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Conferências com o espírito Solvay em áreas cientificamente emergentes: um impulso notável para a construção de conhecimento (ou: Sabem o que a Física disse para a Ciência da Enfermagem?)

Caras Enfermeiras e Caros Enfermeiros, não posso deixar de iniciar agradecendo essa nova oportunidade de me dirigir a vocês em um editorial. Como nas vezes anteriores, vou enveredar pela trilha do conhecimento. Se em 2005(1Trzesniak P. Being a researcher, being an editor, being an author [editorial]. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2005 [cited 2015 Feb 23];39(1):9-10. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v39n1/en_a01v39n1.pdf
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) discuti a sua comunicação e, em 2009(2Trzesniak P. Brazilian nursing journals: great achievements, new challenges [editorial]. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2009 [cited 2015 Feb 23];43(4):740-1. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v43n4/en_a01v43n4.pdf
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), sua visibilidade e sua identidade dentro da área, desta vez abordarei a construção do conhecimento. Como sempre, advirto que se trata de um olhar externo, alienígena, sobre a área que é de vocês. Pode, eventualmente, trazer alguma contribuição - se assim for, excelente - mas sem dúvida pode lhes revelar como sua área é vista por alguém que a ela não pertence. Por favor, sintam-se à vontade de concluir que essa impressão externa é totalmente equivocada. Porém, também, por favor, abstenham-se de execrar excessivamente o autor.

A visão que tenho da enfermagem é a de uma profissão extraordinariamente importante e de uma ciência emergente. Essa segunda condição não é, presentemente, exclusiva da enfermagem. Tenho a mesma impressão das ciências contábeis, da administração, da psicologia e de outras mais. Trata-se de uma percepção que não envolve qualquer julgamento de valor: é meramente a apreensão de que o momento epistemológico pelo qual essas áreas passam (e que para cada uma delas é diferente) as caracteriza como ciências em processo de consolidação. Retornando suficientemente no tempo, a própria matemática - hoje tão abstrata - deve ter raízes em profissões ou tecnologia, por exemplo, na riqueza e no comércio: ela permitia antecipar o resultado de transações de quantidades. Assim, a soma era capaz de prever que seria de 20 cabeças o tamanho final do rebanho de um casal, prestes a contrair matrimônio, em que a noiva entrasse com três vacas, o noivo com nove e o pai da noiva - a título de dote - com outras oito. Igualmente, multiplicação e subtração assegurariam que o tamanho final do rebanho seria o mesmo, 14 vacas, quer o casal vendesse duas vacas três vezes ou três vacas duas vezes... Sim, a matemática, como também a física, já foram bem mais profissão que ciência.

Esse contexto traz à mente a questão: se existem exemplos de áreas que já transitaram da tecnologia/profissão para a ciência/pesquisa, não há nada que daí possa ser aprendido para acelerar o processo correspondente nas áreas emergentes? Minha resposta para isso é sim, sem dúvida, mas que fique bem claro desde já que não se trata de, por vezes precipitadamente, importar daquelas áreas a metodologia quantitativa, como fartamente se encontra em grande parte da literatura científica. Tal etapa, se e quando necessária, precisa ser obrigatoriamente antecedida pelo estabelecimento de um referencial conceitual claro, rigoroso, estabelecido e compartilhado por toda a comunidade de pesquisa da área. Não há como nem por que quantificar sem isso: como medir algo que, de fato, não está totalmente definido, cuja natureza é apenas vagamente estabelecida? Não se pode atribuir valor, uma expressão quantitativa muito acurada da informação, a uma entidade qualitativamente difusa(3Trzesniak P. Indicadores quantitativos: como obter, avaliar, criticar e aperfeiçoar. Navus Rev Gestão Tecnol [Internet]. 2014 [cited 2015 Feb 23];4(2):05-18. Available from: http://navus.sc.senac.br/index.php/navus/article/view/223/174
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).

Porém a história que desejo mesmo contar tem mais de 100 anos. Era 1911. A Física, uma ciência considerada pronta e acabada no final do século XIX... havia regredido! Observações e descobertas, então recentes, como a hipótese quântica de Planck e sua aplicação, por Einstein, para explicar o efeito fotoelétrico; a relatividade especial, também de Einstein; e a modelagem do átomo e suas incoerências simplesmente não se encaixavam no panorama teórico vigente. De fato, a Física, como área do conhecimento, retornara à infância. Aliás, é perfeitamente válido colocar-se em questão se a compreensão do novo contexto representou uma continuação da física existente ou algo suficientemente novo para constituir um novo campo de estudos. Por precaução, antes que algum aventureiro lançasse mão, os físicos asseguraram a posse desse novo campo, rotulando-o Física Moderna. Para diferenciar, o conhecimento que existia anteriormente virou Física Clássica.

A infância e a adolescência da física moderna - em especial, da física quântica, uma de suas partes - foi, porém, relativamente breve. Cerca de 15 anos depois, já era uma adulta jovem e senhora de si - um tempo curto comparado a uma evolução correspondente da física clássica, que, como todas as áreas do conhecimento, já havia sido criança e adolescente nos séculos anteriores.

É cabível argumentar que a evolução mais rápida da física moderna foi uma decorrência de já haver conceitos e teorias da física clássica, uma bagagem em geral indisponível quando uma nova área do conhecimento surge. Mas tal argumento não se aplica ao caso. Pelo contrário, as tentativas de utilizar os conceitos clássicos - como tempo, posição, trajetória, velocidade - mais retardaram que promoveram o avanço da física moderna. Foi preciso abandoná-los ou revê-los para efetivamente atingir um novo consenso descritivo dos fenômenos observados. Por outro lado, há um fator sem dúvida decisivo para a rapidez do avanço: uma conjunção única, extraordinária, de destacadas inteligências. A lista completa é demasiado longa para ser incluída aqui, mas caso deseje conhecê-la, visite http://pt.wikipedia.org/wiki/Conferência_de_Solvay

As duas condições mencionadas no parágrafo anterior - referencial conceitual consolidado e conjunção de mentes extraordinárias - são sem dúvida importantes, mas não se pode garantir que existam em uma certa área no momento de sua infância e juventude. Houve, na construção da Física moderna, um terceiro fator, as Conferências de Solvay, com seus três grandes diferenciais: uma temática única e bem definida, a seleção dos participantes e o formato.

A cada versão da Conferência de Solvay, o aspecto principal era o tema. No cenário de um conhecimento em construção, as dúvidas e incertezas eram muitas: epistemológicas, conceituais, de interpretação de resultados observados, bem como de arquitetura, harmonia e integração do todo. Não havia clareza nem mesmo a respeito da natureza do objeto de estudo. O tema contemplava sempre uma dessas grandes incertezas e dúvidas: não um evento para relatar o passado, mas para projetar o futuro, para ser um momento de concepção, e não de autópsia. Então tinha que ser um problema relevante dentro da área, cuja solução representasse uma ruptura positiva, um efetivo avanço no rumo da compreensão e consolidação de fundamentos, princípios, conceitos e das relações lógicas entre eles, e desse todo com o "mundo real". Isso, quanto à relevância. Mas o tema tinha que ser também estabelecido sob medida - nem muito amplo, nem excessivamente restrito - para interessar, mobilizar e desafiar os mais destacados pesquisadores a ele dedicados.

Definido o tema, os participantes, com as características apontadas no final do parágrafo anterior, eram selecionados e convidados nominalmente pelos organizadores. Não havia inscrições, não se tratava de um evento profissional ou voltado para estudantes, nem mesmo de doutorado. Reunia-se a "a nata", a vanguarda da investigação científica. Diz a prática do gerenciamento de reuniões que a máxima eficácia é atingida se dela fizerem parte somente aquelas pessoas que tenham a ver com a formulação do problema a ser tratado ou com sua solução. Esse era precisamente o critério de escolha.

Finalmente, o formato: as sessões eram plenárias, de foro único, durante todo o tempo de duração do evento - muito diferente da quase totalidade dos congressos atuais, em cujas sessões um conjunto de indivíduos passa por momentos de convivência efêmera, e aqueles que eventualmente opinam, quase sempre o fazem sem terem de fato se aprofundado no que está sendo apresentado. Responda e contabilize com sinceridade: a quantas apresentações você já assistiu em que a platéia era majoritariamente composta pelos palestrantes e seus amigos, estes frequentemente saindo assim que o trabalho correspondente (ao amigo) terminava? Quantas vezes viu uma pessoa falando como quem cumpre uma obrigação, sem um real envolvimento com a construção do conhecimento? Quantas vezes se decepcionou com a maioria, senão com a totalidade, dos trabalhos integrantes de uma sessão? Evidentemente, há vantagens e é necessário que existam os macro-eventos, em que, aqui e ali, eventualmente apareçam contribuições importantes e de peso. Mas eles acabam envolvendo quase que exclusivamente o conhecimento finalizado, sua tônica é a de uma pesquisa encerrada, post mortem. A rigor, é raríssimo o apresentante de fato estar ali com uma expectativa de que os assistentes venham a trazer contribuições para a continuidade de sua pesquisa: ela já terminou. A maior (e indispensável) importância desse tipo de evento reside na oportunidade da convivência de pesquisadores juniores e seniores e no amadurecimento científico dos primeiros. A construção de conhecimento e o desenvolvimento futuro não são a questão primária aí.

Compare-se esse contexto com o de um pequeno grupo de pesquisadores seniores tratando, por dois ou três dias, exclusivamente de um dos problemas cruciais e fundamentais em aberto na área. Projetando o futuro, idealizando novas abordagens, novas reflexões, novas pesquisas. Combinando encontros e trocas, vamos escrever um artigo, um capítulo, um livro juntos; vamos nos convidar mutuamente para as defesas de teses e dissertações dos nossos orientandos, dentro desse tema cuja estrutura precisamos desvendar. Vamos identificar outros problemas em nossa área. Vamos olhar para frente, para o futuro - e além.

O espírito retratado no parágrafo anterior se preservou no Brasil, por algum tempo e em algumas áreas, nos eventos das Associações Nacionais de Pesquisa e Pós-graduação (ANPPs). Em princípio, lá só estariam os pesquisadores orientadores de teses e dissertações, organizados em Grupos de Trabalho (GTs) conforme seus interesses de pesquisa e discutindo um tema atinente a esse interesse. Os GTs se reuniam por pelo menos dois dias inteiros, sem a apresentação formal de trabalhos, mas discutindo problemas, soluções e projetando o futuro - isto é, cada um deles era como um "Congresso de Solvay"! Infelizmente, em muitos casos, as ANPPs agora fazem meramente eventos do tipo "mais do mesmo", até mesmo com alunos de graduação, sem se dar conta de sua especificidade de representarem a nata da pesquisa e de terem a responsabilidade de traçar as diretrizes e estabelecerem o destino científico da área a que se dedicam.

Então qual é, em suma, a minha mensagem? É mais que uma mensagem, é uma convicção: toda a área, inclusive a enfermagem, deve, a par dos eventos gerais, que são indispensáveis, ter também a cada dois anos um evento com GTs no espírito Solvay, exclusivo dos pesquisadores da pós-graduação. Terá, assim, um notável impulso em sua caminhada na direção de consolidar uma retaguarda científica mais clara e sólida para a tão bem-sucedida profissão.

Ah, sim, Cara Enfermeira, Caro Enfermeiro, o editorial está terminando e a pergunta ainda não foi respondida. Afinal, o que a física disse - ou diz - para a enfermagem, para as ciências contábeis, para a psicologia?

Eu sou você, amanhã!

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2015
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