Relação entre sintomas gastrointestinais e infecção por COVID-19 na população pediátrica: revisão de escopo

RESUMO

Objetivo:

Mapear as evidências na literatura acerca da relação entre sintomas gastrointestinais e a COVID-19 na população pediátrica.

Método:

Trata-se de scoping review seguindo as recomendações do Instituto Joanna Briggs e PRISMA Extension for Scoping Reviews (PRISMA-ScR): Checklist and Explanation. A busca foi realizada nas bases: Embase, Google Acadêmico, PubMed, Scopus, LILACS, CINAHL, Scielo, Web of Science e Portal da Biblioteca Virtual em Saúde, entre julho e agosto de 2023. Foram incluídos estudos originais disponíveis na íntegra, em qualquer idioma.

Resultados:

Foram eleitos 10 estudos que apontaram para três premissas: (1) o receptor ECA 2 é encontrado nas células epiteliais do trato gastrointestinal; (2) os sintomas gastrointestinais são mediados pelo estresse e a infecção é justificada pelo eixo cérebro-intestino; (3) desenvolve o processo de Síndrome Inflamatória Multissistêmica em crianças, afetando o trato gastrointestinal.

Conclusão:

A síntese de evidências proporcionou três pressupostos os quais orientam a origem dos sintomas gastrointestinais. A identificação dos sintomas gastrointestinais em crianças acometidas por COVID-19 pode auxiliar na abordagem clínica e manejo de cuidados e tratamentos.

DESCRITORES
Criança; Recém-Nascido; Trato Gastrointestinal; COVID-19

ABSTRACT

Objective:

To map the evidence in the literature about the relationship between gastrointestinal symptoms and COVID-19 in the pediatric population.

Method:

This is a scoping review following the recommendations of the Joanna Briggs Institute and PRISMA Extension for Scoping Reviews (PRISMA-ScR): Checklist and Explanation. The search was carried out on the following bases: Embase, Google Scholar, PubMed, Scopus, LILACS, CINAHL, Scielo, Web of Science and Virtual Health Library Portal, between July and August 2023. Original studies available in full, in any language, were included.

Results:

Ten studies were chosen that pointed to three premises: (1) the ACE2 receptor is found in the epithelial cells of the gastrointestinal tract; (2) gastrointestinal symptoms are mediated by stress and infection is justified by the gut-brain axis; (3) it develops the process of Multisystem Inflammatory Syndrome in children, affecting the gastrointestinal tract.

Conclusion:

The synthesis of evidence provided three assumptions which guide the origin of gastrointestinal symptoms. The identification of gastrointestinal symptoms in children affected by COVID-19 can assist in the clinical approach and management of care and treatments.

DESCRIPTORS
Child; Infant; Newborn; Gastrointestinal Tract; COVID-19

RESUMEN

Objetivo:

Mapear la evidencia en la literatura sobre la relación entre síntomas gastrointestinales y COVID-19 en la población pediátrica.

Método:

Se trata de revisión de alcance siguiendo las recomendaciones del Instituto Joanna Briggs y PRISMA Extension for Scoping Reviews (PRISMA-ScR): Lista de verificación y explicación. La búsqueda se realizó sobre las siguientes bases: Embase, Google Scholar, PubMed, Scopus, LILACS, CINAHL, Scielo, Web of Science y Portal Biblioteca Virtual en Salud, entre julio y agosto de 2023. Se incluyeron estudios originales disponibles en su totalidad, en cualquier idioma.

Resultados:

Se eligieron 10 estudios que apuntaban a tres premisas: (1) el receptor ACE2 se encuentra en las células epiteliales del tracto gastrointestinal; (2) los síntomas gastrointestinales están mediados por el estrés y la infección está justificada por el eje cerebro-intestino; (3) desarrolla el proceso del Síndrome Inflamatorio Multisistémico en niños, afectando el tracto gastrointestinal.

Conclusión:

La síntesis de evidencia proporcionó tres supuestos que guían el origen de los síntomas gastrointestinales. La identificación de síntomas gastrointestinales en niños afectados por COVID-19 puede ayudar en el abordaje clínico y el manejo de la atención y los tratamientos.

DESCRIPTORES
Niño; Recién Nacido; Tracto Gastrointestinal; COVID-19

INTRODUÇÃO

A saúde pública mundial enfrenta desafios com novas doenças infecciosas e com outras doenças já existentes⁽¹⁾. As doenças respiratórias compreendem um amplo espectro, atingindo as estruturas do sistema respiratório superior e inferior⁽²⁾, ocasionando assim as principais causas de internações, morbidades e mortalidades no mundo⁽³⁾. No cenário infantil, as afecções do aparelho respiratório representam uma das maiores causas de morbimortalidade em menores de 5 anos⁽⁴⁾.

O Brasil apresentou, entre 2012 a 2021, cerca de 22.939 óbitos, relacionados ao sistema respiratório, em menores de 10 anos de idade, e 62,65% destes estavam no primeiro ano de vida⁽⁵⁾. Além disso, diante das consequências das doenças emergentes, em 2019 foi descoberta uma nova enfermidade pertencente à família Coronaviridae, denominada de COVID-19, e que acomete principalmente o aparelho respiratório⁽⁶⁾. Diante dessa nova descoberta, medidas restritivas, como distanciamento social, foram impostas a fim de controlar a dispersão do vírus, visto que havia ausência de conhecimento científico para tratamento e prevenção⁽⁷⁾.

No momento, há seis variedades de Coronavírus registrados, sendo eles 229E, OC43, NL63, HKU1, e estes quatro causam sintomas gripais nas pessoas; o SARS-CoV (Síndrome Respiratória Aguda Grave ou SARS) e o MERS-CoV (Síndrome Respiratória do Oriente Médio ou MERS) têm a capacidade de causar a síndrome respiratória grave com altas taxas de letalidade⁽⁸⁾. O SARS-CoV-2 (Síndrome Respiratória Aguda Grave de Coronavírus 2) é denominado Novel Coronavirus-Infected Pneumonia (NCIP) e integra o grupo betacoronavírus que abrange o SARS-CoV. Ele foi analisado e confirmado em lavado broncoalveolar e, posteriormente, sequenciamento genético, Reação em Cadeia da Polimerase (PCR) e cultura foram realizados nos primeiros pacientes infectados em Wuhan, China, em 2019⁽⁹⁾.

Por conseguinte, nos primórdios da contaminação, realizaram-se as análises de sequência de genoma inteiro, cultura de células epiteliais das vias respiratórias humanas e microscopia, considerando-se as secreções respiratórias⁽¹⁾ como o predominante meio de transmissão do vírus. Assim, a população infantil está exposta à transmissão do vírus, que pode ocorrer tanto pelo contato direto com pessoas contaminadas, como por meio de contato indireto com superfícies infectadas⁽¹⁰⁾.

As características epidemiológicas e clínicas das crianças infectadas por SARS-CoV-2 podem ser assintomáticas, apresentando sintomas leves como febre, tosse, coriza, cefaleia, náuseas, vômitos e diarreia(¹¹–¹⁴) ou comprometimentos graves, como insuficiência respiratória, pneumonias e falência múltipla de órgãos(¹⁵,¹⁶). Dentre os sintomas apresentados pelas crianças, a febre é o sintoma mais comum; porém, os sintomas gastrointestinais têm se apresentando com alta incidência nesta população. Cerca de 90% dos atendimentos realizados na população pediátrica com exposição ou diagnóstico de COVID-19 apresentaram manifestações gástricas ou intestinais(¹⁷–¹⁹). No entanto, em alguns casos, apenas as manifestações gástricas e intestinais são observadas, e há ausência de manifestações respiratórias⁽²⁰⁾. Testes realizados apontaram resultados nasofaringe negativo e swab retal positivo, indicando assim que o trato gastrointestinal pode liberar o vírus e, consequentemente, a transmissão fecal-oral pode ser possível⁽²¹⁾.

Neste sentido, a população pediátrica pode evoluir somente com sintomas em nível gastrointestinal, sem apresentar outras manifestações clínicas⁽²²⁾. Além disso, o comprometimento gástrico e intestinal está associado a maior gravidade da doença⁽²⁰⁾. Contatou-se que o SARS-CoV-2 é capaz de replicar as células epiteliais intestinais, desenvolvendo assim lesões teciduais e aumento de grande quantidade de células imunes inatas, provocando o desencadeamento de resposta hiperinflamatória desregulada(²³,²⁴).

Assim, há necessidade de rever a abordagem clínica realizada nos sintomas gastrointestinais na população pediátrica, pois, muitas vezes, o sistema digestivo não é associado a infecção viral por SARS-CoV-2⁽²⁵⁾. Os profissionais de saúde devem dar atenção às manifestações gastrointestinais agudas na população infantil, considerando a COVID-19 como um diagnóstico diferencial(²⁶,²⁷), pois há sintomas extrapulmonares da COVID-19, envolvendo o sistema gastrointestinal, detectados recentemente. Eles são motivo de preocupação entre profissionais de saúde que assistem a essa população(²⁸,²⁹).

Diante desse contexto, justifica-se esse estudo pela necessidade de conhecer e compilar dados sobre os sintomas gastrointestinais nas crianças, a fim de fomentar dados para a prática clínica, reforçando assim o diagnóstico rápido para a população pediátrica. Além disso, o sistema digestivo pode ser uma via potencial de transmissão da infecção pelo novo Coronavírus, e as pesquisas sobre essa temática podem disponibilizar evidências científicas para subsidiar a assistência à criança acometida com COVID-19. Assim, este estudo teve como objetivo mapear as evidências na literatura acerca da relação entre sintomas gastrointestinais e a COVID-19 na população pediátrica.

MÉTODO

Desenho do Estudo

Trata-se de uma revisão de escopo, que tem a finalidade de mapear as evidências atuais que estão disponíveis na literatura, além de apresentar os principais conceitos da área e exibir as lacunas de conhecimento disponíveis, permitindo o desbravamento de novas pesquisas⁽³⁰⁾. As revisões de escopo são estudos complexos, pois envolvem rigor metodológico, e devem ser desenvolvidas com avaliação independente envolvendo pelo menos dois revisores e seguindo protocolos⁽³¹⁾. Este estudo foi construído com base nas recomendações do Manual de Revisão do Instituto Joanna Briggs (JBI) e a extensão PRISMA - Extension for Scoping Reviews (PRISMA-ScR): Checklist and Explanation(³²,³³). O protocolo de pesquisa foi publicado⁽³⁴⁾ e registrado na Open Science Framework com identificador https://doi.org/10.17605/OSF.IO/G59AB.

Fontes de Dados e Estratégia de Pesquisa

Para a construção dessa revisão foram acessadas nove bases de dados por meio do Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), incluindo: Excerpta Medica data BASE (Embase), Google Acadêmico, PubMed, Scopus, Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Cumulative Index to Nursing and Allied Health Literature (CINAHL), Scielo, Web of Science e o Portal da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS).

A questão de revisão foi formulada de acordo com o acrônimo PCC (População, Conceito e Contexto), sendo População (P) criança, recém-nascido, lactente; Conceito © trato gastrointestinal; Contexto © COVID-19. A questão de pesquisa foi, portanto: Qual a relação entre sintomas gastrointestinais e a COVID-19 na população pediátrica?

Além disso, foram utilizados os descritores MeSH (Medical Subject Headings), DeCS (Descritores em Ciências da Saúde) e CINAHL Headings, juntamente com os operadores booleanos AND e OR. A apresentação da estratégia de busca em cada base de dados está descrita no Quadro 1.

Quadro 1
Estratégia de busca nas bases de dados – Londrina, PR, Brasil, 2023.

Base	Estratégia de Busca	Resultados encontrados
EMBASE	#1 child OR newborn AND “gastrointestinal tract” AND COVID-19 #2 child OR newborn OR infant AND “gastrointestinal tract” AND COVID-19 #3 infant premature OR child OR infant OR newborn AND “gastrointestinal tract” AND “SARS-CoV-2 infection”	110 78 79
Google Acadêmico	#1 infant premature OR child OR infant OR newborn AND “gastrointestinal tract” AND “SARS-CoV-2 infection” #2 lactente AND trato gastrointestinal AND infecção por SARS-CoV-2	2128 236
PubMed	#1 child OR newborn AND “gastrointestinal tract” AND COVID-19 #2 infant premature OR child OR infant OR newborn AND “gastrointestinal tract” AND “SARS-CoV-2 infection”	1866 1089
Scopus	#1 child OR newborn AND “gastrointestinal tract” AND COVID-19 #2 child OR newborn OR infant AND “gastrointestinal tract” AND COVID-19 #3 infant premature OR child OR infant OR newborn AND “gastrointestinal tract” AND “SARS-CoV-2 infection”	340 74 05
LILACS	#1 criança AND recém-nascido AND COVID-19 #2 criança OR recém-nascido AND COVID-19 #3 neonato AND trato gastrointestinal AND COVID-19 #4 criança recém-nascida AND trato gastrointestinal AND COVID-19 #5 recém-nascido AND aparelho gastrointestinal AND doença por Coronavírus 2019 #6 recém-nascido OR prematuro AND trato gastrointestinal AND COVID-19 #7 neonato OR recém-nascido AND trato gastrointestinal AND COVID-19 #8 recém-nascido OR criança AND tubo digestório AND infecção por SARS-CoV-2 #9 lactente AND trato gastrointestinal AND infecção por SARS-CoV-2 #10 lactente OR prematuro AND trato gastrointestinal AND COVID-19	35 0 0 0 1 0 3 0 4 0
CINAHL	#1 child AND “gastrointestinal tract” AND COVID-19 #2 child OR newborn OR infant AND “gastrointestinal tract” AND COVID-19 #3 newborn AND “gastrointestinal tract” AND COVID-19 #4 newborn AND “gastrointestinal tract” OR “digestive tube” AND COVID-19	16 120 1 80
Scielo	#1 infant premature OR child OR infant OR newborn AND “gastrointestinal tract” AND “SARS-CoV-2 infection” #2 child OR newborn OR infant AND “gastrointestinal tract” AND COVID-19 #3 child OR newborn AND “gastrointestinal tract” AND COVID-19	0 0 0
Web of Science	#1 child AND “gastrointestinal tract” AND COVID-19	77
BVS	#1 child AND “gastrointestinal tract” AND COVID-19 #2 infant premature OR child OR infant OR newborn AND “gastrointestinal tract” AND “SARS-CoV-2 infection” #3 child OR newborn OR infant AND “gastrointestinal tract” AND COVID-19	89 16 37

Coleta e Extração dos Dados

A coleta de dados ocorreu em julho e agosto de 2023. Os critérios de elegibilidade foram estudos primários e notas técnicas que abordassem a temática dos sintomas gastrointestinais e COVID-19 e que respondessem à pergunta de pesquisa. Além disso, não foram estabelecidas limitações de idioma ou data de publicação, considerando a carência de estudos relacionados ao tema. Também, foram incluídos estudos que abordassem recém-nascidos (RN), lactentes, crianças e adolescentes ou adultos no mesmo estudo, utilizando dados somente da população pediátrica. Os estudos duplicados foram contados uma única vez.

As análises dos estudos ocorreram por meio de dois revisores independentes, os quais realizaram uma leitura profunda considerando os critérios de elegibilidade. Um terceiro revisor foi convocado para divergências e evitar assim os riscos de viés. Todas as informações, bem como os estudos capturados, foram armazenadas em planilhas eletrônicas e em quadros analíticos onde as informações foram expostas para melhor interpretação e comparação das produções, permitindo assim a descrição das evidências.

Após a leitura dos títulos e resumos, os estudos pré-selecionados passaram por uma análise e mapeamento de dados. Para isto, foi utilizado o Manual de Revisão do JBI⁽²³⁾, o qual constituiu-se em leitura criteriosa e classificação dos textos extraindo os resultados. Uma busca manual ocorreu, por meio de verificação da lista de referências dos estudos incluídos na revisão. Desta busca obtiveram-se artigos que foram contabilizados com o montante final. Esta busca teve o objetivo de encontrar estudos que não foram identificados nas bases de dados.

Foram extraídos dos estudos os seguintes dados: autores/ano, objetivo, população, principais sintomas gastrointestinais, exames realizados, associação dos sintomas gastrointestinais com a COVID-19.

Síntese dos Resultados

Nos estudos selecionados, foi realizada uma análise descritiva das variáveis, que foram analisadas criticamente e discutidas. As características principais dos estudos selecionados foram organizadas e apresentadas em quadros de síntese, contendo as informações mais importantes, respondendo ao objetivo do estudo, como principais sintomas gastrointestinais, exames realizados e associação dos sintomas gastrointestinais.

Aspectos Éticos

A presente revisão de escopo foi realizada considerando os aspectos éticos no que se refere à autoria dos artigos pesquisados e selecionados, sendo todos os autores citados devidamente. Por ser uma pesquisa realizada exclusivamente com textos científicos, não se faz necessária a aprovação de um Comitê de Ética em Pesquisa.

RESULTADOS

As estratégias de busca permitiram encontrar um total de 6.484 publicações, destas 172 eram duplicadas, 27 estavam sem acesso livre e 5.924 apresentavam-se fora da temática desta revisão. Foram selecionados 218 estudos para leitura de título e resumo e, após este processo, 27 selecionados para leitura completa, sendo 191 excluídos por não responderem ao objetivo e pergunta de pesquisa. Assim, seis estudos foram eleitos para compor a presente revisão. Adicionalmente, foram exploradas as referências bibliográficas desses estudos e, após considerar novamente os critérios de elegibilidade, acrescentaram-se mais quatro publicações para compor os resultados, totalizando 10 artigos (Figura 1).

Figura 1
Fluxograma PRISMA-ScR de seleção de estudos e processo de inclusão na revisão de escopo. Londrina, PR, Brasil, 2023.

Os estudos incluídos foram publicados no ano de 2020 (n = 05), 2021 (n = 03), 2022 (n = 01) e 2023 (n = 01), em diferentes países como Itália (n = 03), Estados Unidos da América (n = 1), Brasil (n = 01), Irã (n = 01), Romênia (n = 01), China (n = 01) e Rússia (n = 2). Quanto à língua de publicação, o inglês foi predominante.

No Quadro 2 estão demonstrados os autores, ano de publicação, objetivo principal do estudo, população e tipo de estudo adotado nos artigos que compuseram esta pesquisa.

Quadro 2
Caracterização dos estudos selecionados quanto à identificação, autor, ano, objetivo, população e tipo de estudo – Londrina, PR, Brasil, 2023.

Autores	Objetivo	População	Tipo de estudo
Xu et al.(35)	Relatar as características epidemiológicas e clínicas iniciais da infecção por SARS-CoV-2 testadas quanto à evidência de excreção viral através dos tratos gastrointestinal e respiratório.	Crianças de 0 a 18 anos.	Relato de caso
Miller et al.(36)	Avaliar a prevalência e as apresentações dos sintomas gastrointestinais derivados da síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica relacionada a COVID-19.	Crianças entre 7 meses e 20 anos.	Retrospectivo
Giacomet et al.(37)	Descrever os resultados de análise preliminar de uma coorte de pacientes pediátricos hospitalizados com COVID-19 com foco no modo de apresentação, presença de comorbidades, gravidade da doença e desfecho precoce.	Crianças entre 1 e 18 anos.	Retrospectivo multicêntrico
Dooki et al.(38)	Determinar as apresentações de lesões gastrointestinais e hepáticas em crianças admitidas com infecção por COVID-19 no Hospital Infantil Amirkola.	Crianças entre 2 meses e 18 anos.	Retrospectivo
Souza et al.(39)	Destacar as manifestações gastrointestinais como apresentação inicial da SARS-CoV-2, através da análise dos pacientes pediátricos acompanhados na unidade de tratamento intensiva pediátrica de um hospital de emergência, com diagnóstico de COVID-19.	Crianças de 0 a 14 anos.	Retrospectivo
Lo Vecchio et al.(40)	Descrever as características clínicas, radiológicas e histopatológicas de crianças com COVID-19 apresentando manifestações gastrointestinais graves.	Crianças com menos de 18 anos.	Coorte retrospectivo multicêntrico
Berni Canani et al.(41)	Avaliar a expressão de mediadores mais relevantes da infecção por SARS-CoV-2: ACE2, ACE1, TMPRSS2 e NRP1, em nível do trato respiratório superior e do intestino delgado de crianças.	Crianças de 1 a 10 anos.	Observacional prospectivo
Farello et al.(42)	Avaliar o impacto da pandemia de COVID-19 na prevalência de distúrbios gastrointestinais funcionais em crianças e adolescentes italianos.	Crianças entre 10 e 17 anos.	Transversal com relato de caso
Stepan et al.(43)	Investigar os distúrbios funcionais da dor abdominal em crianças pré-escolares acometidas por infecção viral, de acordo com os critérios diagnósticos mais recentes.	Crianças de 4 a 6 anos.	Retrospectivo, observacional descritivo e analítico
Vasichkin et al.(44)	Relatar casos clínicos que demonstram dificuldades no diagnóstico de distúrbios poliorgânicos em crianças infectadas pelo SARS-CoV-2 em diferentes períodos da doença.	Crianças de 7 e 12 anos.	Relato de caso

• ^*
  SARS-CoV-2: Severe acute respiratory syndrome coronavirus 2; ECA2: enzima conversora da angiotensina 2; ECA1: enzima conversora da angiotensina 1; TMPRSS2: serina protease transmembranar 2; NRP1: Neuropilin 1.

O Quadro 3 apresenta os principais sintomas gastrointestinais, os exames realizados no período de contágio e a associação dos sintomas com a COVID-19 apresentados pelas populações dos estudos selecionados.

Quadro 3
Distribuição dos artigos selecionados segundo a descrição dos sintomas gastrointestinais, exames realizados e a relação deles com a COVID-19 – Londrina, PR, Brasil, 2023.

ID	Principais sintomas gastrointestinais	Exames realizados	Associação dos sintomas gastrointestinais com a COVID-19
Xu et al.(35)	Diarreia (30%).	Tomografia, hemograma e RT-PCR.	Foram observados resultados positivos de RT-PCR em tempo real em swabs retais de crianças, que permanecem detectáveis após os swabs nasofaríngeos se tornarem negativos, sugerindo que o trato GI pode liberar vírus e a transmissão fecal-oral pode ser possível.
Miller et al.(36)	Náusea (29,5%), vômito (29,5%) e dor abdominal (29,5%).	PCR, velocidade de hemossedimentação, albumina, ALT, AST, Ultrassonografia, ressonância.	O SARS-CoV-2 desencadeia o processo de Síndrome Inflamatória Multissistêmica em Crianças e os sintomas posteriores advindos dessa inflamação atingem o trato GI.
Giacomet et al.(37)	Vômito (22%), diarreia (9,4%) e dor abdominal (6,3%).	Radiografia.	O trato GI é um alvo para SARS-CoV-2 devido a expressão da enzima conversora de angiotensina 2 ser um dos principais receptores do vírus.
Dooki et al.(38)	Anorexia (83,3%), náusea (38,9%), vômito (38,9%), diarreia (33,3) e dor abdominal (33,3).	ALT, AST, ALP, protrombina, tromboplastina, PTT, INR, Albumina, Bilirrubina Direta e Total, PCR, Velocidade de Sedimentação, Eritrócitos, Tomografia, Radiografia e Ultrassonografia.	A interação entre ECA2 e o vírus SARS-CoV-2 pode ocorrer devido os receptores estarem presentes no sistema gastrointestinal, além de tempestade de citocinas e desregulação da flora intestinal por meio de mecanismos imunológicos.
Souza et al.(39)	Febre (100%), dor abdominal (30%) e icterícia (15%).	Ultrassonografia, PCR-RT e hemograma.	O surgimento dos sintomas gastrointestinais se deve à entrada do Coronavírus nas células que utilizam o receptor da enzima ECA2. O receptor é encontrado em grande quantidade nas células pulmonares, mas também nas células epiteliais do esôfago, íleo e cólon.
Lo Vecchio et al.(40)	Diarreia (87,7%), vômito (60%), náusea (28,6%), anorexia (28,6%), dor e distensão abdominal (20,3%).	Ferritina, ALT, Ultrassonografia abdominal, amostras de fluido/tecido intra-abdominal.	O SARS-CoV-2 possui ação direta nas células, devido à expressão abundante de receptores de ligação ECA2 e TMPRSS2 na superfície dos enterócitos, facilitando a entrada do RNA para o interior da célula. O trato GI é um potencial alvo de resposta inflamatória imunomediada pelo SARS-CoV-2.
Berni Canani et al.(41)	Dor abdominal (90%), vômito (90%), constipação (90%) e diarreia (50%).	Citologia de amostras epiteliais, Biópsia epitelial do intestino, PCR, IgG, IgM, AST, ALT, Hemograma.	No intestino delgado a expressão de ACE2 é maior em crianças. O receptor ACE2 atua como porta de entrada para o vírus e a TMPRSS2 é empregada pelo SARS-CoV-2 para iniciação da proteína spike, e a NRP1, um correceptor de SARS-CoV-2 aumenta a capacidade do vírus de entrar e potencializa a infecção nas células hospedeiras.
Farello et al.(42)	Dor abdominal (13,6%), ruminação (2,7%), constipação (13,6%).	Critérios Roma III (Para doenças não orgânicas).	A pandemia COVID-19 gerou ansiedade em pessoas saudáveis e exacerbou doenças mentais pré-existentes. As restrições sociais representaram uma ameaça para a saúde mental das crianças e adolescentes, sendo uma fonte de estresse que, aliado às mudanças na rotina, gera um gatilho para o aparecimento de episódios de patologia abdominal e para a recorrência de sintomas relacionados à síndrome do intestino irritável.
Stepan et al.(43)	Dor abdominal (60,9%).	Critério Roma IV (Para doenças não orgânicas).	Distúrbios gastrointestinais funcionais são mediados pelo estresse, a saúde psicossocial na pandemia teve repercussões de longo prazo. A infecção por SARS-CoV-2 é justificada pelo eixo cérebro-intestino onde estão conectados, proporcionando a infecção viral.
Vasichkina et al.(44)	Diminuição do apetite (100%), dor abdominal (100%), fezes semilíquidas (100%).	PCR, procalcitonina, ferritina, D-dímero, raio-x, ecocardiograma.	A síndrome inflamatória multissistêmica em crianças pode ser causada após a COVID-19 e após a infecção por SARS-2-CoV-2 e longo-COVID-19, com a persistência do vírus. A presença de comorbidades é um fator de risco para o desenvolvimento da síndrome.

• ^*
  RT-PCR: Reação de Transcriptase Reversa-Reação em Cadeia da Polimerase; Trato GI: Trato Gastrointestinal; ALT: Alanina Aminotransferase; AST: aspartato aminotransferase; SARS-CoV-2: Severe acute respiratory syndrome coronavirus 2; ALP: Fosfatase Alcalina; PTT: Púrpura trombocitopênica trombótica; INR: Razão Normalizada Internacional; RNA: Ácido Ribonucleico; IgM: Imunoglobulina M; IgG: Imunoglobulina G.

Os achados apontaram para três premissas, as quais apresentam possíveis explicações das condições clínicas e o esclarecimento da sintomatologia apresentada pela população pediátrica, sendo elas: a primeira premissa aponta para o receptor ECA 2 (Enzima Conversora da Angiotensina 2) que é encontrado nas células epiteliais do trato gastrointestinal e a entrada do SARS-CoV-2 nas células ocorre por essa via, dando origem às manifestações gástricas. A segunda premissa refere-se aos sintomas gastrointestinais que são mediados pelo estresse e a saúde mental da população pediátrica na pandemia sofreu repercussões em longo prazo. Assim a infecção pelo vírus pode ser justificada pelo eixo cérebro e intestino onde a infecção viral é desencadeada gerando desestabilização das estruturas. A terceira premissa é que a COVID-19 desenvolve o processo de Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P), afetando o trato gastrointestinal e desencadeando sintomas como diarreia, vômito, náuseas e dor abdominal (Figura 2).

Figura 2
Premissas e sintomas gastrointestinais apresentados pela população pediátrica acometida por COVID-19. Londrina, PR, Brasil, 2023.

DISCUSSÃO

Esta revisão de escopo abrange as manifestações gastrointestinais na população pediátrica advindas da infecção por COVID-19 e o mecanismo pelo qual o vírus é capaz de causar a desordem. A COVID-19 é uma doença sistêmica, a qual vem apresentando na população pediátrica, como sintomatologia inicial, manifestações gastrointestinais(²²,³⁷), o que a diferencia dos adultos que, de modo geral, apresentam alta prevalência de sintomas respiratórios⁽³⁹⁾. A média de pacientes pediátricos que evoluíram somente com sintomas gastrointestinais e ausência de sintomas respiratórios é de 33,5%(²²,³⁷). Neste sentido, os sintomas apresentados pela população pediátrica com diagnóstico de COVID-19 são: diarreia, anorexia, vômito, náusea, dor abdominal e sangramento gastrointestinal(³⁶,⁴⁵,⁴⁶).

Destes sintomas, a diarreia foi apontada como o principal sinal na ausência de achados respiratórios, isso em 22% dos casos⁽⁴⁵⁾ e seu início é descrito de 01 a 08 dias após o início da doença, e com média de 03 a 06 dias, com característica aquosa, amarelada e com frequência de três a nove evacuações por dia(⁴⁷,⁴⁸). Portanto, a transmissão fecal-oral deve ser considerada, mesmo que não haja presença de sintomas gastrointestinais e, assim, evitar a disseminação do vírus por essa via(³⁵,⁴⁹,⁵⁰).

Os achados dos estudos selecionados apontaram para três premissas acerca das relações entre COVID-19 e sintomas gastrointestinais na população pediátrica. O primeiro pressuposto a ser abordado é de que há um comprometimento intestinal causado pelo vírus da COVID-19, pois o receptor da ECA2 é a ligação celular para o SARS-CoV-2⁽⁵¹⁾. Um exemplo disso é que a glicoproteína spike pertencente ao SARS-CoV-2 liga-se na parte extracelular da ECA2 em células hospedeiras, proporcionando altos níveis de expressão do receptor ECA2(⁴⁰,⁵²).

A enzima receptora ECA2 tem uma função importante na regulação da homeostase intestinal. Após ocorrer essa influência do vírus sobre as células, as atividades da receptora são interrompidas no trato gastrointestinal, gerando evidentes diferenças em sua expressão e ocasionando as manifestações gastrointestinais(³⁸,³⁹).

Apesar de a expressão dos mediadores do SARS-CoV-2 agir em locais diferentes, como no epitélio intestinal e epitélio nasal, ECA1 e ECA2 são mais expressos em nível intestinal em crianças do que em adultos, o que explica a população pediátrica apresentar sintomas gastrointestinais mais evidentes comparada com os adultos⁽⁴¹⁾. Além disso, a serina protease transmembranar 2 (TMPRSS2), que também faz a iniciação para a proteína spike e atua como um correceptor do SARS-CoV-2, é predominantemente encontrada em adultos; já a neuropilina 1 (NRP1) possui alta capacidade de potencializar a infecção nas células em nível nasal, outra explicação para os sintomas respiratórios serem mais acentuados na população adulta⁽⁴¹⁾.

A segunda premissa encontrada nos resultados dessa revisão é que os distúrbios gastrointestinais funcionais podem ser oriundos de distúrbios sintomáticos sem anormalidades orgânicas, com origens psicossomáticas⁽⁵³⁾, ou seja, transtornos sensíveis ao estresse, os quais são patologias gastrointestinais com fisiopatologia multifatorial, sendo a principal causa a desregulação do eixo intestino-cérebro⁽⁴²⁾.

Tem-se que a pandemia proporcionou mudanças nas rotinas das crianças, e diversas medidas de segurança foram tomadas a fim de combater o vírus, sendo uma delas o distanciamento social, o que corroborou para a manifestação das doenças psíquicas⁽⁵⁴⁾. Os principais achados gastrointestinais relacionados aos distúrbios gastrointestinais funcionais são síndrome do vômito cíclico, constipação funcional⁽⁵⁵⁾, aerofagia e dor abdominal⁽⁴³⁾.

Neste sentido, seguindo as premissas dispostas nos estudos, tem-se a terceira condição, a associação dos sintomas gastrointestinais por SARS-CoV-2 e a SIM-P, destacados por febre e sangramentos, sendo evidenciados em apresentações mais graves da doença(²⁷,³⁶,⁵⁶). Pode-se observar que pacientes que tiveram detecção do vírus da COVID-19 apresentavam sintomas gastrointestinais juntamente com erupções cutâneas, marcadores inflamatórios elevados e envolvimento do miocárdio⁽⁵⁷⁾. Exames de imagem também complementam para inflamação intestinal decorrente da (SIM-P)⁽³⁶⁾.

Outra questão imposta é que a COVID-19 Longa, que se trata da segunda infecção de longo prazo causada pelo SARS-Cov-2, pode desenvolver distúrbios poliorgânicos(⁵⁸,⁵⁹). É possível observar que a reinfecção é capaz de gerar alguns danos em nível respiratório (21,2%), distúrbios nervosos (16%), tecido tegumentar (15%), trato gastrointestinal (13%), sistema cardiovascular (11%), bem como possíveis sintomas psiquiátricos (10%) e patologias do sistema intestinal (9%)⁽⁶⁰⁾. A COVID-19 Longa está associada diretamente com as causas da SIM-P. Devido à persistência do vírus⁽⁵⁷⁾, alguns sintomas podem ser esperados em até três meses ou mais. Por isso, a observação dos pacientes deve ser realizada em níveis futuros, mesmo quando a detecção do vírus por métodos de diagnóstico laboral sejam negativas⁽⁶⁰⁾.

Desse modo, faz-se necessária atenção especial aos pacientes que exibem sintomas gastrointestinais e possuem história de exposição ou infecção por SARS-CoV-2, pois os dados sugerem que o contato com o vírus desencadeia a SIM-P, e os sintomas gastrointestinais se apresentam como sinais desta condição⁽⁴⁴⁾.

Ressalta-se que os resultados apresentados contribuem para formular estratégias nos atendimentos a esta população, dando ênfase e importância aos sintomas em nível gastrointestinal quando relatados. Foram encontradas algumas limitações como inclusão somente de estudos disponíveis na íntegra e gratuitos, o que pode ter levado à exclusão de estudos relevantes para a síntese proposta. Adicionalmente, foram utilizados nove base de dados, o que também limita o número de fontes revisadas, e pode refletir na exclusão de potenciais estudos que poderiam contribuir para elucidar os achados. Também não foram utilizados procedimentos para avaliação das evidências encontradas.

CONCLUSÃO

Os sintomas gastrointestinais apresentados pela população pediátrica são diarreia, anorexia, vômito, náusea, dor abdominal e sangramento gastrointestinal, sendo a diarreia o sintoma mais prevalente nesta faixa etária. A identificação dos sintomas gastrointestinais na população pediátrica acometida por COVID-19 pode auxiliar na abordagem clínica e na discussão do manejo de cuidados e tratamento a essas crianças.

A síntese de evidências proporcionou três pressupostos que orientam a origem dos sintomas. Um deles é o receptor ECA2, que é encontrado nas células epiteliais do trato gastrointestinal e favorece a entrada do SARS-CoV-2 nas células ocasionando a infecção e gerando as manifestações gástricas. Também, a saúde mental da população pediátrica foi atingida pela pandemia e as restrições impostas, ocasionando as desordens do eixo intestino-cérebro, repercutindo assim nas manifestações gastrointestinais. Além disso, o vírus é capaz de desencadear sintomas gastrointestinais devido a sua capacidade para desenvolver o processo de síndrome inflamatória multissistêmica.

• Apoio financeiro: Universidade Estadual de Londrina. Londrina, PR, Brasil. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

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Editado por

EDITOR ASSOCIADO

Thereza Maria Magalhães Moreira

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  06 Maio 2024
• Data do Fascículo
  2024

Histórico

• Recebido
  16 Nov 2023
• Aceito
  13 Mar 2024