Apesar do crescente número de pesquisas nas áreas da psicologia e da educação que reafirmam a importância de identificar questões que extrapolam a dinâmica individual e familiar das crianças encaminhadas, persiste uma tendência, por parte dos profissionais que as atendem, de tratar os problemas escolares como de origem exclusivamente biológica ou psicológica(66 Benedetti MD, Bezerra DMMM, Telles CG, Lima LAG. Medicalização e educação: análise de processos de atendimento em queixa escolar. Psicol Esc Educ. 2018;22(1):73-81. https://doi.org/10.1590/2175-35392018010144
https://doi.org/10.1590/2175-35392018010...
). Atribuem um papel central ao diagnóstico como elemento determinante para o encaminhamento das dificuldades de aprendizagem, depositando sua resolutividade no setor saúde(1414 Pozzobon M, Mahendra F, Marin A. Renomeando o fracasso escolar. Psicol Esc Educ. 2017;21(3):387-96. https://doi.org/10.1590/2175-3539201702131120
https://doi.org/10.1590/2175-35392017021...
).

Por não existirem causas médicas reais para o fracasso escolar, observa-se uma construção artificial de falsas relações entre doença e não aprendizagem centradas no indivíduo(1313 Schweitzer L, Souza SV. Os sentidos atribuídos à queixa escolar por profissionais de escolas públicas municipais. Psicol Esc Educ. 2018;22(3):565-72. https://doi.org/10.1590/2175-35392018034949
https://doi.org/10.1590/2175-35392018034...
). A naturalização desse processo e o fluxo contínuo de produção de demandas para a área da saúde podem sinalizar uma transferência de responsabilidades de uma área a outra como forma de simplificar problemas oriundos de um contexto certamente repleto de questões a serem reavaliadas e ressignificadas, como anteriormente apontado(66 Benedetti MD, Bezerra DMMM, Telles CG, Lima LAG. Medicalização e educação: análise de processos de atendimento em queixa escolar. Psicol Esc Educ. 2018;22(1):73-81. https://doi.org/10.1590/2175-35392018010144
https://doi.org/10.1590/2175-35392018010...
).

As tentativas de lidar com casos de fracasso escolar como se eles fossem uma patologia são exemplos de medicalização, ou seja, um recurso utilizado para transformar questões de origem eminentemente social e política em demandas médicas(66 Benedetti MD, Bezerra DMMM, Telles CG, Lima LAG. Medicalização e educação: análise de processos de atendimento em queixa escolar. Psicol Esc Educ. 2018;22(1):73-81. https://doi.org/10.1590/2175-35392018010144
https://doi.org/10.1590/2175-35392018010...
). Isso representa um retrocesso, visto que a ciência tem apontado a ineficácia da abordagem individual e medicamentosa das dificuldades de aprendizagem(1111 Medeiros ERP, Galvão ES. Experience and professional training in the School Health Program. Rev Esc Enferm USP. 2018;52(e03378). https://doi.org/10.1590/S1980-220X2017048603378
https://doi.org/10.1590/S1980-220X201704...
).

A eficácia do ensino e a dinâmica institucional, muitas vezes, nem chegam a ser questionadas pelos profissionais de saúde, porque sucumbem a uma análise superficial da situação das crianças e de suas famílias, especialmente aquelas provenientes das camadas mais empobrecidas, usuárias de uma escola precarizada(66 Benedetti MD, Bezerra DMMM, Telles CG, Lima LAG. Medicalização e educação: análise de processos de atendimento em queixa escolar. Psicol Esc Educ. 2018;22(1):73-81. https://doi.org/10.1590/2175-35392018010144
https://doi.org/10.1590/2175-35392018010...
). À medida que se assume uma atuação que valoriza o processo de medicalização, trata-se apenas a pessoa e afirma-se que o problema existe somente nela, o que gera uma desresponsabilização das diversas instâncias de poder produtoras e perpetuadoras de tais problemas. No entanto, a compreensão de fatores macroestruturais (sociais, políticos) é fundamental para se entender a complexidade das múltiplas determinações desse fenômeno(1111 Medeiros ERP, Galvão ES. Experience and professional training in the School Health Program. Rev Esc Enferm USP. 2018;52(e03378). https://doi.org/10.1590/S1980-220X2017048603378
https://doi.org/10.1590/S1980-220X201704...
).

Por outro lado, os dados apontaram que alguns profissionais têm incorporado uma perspectiva crítica, trabalhando no sentido de desconstruir estigmas e preconceitos em relação aos estudantes encaminhados. Assim, foi possível detectar a presença de uma compreensão crítica da queixa escolar implicando um atendimento que visa a desmistificar e/ou problematizar o diagnóstico, fundamentalmente em parceria com a escola, o que é fundamental para a resolutividade das dificuldades de aprendizagem(1515 Viegas LS, Freire KES, Bomfim FB. Atendimento a queixa escolar nos serviços públicos de saúde mental da Bahia. Psicol Esc Educ. 2018;22(1):133-40. https://doi.org/10.1590/2175-35392018013260
https://doi.org/10.1590/2175-35392018013...
). Portanto, faz-se necessário que educadores e profissionais de saúde sejam instrumentalizados para a compreensão das dificuldades de aprendizagem da criança a partir de uma perspectiva ética e política, a fim de desconstruir o discurso biomédico que tende a inserir-se no cotidiano escolar(1111 Medeiros ERP, Galvão ES. Experience and professional training in the School Health Program. Rev Esc Enferm USP. 2018;52(e03378). https://doi.org/10.1590/S1980-220X2017048603378
https://doi.org/10.1590/S1980-220X201704...
).

Propõe-se a valorização das múltiplas aprendizagens e das diferentes experiências escolares, bem como a importância de a escola e os professores reconhecerem a realidade dos estudantes, favorecendo o direito às diferenças e singularidades e evitando rótulos e marginalizações(1414 Pozzobon M, Mahendra F, Marin A. Renomeando o fracasso escolar. Psicol Esc Educ. 2017;21(3):387-96. https://doi.org/10.1590/2175-3539201702131120
https://doi.org/10.1590/2175-35392017021...
). Compreende-se que os ideais de uma escola democrática e laica, ou seja, de um saber de qualidade para todos, constituem-se um objetivo ainda a ser alcançado por nossa sociedade(44 Lopes TSS, Rossato M. A dimensão subjetiva da queixa de dificuldades de aprendizagem escolar. Psicol. Esc. Educ. [Internet]. 2018 [cited 2022 Dec 11]; 22(2):385-94. Available from: https://doi.org/10.1590/2175-35392018011363
https://doi.org/10.1590/2175-35392018011...
).

Limitações do estudo

As limitações deste estudo correspondem à não generalização dos dados, por se tratar de uma realidade regional do estado de Santa Catarina, Brasil. Cabe mencionar que, devido às restrições sanitárias impostas pelo contexto pandêmico da COVID-19, foi inviabilizada a realização de observação nos locais de atuação para acompanhamento das atividades, principalmente do campo educacional.

Contribuições para a saúde e educação

Diante das reflexões, urge repensar o modo de ensinar, considerando que cada comunidade apresenta um perfil diferente, características e demandas específicas, exigindo do professor certa adequação. Salientam-se as contribuições para a saúde escolar, haja vista o papel importante que os profissionais podem desempenhar com ações individuais e coletivas de promoção da saúde e bem-estar biopsicossocial aos estudantes, no intuito de favorecer o pleno desenvolvimento e o sucesso acadêmico infantil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo evidenciou que a dificuldade de aprendizagem é uma situação influenciada por diversos fatores, porém o olhar dos profissionais da saúde e da educação tende a voltar-se para a responsabilização prioritariamente ao estudante e/ou sua família, e, eventualmente, ao contexto escolar. Nesse sentido, tem-se atribuído uma característica patológica a essa demanda, buscando, junto aos serviços de saúde, estratégias medicalizantes para solucioná-la.

A percepção de que fatores estruturais, como os sociais, também determina a manutenção do fenômeno, além da necessidade de se investir em políticas educacionais de formação acadêmica e de aperfeiçoamento nos serviços surgiram, mas de forma incipientes. Nessa direção, considera-se oportuno o aprofundamento dessa temática em outras pesquisas, envolvendo o entendimento dos estudantes e de suas famílias quanto à queixa escolar, garantindo, assim, a ampliação de saberes na complexidade que o fenômeno demanda.

  • FOMENTO
    Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq).

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Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Hugo Fernandes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2023
  • Aceito
    07 Nov 2023
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