Acessibilidade / Reportar erro

Dor crônica após herniorrafia inguinal: percepções de crianças e adolescentes* * Extraído da tese: “Dor crônica pós-operatória em crianças submetidas à herniorrafia inguinal: uma coorte prospectiva”, Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Enfermagem, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, 2019.

RESUMO

Objetivo:

Analisar as percepções de crianças e adolescentes sobre dor crônica pós-operatória, vivenciada durante três anos após herniorrafia inguinal ambulatorial.

Método:

Estudo descritivo, exploratório e de abordagem qualitativa. Crianças e adolescentes que referiram dor crônica pós-operatória foram convidados a partir de pesquisa quantitativa anterior. As entrevistas com roteiro semiestruturado foram gravadas, transcritas e codificadas segundo a análise de conteúdo, modalidade temática.

Resultados:

Participaram 20 crianças e adolescentes. Eles atribuíram diferentes significados à dor crônica pós-operatória persistente, configurando uma experiência ruim, incômoda, intermitente e limitante, que isola socialmente, interfere nas atividades cotidianas, escolares e de lazer. O relato de dor foi subestimado e negligenciado pela equipe de saúde, familiares, professores e amigos das crianças e adolescentes.

Conclusão:

Crianças e adolescentes reconhecem a dor pós-operatória como dor persistente e parecem perceber que seu relato é subestimado e negligenciado pelos pais e professores. Adicionalmente, sentem-se responsáveis pela presença da dor que afeta dimensões psicológicas e sociais e impõe prejuízos e medo que remete ao retorno da hérnia e à morte.

DESCRITORES
Criança; Adolescente; Dor Crônica; Dor Pós-Operatória; Hérnia Inguinal; Enfermagem Pediátrica

ABSTRACT

Objective:

To analyze the perceptions of children and adolescents about chronic postsurgical pain, experienced for three years after outpatient inguinal herniorrhaphy.

Method:

Descriptive, exploratory study, with a qualitative approach. Children and adolescents who reported chronic postsurgical pain were invited from previous quantitative research. The interviews with a semi-structured script were recorded, transcribed, and coded according to content analysis, thematic modality.

Results:

Twenty children and teenagers participated. They attributed different meanings to chronic persistent postsurgical pain, configuring a bad, uncomfortable, intermittent and limiting experience, which socially isolates, interferes with daily, school, and leisure activities. The report of pain was underestimated and neglected by the children’s and adolescents’ healthcare team, family members, teachers, and friends.

Conclusion:

Children and adolescents recognize postsurgical pain as persistent pain and seem to perceive that their report is underestimated and neglected by parents and teachers. Additionally, they feel responsible for the presence of pain that affects psychological and social dimensions and imposes damage and fear that leads to the return of the hernia and to death.

DESCRIPTORS
Child; Adolescent; Chronic Pain; Pain; Postoperative; Hernia; Inguinal; Pediatric Nursing

RESUMEN

Objetivo:

Analizar las percepciones de niños y adolescentes sobre dolor crónica posoperatoria, vivenciada durante tres años tras hernia inguinal ambulatoria.

Método:

Estudio descriptivo, exploratorio y de abordaje cualitativo. Niños y adolescentes que relataron dolor crónico posoperatorio fueron invitados desde investigación cualitativa anterior. Las entrevistas con texto semiestructurado fueron grabadas, transcriptas y codificadas según el análisis de contenido, modalidad temática.

Resultados:

Participaron 20 niños y adolescentes. Ellos atribuyeron diferentes significados al dolor crónico posoperatorio persistente, lo configuraron como una experiencia mala, incomoda intermitente y limitante, que genera aislamiento social, interfiere en las actividades cotidianas, escolares y de ocio. El relato de dolor fue subestimado y negligenciado por el equipo de salud, familiares, profesores y amigos de los niños y adolescentes.

Conclusión:

Niños y adolescentes reconocen el dolor posoperatorio como dolor persistente y parecen percibir que su relato es subestimado y negligenciado por los padres y profesores. Además, se sienten responsables por la presencia del dolor que afecta dimensiones psicológicas y sociales e impone perjuicios y miedo que remite al regreso de la hernia y la muerte.

DESCRIPTORES
Niño; Adolescente; Dolor Crónico; Dolor Postoperatorio; Hernia Inguinal; Enfermería Pediátrica

INTRODUÇÃO

As primeiras experiências dolorosas na vida de uma pessoa, quando mal geridas ou subestimadas, podem resultar em efeitos negativos que persistem ao longo da idade adulta, como a dor crônica e o sofrimento(11. Eccleston C, Fisher E, Howard RF, Slater R, Forgeron P, Palermo TM, et al. Delivering transformative action in paediatric pain: a Lancet Child & Adolescent Health Commission. Lancet Child Adolesc Health. 2021;5(1):47-87. https://doi.org/10.1016/S2352-4642(20)30277-7
https://doi.org/10.1016/S2352-4642(20)30...
). Atualmente, apesar das ferramentas e evidências científicas que subsidiam e favorecem o tratamento da dor na infância, essa experiência ainda permanece subtratada(11. Eccleston C, Fisher E, Howard RF, Slater R, Forgeron P, Palermo TM, et al. Delivering transformative action in paediatric pain: a Lancet Child & Adolescent Health Commission. Lancet Child Adolesc Health. 2021;5(1):47-87. https://doi.org/10.1016/S2352-4642(20)30277-7
https://doi.org/10.1016/S2352-4642(20)30...
). Isso ocorre porque o conhecimento dos profissionais de saúde sobre a experiência dolorosa, especialmente a dor pediátrica, tem sido apontado como limitado(22. Hurley-Wallace A, Wood C, Franck LS, Howard RF, Liossi C. Paediatric pain education for health care professionals. Pain Rep. 2019;4(1):e701. http://dx.doi.org/10.1097/PR9.00000000000007014
http://dx.doi.org/10.1097/PR9.0000000000...
).

A dor crônica pós-operatória (DCPO), por exemplo, é um problema de saúde pública reconhecido na população pediátrica(33. Williams G, Howard RF, Liossi C. Persistent postsurgical pain in children and young people: prediction, prevention, and management. Pain Rep. 2017;2(5):e616. http://dx.doi.org/10.1097/PR9.0000000000000616
http://dx.doi.org/10.1097/PR9.0000000000...
). DCPO é a dor que se desenvolve ou aumenta de intensidade e persiste por, pelo menos, três meses após um procedimento cirúrgico, como exemplo da herniorrafia aberta(44. Schug SA, Lavand’Homme P, Barke A, Korwisi B, Rief W, Treede R, et al. The IASP classification of chronic pain for ICD-11: chronic postsurgical or posttraumatic pain. Pain. 2019;160(1):45-52. http://dx.doi.org/10.1097/j.pain.0000000000001413
http://dx.doi.org/10.1097/j.pain.0000000...
). A herniorrafia, um reparo tradicional que não utiliza uma tela (malha) para fechamento, é um dos procedimentos cirúrgicos ambulatoriais mais comumente realizados(55. Lockhart K, Dunn D, Teo S, Ng JY, Dhillon M, Teo E, et al. Mesh versus non-mesh for inguinal and femoral hernia repair. Cochrane Database Syst Rev. 2018;9(9):CD011517. http://dx.doi.org/10.1002/14651858.CD011517.pub2
http://dx.doi.org/10.1002/14651858.CD011...
). Após uma herniorrafia inguinal (HRI), evidências apontam maior risco de DCPO em relação a outras cirurgias de mesma complexidade, realizadas na infância(66. Mossetti V, Boretsky K, Astuto M, Locatelli BG, Zurakowski D, Lio R, et al. Persistent pain following common outpatient surgeries in children: a multicenter study in Italy. Paediatr Anaesth. 2018;28(3):231-6. http://dx.doi.org/10.1111/pan.13321
http://dx.doi.org/10.1111/pan.13321...
).

Estudos longitudinais mostraram crianças com dor localizada na região inguinal após um período médio de acompanhamento de seis (6) meses(66. Mossetti V, Boretsky K, Astuto M, Locatelli BG, Zurakowski D, Lio R, et al. Persistent pain following common outpatient surgeries in children: a multicenter study in Italy. Paediatr Anaesth. 2018;28(3):231-6. http://dx.doi.org/10.1111/pan.13321
http://dx.doi.org/10.1111/pan.13321...
) e 3,2 anos após a HRI(77. Kristensen AD, Ahlburg P, Lauridsen MC, Jensen TS, Nikolajsen L. Chronic pain after inguinal hernia repair in children. Br J Anaesth. 2012;109(4):603-8. http://dx.doi.org/10.1093/bja/aes250
http://dx.doi.org/10.1093/bja/aes250...
). Mesmo em longo prazo, muitas crianças vivenciam DCPO de intensidade severa após a HRI, que interfere nas atividades diárias(77. Kristensen AD, Ahlburg P, Lauridsen MC, Jensen TS, Nikolajsen L. Chronic pain after inguinal hernia repair in children. Br J Anaesth. 2012;109(4):603-8. http://dx.doi.org/10.1093/bja/aes250
http://dx.doi.org/10.1093/bja/aes250...
) e implica em incapacidade física e má qualidade do sono(66. Mossetti V, Boretsky K, Astuto M, Locatelli BG, Zurakowski D, Lio R, et al. Persistent pain following common outpatient surgeries in children: a multicenter study in Italy. Paediatr Anaesth. 2018;28(3):231-6. http://dx.doi.org/10.1111/pan.13321
http://dx.doi.org/10.1111/pan.13321...
). Outra evidência ressaltada é que a DCPO gera prejuízos que tendem a persistir durante a maior parte da infância, adolescência e durante a vida adulta(88. Incledon E, O’Connor M, Giallo R, Chalkiadis GA, Palermo TM. Child and family antecedents of pain during the transition to adolescence: a longitudinal population-based study. J Pain. 2016;17(11):1174-82. http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2016.07.005
http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2016.0...
). Por exemplo, dor crônica pode ser um fator crítico no desenvolvimento de depressão em adolescentes(99. Wicksell RK, Kanstrup M, Kemani MK, Holmström L. Pain interference mediates the relationship between pain and functioning in pediatric chronic pain. Front Psychol. 2016;7:1978. http://dx.doi.org/10.3389/fpsyg.2016.01978
http://dx.doi.org/10.3389/fpsyg.2016.019...
). Nesse contexto, conhecer as percepções da criança e do adolescente sobre a DCPO é fundamental para ampliar a compreensão dos fatores de risco envolvidos no desenvolvimento e na manutenção dessa dor, como sexo, idade, dor pré-operatória, dor pós-operatória, genética, fatores psicológicos e cirúrgicos (lesões de nervo)(1010. Rabbitts JA, Fisher E, Rosenbloom BN, Palermo TM. Prevalence and predictors of chronic postsurgical pain in children: a systematic review and meta-analysis. J Pain. 2017;18(6):605-14. http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2017.03.007
http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2017.0...
).

Estudos com abordagem qualitativa nessa temática são limitados e pouco se sabe sobre o sentido simbólico da dor para crianças e adolescentes que convivem com DCPO após cirurgia ambulatorial. Adicionalmente, foi apontada lacuna na disponibilidade de evidências relacionadas ao autorrelato da dor crônica em crianças e adolescentes(1111. Birnie KA, Hundert AS, Lalloo C, Nguyen C, Stinson JN. Recommendations for selection of self-report pain intensity measures in children and adolescents: a systematic review and quality assessment of measurement properties. Pain. 2019;160(1):5-18. http://dx.doi.org/10.1097/j.pain.0000000000001377
http://dx.doi.org/10.1097/j.pain.0000000...
). Em estudo que relatou as experiências de dor crônica de crianças, adolescentes e seus familiares, a cirurgia foi identificada como estressante. A falta de informações relacionadas à dor e à recuperação em longo prazo foi abordada, bem como os desafios emocionais(1212. Rabbitts JA, Aaron RV, Fisher E, Lang EA, Bridgwater C, Tai GG, et al. Long-term pain and recovery after major pediatric surgery: a qualitative study with teens, parents, and perioperative care providers. J Pain. 2017;18(7):778-86. http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2017.02.423
http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2017.0...
). Estudos que descrevem detalhadamente as experiências de crianças e adolescentes em diferentes aspectos da convivência com DCPO após cirurgia ambulatorial não foram encontrados; assim, o presente estudo traz a inovação de apresentar os sentidos simbólicos da DCPO para crianças e adolescentes e contribuir com profissionais de saúde, especialmente enfermeiros, no manejo da dor crônica pediátrica em longo prazo.

Esta pesquisa está ancorada no referencial teórico do modelo biopsicossocial da dor, que a considera uma interação complexa entre múltiplos fatores biológicos, psicológicos e socioculturais(1313. Turk DC, Okifuji A. Psychological factors in chronic pain: evolution and revolution. J Consult Clin Psychol. 2002;70(3):678-90. https://doi.org/10.1037/0022-006X.70.3.678
https://doi.org/10.1037/0022-006X.70.3.6...
). Partindo desta premissa, foi estabelecida a seguinte questão de investigação: “quais são as percepções de crianças e adolescentes com dor crônica pós-operatória três anos após a herniorrafia inguinal?” Com o intuito de responder a esta questão, o objetivo do estudo foi analisar as percepções de crianças e adolescentes sobre dor crônica pós-operatória, vivenciada durante três anos após herniorrafia inguinal ambulatorial.

MÉTODO

Tipo de Estudo

Estudo descritivo exploratório de abordagem qualitativa, que teve como ponto de partida o recorte de uma pesquisa de base quantitativa anterior conduzida com crianças e adolescentes em Goiânia-Brasil. Os dados foram analisados por análise de conteúdo, modalidade temática. Com a finalidade de promover o rigor, a abrangência e a credibilidade do estudo de entrevista, seguimos as diretrizes do COREQ (Consolidated Criteria For Reporting Qualitative Research).

Local

O lócus do estudo consistiu em dois espaços, ambos no município de Goiânia-Brasil. O primeiro incluiu dois hospitais que ofereciam atendimento cirúrgico pediátrico ambulatorial, onde os participantes foram convidados e posteriormente acompanhados no período pós-operatório. O segundo foi a Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Goiás onde crianças e adolescentes com DCPO compareceram para a realização de entrevista individual.

Critérios de Seleção

Foram incluídos crianças e adolescentes com idades entre 8 e 15 anos, de ambos os sexos, submetidos à HRI há três anos, com relato de DCPO, definida como dor intermitente ou contínua localizada na região inguinal do lado operado. Crianças nessa faixa etária estão aptas a produzir informações em entrevista semiestruturada(1414. Kortesluoma RL, Hentinen M, Nikkonen M. Conducting a qualitative child interview: methodological considerations. J Adv Nurs. 2003;42(5):434-41. https://doi.org/10.1046/j.1365-2648.2003.02643.x
https://doi.org/10.1046/j.1365-2648.2003...
). Crianças submetidas a outro procedimento cirúrgico durante o seguimento foram excluídas.

Coleta de Dados

A partir de um estudo de coorte, a pesquisadora entrou em contato com os responsáveis pelos possíveis participantes, ou seja, aqueles que persistiram com relato de dor no local da cirurgia três anos ou mais após a HRI. O referido contato foi estabelecido por meio de ligação telefônica entre julho e novembro de 2017, convidando-os para o exame clínico (avaliação especializada de enfermagem e neuropediatria) e entrevista pessoal.

Primeiramente, foi recordado o objetivo do estudo e os pais/responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As crianças e os adolescentes assinaram o Termo de Assentimento Livre Pós-informação. As características sociodemográficas dos participantes foram obtidas por meio de roteiro elaborado, baseado em evidências científicas.

As entrevistas foram conduzidas individualmente pela pesquisadora em uma sala privada. O roteiro semiestruturado continha as seguintes perguntas: 1) Para você, o que é dor (dor física – dor que sente no corpo)? E a dor persistente, aquela dor que não desaparece com o tempo, o que você acha dela? 2) E por que você acha que essa dor não desapareceu depois da cirurgia? 3) Como as pessoas reagem quando você fala sobre essa dor? 4) Você quer falar mais alguma coisa sobre essa dor?

A entrevista foi única e registrada em gravador de voz. Os participantes falaram livremente, sem limitação do tempo. A média de duração das entrevistas foi de, aproximadamente, 10 minutos. Em relação à duração da entrevista, devemos considerar a singularidade da faixa etária pediátrica e que, apesar dos contatos telefônicos anuais feitos pela entrevistadora, este foi o primeiro contato pessoal com as crianças/ adolescentes no pós-operatório tardio. Além disso, entendemos que entrevistas com crianças, diferentemente das entrevistas conduzidas com adultos, devem ser mais informais e pouco estruturadas a fim de oferecer maior controle a elas(1414. Kortesluoma RL, Hentinen M, Nikkonen M. Conducting a qualitative child interview: methodological considerations. J Adv Nurs. 2003;42(5):434-41. https://doi.org/10.1046/j.1365-2648.2003.02643.x
https://doi.org/10.1046/j.1365-2648.2003...
).

O estudo obedeceu aos critérios de saturação de dados qualitativos(1515. Strauss A, Corbin J. Basics of qualitative research. Thousand Oaks: Sage; 2015. p.139-40.), que permitem incluir participantes até que os objetivos sejam respondidos, nenhum novo tema seja estabelecido ou até que não haja novos questionamentos dentro das categorias ou dos temas.

Análise e Tratamento dos Dados

A análise dos dados foi fundamentada no referencial teórico de análise de conteúdo, modalidade temática que compreende três etapas: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados(1616. Bardin DL. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016.). Após a transcrição literal de todas as gravações de voz, foi realizada análise temática, guiada por roteiro norteador do processo de análise de dados qualitativos(1717. Ferreira AMD, Oliveira JLC, Souza VS, Camillo NRS, Medeiros M, Marcon SS, et al. Adapted guide of content analysis – thematic modality: report of experience. J Nurs Health. 2020;10(1):e20101001. http://dx.doi.org/10.15210/jonah.v10i1.14534
http://dx.doi.org/10.15210/jonah.v10i1.1...
), ambientada no campo lógico-semântico, com exaustiva leitura sobre o conteúdo coletado. O processo analítico deste estudo foi sistematizado(1717. Ferreira AMD, Oliveira JLC, Souza VS, Camillo NRS, Medeiros M, Marcon SS, et al. Adapted guide of content analysis – thematic modality: report of experience. J Nurs Health. 2020;10(1):e20101001. http://dx.doi.org/10.15210/jonah.v10i1.14534
http://dx.doi.org/10.15210/jonah.v10i1.1...
), de acordo com os parágrafos descritos abaixo.

A primeira etapa, a de pré-análise, compreendeu a exploração do material, por meio de leituras verticais do corpus das entrevistas transcritas, com o intuito de apreender e organizar aspectos importantes do conteúdo e sua lógica(1717. Ferreira AMD, Oliveira JLC, Souza VS, Camillo NRS, Medeiros M, Marcon SS, et al. Adapted guide of content analysis – thematic modality: report of experience. J Nurs Health. 2020;10(1):e20101001. http://dx.doi.org/10.15210/jonah.v10i1.14534
http://dx.doi.org/10.15210/jonah.v10i1.1...
). Na segunda etapa, procedeu-se à leitura horizontal do material, destacando as falas e/ou trechos que representavam as ideias centrais(1717. Ferreira AMD, Oliveira JLC, Souza VS, Camillo NRS, Medeiros M, Marcon SS, et al. Adapted guide of content analysis – thematic modality: report of experience. J Nurs Health. 2020;10(1):e20101001. http://dx.doi.org/10.15210/jonah.v10i1.14534
http://dx.doi.org/10.15210/jonah.v10i1.1...
). Algumas palavras ganharam destaque, pois apareceram nos discursos com maior frequência, e foram agrupadas por similaridade e/ou aproximação, formando os Núcleos de Sentido (NS)(1717. Ferreira AMD, Oliveira JLC, Souza VS, Camillo NRS, Medeiros M, Marcon SS, et al. Adapted guide of content analysis – thematic modality: report of experience. J Nurs Health. 2020;10(1):e20101001. http://dx.doi.org/10.15210/jonah.v10i1.14534
http://dx.doi.org/10.15210/jonah.v10i1.1...
). Após a codificação, na terceira etapa, uma síntese descritiva foi elaborada para cada NS e agrupadas por temas(1717. Ferreira AMD, Oliveira JLC, Souza VS, Camillo NRS, Medeiros M, Marcon SS, et al. Adapted guide of content analysis – thematic modality: report of experience. J Nurs Health. 2020;10(1):e20101001. http://dx.doi.org/10.15210/jonah.v10i1.14534
http://dx.doi.org/10.15210/jonah.v10i1.1...
), dos quais emergiram as categorias “A dor vai e volta”, “A dor é mentira”, “Dor que limita”. Os dados foram apresentados e discutidos mediante seleção e citação ilustrativa dos fragmentos de falas, seguindo-se uma descrição breve, a inferência e a interpretação(1717. Ferreira AMD, Oliveira JLC, Souza VS, Camillo NRS, Medeiros M, Marcon SS, et al. Adapted guide of content analysis – thematic modality: report of experience. J Nurs Health. 2020;10(1):e20101001. http://dx.doi.org/10.15210/jonah.v10i1.14534
http://dx.doi.org/10.15210/jonah.v10i1.1...
).

Aspectos Éticos

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (parecer nº 1.398.953/2016). Os requisitos éticos da Resolução 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde, foram atendidos. Todos os pais/responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e todas as crianças e os adolescentes concordaram voluntariamente em participar da entrevista. Os participantes deste estudo foram codificados com a letra “C” e numerados de acordo com a ordem de realização da entrevista, a fim de assegurar o anonimato.

RESULTADOS

Caracterização dos Participantes

Um total de 20 crianças e adolescentes consentiu em participar do estudo. A mediana da idade dos participantes foi de 10,5 anos e a maioria era do sexo feminino (55%). Entre os participantes, 85% comentaram sobre sua dor com algum familiar. A média do tempo da cirurgia até a entrevista foi de 36,5 ± 0,4 meses.

ADor Vai e Volta

As crianças e adolescentes pareciam reconhecer a dor sentida no local da cirurgia como persistente, uma dor que não desapareceu com o tempo. Algumas acharam que a cirurgia corrigiria a dor sentida no local da hérnia, mas isso não aconteceu. As falas ainda revelam que a DCPO tem característica intermitente, pois surge e desaparece em horários e dias intercalados.

Sim [persistente], porque direto eu tô sentindo ela (C18).

Porque tem três anos que eu fiz a cirurgia e até hoje, de vez em quando, eu tenho dor (C10).

Acho que sim [que é persistente] (…) ela vem num dia, aí passa dois dias, ela vem de novo (C15).

A compreensão da causa da DCPO não pareceu estar clara para as crianças e os adolescentes. Os relatos apontaram como causa da persistência da DCPO aspectos relacionados às crenças, ao procedimento cirúrgico (anestesia) e às atividades diárias realizadas pelas crianças e adolescentes, incluindo brincar, correr ou segurar objetos:

Porque eu brinco (C20).

Eu acho que foi alguma anestesia que a gente tomou ou alguma outra coisa (…) eu pensava que era normal (C4).

Ela teve um motivo para estar aparecendo. Acho que deveria [a dor] ter desaparecido, mas depende também do que eu faço, aí como de vez em quando eu pego peso (…) (C6).

Ainda sobre a causa da DCPO, alguns participantes destacaram fatores externos, em relação à persistência da dor após a HRI, como o próprio procedimento cirúrgico.

A médica falou que era por causa da cirurgia, que eu sentia dor pelo resto da vida, fiquei meio assim né (…) [tristeza]. Fazer o quê? (C5)

Essa cirurgia não foi como que eles pensavam, aí essa dor da hérnia, não conseguiu tirar essa dor na hérnia, aí continuou insistindo né [a dor], aí pra tirar vou ter que fazer outra cirurgia (…) (C9).

ADor é Mentira

As falas das crianças e dos adolescentes mostram que a DCPO foi desacreditada ao longo dos meses que sucederam a HRI.

Minha mãe, de vez em quando, não acredita não (C12).

Eu peguei e falei para minha professora que eu estava sentindo dor e ela não acreditou, falou que eu estava mentindo, que não era verdade (C6).

(…) menina para de mentira, vocês só vêm aqui para ficar mentindo, só pra ir embora (C1).

Uma adolescente destacou que a explicação sobre a realização da cirurgia se fez necessária para validar seu relato de dor:

Ah, muitas vezes, as pessoas ficam falando, ah você tá mentindo, só quando eu falo que fiz a cirurgia, aí eles acreditam (C1).

Além disso, as crianças e os adolescentes relataram que a DCPO foi ignorada por pessoas do convívio diário como pais e professores. Sentimentos de medo e desamparo foram destacados diante da subvalorização e invisibilidade da experiência dolorosa:

Eu tenho medo (…) aí dá o pensamento que eu vou morrer, vou desmaiar, aí minha mãe esquece de mim (C12).

Deixa eu ir professora [no banheiro], é que eu fiz cirurgia, tá doendo! – Não! tem que esperar a hora, eu quero deixar, mas, se eu deixar, as consequências sobram para mim (C16).

Eu tinha medo de falar pra alguém [da dor] na escola (…) estar com essa coisa de hérnia é coisa perigosa, aí eu fiquei com medo de falar (C9).

Dor Que Limita

Diversos relatos das crianças e adolescentes expressam as limitações impostas pela dor persistente no local da cirurgia, que incluem atividades cotidianas, inclusive as que requerem movimento e relações sociais:

Eu estava correndo (…) aí a dor veio, parei (…) a dor veio muito forte, aí eu não consegui brincar mais (C17).

Quando eu tô deitado lá no sofá, pra assistir TV, vem a dor forte mesmo, não dá pra segurar (C12).

(…) se eu correr demais, eu vou sentir essa mesma dor, e ela não é boa, às vezes, que eu corro porque eu esqueço. Sabe? No momento da alegria, com minhas amigas (C7).

A influência da DCPO no desempenho escolar também foi identificada, conforme relatos a seguir:

Na escola, eu espirrei e doeu. A dor ficou. Quando estava doendo eu não concentrei no estudo (C8).

Tem vez que dói quando eu tô correndo, na educação física (C12).

Eu estava estudando, porque eu ia fazer uma prova, aí começou a doer… aí eu fui para secretaria (…) (C19).

DISCUSSÃO

Os resultados desta pesquisa mostram que as percepções de crianças e adolescentes confirmam a persistência da dor pós-operatória três anos após a realização da HRI. Eles expressam a subvalorização do relato de dor e dos prejuízos advindos dessa experiência na realização de atividades cotidianas e no relacionamento com pais, familiares, professores, profissionais de saúde e amigos. Diferentes significados podem ser atribuídos à DCPO, de acordo com os fatores biopsicossociais, como idade, nível cognitivo, tipo de personalidade, história de vida e experiências prévias com dor, modo de ver o mundo, crenças, cultura, estratégias pessoais de enfrentamento da dor, convívio familiar, procedimento cirúrgico, entre outros.

A persistência da dor configura uma experiência ruim e incômoda que leva as crianças e os adolescentes a questionarem o porquê de a dor não ter desaparecido se a cirurgia foi realizada para ajudá-los. Parece que a cirurgia passa a ser a causa da dor e não solução para mesma. Essa lacuna deixada pela dúvida e pelos questionamentos é ampliada por suposições e autoculpa que buscam justificativa para o sofrimento e o incômodo que a dor tem causado. Os resultados complementam dados sobre as experiências de dor relatadas por crianças e adolescentes submetidos a grandes cirurgias(1010. Rabbitts JA, Fisher E, Rosenbloom BN, Palermo TM. Prevalence and predictors of chronic postsurgical pain in children: a systematic review and meta-analysis. J Pain. 2017;18(6):605-14. http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2017.03.007
http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2017.0...
).

Neste estudo, as crianças e os adolescentes percebem que a persistência da dor pós-operatória lhes é atribuída pelo fato de realizarem atividades que requerem movimento como estudar, passear, se relacionar com amigos, pegar objetos e pessoas, até mesmo brincar em vez de permanecerem em repouso. Nesse sentido, observa-se a culpa na fala de C20 (8 anos), relacionada ao ato de brincar, com evidente sentimento negativo associado a dor crônica. O brincar é essencial para o desenvolvimento infantil; por meio das brincadeiras se desenvolve resiliência, crescimento e habilidades físicas, cognitivas, emocionais e sociais; por isso, independentemente da condição socioeconômica de uma criança, os benefícios do brincar devem ser reconhecidos(1818. Yogman M, Garner A, Hutchinson J, Hirsh-Pasek K, Golinkoff RM; Committee on Psychosocial Aspects of Child and Family Health and Council on Communications and Media. The importance of play in promoting healthy child development and maintaining strong parent-child bond: focus on children in poverty. Pediatrics. 2018;142(3):e20182058. https://doi.org/10.1542/peds.2018-2058
https://doi.org/10.1542/peds.2018-2058...
).

Nessa perspectiva, percebe-se que a DCPO transpõe o aspecto biofisiológico, pois tem afetado outras dimensões importantes na vida dessas crianças e adolescentes, como a dimensão social e a psicológica. Além disso, os dados expõem a fragilidade que existe na comunicação entre a equipe de saúde, o paciente e sua família.

Adicionalmente, sobre a culpa que as crianças e os adolescentes sentem pelo surgimento da dor, ressalta-se que familiares e profissionais de saúde têm reforçado esse sentimento em algumas situações. Isso sugere falta de conhecimento sobre a evolução do problema e provável ansiedade frente à própria limitação em proporcionar alívio adequado à dor. As falas reforçam as colocações de que as cognições e crenças de crianças sobre dor, incluindo comportamentos de medo e evitação, desenvolvem-se no contexto familiar(1919. Riggenbach A, Goubert L, Petegem SV, Amouroux R. Topical review: basic psychological needs in adolescents with chronic pain-a self-determination perspective. Pain Res Manag. 2019;2019:8629581. https://doi.org/10.1155/2019/8629581
https://doi.org/10.1155/2019/8629581...
2020. Koechlin H, Locher C, Prchal A. Talking to children and families about chronic pain: the importance of pain education – an introduction for pediatricians and other health care providers. Children (Basel). 2020;7(10):179. http://dx.doi.org/10.3390/children7100179
http://dx.doi.org/10.3390/children710017...
). Outros pesquisadores também concordam que a recuperação de adolescentes que relatam DCPO após a cirurgia pode ser influenciada pela família e pelos profissionais(1212. Rabbitts JA, Aaron RV, Fisher E, Lang EA, Bridgwater C, Tai GG, et al. Long-term pain and recovery after major pediatric surgery: a qualitative study with teens, parents, and perioperative care providers. J Pain. 2017;18(7):778-86. http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2017.02.423
http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2017.0...
).

Na percepção dos participantes, o tipo de cirurgia também contribuiu na gênese da experiência dolorosa. Sobre tais concepções, embora a culpa esteja centrada na própria criança e no adolescente, essas percepções podem ser justificadas se trouxermos ao cenário as evidências sobre os fatores que podem evocar DCPO. Por exemplo, o toque na ferida cirúrgica, o movimento, a respiração, a tosse ou a atividade gastrointestinal; quando há hiperresponsividade por parte dos neurônios os estímulos inócuos passam a ativar a transdução e a transmissão neuronal de estímulos percebidos como dolorosos(2121. Kehlet H, Jensen TS, Woolf CJ. Persistent postsurgical pain: risk factors and prevention. Lancet. 2006;367(9522):1618-25. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(06)68700-X
http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(06)...
). Além disso, traumas em estruturas nervosas durante cirurgias realizadas na infância e na adolescência são mais frequentes que em participantes com idades menores, além de apontarem dor persistente com elemento neuropático(2222. Fitzgerald M, McKelvey R. Nerve injury and neuropathic pain: a question of age. Exp Neurol. 2016;275:296-302. http://dx.doi.org/10.1016/j.expneurol.2015.07.013
http://dx.doi.org/10.1016/j.expneurol.20...
).

Sobre os prejuízos advindos da dor crônica, neste estudo, os fatores emocionais e sociais, que envolvem a persistência da dor, foram identificados com forte significado para as crianças e os adolescentes por gerar limitação e privação. Em uma revisão sistemática com metanálise, foram identificados fatores biológicos, médicos e psicossociais pré-cirúrgicos associados à prevalência ou gravidade da DCPO em crianças e adolescentes(1010. Rabbitts JA, Fisher E, Rosenbloom BN, Palermo TM. Prevalence and predictors of chronic postsurgical pain in children: a systematic review and meta-analysis. J Pain. 2017;18(6):605-14. http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2017.03.007
http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2017.0...
). Outras evidências apontam forte ligação entre o sentimento de ansiedade e dor persistente em adolescentes(2323. Sørensen K, Christiansen B. Adolescents’ experience of complex persistent pain. Scand J Pain. 2017;15:106-12. http://dx.doi.org/10.1016/j.sjpain.2017.02.002
http://dx.doi.org/10.1016/j.sjpain.2017....
).

Adicionado a isso, há o impedimento de participar de atividades preferidas, incluindo esportes e atividades extracurriculares, que pode levar a perda de reforço positivo e amizades, além de baixa autoestima(2424. Landry BW, Fischer PR, Driscoll SW, Koch KM, Harbeck-Weber C, Mack KJ, et al. Managing chronic pain in children and adolescents: a clinical review. PM R. 2015;7(11 Suppl):S295-S315. http://dx.doi.org/10.1016/j.pmrj.2015.09.006
http://dx.doi.org/10.1016/j.pmrj.2015.09...
). Ainda, comprometimento escolar associado a fatores cognitivos, psicológicos e sociais pode ser avaliado em crianças e adolescentes com dor crônica(2525. Jones K, Nordstokke D, Wilcox G, Schroeder M, Noel M. The ‘work of childhood’: understanding school functioning in youth with chronic pain. Pain Manag. 2018;8(2):139-53. http://dx.doi.org/10.2217/pmt-2017-0048
http://dx.doi.org/10.2217/pmt-2017-0048...
).

O medo da dor emergiu como percepção importante das crianças e adolescentes, remetendo à antecipação da morte e causando desamparo e solidão, permeados pela subvalorização do que relatavam sentir.

Sobre isso, estudo reforçou a importância da comunicação e da educação sobre dor para os pais e a população pediátrica, o que significa que os pais precisam estar comprometidos com o processo de compreender, de forma mais integral, a dor da criança ou do adolescente. O que também permite ajustes nas atitudes e comportamentos potencialmente prejudiciais dos pais em relação à criança(2020. Koechlin H, Locher C, Prchal A. Talking to children and families about chronic pain: the importance of pain education – an introduction for pediatricians and other health care providers. Children (Basel). 2020;7(10):179. http://dx.doi.org/10.3390/children7100179
http://dx.doi.org/10.3390/children710017...
).

Igualmente, a DCPO pareceu algo “comum” nas falas de algumas crianças e adolescentes. Essa ideia foi reforçada por um profissional de saúde ao frisar que o adolescente teria que conviver com a dor por toda a vida. Estudiosos mostram que crianças com dor crônica estão sujeitas a percepções errôneas por parte dos profissionais da saúde, especialmente quando a dor é de natureza psicológica(2626. Betsch TA, Gorodzinsky AY, Finley GA, Sangster M, Chorney J. What’s in a name? Health care providers’ perceptions of pediatric pain patients based on diagnostic labels. Clin J Pain. 2017;33(8):694-8. http://dx.doi.org/10.1097/AJP.0000000000000454
http://dx.doi.org/10.1097/AJP.0000000000...
).

Não obstante, resultados de revisão da literatura destacaram aspectos negativos importantes da assistência prestada às crianças e adolescentes com dor crônica, incluindo atraso no encaminhamento aos especialistas em dor pediátrica e falhas em reconhecer distúrbios psicológicos como comorbidades comuns em crianças e adolescentes com dor(2727. Cucchiaro G, Schwartz J, Hutchason A, Ornelas B. Chronic pain in children: a look at the referral process to a pediatric pain clinic. Int J Pediatr. 2017;2017:8769402. http://dx.doi.org/10.1155/2017/8769402
http://dx.doi.org/10.1155/2017/8769402...
). Essas posições de familiares e profissionais de saúde contribuem para o atraso do alívio da dor, além de deterioração constante da qualidade de vida(2828. Miró J, McGrath PJ, Finley GA, Walco GA. Pediatric chronic pain programs: current and ideal practice. Pain Rep. 2017;2(5):e613. http://dx.doi.org/10.1097/PR9.0000000000000613
http://dx.doi.org/10.1097/PR9.0000000000...
), perpetuando sofrimento desnecessário.

Reforçando as falhas no manejo da DCPO, os achados também apontam que nem sempre o relato de dor da criança ou do adolescente é válido para pais e professores. Isso fica evidente na fala de C17, quando ressalta que a dor só é “aceita” após informar sobre a cirurgia a que fora submetida. Assim, a dor só passa a ser concebida como legítima a partir de sua materialização, ou seja, a queixa dolorosa só é considerada verdadeira mediante uma lesão ou doença(2929. Turkmen AS, Sahiner NC, Koroglu AY, Inal S. Pain and factors that affect its definition as defined by preschool age children: a qualitative study. Rev Eletr Enf. 2018;20:a34. http://dx.doi.org/10.5216/ree.v20.49441
http://dx.doi.org/10.5216/ree.v20.49441...
). Tal entendimento errôneo sobre a experiência dolorosa ainda permeia o meio clínico e contribui com o subtratamento da dor. Nesse contexto, é claramente reconhecido que há ampla lacuna na formação educativa de profissionais de saúde sobre o controle da dor pediátrica(22. Hurley-Wallace A, Wood C, Franck LS, Howard RF, Liossi C. Paediatric pain education for health care professionals. Pain Rep. 2019;4(1):e701. http://dx.doi.org/10.1097/PR9.00000000000007014
http://dx.doi.org/10.1097/PR9.0000000000...
).

O enfermeiro tem um papel fundamental no manejo da dor pediátrica e, para isso, deve compreender os aspectos da abordagem biopsicossocial da experiência dolorosa(22. Hurley-Wallace A, Wood C, Franck LS, Howard RF, Liossi C. Paediatric pain education for health care professionals. Pain Rep. 2019;4(1):e701. http://dx.doi.org/10.1097/PR9.00000000000007014
http://dx.doi.org/10.1097/PR9.0000000000...
). Nesse aspecto, reforça-se a importância da intervenção de enfermagem na avaliação multidimensional da dor e a necessidade de fornecer informações detalhadas e claras às crianças, aos adolescentes e a seus familiares sobre a cirurgia, dor e recuperação(1212. Rabbitts JA, Aaron RV, Fisher E, Lang EA, Bridgwater C, Tai GG, et al. Long-term pain and recovery after major pediatric surgery: a qualitative study with teens, parents, and perioperative care providers. J Pain. 2017;18(7):778-86. http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2017.02.423
http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2017.0...
).

Algumas estratégias factíveis podem ser consideradas no manejo da dor crônica em crianças e adolescentes, como dar importância à dor relatada, compreender o contexto social e cultural da dor; ainda, tornar a dor visível por meio de avaliação multidimensional com foco em resultados positivos no contexto da população pediátrica e priorizar a melhora e o alívio da dor por meio de tratamentos em diferentes áreas do conhecimento(11. Eccleston C, Fisher E, Howard RF, Slater R, Forgeron P, Palermo TM, et al. Delivering transformative action in paediatric pain: a Lancet Child & Adolescent Health Commission. Lancet Child Adolesc Health. 2021;5(1):47-87. https://doi.org/10.1016/S2352-4642(20)30277-7
https://doi.org/10.1016/S2352-4642(20)30...
).

Estes achados podem fornecer suporte para o planejamento de intervenções que incluam o desenvolvimento de habilidades de enfrentamento da dor com o objetivo de melhorar a recuperação da criança e do adolescente. Pesquisas adicionais, especialmente na área da enfermagem, envolvendo pais, equipes multidisciplinares de saúde e escolas, são necessárias para elaborar evidências sobre o papel desses indivíduos na manutenção da DCPO de crianças e adolescentes.

Em pesquisas qualitativas, entendemos que as limitações são relativas, principalmente neste estudo que buscou analisar as percepções de crianças e adolescentes; contudo, as percepções dos pais não foram investigadas, o que remete à possibilidade de desdobramento deste estudo. Além do mais, embora os contatos telefônicos anuais feitos pela pesquisadora tenham permitido uma interação mínima e periódica com as crianças, essa aproximação circunstancial pode ter restringido o vínculo entre eles, influenciando no tempo das entrevistas (em média 10 minutos), embora as crianças tenham ficado livres para falar sobre sua dor. Tal limitação pode estar relacionada à faixa etária dos participantes, que tendem a ser mais objetivos em suas respostas.

Destacamos o pioneirismo deste estudo ao explorar as percepções de crianças e adolescentes brasileiros com DCPO após HRI ambulatorial, uma vez que aborda uma lacuna importante e acrescenta conhecimento à literatura pediátrica ao fornecer descrição do sentido simbólico da DCPO com base no autorrelato de crianças e adolescentes. Acreditamos que os achados são fonte de informações úteis e válidas sobre a importância do manejo da dor, pautado na influência dos fatores biopsicossociais. Enfermeiros são profissionais que devem participar ativamente da avaliação e do tratamento individualizado de DCPO de crianças e adolescentes, especialmente após a alta para casa, em longo prazo, o que pode ser feito na Atenção Básica, via Estratégia de Saúde da Família. Esses achados também podem ser usados para fundamentar práticas em nível educacional e de gestão da dor.

CONCLUSÃO

A dor sentida três anos após a HRI é reconhecida como persistente pelas crianças e pelos adolescentes, que se sentem corresponsáveis por continuar vivenciando dor por tempo prolongado após a cirurgia. Adicionalmente, pais e professores subestimam e negligenciam o relato de dor e os fatores biopsicossociais atribuídos à persistência da dor incluem o medo que remete ao retorno da hérnia e à morte. A DCPO isola socialmente, interfere nas atividades cotidianas, escolares e de lazer, impondo prejuízos inclusive no brincar, atividade importante para o bom desenvolvimento físico e mental das crianças. Os achados apresentam sentidos simbólicos da DCPO e oferecem subsídio para alcance do adequado manejo da dor crônica em pediatria.

REFERENCES

  • 1.
    Eccleston C, Fisher E, Howard RF, Slater R, Forgeron P, Palermo TM, et al. Delivering transformative action in paediatric pain: a Lancet Child & Adolescent Health Commission. Lancet Child Adolesc Health. 2021;5(1):47-87. https://doi.org/10.1016/S2352-4642(20)30277-7
    » https://doi.org/10.1016/S2352-4642(20)30277-7
  • 2.
    Hurley-Wallace A, Wood C, Franck LS, Howard RF, Liossi C. Paediatric pain education for health care professionals. Pain Rep. 2019;4(1):e701. http://dx.doi.org/10.1097/PR9.00000000000007014
    » http://dx.doi.org/10.1097/PR9.00000000000007014
  • 3.
    Williams G, Howard RF, Liossi C. Persistent postsurgical pain in children and young people: prediction, prevention, and management. Pain Rep. 2017;2(5):e616. http://dx.doi.org/10.1097/PR9.0000000000000616
    » http://dx.doi.org/10.1097/PR9.0000000000000616
  • 4.
    Schug SA, Lavand’Homme P, Barke A, Korwisi B, Rief W, Treede R, et al. The IASP classification of chronic pain for ICD-11: chronic postsurgical or posttraumatic pain. Pain. 2019;160(1):45-52. http://dx.doi.org/10.1097/j.pain.0000000000001413
    » http://dx.doi.org/10.1097/j.pain.0000000000001413
  • 5.
    Lockhart K, Dunn D, Teo S, Ng JY, Dhillon M, Teo E, et al. Mesh versus non-mesh for inguinal and femoral hernia repair. Cochrane Database Syst Rev. 2018;9(9):CD011517. http://dx.doi.org/10.1002/14651858.CD011517.pub2
    » http://dx.doi.org/10.1002/14651858.CD011517.pub2
  • 6.
    Mossetti V, Boretsky K, Astuto M, Locatelli BG, Zurakowski D, Lio R, et al. Persistent pain following common outpatient surgeries in children: a multicenter study in Italy. Paediatr Anaesth. 2018;28(3):231-6. http://dx.doi.org/10.1111/pan.13321
    » http://dx.doi.org/10.1111/pan.13321
  • 7.
    Kristensen AD, Ahlburg P, Lauridsen MC, Jensen TS, Nikolajsen L. Chronic pain after inguinal hernia repair in children. Br J Anaesth. 2012;109(4):603-8. http://dx.doi.org/10.1093/bja/aes250
    » http://dx.doi.org/10.1093/bja/aes250
  • 8.
    Incledon E, O’Connor M, Giallo R, Chalkiadis GA, Palermo TM. Child and family antecedents of pain during the transition to adolescence: a longitudinal population-based study. J Pain. 2016;17(11):1174-82. http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2016.07.005
    » http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2016.07.005
  • 9.
    Wicksell RK, Kanstrup M, Kemani MK, Holmström L. Pain interference mediates the relationship between pain and functioning in pediatric chronic pain. Front Psychol. 2016;7:1978. http://dx.doi.org/10.3389/fpsyg.2016.01978
    » http://dx.doi.org/10.3389/fpsyg.2016.01978
  • 10.
    Rabbitts JA, Fisher E, Rosenbloom BN, Palermo TM. Prevalence and predictors of chronic postsurgical pain in children: a systematic review and meta-analysis. J Pain. 2017;18(6):605-14. http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2017.03.007
    » http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2017.03.007
  • 11.
    Birnie KA, Hundert AS, Lalloo C, Nguyen C, Stinson JN. Recommendations for selection of self-report pain intensity measures in children and adolescents: a systematic review and quality assessment of measurement properties. Pain. 2019;160(1):5-18. http://dx.doi.org/10.1097/j.pain.0000000000001377
    » http://dx.doi.org/10.1097/j.pain.0000000000001377
  • 12.
    Rabbitts JA, Aaron RV, Fisher E, Lang EA, Bridgwater C, Tai GG, et al. Long-term pain and recovery after major pediatric surgery: a qualitative study with teens, parents, and perioperative care providers. J Pain. 2017;18(7):778-86. http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2017.02.423
    » http://dx.doi.org/10.1016/j.jpain.2017.02.423
  • 13.
    Turk DC, Okifuji A. Psychological factors in chronic pain: evolution and revolution. J Consult Clin Psychol. 2002;70(3):678-90. https://doi.org/10.1037/0022-006X.70.3.678
    » https://doi.org/10.1037/0022-006X.70.3.678
  • 14.
    Kortesluoma RL, Hentinen M, Nikkonen M. Conducting a qualitative child interview: methodological considerations. J Adv Nurs. 2003;42(5):434-41. https://doi.org/10.1046/j.1365-2648.2003.02643.x
    » https://doi.org/10.1046/j.1365-2648.2003.02643.x
  • 15.
    Strauss A, Corbin J. Basics of qualitative research. Thousand Oaks: Sage; 2015. p.139-40.
  • 16.
    Bardin DL. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016.
  • 17.
    Ferreira AMD, Oliveira JLC, Souza VS, Camillo NRS, Medeiros M, Marcon SS, et al. Adapted guide of content analysis – thematic modality: report of experience. J Nurs Health. 2020;10(1):e20101001. http://dx.doi.org/10.15210/jonah.v10i1.14534
    » http://dx.doi.org/10.15210/jonah.v10i1.14534
  • 18.
    Yogman M, Garner A, Hutchinson J, Hirsh-Pasek K, Golinkoff RM; Committee on Psychosocial Aspects of Child and Family Health and Council on Communications and Media. The importance of play in promoting healthy child development and maintaining strong parent-child bond: focus on children in poverty. Pediatrics. 2018;142(3):e20182058. https://doi.org/10.1542/peds.2018-2058
    » https://doi.org/10.1542/peds.2018-2058
  • 19.
    Riggenbach A, Goubert L, Petegem SV, Amouroux R. Topical review: basic psychological needs in adolescents with chronic pain-a self-determination perspective. Pain Res Manag. 2019;2019:8629581. https://doi.org/10.1155/2019/8629581
    » https://doi.org/10.1155/2019/8629581
  • 20.
    Koechlin H, Locher C, Prchal A. Talking to children and families about chronic pain: the importance of pain education – an introduction for pediatricians and other health care providers. Children (Basel). 2020;7(10):179. http://dx.doi.org/10.3390/children7100179
    » http://dx.doi.org/10.3390/children7100179
  • 21.
    Kehlet H, Jensen TS, Woolf CJ. Persistent postsurgical pain: risk factors and prevention. Lancet. 2006;367(9522):1618-25. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(06)68700-X
    » http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(06)68700-X
  • 22.
    Fitzgerald M, McKelvey R. Nerve injury and neuropathic pain: a question of age. Exp Neurol. 2016;275:296-302. http://dx.doi.org/10.1016/j.expneurol.2015.07.013
    » http://dx.doi.org/10.1016/j.expneurol.2015.07.013
  • 23.
    Sørensen K, Christiansen B. Adolescents’ experience of complex persistent pain. Scand J Pain. 2017;15:106-12. http://dx.doi.org/10.1016/j.sjpain.2017.02.002
    » http://dx.doi.org/10.1016/j.sjpain.2017.02.002
  • 24.
    Landry BW, Fischer PR, Driscoll SW, Koch KM, Harbeck-Weber C, Mack KJ, et al. Managing chronic pain in children and adolescents: a clinical review. PM R. 2015;7(11 Suppl):S295-S315. http://dx.doi.org/10.1016/j.pmrj.2015.09.006
    » http://dx.doi.org/10.1016/j.pmrj.2015.09.006
  • 25.
    Jones K, Nordstokke D, Wilcox G, Schroeder M, Noel M. The ‘work of childhood’: understanding school functioning in youth with chronic pain. Pain Manag. 2018;8(2):139-53. http://dx.doi.org/10.2217/pmt-2017-0048
    » http://dx.doi.org/10.2217/pmt-2017-0048
  • 26.
    Betsch TA, Gorodzinsky AY, Finley GA, Sangster M, Chorney J. What’s in a name? Health care providers’ perceptions of pediatric pain patients based on diagnostic labels. Clin J Pain. 2017;33(8):694-8. http://dx.doi.org/10.1097/AJP.0000000000000454
    » http://dx.doi.org/10.1097/AJP.0000000000000454
  • 27.
    Cucchiaro G, Schwartz J, Hutchason A, Ornelas B. Chronic pain in children: a look at the referral process to a pediatric pain clinic. Int J Pediatr. 2017;2017:8769402. http://dx.doi.org/10.1155/2017/8769402
    » http://dx.doi.org/10.1155/2017/8769402
  • 28.
    Miró J, McGrath PJ, Finley GA, Walco GA. Pediatric chronic pain programs: current and ideal practice. Pain Rep. 2017;2(5):e613. http://dx.doi.org/10.1097/PR9.0000000000000613
    » http://dx.doi.org/10.1097/PR9.0000000000000613
  • 29.
    Turkmen AS, Sahiner NC, Koroglu AY, Inal S. Pain and factors that affect its definition as defined by preschool age children: a qualitative study. Rev Eletr Enf. 2018;20:a34. http://dx.doi.org/10.5216/ree.v20.49441
    » http://dx.doi.org/10.5216/ree.v20.49441

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2020
  • Aceito
    22 Abr 2021
Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: reeusp@usp.br