Acessibilidade / Reportar erro

Ser mãe e estar com AIDS: revivescimento do pecado original

To be mother and to have AIDS: the original evil reviviscency

Resumos

O estudo objetivou compreender o significado de estar com AIDS para mães portadoras do HIV/AIDS, identificar as emoções e os modos de enfrentamento decorrentes da relação mãe-filho sadio. Realizado à luz da teoria das representações sociais, teve como resultante "ser mãe" e "estar com AIDS" representado como um processo que não se esgota na doença, mas mostra-se vinculado à polaridade do bem e do mal. Traz ainda a sexualidade como algo que contém essas polaridades e a AIDS, vinculada ao aspecto mal. As mulheres deste estudo mostraram se julgar culpadas de algo e merecem o castigo imposto pela doença.

AIDS; Emoções; Mulheres


This study aimed to understand the meaning of being with AIDS among HIV/AIDS mothers. It looks for to identify the emotions and the way of cope with the situation as a mother has a healthy son. This study was conducted based on the Social Representations Theory. The findings showed "to be mother" and "to have AIDS" represented as a process that does not finish in the disease itself Also it was found that there is a polarize link between the good and the evil. Indeed, this study brought the sexuality likewise the polarized link, being AIDS linked to evil aspect. These women from this study had perceived themselves as guilty of something, as a result, they deserved the punishment that the AIDS imposed on them.

AIDS; Emotions; Women


ARTIGOS ORIGINAIS

Ser mãe e estar com AIDS: o revivescimento do pecado original1 1 Artigo produzido a partir da Dissertação de Mestrado apresentada à Escola de Enfermagem da USP em 1997

To be mother and to have AIDS: the original evil reviviscency

Maria Lúcia Duarte PereiraI; Eliane Corrêa ChavesII

IMestre em Enfermagem, professora assistente do Departamento de Enfermagem da Universidade Estadual do Ceará. Enfermeira do Ambulatório HIV do Hospital São José de Doenças Infecciosas, Fotaleza - Ce. e-mail: mlduarte@fortalnet.com.br

IIProfessora Dra. do Departamento de Enfermagem Médico - Cirúrgica, da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. e-mail: ecchaves@usp.br

RESUMO

O estudo objetivou compreender o significado de estar com AIDS para mães portadoras do HIV/AIDS, identificar as emoções e os modos de enfrentamento decorrentes da relação mãe-filho sadio. Realizado à luz da teoria das representações sociais, teve como resultante "ser mãe" e "estar com AIDS" representado como um processo que não se esgota na doença, mas mostra-se vinculado à polaridade do bem e do mal. Traz ainda a sexualidade como algo que contém essas polaridades e a AIDS, vinculada ao aspecto mal. As mulheres deste estudo mostraram se julgar culpadas de algo e merecem o castigo imposto pela doença.

Unitermos: AIDS. Emoções. Mulheres.

ABSTRACT

This study aimed to understand the meaning of being with AIDS among HIV/AIDS mothers. It looks for to identify the emotions and the way of cope with the situation as a mother has a healthy son. This study was conducted based on the Social Representations Theory. The findings showed "to be mother" and "to have AIDS" represented as a process that does not finish in the disease itself Also it was found that there is a polarize link between the good and the evil. Indeed, this study brought the sexuality likewise the polarized link, being AIDS linked to evil aspect. These women from this study had perceived themselves as guilty of something, as a result, they deserved the punishment that the AIDS imposed on them.

Uniterms: AIDS. Emotions. Women.

INTRODUÇÃO

Encontramo-nos na segunda década da pandemia da AIDS e, a cada dia, a vulnerabilidade ao HIV/AIDS torna-se mais pronunciada (MANN; TARANTOLA; NETTER, 1993).

MANN; TARANTOLA; NETTER (1993), ao trabalharem dados da OMS, afirmam que, no início de 1992, havia 12,9 milhões de pessoas infectadas pelo HIV no mundo inteiro, das quais 4,7 milhões eram mulheres, 7,1 milhões eram homens e 1,1 milhão eram crianças. Cerca de 1/5(2,7 milhões, 21%) desenvolveram AIDS e mais de 90% (aproximadamente 2,5 milhões) morreram. As estimativas mais conservadoras indicam para o ano 2000, pelo menos 38 milhões de adultos infectados; e uma projeção mais realista prevê um número maior, em torno de 110 milhões. Isso significa que, até o ano 2000 o número de casos de AIDS acumulado atingirá aproximadamente 25 milhões de pessoas.

A epidemiologia da AIDS no Ceará, como no restante do Brasil, tem mostrado sua capacidade de disseminar-se e adaptar-se, de maneira eficaz, às diferentes condições de transmissibilidade mais freqüentes em cada região. Até 23 de dezembro de 1995, foram registrados 1046 casos da doença nesse Estado. Desde o início da epidemia, os indivíduos do sexo masculino foram os mais atingidos, porém tem sido observada uma mudança nesse perfil (BOLETIM, 1996). Em 1989, a razão homem/mulher era de 63/1. Já em 1995, esta razão chegou a ser de 4/1 e, em 1998, chegou a 3/1, o que demonstra uma significativa disseminação da AIDS entre as mulheres (CEARA, 1999).

Apesar de haver um grande número de pesquisas sobre os aspectos biológicos, formas de transmissão, modos de prevenção, terapêutica utilizada, epidemiologia da infecção, etc., pouco se tem estudado sobre as emoções que a AIDS desencadeia.

A psicossomática tem mostrado que as emoções estão intimamente vinculadas ao funcionamento das estruturas orgânicas e vice-versa; sabe-se também que as emoções têm componentes psicológicos, biológicos e sociais (DEJOURS, 1988). Com base nisso, podemos supor que não é possível prescindir de estudos dessas três áreas quando se pretende abranger completamente a investigação de uma doença tão complexa quanto a AIDS.

A abordagem teórica tem se caracterizado pela valorização da sua natureza cognitiva alternada com a natureza afetiva e, apenas na década de 80, foram dirigidos esforços para resgatar a análise integral do homem (TAKAHASHI, 1991).

A concepção de análise integral do homem implica entender a emoção como fruto da fusão e da interdependência da subjetividade humana, do seu aparato biológico e de sua história social, sem que seja possível, ou até mesmo necessário, definirmos qual das três predomina na sua gênese.

Embora tenhamos conhecimento de que há várias teorias sobre emoções, no momento nos limitamos ao perfil teórico desses dois autores, que enfocam prioritariamente aspectos biopsicossociais e culturais na abordagem do tema. Mesmo utilizando referenciais diferentes, como podemos observar, um cognitivista e o outro materialista, é inegável a importância da contribuição de cada um no desvelamento de um tema tão complexo.

É evidente que a AIDS acarreta problemas para qualquer pessoa, independente do sexo, porém existem situações vivenciadas pelas mulheres que são bem peculiares, como a gravidez, a maternidade e a amamentação.

A condição da mulher, que é portadora do HIV/AIDS e que é mãe de filhos não portadores do vírus, pode também, decorrente da quebra desse contrato de responsabilidade da primeira com o outro, desencadear determinadas emoções geradoras de conflito.

"A emoção desconcerta aqueles que a experimentam porque lhes quebra o curso habitual da vida" (MARTINET, 1981). Esta expressão denota toda a complexidade implicada na emoção, envolvendo fenômenos orgânicos, psíquicos e sociais.

Entendendo que as emoções são essenciais na vida do ser humano, e compreendendo que representam papel preponderante na determinação e na evolução das doenças, este trabalho teve como objetivos: compreender o significado de estar doente para mães portadoras do HIV/AIDS; identificar as emoções que emanam da relação mãe portadora do HIV/AIDS com o filho sadio; assim como identificar os modos de enfrentamento utilizados para lidar com as emoções decorrentes dessa relação.

Partindo desse entendimento, consideramos como pressuposto básico que as emoções têm raízes históricas e culturais, socialmente construídas e reinterpretadas por estes sujeitos, enquanto indivíduos e grupos sociais, de acordo com suas visões de mundo, suas condições de existência, seus interesses específicos e sua inserção na estrutura social de uma determinada sociedade.

REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLÓGICO

Para trilharmos o caminho da interpretação das mensagens emitidas pelas mães portadoras de HIV/AIDS, a fim de compreendermos o significado de estar com AIDS, identificarmos as emoções e modos de enfrentamento utilizados pelas mesmas na relação com o filho sadio, optamos por uma abordagem qualitativa, visto que este tipo de análise permite entender os fenômenos em termos dos significados que os sujeitos estudados lhes atribuem.

Para tal, elegemos como referencial teórico a Teoria das Representações Sociais, na perspectiva da Psicologia Social, representada por MOSCOVICI (1978) e SPINK (1993;1995). Como método de compreensão da experiência, optamos pela Análise de Conteúdo, fundamentada por BARDIN (1977), por ser uma técnica de análise que tem como ponto de partida a mensagem e que possibilita uma compreensão além dos significados imediatos.

O estudo foi realizado em duas instituições que prestam assistência a portadores do HIV/AIDS, no período de 16 de setembro a 21 de outubro de 1996, na cidade de Fortaleza, Ceará. Uma delas é um hospital estadual, especializado em doenças infecciosas, que serve de referência a todo município de Fortaleza e cidades interioranas.

A outra instituição é um Centro de Convivência que presta assistência psicossocial aos portadores do HIV/ AIDS. É uma instituição filantrópica, coordenada por membros da Congregação Camiliana.

Fizeram parte do estudo 6 mulheres que foram diagnosticadas como portadoras do HIV/AIDS, que eram mães e que não haviam transmitido o vírus para os seus filhos. Não foi considerado como fator de exclusão o fato de a mãe ter ou não manifestado a doença.

Os dados foram coletados pela própria pesquisadora, através de entrevistas semi-estruturadas, gravadas e posteriormente transcritas.

Partimos de uma leitura superficial de todos os depoimentos, através do conteúdo manifesto, para posteriormente atingirmos um nível mais aprofundado, representado pelo conteúdo latente. Realizada essa leitura, procuramos identificar os temas recorrentes e as contradições que emergiam espontaneamente. Atentamos para as palavras utilizadas, as figuras de linguagem, as pausas, as formas verbais mais utilizadas. Foram dados destaques às palavras que definiam "o estar com AIDS", o afloramento das emoções e os modos de enfrentamento da doença.

As etapas de análise processadas possibilitaram apreender as representações das mães acerca do "estar com AIDS", revelando o implícito e o explícito das emoções e os modos de enfrentamento utilizados na relação com os filhos sadios. Para melhor compreensão da dinâmica desse processo, que denominamos vivenciando a doença.

AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DAS MÃES SOBRE ESTAR COM AIDS

O perfil do grupo estudado, foi caracterizado por mulheres jovens, na segunda e terceira décadas de vida, com nível sócio-econômico-cultural baixo. A maioria já manifestara sintomas da doença e todas foram infectadas através de relações sexuais. A idade dos filhos dessas mulheres variou entre a tenra idade (meses) até a adolescência, sendo que algumas delas não conviviam com seus filhos, embora referiam-se a eles como se tivessem uma relação muito estreita.

Este perfil permite que identifiquemos um aspecto importante desta população: são mães que têm representações sociais acerca do "estar com AIDS" ancoradas em conhecimentos estabelecidos pela própria convivência com a doença, que lhes foi transmitida através de relações sexuais, ou seja, em que a fonte de prazer também se configura como fonte de dor ou desprazer, permeada por todo o imaginário social.

Vivenciando a doença estar com AIDS: a condenação à morte

Ao buscar as representações sociais das mães acerca do "estar com AIDS", deparamo-nos com colocações basicamente negativas, niilistas, como núcleos temáticos principais, sendo a vivência expressa por termos que indicam sofrimento, manifestos pela dor, tristeza, solidão, abandono, pelas perdas e culminando com a morte, entendida como uma punição decorrente de uma autocondenação, que pode ser entendida como um ato antecipatório a uma condenação do grupo social, fantasiada por elas próprias.

A condenação à morte é precedida por um longo sofrimento, pois, antes de se concretizar, as mães têm de enfrentar mudanças em suas vidas, isolamento social, discriminação e a morte e o morrer ainda em vida.

Mudanças em suas vidas

A maioria das entrevistadas relata uma mudança radical em suas vidas provocadas pelas limitações impostas pela doença, envolvendo perda financeira, perda da habilidade física, diminuição da motivação, diminuição da saúde e da alegria, ausência de perspectivas e desestrutura psicológica.

Associado à perda financeira está o conceito de normalidade do ponto de vista da mãe, que se considera anormal por estar com a doença, ou seja, com um impedimento definitivo e, portanto, impossibilitada de trabalhar. Seus depoimentos nos induzem a supor que as suas representações em relação ao obstáculo ao trabalho são em grande parte de natureza social e psicológica, antes de ser de ordem física.

Por outro lado, a implicação de ser portadora do HIV/AIDS pode também resultar em uma experiência intersubjetiva transformadora e até mesmo benéfica, ainda que sofrida. Talvez, porque a doença represente a possibilidade de expiar a dor de uma culpa que é maior que a própria doença.

Podemos inferir que a AIDS provoca nas mulheres uma transformação em suas vidas, pois acarreta uma desestruturação significativa em todos os aspectos, tornando-as seres sem perspectivas futuras.

Isolamento social

O isolamento social foi representado pela quebra de vínculos presentes na maioria dos depoimentos. A constatação da doença leva-as a tomar atitudes de afastamento em relação à família e à sociedade, incluindo o ambiente. Mesmo não apresentando sintomas da doença, parece ser visível em seus rostos que a AIDS obriga-as a se afastarem do convívio familiar e social, evitando assim o julgamento e a condenação moral a que elas já se anteciparam, visto que esta é uma doença estigmatizada, que cristaliza no imaginário social simbolizações acerca da transmissão do HIV.

Parece que subjaz ao pensamento das mães a idéia de que contaminação pelo vírus HIV resultou de uma conduta sexual anormal, pouco moral ou condenável, mesmo que elas não possuam um entendimento claro do que seja isso e de como seria uma conduta sexual recomendável. Parece haver uma condenação apriorística e inata ao próprio ato sexual, seja ele qual for. Talvez, uma condenação ao "pecado original".

O pecado original de Adão e Eva, segundo AGOSTINHO(1986), foi a primeira expressão de liberdade humana, mesmo que por meio da desobediência à uma ordem Divina. O preço dessa desobediência não poderia ser menor do que a expulsão do paraíso e à condenação às experiências de sofrimento, até então inexistentes. Deu-se a partir daí o início da vivência da humanidade. Adão e Eva praticamente fundaram no seu ato de liberdade/desobediência o estatuto de "ser humano".

À semelhança de Adão e Eva, que após o pecado carnal se desvincularam do paraíso, parece haver repetição desse comportamento por parte dessas mulheres que, se julgando pecadoras, se submetem voluntariamente à mesma condenação. Agora a condenação não é mais imposta por "Deus", mas sim por um deus internalizado, ou seja, uma autocondenação.

A vergonha de serem reconhecidas como "anormais" e a insegurança quanto à sua aceitação no meio social fazem com que as mães se afastem desse convívio. Antecipando o isolamento e a quebra de vínculos, escapam do julgamento moral da sociedade, mas não do próprio julgamento.

A discriminação

A discrimininação, que na verdade surge a partir da auto-discriminação está associada ao isolamento social, uma vez que este foi a maneira de lidar com a suposta discriminação dos outros.

A morte e o morrer em vida

Em todos os depoimentos, o tema morte e morrer foi abordado livremente em vários pontos das narrativas, demonstrando uma consciência absoluta da morte. As mães que já apresentaram sintomas da doença referiram-se à morte com mais intensidade.

A certeza da morte como desfecho da doença permite que se estabeleçam alternativas para deixar o filho situado no mundo.

A morte é representada ainda em vida, como um processo que se inicia desde o momento do diagnóstico.

Os depoimentos mostram que as mães encontram-se em uma situação de desespero, definida por TILLICH (1991) como "linha de fronteira", como a própria etimologia da palavra indica: sem esperança.

Saber-se portadora do HIV/AIDS e a impotência diante dessa realidade resulta em duplo desespero, do qual as mães tentam se livrar através da busca da morte voluntária.

Diante da inexorabilidade da morte, as mães são colocadas no embate entre a busca de continuar a ser e a implacabilidade do destino de não-ser, diante do qual o não-ser é sentido como absolutamente vitorioso. Sentindo-se incapazes de resolver a ameaça dessa situação, pensam em antecipar sua finitude, mas como sofrimento e morte em decorrência da AIDS têm a conotação de purgação dos pecados pelo sofrimento do corpo e, portanto, absolvição ou salvação da alma, o suicídio pode representar o abortamento desse processo, implicando numa alma eternamente condenada.

A morte em vida manifesta-se ainda na transformação da concepção de temporalidade, ou seja, elas se negam o futuro sem que haja uma refocalização no presente e, portanto, não há também presente e nem passado.

O conflito: "ser mãe" e "estar com AIDS"

A dor da morte está relacionada com a tristeza de ter que romper laços com os filhos, o que lhes causa frustração, porque "estar com AIDS" parece ser incompatível com "ser mãe", na medida em que impede a morte de manter-se como possibilidade e sim como destino real. Se o papel social da mãe é dar conta do filho e se "estar com AIDS" simboliza a morte, ela não cumprirá o seu papel, quebrando assim o contrato natural de responsabilidade.

O conflito é representado pela idéia de abandono compulsório, que será a causa da infelicidade do filho. O marido também pode ser visto como a causa do conflito, da angústia e do sofrimento de ter que abandonar o filho, uma vez que é responsabilizado pela contaminação.

As emoções emergentes

As emoções emergentes dos discursos são representadas pelas categorias ansiedade e medo, com suas subcategorias.

A ansiedade tem como subcategorias a ansiedade do destino e da morte e a ansiedade da culpa e condenação. O medo, por sua vez, apresenta como subcategoria o medo da morte; assim definidas pela aproximação com o referencial teórico de TILLICH (1991), o qual ressalta que medo tem objeto definido, podendo ser enfrentado, analisado, atacado e tolerado; enquanto que a ansiedade não tem objeto, ou melhor, seu objeto é a negação de todo objeto.

Ansiedade

TILLICH (1991) define ansiedade como "um sentimento penoso de não ser capaz de resolver a ameaça de uma situação especial". É o estado no qual um ser tem ciência de seu possível não-ser." Não significa a certeza da transitoriedade universal, nem mesmo com a experiência da morte dos outros, porém, a impressão dessas ocorrências na sempre latente consciência do ser humano "ter de morrer". A ansiedade é, portanto, finidade experimentada como finidade do próprio ser humano, ou seja, "é a ansiedade de não-ser, a certeza de nossa finidade como finidade."

Essa é uma ansiedade básica, a ansiedade de um ser finito ante a ameaça do não-ser, que não pode ser eliminada porque diz respeito à própria existência. (TILLICH, 1991)

A ansiedade representada pela mãe é percebida através da conscientização de seu possível não-ser, que vai ao encontro do que TILLICH (1991) designa "a consciência existencial do não-ser", onde "existencial" é uma parte do nosso próprio ser. Essa consciência do ser em tornar-se não-ser resulta em duas caracterizações específicas de ansiedade que, neste estudo consideramos como subcategorias da ansiedade.

A ansiedade do destino e da morte

"Destino e morte são os meios pelos quais nossa afirmação "ôntica" é ameaçada pelo não-ser. O não-ser ameaça a auto-afirmação "ôntica" do ser humano de modo relativo, em termos de destino, e de modo absoluto em termos de morte, porém a ameaça relativa é uma ameaça só porque em sua base está a ameaça absoluta. O destino não produzirá ansiedade inevitável se não tivesse a morte por traz de si. E a morte está por trás do destino e suas contigências, não só no último momento, quando se é expulso da existência, mas em cada momento dentro da existência. Existencialmente todo ser humano tem certeza da completa perda do eu que a extinção biológica implica. O não-ser é onipresente e produz ansiedade. Ele está por trás da insegurança e desabrigo da nossa existência social e individual. Está por trás de nossa potência de ser, no corpo e na alma, por parte da fraqueza, enfermidade e acidentes. O destino se realiza em todas estas formas, e através delas a ansiedade do não-ser toma conta de nós" (TILLICH, 1991, p. 33 e 35).

A ansiedade do destino e da morte foi manifesta quando a mãe demonstrou estar ameaçada por um inimigo implacável, abrigando tudo que se relacionou com corpo, dor, sintomas da doença e morte.

A ansiedade da culpa e condenação

Para TILLICH (1991), o ser humano manifesta a ansiedade da culpa e condenação quando o não-ser ameaça a auto-afirmação moral do homem. Aquele que pergunta é o seu juiz, a saber, ele próprio, que ao mesmo tempo coloca-se contra ele, gerando um sentimento de culpa. A ansiedade da culpa "está presente em cada momento da auto-consciência moral e pode levar-nos à completa, auto-rejeição, para o sentimento de estar condenado, não a um castigo externo, mas ao desespero de haver perdido o nosso destino".

A ansiedade da culpa e condenação foi caracterizada quando a mãe auto julgou-se moralmente, abrigando tudo que estava ligado à contaminação, quebra de vínculos, resignação, com a dor e o sofrimento.

Medo

TILLICH (1991) assinala que estar com medo é estar assustado com algo, uma dor, a rejeição de uma pessoa ou de um grupo, a perda de alguma coisa ou alguém, o momento de morrer.

Buscando nas falas a origem desse medo, caracterizamos o desconhecido, relacionado com o que não havia sido vivido anteriormente pela mãe, a saber, a discriminação e a morte. O objeto do medo é o evento de ser morta pela AIDS e assim sofrer a agonia e a perda de tudo, inclusive de si própria. Diante disso, nominamos a subcategoria medo da morte.

Medo da morte

O medo da morte foi possível explicitar em várias falas, revelado pela possibilidade de adoecer e ficar internada, o que trará uma maior proximidade da morte. O medo da morte é concretizado por meio da morte do outro, que se encontrava em condição semelhante.

No que se refere ao papel da mãe, o medo da morte é manifesto como pavor, porque significa cortar definitivamente os laços com os filhos. A morte amedronta, porque quem tem AIDS não tem saída, e isso causa pavor e tristeza.

KOVÁCS (1992) assinala que o medo é a resposta psicológica mais freqüente dos seres humanos diante da morte, é universal e atinge a todos, independente da idade, sexo, nível sócio-econômico e credo religioso, porém sua intensidade pode variar, dependendo da época de vida de cada um e das circunstâncias do momento

CHAUÍ (1995), em seu texto "Sobre o Medo", abre a discussão definindo-o; para isso, faz uso de uma linguagem poética e metafórica, através do poema "Anoitecer" de Drumond, tentando consolidar nas antípodas a explicação do inexplicável e, refletindo sobre o tema, indaga: "de que se tem medo? Da morte, foi sempre a resposta. E de todos os males que possam simbolizá-la, antecipá-la, recordá-la aos fiéis mortais".

Corroborando com o pensamento de Spinosa apud CHAUI (1995), como explicar o inexplicável, já que "o medo é a mais triste das paixões tristes". Como guiar essa "paixão" pela razão? Reprimindo-a, transformando-a ou negando-a? Seria o medo a chave para a liberdade humana, aumentando ou diminuindo a sua potência de ação?

Medo e ansiedade são distintos, mas não são separados. Um abriga o outro. A ansiedade se esforça em direção do medo (TILLICH, 1991).

Corroborando TILLICH (1991), KOVÁCS (1992) enfatiza a dificuldade em se diferenciar medo e ansiedade. E em se tratando de morte, a experiência é tão ampla e universal que "o medo da morte evoca ansiedade."

OS MODOS DE ENFRENTAMENTO

De acordo com o que pudemos perceber, "ser mãe" e "estar com AIDS" é uma situação geradora de tensão e, segundo COLEMAN (1973), a tensão provoca tentativas automáticas e persistentes para solucionar ou minimizá-la, as quais na psicanálise são denominadas de mecanismos de defesa e na teoria do stress, de "coping".

COLEMAN (1973) assinala que o "eu" é o único integrador da personalidade e qualquer ameaça a seu valor ou a sua adequação é uma ameaça ao centro da existência do ser humano. Por isso quando o mesmo encontra-se em situação onde a integridade do "eu" é ameaçada, utiliza-se de mecanismos de defesa para protegê-lo. Essas defesas podem ser psicológicas e sociológicas.

As defesas psicológicas são aquelas orientadas para a tarefa, envolvendo a capacidade cognitiva na tentativa relativamente direta para resolver problemas e satisfazer necessidades; e reações orientadas para a defesa do ego, em que se fazem presentes numerosos mecanismos de defesa, geralmente inconscientes. As defesas sociológicas trazem à tona a interação que o ser humano estabelece com o(s) outro(s), manifestada nas suas relações de grupo e organizações (COLEMAN, 1973).

Na visão da teoria do stress, Lazarus; Folkman apud CHAVES (1994) aponta que o "coping" é uma segunda etapa de uma avaliação seqüencial ("secondary appraisal"), na vigência de uma situação estressante, processada a nível de centros cognitivos de avaliação, buscando estratégias para o enfrentamento.

A análise dos depoimentos permitiu a identificação de algumas estratégias defensivas utilizadas pelas mães para controlar as emoções emergentes, sendo a fuga, a projeção, a negação, a compensação e a onipotência as mais utilizadas.

A fuga, segundo COLEMAN (1973), é quando o indivíduo sai da situação ou toma outras medidas que eliminem a chegada de informação. Foi representada através do comportamento relatado pela mãe que, por não ter recursos internos para enfrentar a doença perante o mundo social, optou por afastar-se da sociedade.

A projeção"é uma reação de defesa através da qual transferimos a outros as censuras a nossas limitações, nossos erros e falhas; atribuímos a outros nossos impulsos, pensamentos e desejos inaceitáveis"(COLEMAN, 1973). Foi representada quando a mãe justifica sua atitude, ressaltando que outra pessoa se comporta da mesma maneira e, também é representada quando responsabiliza o marido pela contaminação.

A negaçãoé considerada como o mais primitivo dos mecanismos de defesa do ego; é caracterizada quando "fugimos de muitas realidades desagradáveis; ao ignorá-las ou quando nos recusamos a admiti-la." (COLEMAN, 1973). Foi representada em alguns comportamentos de ficar distante da realidade, bem como, no momento da entrevista, quando fugia das respostas, demonstrando não querer nem pensar.

A compensação"são reações de defesa contra sentimentos de inferioridade e inadequação que decorrem de fraquezas e defeitos pessoais, reais ou imaginários, bem como de contragolpes e fracassos inevitáveis" (COLEMAN, 1973).

A compensação foi representada quando a mãe tenta minimizar o sofrimento causado pela condição de portadora do vírus.

A onipotência é "a percepção infantil de que o mundo exterior é parte do organismo e está dentro dele, o que leva a uma sensação primitiva de ser todo poderoso. Essa sensação torna-se gradualmente limitada, à medida que o ego e um senso de realidade desenvolvem-se"(TAYLOR,1992).

A onipotência foi representada quando a mãe se coloca como a única pessoa que quer o melhor dos filhos e também a que melhor cuida, talvez por se encontrar em uma situação de desamparo.

Os depoimentos deixam transparecer que não é fácil conviver com um destino programado, tendo a morte como desfecho e que, antes da sentença final, a mãe deverá passar por um longo sofrimento. Porém esses mesmos depoimentos evidenciaram que o maior mecanismo de defesa ou "coping" são os filhos. Eles são o sustentáculo maior para superação de todo o processo. Isso é bem evidente no depoimento de todas as mães que entrevistamos, que nos levou a construir a categoria: O filho como a maior motivação para a vida.

Os depoimentos evidenciam que a coragem para afirmar-se a despeito da morte é dada pelos filhos.

Se considerarmos que há na sexualidade o componente do pecado ligado ao prazer e ao ato carnal e o componente divino ligado à concepção, seria por meio do filho que a mãe poderia fortalecer o bem que há na sexualidade, a qual ela exercitou.

O bem foi criado por Deus, pela vontade divina; o mal porém, pela vontade mutável do bem, ou seja, pela vontade humana (AGOSTINHO, 1986).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sexualidade, na cultura cristã, traz, na sua origem, o pecado e a divindade, o prazer e a dor, a liberdade e a punição. A AIDS, que é uma doença mesclada com o conceito de sexualidade, intensifica esses conflitos, canalizando para o lado mais dramático, mais negativo, ou seja, a punição.

A relação sexual, forma pela qual as mulheres entrevistadas se contaminaram, foi o ponto principal de análise deste estudo. A maneira pela qual essas mulheres definem o "estar com AIDS" não se esgota na doença como um processo contínuo e dramático. Mostra também a AIDS como uma face caracterizada da condição feminina, pautada ainda nos pressupostos fundamentados na polaridade do bem e do mal, os quais são defendidos e cultivados pelo Cristianismo.

Infelizmente, as mulheres conservam preceitos dogmáticos prescritos pelo Cristianismo, acreditando que o mal existe, e que este está vinculado ao castigo. Dada à falta de conscientização social e política, ocorrem margens para que essas mulheres não percebam como os fatores culturais e ideológicos podem interferir em sua dinâmica social e psíquica. Esse fenômeno ainda é acrescido da violação de seus direitos como mulher e, principalmente, como uma pessoa que apresenta livre arbítrio e até mesmo possibilidade de obter melhor qualidade de vida, pelo tempo que lhe couber.

Relacionando as representações sociais das mães acerca de "estar com AIDS", destacamos em um de seus recortes a doença-punição, integrada à questão da culpabilidade, associada à responsabilidade. LAPLANTINE (1991) menciona que o lado endógeno significa: "eu estou doente e sou responsável por isso" ou "eu provoquei o meu mal", portanto... (mereço pagar por isso), comportamento este presente nas respostas das depoentes que participaram desta investigação.

Assim, no caso dessas mulheres, percebe-se que esse comportamento se caracteriza, também, na busca do prazer, do qual elas julgam não terem direito, exceto com a finalidade de reprodução, permeada por conflitos internos e sofrimentos, visto por elas como um difícil "calvário".

Por fim, esse quadro é marcado em todas as suas relações, e, por conseguinte, em sua trajetória na doença - AIDS. Fato este minimizado pela presença dos filhos, que simbolizam a concepção e, portanto, a porção divina da sexualidade, passando a representar o lado bom, de esperança e de sustentação, para que as mães possam trabalhar com maior segurança o seu caminho, na tentativa de abrir novos espaços, sejam eles sociais, afetivos ou espirituais.

Este trabalho trouxe-nos conceitos que, ao lado dos conceitos biológicos já existentes, compõem a experiência da mãe com AIDS, permitindo o conhecimento das suas emoções e portanto, uma maior possibilidade de identificação de suas demandas de cuidados.

Não é tarefa fácil colocar-se ao lado dessas mães e usar refletidamente esses conceitos. Requer empenho do profissional em perceber-se como pessoa e conceber o outro da mesma maneira.

Dada a complexidade que envolve a temática da AIDS, a necessidade que os profissionais de saúde, que trabalham ou pretendem trabalhar com essa clientela, têm de refletirem profundamente acerca de questões, tais como:o significado pessoal da sexualidade, do pecado, da culpa, do castigo, do certo e do errado, do bem e do mal, para estarem mais preparados para ajudar seus pacientes a lidarem com essas questões, com o mínimo possível de projeções e preconceitos.

Finalizamos esse trabalho propondo que mantenhamo-nos num constante movimento de busca, motivados pelo desejo de instrumen-talizarmo-nos como pessoas e como profissionais mais competentes e ricos em atitudes humanas.

  • AGOSTINHO, S. O livre arbítrio. Tradução do original latino com introdução de notas por Antônio Soares Pinheiro. São Paulo, Braga, 1986.
  • BARDIN, L. Análise de conteúdo São Paulo, Edições 70, 1977.
  • BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO DO ESTADO DO CEARÁ: Doenças transmissíveis - AIDS Fortaleza, 1996.
  • CEARÁ. Secretaria de Saúde do Estado. SINAN - Sistema de Informação de Agravos d e Notificação, 1999.
  • CHAUI, M. Sobre o medo. In: CARDOSO. S. et al. Os sentidos da paixão. São Paulo, Companhia das Letras,1995. p.35-75.
  • CHAVES, E. C. Stress e trabalho do enfermeiro: a influência de características individuais no ajustamento e tolerância ao turno noturno. São Paulo, 1994. 163 p. Tese (Doutorado) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.
  • COLEMAN, J. C. A psicologia do anormal e a vida contemporânea São Paulo, Pioneira, 1973.
  • DEJOURS,C. O corpo entre a biologia e a psicanálise Porto Alegre, Artes Médicas, 1988. cap. 1, p. 21-38: A angústia.
  • KOVÁCS, M. J. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1992.
  • LAPLANTINE, F. Antropologia da doença São Paulo, Martins Fontes, 1991.
  • MANN, J.; TARANTOLA, D. J. M. ; NETTER, T. W. A AIDS no mundo. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1993.
  • MARTINET, M. Teoria das emoções. Lisboa, Moraes, 1981.
  • MOSCOVICI, S. A representação social da psicanálise Rio de Janeiro, Jahar, 1978.
  • SPINK, M. J. Desvendando as teorias implícitas: uma metodologia de análise das representações sociais. In: GUARESHI, P.; JOVCHELOVITCH, S. Textos em representações sociais. 2.ed. Petrópolis, Vozes, 1995. p. 117-45.
  • SPINK, M. J. O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo, Brasiliense, 1993.
  • TAKAHASHI, E. I. U. A emoção na prática da enfermagem: relatos por enfermeiros de UTI e UI. São Paulo, 1991. 241p. Tese (Doutorado) - Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo.
  • TAYLOR, C. M. Fundamentos de enfermagem psiquiátrica de Meness. 13. ed. Porto Alegre, Artes Médicas,1992.
  • TILLICH, P. A coragem de ser. Baseado nas conferências Terry, pronunciadas na Yale University. Tradução de Eglê Malheiros. 4.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991.
  • 1
    Artigo produzido a partir da Dissertação de Mestrado apresentada à Escola de Enfermagem da USP em 1997
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Mar 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 1999
    Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: reeusp@usp.br