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Atuação do enfermeiro da Atenção Primária à Saúde no tratamento da Disfunção do Trato Urinário Inferior* * Extraído da tese “O uso do Design Thinking na proposição de soluções para o cenário brasileiro de Disfunção do Trato Urinário Inferior”, Universidade de Brasília, Brasília, 2021.

RESUMO

Objetivo:

Compreender a atuação dos enfermeiros da Atenção Primaria à Saúde no tratamento da Disfunção do Trato Urinário Inferior.

Método:

Pesquisa transversal multi-metodológica, composta por etapas quantitativa e qualitativa, de forma independente e sequencial. Dados coletados de forma remota, por meio de questionário e grupo focal, analisados por estatística descritiva e análise temática de Braun e Clarke, respectivamente. O projeto foi aprovado sob Parecer no. 22691119.0.0000.0030.

Resultados:

Participaram do estudo 145 enfermeiros na etapa quantitativa e 20 na qualitativa, atuantes na Atenção Primária à Saúde do Brasil. Dos 93,1% enfermeiros que referiram já terem atendido pessoas com Disfunção do Trato Urinário, apenas 54,4% prestaram orientações, sendo principalmente para treinamento da musculatura do assoalho pélvico.

Conclusão:

Mesmo possuindo respaldo legal e acesso à demanda, os enfermeiros não têm conhecimento para oferecer tratamento conservador para Disfunção do Trato Urinário Inferior. Apesar disso, mostraram-se motivados para tal atuação desde que recebam capacitação específica.

DESCRITORES
Educação em Enfermagem; Sintomas do Trato Urinário Inferior; Atenção Primária à Saúde; Estomaterapia

ABSTRACT

Objective:

To understand Primary Health Care nurses’ role in treating Lower Urinary Tract Dysfunction.

Method:

Cross-sectional multi-methodological research, composed of quantitative and qualitative steps, independently and sequentially. Data collected remotely, through a questionnaire and focus group, analyzed using descriptive statistics and thematic analysis by Braun and Clarke, respectively. The project was approved under Opinion 22691119.0.0000.0030.

Results:

A total of 145 nurses participated in the study in the quantitative step and 20 in the qualitative step, working in Primary Health Care in Brazil. Of the 93.1% nurses who reported having already cared for people with Urinary Tract Dysfunction, only 54.4% provided guidance, mainly for training the pelvic floor muscles.

Conclusion:

Even though they have legal support and access to demand, nurses do not have the knowledge to offer conservative treatment for Lower Urinary Tract Dysfunction. Despite this, they were motivated to do so as long as they received specific training.

DESCRIPTORS
Education, Nursing; Lower Urinary Tract Symptoms; Primary Health Care; Enterostomal Therapy

RESUMEN

Objetivo:

Comprender el papel del enfermero de Atención Primaria de Salud en el tratamiento de la Disfunción del Tracto Urinario Inferior.

Método:

Investigación transversal multimetodológica, compuesta por etapas cuantitativas y cualitativas, de forma independiente y secuencial. Datos recopilados de forma remota, a través de un cuestionario y un grupo focal, analizados mediante estadística descriptiva y análisis temático de Braun y Clarke, respectivamente. El proyecto fue aprobado bajo Opinión 22691119.0.0000.0030.

Resultados:

Participaron del estudio 145 enfermeros en la etapa cuantitativa y 20 en la cualitativa, actuando en la Atención Primaria de Salud en Brasil. Del 93,1% de los enfermeros que afirmaron haber atendido ya a personas con Disfunción del Tracto Urinario, sólo el 54,4% brindó orientación, principalmente para el entrenamiento de los músculos del suelo pélvico.

Conclusión:

Incluso con apoyo legal y acceso a la demanda, los enfermeros no tienen el conocimiento para ofrecer tratamiento conservador para la Disfunción del Tracto Urinario Inferior. Pese a ello, estaban motivados para hacerlo siempre que recibieran una formación específica.

DESCRIPTORES
Educación en Enfermería; Síntomas del Sistema Urinario Inferior; Atención Primaria de Salud; Estomaterapia

INTRODUÇÃO

A incontinência urinária (IU) é definida como perda involuntária de urina em qualquer frequência ou volume, acometendo homens e mulheres em todas as idades e com prevalência que ultrapassa 35% na população geral. Pode se apresentar por perdas de funções da musculatura do assoalho pélvico (MAP) ou por hiperatividade da bexiga, mais especificamente do músculo detrusor(11. Bo K, Frawley HC, Haylen BT, Abramov Y, Almeida FG, Berghmans B, et al. An International Urogynecological Association (IUGA)/International Continence Society (ICS) joint report on the terminology for the conservative and nonpharmacological management of female pelvic floor dysfunction. Neurourol Urodyn. 2017;36(2):221–44. doi: http://dx.doi.org/10.1002/nau.23107. PubMed PMid: 27918122.
https://doi.org/10.1002/nau.23107...
). Além da IU, que se enquadra como uma disfunção em si ou como um sintoma que representa falha de armazenamento, outros sintomas podem acometer o trato urinário inferior, como frequência urinária aumentada, urgência miccional, ou sintomas que representam falha do esvaziamento vesical, como jato fraco ou esforço miccional. Quando um grupo de sintomas de trato urinário inferior tem relevância clínica ou gera impacto na qualidade de vida (QV), passa a ser chamado de Disfunção do Trato Urinário Inferior (DTUI)(22. Austin PF, Bauer SB, Bower W, Chase J, Franco I, Hoebeke P, et al. The standardization of terminology of lower urinary tract function in children and adolescents: update report from the standardization committee of the International Children’s Continence Society. Neurourol Urodyn. 2016;35(4):471–81. doi: http://dx.doi.org/10.1002/nau.22751. PubMed PMid: 25772695.
https://doi.org/10.1002/nau.22751...
).

A QV é substancialmente afetada pela DTUI e tem forte associação com distúrbios na saúde mental, especialmente com a depressão. Em idosos, leva a um aumento no risco de queda e, consequentemente, aumento de mortalidade(33. Bernardes MFVG, Chagas SC, Izidoro LCR, Veloso DFM, Chianca TCM, Mata LRFPD. Impact of urinary incontinence on the quality of life of individuals undergoing radical prostatectomy. Rev Lat Am Enfermagem. 2019;27:e3131. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1518-8345.2757.3131. PubMed PMid: 30916232.
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55. Moreno CRC, Santos JLF, Lebrão ML, Ulhõa MA, Duarte YAO. Sleep disturbances in older adults are associated to female sex, pain and urinary incontinence. Rev Bras Epidemiol. 2018;21(Suppl 2):E180018. doi: https://doi.org/10.1590/1980-549720180018.supl.2
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). Quando relacionadas a esvaziamento incompleto da bexiga, a DTUI pode resultar em quadros recorrentes de infecção de trato urinário ou até prejuízo da função renal(66. Kavanagh A, Baverstock R, Campeau L, Carlson K, Cox A, Hickling D, et al. Canadian Urological Association guideline: diagnosis, management, and surveillance of neurogenic lower urinary tract dysfunction - Executive summary. Can Urol Assoc J. 2019;13(6):156–65. doi: http://dx.doi.org/10.5489/cuaj.6041. PubMed PMid: 31199234.
https://doi.org/10.5489/cuaj.6041...
).

Embora altamente prevalente e com impactos desastrosos, a DTUI é negligenciada pelo sistema de saúde no Brasil e no mundo. Primeiramente, por ser uma condição estigmatizante, as pessoas que as vivenciam fazem grandes esforços para escondê-la, especialmente na presença de perdas urinárias(77. Hunter KF, Wagg AS. Improving nurse engagement in continence care. Nursing (Auckl). 2018;8:1–7. doi: http://dx.doi.org/10.2147/NRR.S144356
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). A população não tem acesso à informação, nem ao número de pessoas que vivenciam essa situação, nem às medidas de prevenção e nem ao tratamento de primeira linha. Normalmente, as pessoas procuram por ajuda quando os sintomas já se tornaram insuportáveis e o desejo por resolução supera a vergonha de expor o assunto. Nesse momento de consulta inicial, no Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, nada é oferecido de forma sistematizada como tratamento. A abordagem comum é o encaminhamento para o nível secundário e até terciário, com longas filas de espera e abordagens cirúrgicas ou medicamentosas, muitas vezes desnecessárias(88. Assis GM. Atuação do enfermeiro na área de incontinências: podemos fazer mais. ESTIMA Braz J Enterostomal Ther. 2019;17:e0719. doi: http://dx.doi.org/10.30886/estima.v17.761_PT
https://doi.org/10.30886/estima.v17.761_...
,99. Brito FA, Gentilli RML. Desatenção à mulher incontinente na atenção primária de saúde no SUS. Fisioter Bras [Internet]. 2017 [cited 2021 Feb 20];18(2):f:205–I:13, 2017000. Available from: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-884446
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).

O tratamento conservador é definido como abordagem de primeira linha para DTUI, composto por modificações comportamentais e treinamento da MAP(11. Bo K, Frawley HC, Haylen BT, Abramov Y, Almeida FG, Berghmans B, et al. An International Urogynecological Association (IUGA)/International Continence Society (ICS) joint report on the terminology for the conservative and nonpharmacological management of female pelvic floor dysfunction. Neurourol Urodyn. 2017;36(2):221–44. doi: http://dx.doi.org/10.1002/nau.23107. PubMed PMid: 27918122.
https://doi.org/10.1002/nau.23107...
). Deve ser oferecido a toda pessoa que manifeste os sintomas, ainda que necessite associar medidas mais invasivas. São medidas de baixo custo e grande efetividade(1010. Cacciari LP, Dumoulin C, Hay-Smith EJ. Pelvic floor muscle training versus no treatment, or inactive control treatments, for urinary incontinence in women: a cochrane systematic review abridged republication. Braz J Phys Ther. 2019;23(2):93–107. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.bjpt.2019.01.002. PubMed PMid: 30704907.
https://doi.org/10.1016/j.bjpt.2019.01.0...
,1111. Diokno AC, Newman DK, Low LK, Griebling TL, Maddens ME, Goode PS, et al. Effect of group-administered behavioral treatment on urinary incontinence in older women: a randomized clinical trial. JAMA Intern Med. 2018;178(10):1333–41. doi: http://dx.doi.org/10.1001/jamainternmed.2018.3766. PubMed PMid: 30193294.
https://doi.org/10.1001/jamainternmed.20...
). A primeira linha de tratamento da DTUI pode ser aplicada na Atenção Primária à Saúde (APS), e essa prática se mostrou custo-efetiva nos países que a adotaram(1212. Chin WY, Choi EP, Wan EY, Chan AK, Chan KH, Lam CL. Evaluation of the outcomes of care of nurse-led continence care clinics for Chinese patients with lower urinary tract symptoms, a 2-year prospective longitudinal study. J Adv Nurs. 2017;73(5):1158–71. doi: http://dx.doi.org/10.1111/jan.13205. PubMed PMid: 27859530.
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,1313. Choi EP, Chin WY, Lam CL, Wan EY, Chan AK, Chan KH. Evaluation of the effectiveness of nurse-led continence care treatments for chinese primary care patients with lower urinary tract symptoms. PLoS One. 2015;10(6):e0129875. doi: http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0129875. PubMed PMid: 26076486.
https://doi.org/10.1371/journal.pone.012...
).

No SUS, a APS é o nível primário de saúde, sendo considerada a porta de entrada preferencial do usuário para o atendimento, e o enfermeiro pode ser o profissional responsável pela identificação precoce dos casos e tratamento inicial, sendo considerado o profissional com melhores habilidades técnicas e humanas para tal abordagem(77. Hunter KF, Wagg AS. Improving nurse engagement in continence care. Nursing (Auckl). 2018;8:1–7. doi: http://dx.doi.org/10.2147/NRR.S144356
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99. Brito FA, Gentilli RML. Desatenção à mulher incontinente na atenção primária de saúde no SUS. Fisioter Bras [Internet]. 2017 [cited 2021 Feb 20];18(2):f:205–I:13, 2017000. Available from: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-884446
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).

No Brasil, o enfermeiro tem respaldo legal para atuar no tratamento conservador da IU e da incontinência anal(14). Mas de forma contraditória, o tema não compõe a grade curricular dos cursos de graduação de maneira obrigatória. Dessa forma, a compreensão do cenário de interesse tem por finalidade o embasamento para a posterior elaboração de um programa educacional para capacitação do enfermeiro da APS para tratamento da DTUI. Para tanto, o presente estudo teve como objetivo compreender a atuação dos enfermeiros da APS no tratamento de pacientes com DTUI.

MÉTODO

Tipo de Estudo

Trata-se de estudo do tipo multi-metodológico com delineamento transversal, composto por uma etapa quantitativa e outra qualitativa, de forma independente e sequencial, para tecer uma compreensão ampliada do fenômeno analisado e subsidiar futuras soluções diante da complexidade no cenário da saúde(1515. Hunter AD, Brewer J. Designing multimethod research. In Hesse-Biber SN, Johnson RB, editors, The oxford handbook of multimethod and mixed methods research inquiry (Oxford Library of Psychology). 1st ed. Reino Unido: Oxford University Press; 2015. p. 185–205. doi: https://doi.org/10.1177/1558689815622704
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).

Local

O estudo foi realizado de forma online e, portanto, não se vincula a um local físico, mas associa-se ao local de atuação dos participantes, compreendendo a APS nas cinco regiões do Brasil.

Amostra e Critérios de Seleção

A amostra foi composta por enfermeiros atuantes na APS, sendo esse o critério de inclusão. Para reunir essas pessoas e explicar o contexto da pesquisa, uma oficina online síncrona foi operacionalizada e divulgada por meio do Instituto Fluir, Organização da Sociedade Civil fundada pelas pesquisadoras para divulgação de medidas de prevenção e tratamento da DTUI à população e capacitação de enfermeiros para atuação na área. Para divulgação ampla, utilizou-se a técnica de bola de neve, iniciando-se pelos contatos de enfermeiros de APS que já estavam em contato com o Instituto Fluir.

Coleta dos Dados

A coleta de dados aconteceu nos meses de junho e julho de 2020, de modo que os enfermeiros que concordaram em participar do estudo, por meio da leitura e assinatura digital do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, foram organizados em cinco grupos de WhatsApp® de acordo com a região do país em que atuavam, para que pudessem participar de uma oficina e receber o link de acesso para o instrumento de coleta de dados da etapa quantitativa. A oficina ocorreu de forma online síncrona, com a finalidade de clarificar o contexto da pesquisa, seus objetivos e metodologia.

O instrumento da etapa quantitativa foi aplicado por meio do Google Forms®, disponibilizado aos participantes ao final da oficina, sendo utilizado um tempo médio de 20 minutos para preenchê-lo, de modo que, ao final do envio das respostas, o questionário foi fechado para novos envios. Esse instrumento era composto por 29 perguntas referentes a: caracterização sociodemográfica; tempo de formação e atuação na APS; formação e atuação profissional; atividades extraprofissionais; atuação em DTUI; percepção a respeito de potencialidades e barreiras para atuação; e sugestões de meios para capacitação na área.

Ao final da primeira etapa, havia cinco grupos de enfermeiros inscritos para as oficinas; esses grupos eram referentes às regiões do país onde esses enfermeiros atuavam. Para a etapa qualitativa, composta por Grupos Focais (GF) online síncronos, foram sorteados aleatoriamente quatro enfermeiros de cada grupo (região), utilizando-se o programa Randomize®. Dessa forma, formou-se um grupo de 20 enfermeiros. Seguindo-se as recomendações para melhor condução do GF(1616. Kinalski DD, Paula CC, Padoin SM, Neves ET, Kleinubing RE, Cortes LF. Focus group on qualitative research: experience report. Rev Bras Enferm. 2017;70(2):424–9. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0091. PubMed PMid: 28403311.
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), o grupo foi dividido em dois, resultando em dois GF com 10 enfermeiros (dois por região).

As sessões de GF foram conduzidas pela pesquisadora principal no papel de moderadora, e as outras quatro enfermeiras da equipe de pesquisa participaram no papel de observadoras, sendo capacitadas previamente para realizarem anotações a respeito de questões não verbais, como períodos de silêncio ou expressões faciais. As questões norteadoras da discussão foram: diante do que você teve acesso na oficina, a respeito da atuação do enfermeiro na DTUI, você considera possível essa atuação na APS no modelo atual? Quais seriam os fatores que limitariam tal atuação? A duração do primeiro GF foi de uma hora e vinte e seis minutos e do segundo foi de uma hora e cinquenta e seis minutos. Os dois encontros realizados, um para cada grupo, com a finalidade de aprofundar a discussão, foram gravados por recursos da plataforma e arquivados em nuvem com acesso restrito para posterior transcrição e análise.

Análise e Tratamento dos Dados

Os dados quantitativos coletados pelo Google Forms® foram transferidos para planilha Microsoft Excel® e analisados por estatística descritiva por meio do programa computacional Stata/SE v.14.1. StataCorpLP, USA. Variáveis quantitativas foram descritas por média, desvio padrão, medianas, mínimo e máximo. Para variáveis categóricas, foram apresentados frequências e percentuais.

Os dados qualitativos obtidos no GF foram transcritos, transferidos para planilha Microsoft Excel®, e analisados pelo método de análise temática de Braun e Clarke(1717. Braun V, Clarke V. Reflecting on reflexive thematic analysis. Qual Res Sport Exerc Health. 2019;11(4):589–97. doi: http://dx.doi.org/10.1080/2159676X.2019.1628806
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), seguindo-se as etapas: familiarizando-se com o tema; gerando códigos iniciais; buscando por temas; revisando temas; definindo e nomeando temas; produzindo o relatório(1717. Braun V, Clarke V. Reflecting on reflexive thematic analysis. Qual Res Sport Exerc Health. 2019;11(4):589–97. doi: http://dx.doi.org/10.1080/2159676X.2019.1628806
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). Todas as etapas foram conduzidas pela pesquisadora líder e mais uma enfermeira do grupo.

Na etapa 1 (familiarizando-se com o tema), as gravações do GF foram integralmente transcritas em planilha Microsoft Excel®, de modo que cada grupo compôs uma aba da planilha e cada fala foi transcrita em uma célula. Na etapa 2 (gerando códigos iniciais), cada célula de fala dos participantes ganhou uma célula paralela com todos os códigos referentes àquela fala. Na etapa 3 (buscando por temas), em aba adicional, os códigos semelhantes foram agrupados por colunas nomeadas com um tema em potencial.

Na etapa 4 (revisitando os temas), os códigos de cada coluna foram subdivididos em grupos menores, com uma criação de possíveis subtemas. Essa ação foi adotada para facilitar a escolha de falas significativas que trouxessem todas as visões do grupo a respeito do mesmo tópico. Foram relidas todas as falas que geraram os códigos, sendo escolhidas as que melhor representavam a ideia do grupo. Na etapa 5 (definindo e nomeando temas), a partir da subdivisão com o recorte das falas, os temas e subtemas foram reagrupados em grandes temas.

Na etapa 6 (produzindo o relatório), construiu-se uma tabela com duas colunas: uma para a apresentação dos grandes temas e outra para falas representativas que os sustentaram. Para tanto, seguiu-se o rigor de selecionar falas que compunham todos os subtemas da etapa anterior, bem como participantes de todas as regiões, preservando a representatividade das falas.

Aspectos Éticos

O projeto foi aprovado sob Parecer no. 22691119.0.0000.0030 de 10/06/2020, em consonância com a Resolução no. 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, por envolver seres humanos. Para assegurar o anonimato, na etapa quantitativa, não foi vinculado nome, e na etapa qualitativa, os participantes foram codificados por sua região de atuação no território nacional e sua ordem de participação no GF (e.g., Enf Sul 01).

RESULTADOS

Participaram da etapa quantitativa 145 enfermeiros atuantes na APS do Brasil. A média de idade foi de 37,5 anos (DP 7,4). Quanto ao gênero, 130 (89,7%) eram mulheres, sendo que a maior parte da amostra (62,5%) se encontrava em união estável.

Conforme apresentado na Tabela 1, participaram enfermeiros de 20 estados brasileiros. O estado com maior número de participantes foi o Rio de Janeiro, com 28 enfermeiros. Os estados do Rio Grande do Norte, Sergipe e Pernambuco tiveram participação de um enfermeiro.

Tabela 1 –
Distribuição dos enfermeiros da Atenção Primária à Saúde participantes da pesquisa por região e estado – Brasília, Distrito Federal, Brasil, 2021.

A média do tempo de formação dos enfermeiros foi de 11,8 anos (DP 7,1) com variação entre 0,5 e 34 anos. Noventa e três participantes (64,1%) tinham mais de 10 anos de formação e apenas 11 (7,6%) tinham menos de dois anos. Dezenove (13%) possuíam outra formação de nível superior, e 129 (89%), pós-graduação lato sensu. A área predominante foi em saúde coletiva (n. 80 – 55,8%), seguida de obstetrícia (n. 25 – 17,1%) e estomaterapia (n. 25 – 17,1%). Vinte e cinco participantes (17%) tinham mestrado ou doutorado e 76 (51,9%) concluíram dois ou mais cursos de pós-graduação lato sensu. Trinta e seis (25%) possuía outros vínculos de trabalho além da APS.

A maioria da amostra (n. 135 – 93,1%) já havia atendido pessoas com DTUI, e, desses, 66 (48,8%) disseram já ter oferecido alguma orientação, embora sem conhecimento adequado. Nota-se na Tabela 2 que a orientação predominante foi para treinamento muscular do assoalho pélvico, seguida por orientações para cateterismo intermitente limpo.

Tabela 2 –
Atividades praticadas na atenção à pessoa com Disfunção do Trato Urinário Inferior por enfermeiros da Atenção Primária à Saúde participantes da pesquisa – Brasília, Distrito Federal, Brasil, 2021.

Questionados quanto ao que os impediria de atuar no atendimento a pessoas com DTUI caso tivessem conhecimento para tal, 52 (36,1%) responderam que nada os impediria e 29 (20,2%) ainda sentiram que poderiam achar o conhecimento insuficiente ou sentir insegurança no atendimento, e o mesmo percentual assinalou que a questão de tempo, a demanda e a agenda poderiam ser um impedimento. Os dados completos estão apresentados na Tabela 3. Essas questões foram aprofundadas no GF, descrito na etapa qualitativa.

Tabela 3 –
Percepção dos enfermeiros da Atenção Primária à Saúde a respeito do que os impediria de atuar nas Disfunção do Trato Urinário Inferior se tivessem o conhecimento – Brasília, Distrito Federal, Brasil, 2021.

Não houve diferença estatisticamente significativa na associação das variáveis relacionadas aos fatores de impedimento para atuar na DTUI, quando analisadas, de acordo com a região do país onde os enfermeiros atuavam.

Participaram da etapa qualitativa 20 enfermeiros, divididos em dois grupos de 10, com dois representantes de cada região do país em cada grupo. Como resultado da análise temática, o agrupamento inicial dos códigos resultou em 17 temas. O tema com menor número de códigos foi “abordagem do tema DTUI na APS”, com seis códigos, e o maior número de códigos foi para o tema “perspectivas de atendimento”, com 68 códigos, conforme apresentado na Tabela 4.

Tabela 4 –
Temas iniciais e frequência de códigos segundo análise temática do Grupo Focal “Atuação do enfermeiro da Atenção Primária à Saúde nas Disfunção do Trato Urinário Inferior” – Brasília, Distrito Federal, Brasil, 2021.

Após divisão dos temas em subtemas, escolha das falas representativas de cada subtema e releitura completa do material, realizou-se o agrupamento final em três grandes temas: Desconhecimento a respeito da atuação do enfermeiro nas DTUI; Experiências prévias no atendimento de pessoas com DTUI; e Percepções a partir da proposta de atuação do enfermeiro na APS.

Notaram-se nas narrativas algumas falas que representam a distribuição dos participantes entre regiões e tempo de formação, da mesma forma que a etapa quantitativa demonstrou:

Sou aqui de Porto Velho, Rondônia. Já tenho um tempinho de formada, e trabalho na Atenção Básica esse tempo todo, uns 22 anos. (Enf Norte 02)

Trabalho em uma Clínica da Família no município do Rio. Eu atuo na atenção primária desde 2011, na mesma unidade, na mesma equipe. (Enf Sudeste 01)

Sou mineiro, mas resido aqui em Brasília, DF. Sou residente em enfermagem através da Fiocruz Brasília, me formei agora dezembro 2019. Tô fraldinha ainda na assistência. Minha primeira experiência. (Enf Centro-Oeste 02)

No tema “Desconhecimento a respeito da atuação do enfermeiro nas DTUI”, desvela-se nas narrativas agrupadas nesse tema a lacuna no conhecimento que não lhes foi oferecido na graduação, nos cursos de pós-graduação lato sensu ou na prática assistencial na APS:

Não me lembro na graduação ter ficado marcado alguma atividade, consulta de enfermagem focada na incontinência, né? (Enf Sul 02).

Faz alguns anos que eu estou nesse serviço, que é um lugar de referência para várias questões da Atenção Primária no Brasil, e esse tema nunca foi abordado (Enf Sul 02).

Tem uma série de outras enfermeiras que não fazem ideia de como enfermeiro pode contribuir. Como é que eu poderia imaginar que o enfermeiro pode contribuir com tratamento da incontinência urinária (Enf Nordeste 04).

No tema “Experiências prévias no atendimento de pessoas com DTUI”, observa-se que os enfermeiros percebem as queixas de sintomas na prática assistencial, porém a ação frequente era de encaminhamento para filas das especialidades de urologia ou ginecologia, ou para a fisioterapia. O tratamento da IU nem mesmo compõe a classificação de práticas de enfermagem na APS:

Inclusive, eu estava dando uma olhadinha na classificação de enfermagem na APS. A gente até tem as incontinências urinárias, mas eu não vejo a parte de tratamento, não está incorporada (Enf Nordeste 01).

É para onde a gente encaminha, ou fisioterapia ou urologista, ginecologista (Enf Sul 03).

E era sempre assim, né, encaminha para o gineco, né, muita intervenção cirúrgica, coisas que a gente sabe que pode ser. Nossa, com esse curso aí, eu tenho certeza que vai mudar muito (Enf Norte 02).

No tema “Percepções a partir da proposta de atuação do enfermeiro na APS”, ecoa-se que, depois de terem tido contato com a temática e compreendido essa possibilidade de atuação, os participantes manifestaram uma percepção de ser possível o enfermeiro atender casos de DTUI na APS, demonstrando surpresa e felicidade, citando o empoderamento que a categoria pode alcançar com essa prática e ressaltando a simplicidade das ações, que envolvem mais conhecimento do que recurso.

É um campo muito vasto, sim, para o enfermeiro. Eu acho que dá para gente trabalhar muito bem isso aí na Atenção Primária (Enf Centro-Oeste 04)

A gente vê que são ações simples. A gente pode contribuir na vida, na qualidade de vida das pessoas (Enf Nordeste 01).

Nossa Senhora, eu fico pensando. Quando eu vi a quantidade de campo de atuação, de como que a gente pode se empoderar como classe, fiquei super feliz, sabe? (Enf Norte 02).

Então, eu acredito que foi um, acho que foi tipo um despertar, assim, né, vou ler mais, vou tentar multiplicar com meus colegas de trabalho, né (Enf Sul 02).

A gente pode se tornar multiplicador desse conhecimento, repassar e ampliar ainda mais o engajamento dos outros profissionais (Enf Nordeste 02).

Acho que todo mundo poderia tentar encaixar isso na vida do enfermeiro da APS. Como o aval do gestor, lógico! Que consiga ver, que tenha o olho que brilhe, vendo isso como importante também (Enf Sudeste 02).

DISCUSSÃO

Este estudo almejou compreender a atuação dos enfermeiros da APS no tratamento de pacientes com DTUI. Ressalta-se que, embora a maior parte da amostra trabalhasse na APS há mais de 10 anos e possuísse mais de um curso de pós-graduação lato sensu, a mesma não teve acesso ao conteúdo de DTUI ao longo da formação ou vida profissional. Quase a totalidade da amostra havia atendido pacientes com DTUI, seja com manifestação de IU, urgência miccional ou sintomas de esvaziamento vesical incompleto. Mesmo sem ter recebido alguma formação direcionada, mais da metade destes enfermeiros realizou alguma orientação aos pacientes com DTUI, sendo que a orientação predominante foi para treinamento da MAP. Pouquíssimos foram os casos de orientação para modificações comportamentais, como melhora da ingestão hídrica, posicionamento para as eliminações ou manobras de inibição da urgência. Vale mencionar que, quando citaram orientar para MAP, os enfermeiros se referiram a dizer ao paciente que movimentos pélvicos de contração e relaxamento poderiam ser realizados algumas vezes por dia. Nenhum enfermeiro realizou avaliação funcional ou incluiu o paciente em programas progressivos de treinamento.

Resultados semelhantes foram observados em estudo transversal realizado na China no que diz respeito a uma tendência à atitude e prática positiva em contraposição a uma lacuna importante no conhecimento. Participaram 1.313 estudantes de seis faculdades de enfermagem. Observou-se que o conhecimento geral sobre IU variou de 15 a 30%, enquanto que a atitude positiva (o que acreditam sobre o tema) foi de 43 a 60%, e foi observado alto nível de interesse em aprender mais sobre o tema(1818. Luo Y, Parry M, Huang YJ, Wang XH, He GP. Nursing students’ knowledge and attitudes toward urinary incontinence: a cross-sectional survey. Nurse Educ Today. 2016;40:134–9. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.nedt.2016.02.020. PubMed PMid: 27125163.
https://doi.org/10.1016/j.nedt.2016.02.0...
).

O mesmo cenário parece se repetir também, mas entre profissionais. Estudo transversal conduzido em dois hospitais públicos e quatro hospitais privados na Turquia avaliou conhecimento e atitude de 254 enfermeiros em relação à IU. De forma semelhante, a pontuação para atitude foi superior em relação ao conhecimento, alcançando uma média de 46 (15–60) e 15 (0–24), respectivamente(1919. Caliskan N, Gulnar E, Aydogan S, Bayram SB, Yagci N. Obstacles to providing urinary incontinence care among nurses in turkey: a descriptive study. Wound Manag Prev. 2019;65(9):36–47. doi: http://dx.doi.org/10.25270/wmp.2019.9.3647. PubMed PMid: 31702991.
https://doi.org/10.25270/wmp.2019.9.3647...
).

A discussão no GF reforçou a evidência de que os enfermeiros da APS brasileira não têm formação para atenção à pessoa com DTUI, e os participantes citam não terem tido contato com o tema em sua graduação. Nesse contexto, pesquisa publicada em 2020 avaliou o conhecimento a respeito de IU de 1.581 alunos do último ano das faculdades de enfermagem, medicina e fisioterapia. Estudantes de enfermagem tiveram 88,8% de acerto, medicina, 81,7%, e fisioterapia, 74,4%(2020. Witkoś J, Hartman-Petrycka M. Do future healthcare professionals have adequate knowledge about risk factors for stress urinary incontinence in women? BMC Womens Health. 2020;20(1):254. doi: http://dx.doi.org/10.1186/s12905-020-01124-0. PubMed PMid: 33198742.
https://doi.org/10.1186/s12905-020-01124...
). Ainda que o estudo citado tenha sido realizado na Polônia, país com realidade distinta do Brasil, o conhecimento de futuros profissionais a respeito do tema pode soar como uma evolução, uma vez que os enfermeiros participantes deste estudo não tiveram contato com o tema na graduação. Por outro lado, vale salientar que conhecimento adequado não necessariamente refletirá em uma prática adequada. Para que o conhecimento seja transformado em prática, fazem-se necessárias ações organizadas que envolvam análise das evidências disponíveis, do contexto em que serão aplicadas e das estratégias de facilitação para implementação(2121. Kitson AL, Rycroft-Malone J, Harvey G, McCormack B, Seers K, Titchen A. Evaluating the successful implementation of evidence into practice using the PARiHS framework: theoretical and practical challenges. Implement Sci. 2008;3:1. doi: http://dx.doi.org/10.1186/1748-5908-3-1. PubMed PMid: 18179688.
https://doi.org/10.1186/1748-5908-3-1...
). Elucidando essa afirmativa, estudo realizado na China observou que 80% dos enfermeiros obstétricos sabiam e acreditavam que o treinamento da MAP atuava na prevenção e tratamento da IU perinatal, porém menos de 30% orientava as pacientes para sua realização(2222. Li T, Wang J, Chen X, Chen L, Cai W. Obstetric Nurses’ knowledge, attitudes, and professional support related to actual care practices about urinary incontinence. Female Pelvic Med Reconstr Surg. 2021;27(2):e377–84. doi: http://dx.doi.org/10.1097/SPV.0000000000000941. PubMed PMid: 32925423.
https://doi.org/10.1097/SPV.000000000000...
).

Vale salientar que a atuação do enfermeiro é apresentada como uma das ações promissoras para redução das taxas de DTUI, especialmente na APS(2323. Lopes MHBM, Costa JN, Lima JLDA, Oliveira LDR, Caetano AS. Pelvic floor rehabilitation program: report of 10 years of experience. Rev Bras Enferm. 2017;70(1):231–5. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0257. PubMed PMid: 28226063.
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0...
2525. Santos RER, Vaz CT. Knowledge of primary health care professionals about the therapeutic approach in female urinary incontinence. HU Rev. 2017;43(3):239–45. doi: http://dx.doi.org/10.34019/1982-8047.2017.v43.2837
https://doi.org/10.34019/1982-8047.2017....
). Nesse contexto, estudo conduzido na China avaliou a efetividade de um programa de tratamento de adultos com DTUI por meio da intervenção de enfermeiros da APS a partir de treinamento da MAP, treinamento vesical, controle hídrico, redução do consumo de potenciais irritantes vesicais e massagem uretral para controle de gotejamento pós-miccional. Notaram-se melhoras significativas na gravidade dos sintomas, na saúde global, na redução de consultas médicas e no uso de medicamentos(1313. Choi EP, Chin WY, Lam CL, Wan EY, Chan AK, Chan KH. Evaluation of the effectiveness of nurse-led continence care treatments for chinese primary care patients with lower urinary tract symptoms. PLoS One. 2015;10(6):e0129875. doi: http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0129875. PubMed PMid: 26076486.
https://doi.org/10.1371/journal.pone.012...
).

Observou-se como dado relevante a motivação que o tema é capaz de gerar nos enfermeiros. O maior percentual de participantes disse que nada os impediria de atuar em DTUI se tivessem conhecimento. No GF, os enfermeiros participantes manifestaram surpresa e expectativas positivas ao terem conhecimento a respeito do respaldo legal que o enfermeiro tem para atuar na área, além da autonomia e resolutividade de suas ações, que são simples e de baixo custo.

Autores internacionais defendem que os enfermeiros estão em uma posição de protagonismo para ajudar as pessoas afetadas pela IU, com potencial para identificação, educação em saúde e implementação de intervenções apropriadas. Mencionam que a posição desse profissional é ideal para realizar a avaliação e tratamento iniciais, etapas importantes do cuidado, mas que geralmente são mal executadas(77. Hunter KF, Wagg AS. Improving nurse engagement in continence care. Nursing (Auckl). 2018;8:1–7. doi: http://dx.doi.org/10.2147/NRR.S144356
https://doi.org/10.2147/NRR.S144356...
,2626. Paterson J, Ostaszkiewicz J, Suyasa IG, Skelly J, Bellefeuille L. Development and validation of the role profile of the nurse continence specialist: a Project of the International Continence Society. J Wound Ostomy Continence Nurs. 2016;43(6):641–7. doi: http://dx.doi.org/10.1097/WON.0000000000000286. PubMed PMid: 27820587.
https://doi.org/10.1097/WON.000000000000...
).

Diante da manifestação de surpresa dos participantes com a simplicidade e o baixo custo das ações, faz-se necessária uma reflexão a respeito dos aspectos econômicos relacionados à atuação do enfermeiro da APS na DTUI. Além do impacto pessoal que a DTUI causa individualmente na pessoa que a vivencia, o impacto econômico também é relevante em diversos aspectos: as filas para serviços especializados em centros de atenção secundária e terciária são ocupadas por pessoas que poderiam ter sido tratadas na APS; dessa forma, o acesso de pessoas que tenham real necessidade desses níveis de assistência fica prejudicado. A demora na identificação de casos complicados ou recorrentes pode levar ao seu agravamento, que pode chegar até a perda da função renal, onerando o sistema com exames diagnósticos e intervenções de alto custo. A falta de oferta para tratamento conservador da DTUI na APS resulta em indicações excessivas e desnecessárias de procedimentos cirúrgicos, consumindo recursos não apenas para o procedimento em si, mas também para os exames envolvidos no processo, como é o caso do estudo urodinâmico.

Nesse contexto econômico, estudo desenvolvido na Holanda analisou o custo-efetividade de incluir uma enfermeira especialista em incontinências na APS, com vistas a aumentar a detecção e intervenção precoce dos casos de IU. Por meio de um modelo analítico de decisão, que comparou os resultados da estrutura anterior com a nova proposta, observou-se uma economia de 402 euros por paciente em um período de três meses(2727. Holtzer-Goor KM, Gaultney JG, van Houten P, Wagg AS, Huygens SA, Nielen MM, et al. Cost-effectiveness of including a nurse specialist in the treatment of urinary incontinence in primary care in the Netherlands. PLoS One. 2015;10(10):e0138225. doi: http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0138225. PubMed PMid: 26426124.
https://doi.org/10.1371/journal.pone.013...
).

Como limitações do estudo, destaca-se que, apesar de o convite à participação do estudo ter sido aberto a qualquer enfermeiro atuante na APS do Brasil, os que participaram da fase quantitativa do estudo não foram igualmente representativos das cinco regiões. Por outro lado, ecoa-se a importância deste estudo, que elucidou a atuação do enfermeiro no tratamento da DTUI na APS, podendo ser percussor para pesquisas futuras com amostras maiores, mas sobretudo para subsidiar ações com vistas a fortalecer a prática de enfermagem nesse contexto.

CONCLUSÃO

Os resultados do estudo elucidam que, apesar do respaldo legal e de ser uma demanda significativa na APS, os enfermeiros não tinham conhecimento sobre suas possibilidades de atuação na prevenção e tratamento da DTUI, e não haviam tido contato com o tema em sua formação. Apesar disso, a maioria sinalizou que, se tivessem conhecimento na área, nada os impediria de atuar. Dos que mencionaram algum impedimento, foram mencionados conhecimento insuficiente, que poderia ser contornado por programas de capacitação, ou questão de tempo, demanda e agenda, que seria solucionada se a atenção à pessoa com DTUI fosse priorizada como ação da APS e passasse a compor as metas de atendimento.

Espera-se, por meio desta compreensão da atuação dos enfermeiros na prevenção e tratamento das DTUI na APS, subsidiar programas educacionais que os instrumentalizem para oferta do tratamento conservador à população com DTUI, de forma a reduzir agravos, tempo de exposição aos sintomas, filas de espera e procedimentos cirúrgicos desnecessários.

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    » https://doi.org/10.1371/journal.pone.0138225

Editado por

EDITOR ASSOCIADO

Lilia de Souza Nogueira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2023
  • Aceito
    05 Jan 2024
Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
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