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Estratégias de enfrentamento de enfermeiros no cuidado aos pacientes com neoplasias de cabeça e pescoço* * Extraído do trabalho de conclusão de curso "Enfrentamento de enfermeiros no cuidado a pacientes com neoplasias de cabeça e pescoço", Residência Multiprofissional, Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva, 2014.

RESUMO

OBJETIVO

Compreender e descrever a experiência de desenvolvimento de estratégias de enfrentamento durante a vida profissional de enfermeiras no cuidado aos pacientes com imagem facial alterada.

MÉTODO

Pesquisa qualitativa descritiva, com referencial hermenêutico-dialético, realizada na Seção de Cabeça e Pescoço de um hospital de referência do Rio de Janeiro, com participação de oito enfermeiras e dados produzidos por meio de entrevista semiestruturada entre junho e agosto de 2013.

RESULTADOS

Emergiram três amplos sentidos: estranhamento e complexidade iniciais, que constituem o cuidado ao paciente com imagem facial alterada; limiar entre estranhamento e enfrentamento, correspondendo à emersão das estratégias de enfrentamento durante o cuidado; e imagem-semelhança como (re)conhecimento da pessoa com imagem facial alterada no desenvolvimento e na consolidação das estratégias de enfrentamento durante o cuidado.

CONCLUSÃO

Entre outras contribuições, a identificação e a compreensão das estratégias de enfretamento podem contribuir para melhor qualificar a formação e a assistência de enfermagem.

Descritores:
Neoplasias de Cabeça e Pescoço; Adaptação Psicológica; Enfermagem Oncológica; Pesquisa Qualitativa

Abstract

OBJECTIVE

To understand and describe the experience of the development of coping strategies during the professional life of nurses providing care to patients with facial image alteration.

METHOD

Descriptive qualitative study with a hermeneutic-dialectic framework conducted in the head and neck ward of a reference hospital in Rio de Janeiro, with the participation of eight nurses and data produced through semi-structured interviews conducted between June and August 2013.

RESULTS

Three major impressions were found: initial estrangement and complexity, consisting in the care given to patients with facial image alteration; a threshold between estrangement and coping, corresponding to the emergence of coping strategies during care; and image-likeness as a (re)cognition of the individual with facial image alteration in the development and consolidation of coping strategies during care.

CONCLUSION

Among other contributions, the identification and understanding of coping strategies may contribute to better qualify nursing education and care.

Descriptors
Head and Neck Neoplasms; Adaptation, Psychological; Oncology Nursing; Qualitative Research

Resumen

OBJETIVO

Comprender y describir la experiencia de desarrollo de estrategias de enfrentamiento durante la vida profesional de enfermeras en el cuidado a los pacientes con imagen facial alterada.

MÉTODO

Investigación cualitativa descriptiva, con referencial hermenéutico-dialéctico, llevada a cabo en la Sección de Cabeza y Cuello de un hospital de referencia de Río de Janeiro, con la participación de ocho enfermeras y datos producidos mediante entrevista semiestructurada entre junio y agosto de 2013.

RESULTADOS

Emergieron tres amplios sentidos: extrañamiento y complejidad iniciales, que constituyen el cuidado al paciente con imagen facial alterada; umbral entre extrañamiento y enfrentamiento, correspondiendo a la emersión de las estrategias de enfrentamiento durante el cuidado; e imagen-semejanza como (re)conocimiento de la persona con imagen facial alterada en el desarrollo y la consolidación de las estrategias de enfrentamiento durante el cuidado.

CONCLUSIÓN

Entre otros aportes, la identificación y la comprensión de las estrategias de enfrentamiento pueden contribuir para mejor cualificar la formación y la asistencia de enfermería.

Descriptores
Neoplasias de Cabeza y Cuello; Adaptación Psicológica; Enfermería Oncológica; Investigación Cualitativa

Introdução

No Brasil, estimou-se 15.290 novos casos de câncer de cabeça e pescoço (apenas para a cavidade oral) para 201411 Brasil. Ministério da Saúde; Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Estimativa 2014: incidência de câncer no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: INCA; 2014 [citado 2014 fev. 11]. Disponível em: Disponível em: http://www.inca.gov.br/estimativa/2014/estimativa-24012014.pdf
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. Por exigir estratégias de adaptação e controle de estresse por parte dos profissionais da saúde, são suscitados desafios aos enfermeiros, visto que estes convivem com o padecimento dos pacientes de maneira mais permanente22 Gomes SFS, Santos MMCCS, Carolino ETMA. Psycho-social risks at work: stress and coping strategies in oncology nurses. Rev Latino Am Enfermagem. 2013;21(6):1282-9.

3 Grazziano ES, Bianchi ERF. Impacto do stress ocupacional e burnout para enfermeiros. Enferm Glob [Internet]. 2010 [citado 2015 set. 28];(18). Disponible en: Disponible en: http://revistas.um.es/eglobal/article/viewFile/93801/90461
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4 Edmonds C, Lockwood GM, Bezjak A, Nyhof-Young J. Alleviating emotional exhaustion in oncology nurses: an evaluation of Wellspring's "Care for the Professional Caregiver Program". J Cancer Educ. 2012;27(1):27-36.

5 Lazzarin M, Biondi A, Di Mauro S. Moral distress in nurses in oncology and haematology units. Nurs Ethics. 2012;19(2):183-95.

6 Mark G, Smith AP. Occupational stress, job characteristics, coping, and the mental health of nurses. Br J Health Psychol. 2012;17(3):505-21.
-77 Maron M, Koslowsky M. Relationships between changes in role stressors and intention to quit among novice nurses. Eur J Bus Soc Sci. 2013;2(1):1-14. .

Quando da formação do enfermeiro, o cuidado aos pacientes com imagem facial alterada é concebido como uma experiência complexa e impactante, capaz de interferir no cuidar e na interação entre enfermeiro e paciente. O cuidado aos doentes oncológico-cirúrgicos de cabeça e pescoço é potencialmente uma ameaça ao equilíbrio físico e emocional dos enfermeiros33 Grazziano ES, Bianchi ERF. Impacto do stress ocupacional e burnout para enfermeiros. Enferm Glob [Internet]. 2010 [citado 2015 set. 28];(18). Disponible en: Disponible en: http://revistas.um.es/eglobal/article/viewFile/93801/90461
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4 Edmonds C, Lockwood GM, Bezjak A, Nyhof-Young J. Alleviating emotional exhaustion in oncology nurses: an evaluation of Wellspring's "Care for the Professional Caregiver Program". J Cancer Educ. 2012;27(1):27-36.
-55 Lazzarin M, Biondi A, Di Mauro S. Moral distress in nurses in oncology and haematology units. Nurs Ethics. 2012;19(2):183-95. ,88 Moskowitz JT, Shmueli-Blumberg D, Acre M, Folkman S. Positive affect in the midst of distress: implications for role functioning. J Community Appl Soc Psychol. 2012;22(6):502-18. . A realidade laboral requer capacidade de adaptação às situações de estresse, exigindo o desenvolvimento de um processo de enfrentamento33 Grazziano ES, Bianchi ERF. Impacto do stress ocupacional e burnout para enfermeiros. Enferm Glob [Internet]. 2010 [citado 2015 set. 28];(18). Disponible en: Disponible en: http://revistas.um.es/eglobal/article/viewFile/93801/90461
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4 Edmonds C, Lockwood GM, Bezjak A, Nyhof-Young J. Alleviating emotional exhaustion in oncology nurses: an evaluation of Wellspring's "Care for the Professional Caregiver Program". J Cancer Educ. 2012;27(1):27-36.

5 Lazzarin M, Biondi A, Di Mauro S. Moral distress in nurses in oncology and haematology units. Nurs Ethics. 2012;19(2):183-95.
-66 Mark G, Smith AP. Occupational stress, job characteristics, coping, and the mental health of nurses. Br J Health Psychol. 2012;17(3):505-21.,88 Moskowitz JT, Shmueli-Blumberg D, Acre M, Folkman S. Positive affect in the midst of distress: implications for role functioning. J Community Appl Soc Psychol. 2012;22(6):502-18. . As estratégias de enfrentamento são aprendidas e mantidas ou não ao longo da vida, dependendo de esquemas de reforço experimentados durante a história profissional do indivíduo22 Gomes SFS, Santos MMCCS, Carolino ETMA. Psycho-social risks at work: stress and coping strategies in oncology nurses. Rev Latino Am Enfermagem. 2013;21(6):1282-9. ,88 Moskowitz JT, Shmueli-Blumberg D, Acre M, Folkman S. Positive affect in the midst of distress: implications for role functioning. J Community Appl Soc Psychol. 2012;22(6):502-18. , podendo ser vistas como fator de proteção à saúde dos enfermeiros inseridos no contexto de trabalho99 Dal Pai D, Lautert L. Estratégias de enfrentamento do adoecimento: um estudo sobre o trabalho da enfermagem. Acta Paul Enferm. 2009;22(1):60-5.. No entanto, para além das estratégias de enfrentamento e sua aplicação, a pesquisa procurou interpretar os vários discursos, evidenciando particularidades, confluências e distinções dos processos de enfrentamento evocados em meio à trajetóra de vida, ao campo de atuação, à complexidade das relações socias destas profissionais e aos significados e sentidos por elas atribuidos às suas experiências1010 Araújo JL, Paz EPA, Moreira TMM. Hermeneutics and health: reflections on the thinking of Hans-Georg Gadamer. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2012 [cited 2015 Sep 28];46(1):194-201. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v46n1/en_v46n1a27.pdf
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.

Assim sendo, este estudo objetiva compreender e descrever a experiência profissional de enfrentamento desenvolvida por enfermeiros no cuidado aos pacientes com imagem facial alterada.

Método

Trata-se de pesquisa descritiva, de natureza qualitativa, norteada pela hermenêutica-dialética, adotada como referencial com dupla função: configurador das categorias e questões relacionadas ao objeto, e como procedimento de análise do material empírico. A união da hermenêutica com a dialética é fecunda na condução de um processo ao mesmo tempo compreensivo e crítico da realidade social1111 Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Ciênc Saúde Coletiva. 2012;17(3):621-6. , cabendo ressaltar que, no âmbito das especificidades desse trabalho, a orientação teórico-metodológica central e predominante é de cunho interpretativo-compreensivista, a qual considera como relevante não a suposta verdade dos fenômenos mesmos, mas a verdade simbólica, traduzida por significados e sentidos, atribuída aos fenômenos pelos participantes da pesquisa. Assim, o que interessa, sobretudo, são as atribuições simbólicas à experiência do desenvolvimento de estratégias de enfrentamento, e não as estratégias de enfrentamento em si, aqui aportadas apenas como elementos que dialogam com as categorias empíricas emergidas dos depoimentos1010 Araújo JL, Paz EPA, Moreira TMM. Hermeneutics and health: reflections on the thinking of Hans-Georg Gadamer. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2012 [cited 2015 Sep 28];46(1):194-201. Available from: Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v46n1/en_v46n1a27.pdf
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-1111 Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Ciênc Saúde Coletiva. 2012;17(3):621-6. .

A técnica de produção de dados foi a entrevista biográfica, caracterizada pelo respeito à individualidade e à especificidade do entrevistado, buscando um discurso pelo qual "o sujeito fala da representação que tem dos fatos de sua vida, segundo suas categorias de valores e seus códigos temporais"1212 Gubrium JF, Holstein JA, editors. Handbook of interview research: context and methodology. Thousand Oaks: Sage; 2001. . Neste sentido, antes de estimular a narrativa de vida profissional, foram levantados, mediante roteiro, os dados pessoais e profissionais relativos a sexo, idade, religião, tempo e tipo de formação. Depois, solicitou-se aos depoentes um relato sobre o início, o desenvolvimento e a consolidação de suas experiências quanto às estratégias de enfrentamento durante o cuidado aos pacientes com a imagem facial alterada. As audiogravações foram transcritas, permitindo a aproximação compreensivista por parte dos pesquisadores. A análise foi feita sob o esquema "compreensão/interpretação", o qual pressupõe os exercícios hermenêutico (de extração de categorias empíricas e de sentidos atribuídos) e dialético (de cotejamento entre categorias empíricas e categorias teóricas). A organização e a análise dos dados envolveram: (a) leitura compreensiva; (b) identificação dos sentidos subjacentes; (c) problematização das ideias e dos sentidos e articulação com significados socioculturais; (d) elaboração de síntese de sentidos a partir do diálogo entre dados empíricos e aportes teóricos; (e) elaboração de esquemas dos processos de análise interpretativa, contendo a categorização, seus cotejamentos empírico-teóricos e suas sínteses de sentidos. Participaram do estudo oito enfermeiras sob os seguintes critérios de inclusão: 5 anos ou mais de experiência em enfermagem oncológica de cabeça e pescoço, além da concordância em participar da pesquisa. O estudo foi realizado entre maio e dezembro de 2013, em hospital de referência em Oncologia no Rio de Janeiro, com aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o Parecer nº 272.883.

Resultados

As depoentes tinham entre 32 e 56 anos de idade. Quanto à orientação religiosa, quatro se declararam católicas, três espíritas e uma agnóstica, com experiência profissional variando entre 8 e 30 anos. Apenas uma das depoentes não possuía Especialização em Enfermagem Oncológica. Todas relataram não terem recebido capacitação específica para lidar com a complexidade inerente aos pacientes com imagem facial alterada.

Tendo como referência os objetivos da pesquisa, selecionaram-se 46 recortes de falas, distribuídos em três categorias empíricas: Estranhamento inicial do enfrentamento, com 16 recortes; Emersão das estratégias de enfrentamento, com 14 recortes; e Desenvolvimento e consolidação das estratégias de enfrentamento, com 16 recortes. No interior de cada categoria empírica, os recortes foram reagrupados em subcategorias empíricas.

Quadro 1
Relação entre categorias e subcategorias empíricas.

Na categoriaEstranhamento inicial do enfrentamento concentram-se as significações das primeiras reações diante do impacto inicial da experiência do cuidado aos pacientes.

Figura 1
Esquema do processo de análise interpretativa relativo à categoria empírica Estranhamento inicial do enfrentamento.

Na categoria Emersão das estratégias de enfrentamento agrupam-se as significações dos processos de mudanças cognitivas e de esforços comportamentais, com vistas a administrar as demandas específicas do cuidado aos pacientes.

Figura 2
Esquema do processo de análise interpretativa relativo à categoria empírica Emersão das estratégias de enfrentamento.

A categoria Desenvolvimento e consolidação das estratégias de enfrentamento abrange as significações do amadurecimento cognitivo e comportamental aplicado para administrar as demandas específicas relacionadas ao cuidado dos pacientes.

Figura 3
Esquema do processo de análise interpretativa relativo à categoria empírica Desenvolvimento e consolidação das estratégias de enfrentamento.

Discussão

Três abrangentes sentidos sociais ganham relevo no material empírico, cada um deles vinculados a uma das categorias e às suas respectivas subcategorias.

O sentido de estranhamento e complexidade iniciais que constitui o cuidado ao paciente com imagem facial alterada

Em sua totalidade, as falas constituintes da categoria Estranhamento inicial do enfrentamento, apontam um sentido de estranhamento frente às sequelas decorrentes do tratamento cirúrgico, agravadas pela complexidade do cuidado.

As reações diante da mutilação abarcam a expressão de afetos e sentimentos resultantes das primeiras experiências do cuidar de pacientes com imagem facial alterada. Detalham as características estéticas do paciente: "O paciente de cabeça e pescoço é um paciente desagradável aos olhos. É o distanciamento do ideal da beleza" (E7). Expressam também o desconforto e o medo gerados pela visão da imagem dos pacientes, expondo as dificuldades nos primeiros contatos: "Na época, as cirurgias eram muito mutiladoras. As reconstruções eram horrorosas. Os pacientes pareciam símios horríveis. Então eu fiquei tão assustada, que eu falei para a chefe, naquele primeiro dia de passagem de plantão, que eu não ia suportar ficar" (E1). Há uma contradição evidenciada pelos sentidos de rejeição e de solidariedade, simultaneamente: "Meu Deus, como é que alguém fica assim e fica bem, conversando comigo? E aí, voltei refeita para fazer o curativo dele" (E6). As reações à desfiguração envolvem a relação com o outro que, mesmo semelhante, se apresenta diferente. Tais reações, se impregnadas do estigma social, podem despertar um preconceito latente ou uma identificação projetiva1313 Laplanche J, Pontalis JB. Vocabulário de psicanálise. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2001. , quando há a assimilação de um indivíduo pelo outro em um processo de transferência da pessoa ou da situação vivida: "As lesões infestadas me causaram repulsa. Eu fiquei pensando: gente, eu acho que eu não conseguiria sair na rua assim" (E7).

Ao contrário da rejeição, há na mutilação a identificação de elemento motivador da superação e da mitigação do estranhamento inicial: "Claro que (as faces mutiladas) criaram impacto, mas isso era para o meu crescimento profissional" (E5). É possível que, mesmo implicitamente, a depoente expresse uma inteligência emocional, uma habilidade de controlar as emoções e de se automotivar1414 Goleman D. Inteligência emocional. 10ª ed. Lisboa: Temas e Debates; 2001. ao lidar com os próprios sentimentos, adequando-os à situação vivida à medida que os experimenta, pondo-os a serviço da realização e do desenvolvimento profissional, em um exercício cotidiano de inteligência prática1515 Dejours C, Abdoucheli E, Jayet C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola Dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas; 1994., a qual identificamos como inteligência emocional prática por sua relação entre pensamento e ação.

Outra forma de lidar com o estranhamento inicial é uma espécie de recurso aos sentidos de vocação e missão atribuídos à Enfermagem moderna e que algumas enfermeiras parecem introjetar como opção providencial à superação de obstáculos emocionais ao exercício profissional diante da mutilação facial. Vocação e missão decorrem de conceitos, ideais e estereótipos estabelecidos historicamente e que influenciam a compreensão do significado da Enfermagem como profissão da saúde. Na construção desse imaginário profissional, o legado de Florence Nightingale, fundadora da enfermagem moderna1616 Lee G, Clark AM, Thompson DR. Florence Nightingale: never more relevant than today. J Adv Nurs. 2013;69(2):245-6. , é determinante, seja pela noção de aptidão vocacional, reafirmada pela educação e pelo trabalho como aprimoramentos, seja pela ideia de profissão que possui um cunho missionário: Eu encarei o ocorrido com tranquilidade. A minha reação foi ajudar o médico no curativo. Para mim, foi normal. "Eu não tive uma reação de terror, nem fiquei espantada, nem assustada. Eu acho que foi daí que eu (senti que) fui escolhida" (E2).

As reações diante do contexto social do paciente evidenciam expressões relacionadas à estigmatização social dos pacientes por suas próprias famílias. Enquanto a maioria das reações se centra na aparência facial, algumas encontraram na conduta dos familiares os elementos provocadores do estranhamento inicial: "O que me impactou e me deixou assim mal, foi o filho reclamando que o pai fedia muito e ele não queria ficar com o paciente. Queria que internasse. Queria deixar ele por aí e tudo mais" (E2). A estigmatização social pode ser motivada por medo, desprezo, repulsa, rejeição ou preconceito. O estar com câncer produz implicações físicas, emocionais, afetivas, profissionais e financeiras para o enfermo e para a sua família, gerando estresse, tensão e conflito1717 Glajchen M. Physical well-being of oncology caregivers: an important quality-of-life domain. Semin Oncol Nurs. 2012;28(4):226-35..

A empatia e identidade feminina abrigam um sentido de identificação da enfermeira com a paciente, talvez devido à condição social de ambas como mulher. O enfrentamento inicial não se dá pelo distanciamento, medo ou rejeição. O cuidado, além de encontro interpessoal com objetivo terapêutico e de conforto, se fortalece pelo acolhimento, solidariedade e empatia com a paciente1818 Watson J. Human caring science: a theory of nursing. Ontario: Jones & Bartlett; 2012.. O foco não está na doença, mas na condição da mulher: "Não teve nada impactante assim... A não ser me colocar no lugar das mulheres que eram traqueostomizadas" (E3).

Nas reações diante do desconhecido surge um sentido híbrido de insegurança e mobilização. Na insegurança, há necessidade de enfrentar as incertezas do desconhecido: "Eu me senti inútil, (...) incapacitada porque eu nunca tinha cuidado de um paciente, nunca tinha mexido com paciente traqueostomizado na minha faculdade. Eu não conhecia este tipo de paciente" (E4). E na mobilização, há exigência de mudança da concepção de cuidado por meio de uma aprendizagem prática, sendo tal desafio uma fonte inspiradora do desenvolvimento profissional: "Foi para mim um desafio. Eu tive que enfrentar uma nova visão acerca dos cuidados de enfermagem, ricos em cuidados, muito ricos, em que eu podia aprender muito e também oferecer muito de mim" (E4). Ambas as reações remetem ao ideário de ponte entre educação e dedicação ao trabalho como aprimoramento profissional, sendo a prática do cuidado o cerne da enfermagem e o mote para a relação transpessoal que gera tanto inseguranças como mobilizações no processo de conhecimento de si e do outro1818 Watson J. Human caring science: a theory of nursing. Ontario: Jones & Bartlett; 2012..

Amutilação como cura comporta um sentido - imerso no senso comum - de que a retirada cirúrgica do tumor se constitui na extirpação definitiva da doença, talvez como tentativa de justificar as perdas e as deformações consequentes das cirurgias, reinterpretando positivamente o estado do paciente22 Gomes SFS, Santos MMCCS, Carolino ETMA. Psycho-social risks at work: stress and coping strategies in oncology nurses. Rev Latino Am Enfermagem. 2013;21(6):1282-9. , uma vez que a possibilidade de cura pela cirurgia é contraposta a uma provável evolução irreversível da doença: "Nos casos cirúrgicos você tem a mutilação, mas aquela pessoa, pelo menos, ficou livre do câncer" (E7).

O sentido de limiar entre estranhamento e enfrentamento que constitui a emersão das estratégias de enfrentamento durante o cuidado

O sentido predominante na categoria Emersão das estratégias de enfrentamento evidencia os primeiros ensaios (cognitivos e comportamentais) de identificação de estratégias por parte das enfermeiras, quando inseridas no limiar entre estranhamento inicial e enfrentamento. Pode-se, também, interpretar o sentido de limiar como fronteira entre situações problemáticas internas/externas (estranhamento inicial) e desenvolvimento/afirmação da identidade profissional (enfrentamento).

O enfrentamento pela imaginação envolve a sublimação da aparência real pela projeção de uma aparência idealizada, indicando uma transição entre o estranhamento inicial e a busca de uma estratégia de enfrentamento, conduzida por mudanças cognitivas e esforços comportamentais voltados para administrar demandas específicas (pessoais) e/ou externas (ambientais) decorrentes de eventos estressantes22 Gomes SFS, Santos MMCCS, Carolino ETMA. Psycho-social risks at work: stress and coping strategies in oncology nurses. Rev Latino Am Enfermagem. 2013;21(6):1282-9. ,88 Moskowitz JT, Shmueli-Blumberg D, Acre M, Folkman S. Positive affect in the midst of distress: implications for role functioning. J Community Appl Soc Psychol. 2012;22(6):502-18. . A identificação da estratégia de enfrentamento baseia-se na emoção (projeção idealizada, possivelmente como mecanismo de defesa): Então, por uma questão de humanidade, busquei criar uma máscara de perfeito. O seu nariz não está aí, mas tá tudo certo. "(...) Eu fui literalmente me acostumando. Cada dia eu tentava esquecer a face. Tinha que me acostumar. É a minha profissão" (E1).

O enfrentamento pelo afeto traduz um sentido decorrente das relações cotidianas entre enfermeiras e pacientes como elemento deflagrador da identificação da estratégia de enfrentamento, o qual pode ser ressignificado como uma reinterpretação positiva88 Moskowitz JT, Shmueli-Blumberg D, Acre M, Folkman S. Positive affect in the midst of distress: implications for role functioning. J Community Appl Soc Psychol. 2012;22(6):502-18. , o que possibilita ao enfermeiro agregar ao seu ofício o cultivo de emoções1919 Aldridge, M. Unlimited liability? Emotional labour in nursing and social work. J Adv Nurs . 1994;20(4):722-8. . Tal processo é inerente ao cuidar, especialmente o cuidado em Enfermagem1818 Watson J. Human caring science: a theory of nursing. Ontario: Jones & Bartlett; 2012., visto que este implica sensibilidade e coparticipação: "(...) os pacientes me trouxeram tanto carinho, tanta atenção, tanta dependência emocional, que eu me tornei meio mãe" (E1).

A subcategoria enfrentamento pelo altruísmo aponta um sentido de equilibração das emoções decorrentes do estranhamento inicial, por meio da iniciativa de ajuda que parte da dimensão pessoal e transcende a dimensão profissional, direcionando-se para o benefício exclusivo do cuidado ao paciente. Implica disponibilização do Eu para o Outro, criando uma recepção possível para aquilo que o Outro oferece de diferente do Eu2020 Lévinas E. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70; 1980.. A condição do Outro impele o Eu a dedicar-lhe atenção. O acolhimento pelo Eu é determinado pelas necessidades do Outro: "Eu não sei se eu tenho dentro de mim uma certa fortaleza, pra lidar com isso (...) Sempre procurando me mobilizar interiormente, no sentido de ajudar a pessoa" (E7).

O enfrentamento pelo dever profissional é o caráter deontológico, indicando uma escolha moral diante do enfrentamento, uma decisão consciente por fazer o que deve ser feito, tendo as atribuições profissionais como deflagradoras das estratégias de enfrentamento. Para atuar como força motriz, o dever profissional requer provisão de ambiente de apoio, proteção e, de acordo com o contexto, uma espécie de neutralização mental, física e espiritual1818 Watson J. Human caring science: a theory of nursing. Ontario: Jones & Bartlett; 2012.: "A minha obrigação de enfermeira é prestar assistência ao paciente como um todo, desde o início, sem julgar e sem demonstrar qualquer tipo de horror à imagem dele" (E4).

O enfrentamento pela separação entre vidas profissional e pessoal aponta uma suposta dissociação entre as experiências da prática profissional e do cotidiano pessoal, o que exige uma problematização, visto que há controvérsias quanto à possibilidade de uma total separação entre elas. A promoção da ignorância emocional mútua entre experiências profissionais e pessoais é uma estratégia defensiva de escamoteação88 Moskowitz JT, Shmueli-Blumberg D, Acre M, Folkman S. Positive affect in the midst of distress: implications for role functioning. J Community Appl Soc Psychol. 2012;22(6):502-18. , evitando a reflexão sobre as reais consequências deste separatismo. Em geral, ocorre uma sobreposição nociva da vida profissional à vida privada, por meio de uma crescente negligência desta em favor daquela2121 Elias MA, Navarro VL. A relação entre o trabalho, a saúde e as condições de vida: negatividade e positividade no trabalho das profissionais de enfermagem de um hospital escola. Rev Latino Am Enfermagem . 2006;14(4):517-25. . Em ambas as experiências, a profissional e a pessoal, vislumbra-se a ausência da práxis, ou seja, o não pensar sobre o fazer, estabelecendo uma vivência não refletida sobre a experiência recente, visto que "A vivência se diferencia da experiência porque ela consiste na elaboração do indivíduo sobre tudo o que experimenta"2222 Minayo MCL. Los conceptos estructurantes de la investigación cualitativa. Salud Colectiva. 2010;6(3):251-61.. A depoente parece não imergir nos significados mais contundentes de sua experiência, o que pode ser uma forma de amenizar as sensações adversas de um estado de estresse: "Eu vivo ali, para aquele momento do cuidado. Quando eu saio daquele momento, eu me desconecto. É como se aquilo não existisse e eu procurasse vivenciar outras coisas. Não fico imaginando tanto" (E5).

Em enfrentamento pelo estudo emerge o investimento no acúmulo de conhecimentos como forma deflagradora de uma possível estratégia de enfrentamento. A tentativa de modificação da realidade que provoca o estranhamento se dá pela aquisição de informações e conhecimentos, o que possibilitaria o adequado enfrentamento das situações adversas da prática laboral, caracterizando uma estratégia baseada no problema22 Gomes SFS, Santos MMCCS, Carolino ETMA. Psycho-social risks at work: stress and coping strategies in oncology nurses. Rev Latino Am Enfermagem. 2013;21(6):1282-9. ,88 Moskowitz JT, Shmueli-Blumberg D, Acre M, Folkman S. Positive affect in the midst of distress: implications for role functioning. J Community Appl Soc Psychol. 2012;22(6):502-18. , se considerada a intenção da enfermeira de intervir sobre a fonte da tensão: "Eu busquei artigos. Comecei a ler porque nos artigos (...) tem artigos que falam que a família é o segundo paciente do enfermeiro" (E8).

O enfrentamento pelo trabalho em equipe também remete a uma estratégia baseada no problema22 Gomes SFS, Santos MMCCS, Carolino ETMA. Psycho-social risks at work: stress and coping strategies in oncology nurses. Rev Latino Am Enfermagem. 2013;21(6):1282-9. ,88 Moskowitz JT, Shmueli-Blumberg D, Acre M, Folkman S. Positive affect in the midst of distress: implications for role functioning. J Community Appl Soc Psychol. 2012;22(6):502-18. , com um sentido de crença no trabalho em equipe como favorecedor do surgimento das estratégias de enfrentamento. A equipe, entendida como corpo técnico, mas também como grupo social, funciona como promotora da emersão de estratégias, constituindo-se em suporte para a atuação profissional e fonte de resoluções de problemas: "Eu gosto muito da minha equipe de trabalho. (...) É um grupo que você sabe que você pode contar. (...) Você sabe que, no próximo plantão, eles estarão juntos com você e isso é muito legal" (E6).

Em enfrentamento pela autoestima , há o bem-estar próprio como condição para cuidar do outro. O cuidado do outro requer o cuidado de si como estratégia de enfrentamento pelo cultivo consciente da autoestima. O cuidado de si implica o cuidar-se com uma das técnicas de si, as quais possibilitam ao indivíduo intervir sobre si com vistas a um estado de satisfação2323 Foucault M. Historia de la sexualidad 3: la inquietude de sí. 2ª ed. Buenos Aires: Siglo Veintiuno; 2010.. A sua aplicação não se restringe à Enfermagem2424 Silva IJ, Oliveira MFV, Silva SED, Polaro SHI, Radünz V, Santo EKA, et al. Care, self-care and caring for yourself: a paradigmatic understanding thought for nursing care. Rev Esc Enferm USP. 2009;43(3):690-5. , estendendo-se a outros profissionais, embora o enfermeiro conviva mais intensamente com o padecer do outro, carecendo ainda mais de uma relação saudável consigo: "Faço yoga, faço pilates. A yoga para controlar, estabilizar corpo e mente. E isso é muito legal" (E6). Outra reflexão possível é indagar se o cuidado de si, além de condição necessária, é também condição suficiente, visto que o cuidado de si pode não garantir um grau de satisfação capaz de mobilizar para o cuidado do outro, principalmente se, para ser pleno, o estado de bem-estar de si implicar o estado de bem-estar do outro, o que nem sempre é conseguido.

Em enfrentamento pela religiosidade , considera-se que a fé é um sentimento confessional, institucionalizado ou não, um redutor do desconforto e da tensão, que propicia a busca por estratégias de enfrentamento. Pressupõe-se um ser ou poder superior à condição humana2525 Ekedahl MA, Wengström Y. Caritas, spirituality and religiosity in nurses coping. Eur J Cancer Care. 2010;19(4):530-720. ) que atua como promotor do enfrentamento por meio da possibilidade de superação das angústias inerentes ao cuidado: "Eu busco na religião a força para fazer o meu trabalho. Sou espírita; minha mãe é espírita" (E8). Por vezes, a religiosidade se expressa como parte de uma doutrina, um sistema que intermedeia a relação do humano com o sagrado, significando a vida e orientando o fazer, possibilitando transcender o estranhamento diante do paciente. Exerce função intrínseca, quando integra o viver da pessoa, caracterizando-a como genuinamente religiosa; ou extrínseca, quando supre as suas necessidades de autoproteção e segurança2525 Ekedahl MA, Wengström Y. Caritas, spirituality and religiosity in nurses coping. Eur J Cancer Care. 2010;19(4):530-720. . Além da ideia de doutrina, a religiosidade se expressa pela noção de espiritualidade que, na relação com o transcendente, deslinda a produção de uma energia humana1818 Watson J. Human caring science: a theory of nursing. Ontario: Jones & Bartlett; 2012.,2525 Ekedahl MA, Wengström Y. Caritas, spirituality and religiosity in nurses coping. Eur J Cancer Care. 2010;19(4):530-720. -2626 Ramezani M, Ahmadi F, Mohammadi E, Kazemnejad A. Spiritual care in nursing: a concept analysis. Int Nurs Rev. 2014;61(2):211-9. potencialmente transformadora de emoções, atitudes e comportamentos: "Ah, minha religião ajuda bastante. Eu sou católica, mas não sou tão praticante. Eu tenho fé em Deus. Eu converso sempre com Deus. Peço, às vezes, pra Ele me resgatar, porque, às vezes, também não estamos bem e temos que trabalhar" (E5). Em ambas as falas, pode-se inferir que a religiosidade é fonte de conforto, favorecendo o aparecimento de estratégia de enfrentamento tanto pela emoção quanto pela atitude defensiva de sublimação da realidade.

O sentido de imagem-semelhança como (re)conhecimento da pessoa com imagem facial alterada no desenvolvimento e na consolidação das estratégias de enfrentamento durante o cuidado

O sentido maior que atravessa a categoria Desenvolvimento e consolidação das estratégias de enfrentamento é o de que o cuidado ao paciente com imagem facial alterada requer uma autêntica relação de mutualidade, baseada no tripé ajuda-confiança-empatia. Suas contradições, assim como a condição de vulnerado do paciente, também integram as idiossincrasias da condição humana. A enfermeira reencontra-se e compreende-se como ser finito, porém, pleno de infinitas possibilidades. Reconhece que o outro, embora esteticamente diferente, existe à sua imagem e semelhança e é coprodutor de um cuidado que ultrapassa a deontologia e a técnica inerente ao fazer em Enfermagem.

A consolidação de estratégia pelo humanismo evoca a redescoberta e a reafirmação do humano. Decorridas as reações iniciais tanto do paciente como das enfermeiras, ocorre o fenômeno do cuidado transpessoal1818 Watson J. Human caring science: a theory of nursing. Ontario: Jones & Bartlett; 2012., por meio de uma maturação das relações humanas: "Com o tempo, cada vez menos eu via a mutilação e cada vez mais eu via aquele ser ali, por trás daquilo, assim, dependente de mim, precisando que eu desse a maior força" (E1).

Em consolidação pela crença na cura pela mutilação , a conformação da estratégia de enfrentamento transcende a rejeição, a idealização e a identificação projetiva iniciais, culminando no reconhecimento da dimensão humana sublimadora da condição vulnerada do paciente, pois se dá pela redescoberta da pessoa do doente como maior do que a doença e suas sequelas. Também aqui, ressalvadas as críticas à ideia de cura pela mutilação, o cuidado transpessoal1818 Watson J. Human caring science: a theory of nursing. Ontario: Jones & Bartlett; 2012. acaba por se constituir em um caminho distinto do descrito anteriormente: "No início foi um pouco difícil manter aquela máscara de 'ah, tudo bem', mas depois (...) aquilo se tornou habitual em mim. Eu me acostumei de tal forma com eles, e eu aprendi com eles que importante não era exatamente a forma com que eles ficavam, e sim eles terem se livrado do câncer. A mutilação que eles estavam apresentando era muito melhor do que o tumor que eles tinham antes" (E1).

A consolidação de estratégia pelo estudo indica a apropriação de conhecimentos como forma de fundamentar o enfrentamento. Trata-se da consolidação calcada na técnica, seja quanto aos procedimentos de aplicação, seja quanto à habilidade interpessoal durante o cuidado, o que traduz um enfrentamento pelo problema22 Gomes SFS, Santos MMCCS, Carolino ETMA. Psycho-social risks at work: stress and coping strategies in oncology nurses. Rev Latino Am Enfermagem. 2013;21(6):1282-9. ,88 Moskowitz JT, Shmueli-Blumberg D, Acre M, Folkman S. Positive affect in the midst of distress: implications for role functioning. J Community Appl Soc Psychol. 2012;22(6):502-18. , visto que ao estudo como estratégia subjaz a pretensão de maior domínio sobre os problemas do cuidado. Embora centrado no problema, o foco principal da estratégia é assegurar um melhor cuidado ao indivíduo humano: "Para isso é que eu estou estudando. Estou fazendo meu mestrado, que é para me aperfeiçoar mais, para poder cuidar melhor. É isso. É a força de vontade que eles têm de viver. Só isso" (E1).

A consolidação de estratégia pelo dever profissional explicita um sentido deontológico de compromisso profissional, remetendo a um preceito moral do Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem2727 Conselho Federal de Enfermagem. Resolução n. 441, de 23 de maio de 2013. Dispõe sobre participação do enfermeiro na supervisão de atividades prática e estágio supervisionado de estudantes dos diferentes níveis da formação profissional de enfermeiro [Internet]. Brasília: COFEn; 2013 [citado 2015 set. 28]. Disponível em: Disponível em: http://novo.portalcofen.gov.br/resolucao-cofen-no-4412013_19664.html
http://novo.portalcofen.gov.br/resolucao...
, no qual o humanismo fundamenta o dever profissional e funciona como consolidador da estratégia de enfrentamento: "Enquanto profissional, eu acho que estou nesse momento ajudando eles a se firmarem como pessoas diante da vida. Eles estão fortes, estão passando por uma experiência, mas estão aqui e podem contar com a minha ajuda a qualquer momento" (E2).

A consolidação de estratégia pelo modelo de luta pelo viver indica o afã de viver do paciente como deflagrador de um processo de autoconhecimento na enfermeira que, sob uma percepção ampliada do cuidar permeada pelo dualismo entre vulnerabilidade e coragem, qualifica o paciente como um destemido que cumpre a sua jornada: "Eu acho que diante de tantas coisas da vida da gente, essas pessoas, mesmo sofrendo, elas querem viver. Então, eu acho que eles são heróis" (E4). A jornada do herói como monomito2828 Campbell J. O herói de mil faces. São Paulo: Cultix; 1997. compõe-se de três seções (partida, iniciação e retorno) constituídas de vários estágios que implicam provações, colocando o indivíduo no limiar entre vida e morte, dele exigindo determinação excepcional. Se o herói é aquele que sofre um rito de transformação2828 Campbell J. O herói de mil faces. São Paulo: Cultix; 1997., podemos inferir que o herói também é aquele que inspira o rito de transformação do outro, visto que o monomito do paciente inspira a enfermeira na consolidação da estratégia de enfrentamento.

A consolidação de estratégia pelo trabalho em equipe aponta o enfrentamento compartilhado que, enquanto construção coletiva, mescla aspectos sociais e emocionais, favorecendo o processo do cuidado: "A gente senta e conversa, e compartilha os problemas" (E3) ou "Tudo que você faz é um processo que tem que ter o grupo" (E8). Caracteriza um enfrentamento pelo problema22 Gomes SFS, Santos MMCCS, Carolino ETMA. Psycho-social risks at work: stress and coping strategies in oncology nurses. Rev Latino Am Enfermagem. 2013;21(6):1282-9. ,88 Moskowitz JT, Shmueli-Blumberg D, Acre M, Folkman S. Positive affect in the midst of distress: implications for role functioning. J Community Appl Soc Psychol. 2012;22(6):502-18. , pois o suporte social dos pares atua como requisito, já que o enfrentamento durante o cuidado demanda ambiente de apoio, proteção ou neutralizações mental, física e espiritual1818 Watson J. Human caring science: a theory of nursing. Ontario: Jones & Bartlett; 2012.. O compartilhamento não se restringe à divisão de tarefas, mas envolve a busca por soluções para as dificuldades coletivas e individuais.

A consolidação de estratégia pela afetividade e efetividade do cuidado ressalta um sentido de mutualidade advindo da relação de cooperação entre paciente e enfermeira, tendo como consequência os impactos positivos no estado físico do primeiro como resultados obtidos com o cuidado praticado por ambos. A consolidação da estratégia se dá pelo movimento circular de cuidados afetivos e efetivos mútuos, preconizando um cuidado transpessoal1818 Watson J. Human caring science: a theory of nursing. Ontario: Jones & Bartlett; 2012. de enfrentamento pela emoção22 Gomes SFS, Santos MMCCS, Carolino ETMA. Psycho-social risks at work: stress and coping strategies in oncology nurses. Rev Latino Am Enfermagem. 2013;21(6):1282-9. ,88 Moskowitz JT, Shmueli-Blumberg D, Acre M, Folkman S. Positive affect in the midst of distress: implications for role functioning. J Community Appl Soc Psychol. 2012;22(6):502-18. , fundado na relação de ajuda e confiança entre enfermeira e paciente. Marca o processo do cuidado como uma experiência preciosa de atenção autêntica, ética e intencional: "Nós aprendemos sempre com os pacientes. Uma vez foi o paciente que me ajudou. Eu estava com um problema pessoal. Ele fez uma oração por mim. Veio para saber se eu estava melhor. E isso me ajudou maravilhosamente bem. Isso me torna uma pessoa feliz, porque trabalho num lugar que gosto e recebo retorno, tanto dos pacientes quanto das feridas que cicatrizam" (E2).

Em consolidação de estratégia pela pertença a grupos sociais , a atribuição de sentidos concentra-se na ideia de inserção e interação em grupos sociais solidários. Ao que tudo indica, a consolidação da estratégia de enfrentamento manifesta-se pela busca da solidariedade como suporte social formal ou informal, o que pode ser caracterizado como um enfrentamento pela emoção22 Gomes SFS, Santos MMCCS, Carolino ETMA. Psycho-social risks at work: stress and coping strategies in oncology nurses. Rev Latino Am Enfermagem. 2013;21(6):1282-9. ,88 Moskowitz JT, Shmueli-Blumberg D, Acre M, Folkman S. Positive affect in the midst of distress: implications for role functioning. J Community Appl Soc Psychol. 2012;22(6):502-18. em dois sentidos distintos: como um cuidado transpessoal1818 Watson J. Human caring science: a theory of nursing. Ontario: Jones & Bartlett; 2012., praticado nos grupos sociais, servindo de suporte à prática do cuidado em enfermagem; e como comportamento defensivo, pautado por um certo grau de afastamento, no qual as tentativas de regular o impacto emocional do confronto do indivíduo com realidades difíceis e estressantes ficam difusas entre a religião, a família e os amigos: "Foi mesmo a minha religião, meus amigos, minha família, coisas do dia a dia. Assim, eu por mim mesma ia buscando as coisas também" (E5).

Conclusão

O relato da história de vida profissional das enfermeiras no cuidado aos pacientes com imagem facial alterada possibilitou uma maior aproximação aos processos de identificação, desenvolvimento e consolidação das estratégias de enfrentamento e suas respectivas ressignificações. Para a maioria das enfermeiras, o estranhamento inicial na lida com esses peculiares pacientes foi permeado por dificuldades tanto técnico-científicas como emocionais. Não obstante o início difícil, as suas trajetórias profissionais foram marcadas por descobertas e redescobertas de si mesmas e dos outros, amadurecendo-as como pessoas e como profissionais. A consolidação de estratégias de enfrentamento permitiu a evolução de uma situação de estranhamento inicial para a de satisfação e cuidados consolidados.

Para além dos aspectos técnicos e emocionais, as enfermeiras exercitaram a sua capacidade de superação por meio de um dos atributos mais caros à Enfermagem: o reconhecimento da condição humana marcada pela fortuidade da vida, em uma tomada de consciência acerca da singularidade constituinte de todo indivíduo. A busca consciente por soluções para os problemas da prática cotidiana do cuidado favorece a tomada de decisão e os processos de ajustamento efetivo e adequado. Considerando-se a complexidade do cuidado no âmbito da Oncologia, a identificação e a compreensão das estratégias de enfretamento podem servir ao planejamento curricular da formação de futuros enfermeiros, contribuindo para melhor qualificar a assistência de enfermagem. A formação de enfermeiros deve ser capaz de suprir a lacuna existente quanto à preparação deste profissional para lidar com a adversidade típica da enfermagem oncológica.

Uma meta possível seria reduzir o tempo entre o estranhamento inicial ‒ marcado pelo impacto de difícil absorção - e a consolidação de estratégias de enfrentamento, facilitando assim a convivência com as situações adversas e estressoras, possibilitando aos futuros enfermeiros transformarem ou mitigarem os desafios emocionais e cognitivos que delas advirão. Sob uma perspectiva futura de desdobramentos da atual pesquisa, estudos mais aprofundados nos campos da pedagogia e da psicologia podem contribuir para a consolidação de um perfil profissional adequado às especificidades da assistência de enfermagem ao paciente com neoplasias de cabeça e pescoço.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    22 Out 2015
  • Aceito
    28 Jun 2016
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