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As vulnerabilidades dos imigrantes venezuelanos no Brasil e na Colômbia na perspectiva da Bioética de Intervenção* ASSOCIATE EDITOR José Manuel Peixoto Caldas

RESUMO

Objetivo:

Compreender as vulnerabilidades a que estão expostos os imigrantes venezuelanos radicados no Brasil e na Colômbia, na perspectiva da Bioética de Intervenção.

Método:

Estudo qualitativo, realizado por meio de entrevistada semiestruturada, com 15 imigrantes que vivem em Brasília-Brasil e com 20, em Medellín-Colômbia, analisados pelo software IRAMUTEQ, nas modalidades Classificação Hierárquica Descendente e Análise de Similitude.

Resultados:

O primeiro eixo temático tratou dos motivos para imigrar, sobretudo, as dificuldades de acesso aos alimentos e aos serviços de saúde. O segundo eixo revelou a trajetória do processo migratório, especialmente as adversidades enfrentadas até a chegada aos países. O terceiro eixo evidenciou os desafios da integração nos países de destino, com destaque para os processos de exclusão e discriminação enfrentados.

Conclusão:

Observou-se que tanto o Brasil como a Colômbia precisam, conforme propõe a Bioética de Intervenção, desenvolver políticas de redução das vulnerabilidades dos imigrantes para garantir uma vida digna e sem discriminação a eles.

DESCRITORES
Emigrantes e Imigrantes; Bioética; Humanos; Vulnerabilidade Social

ABSTRACT

Objective:

To understand the vulnerabilities to which Venezuelan immigrants living in Brazil and Colombia are exposed, from the perspective of Intervention Bioethics.

Method:

Qualitative study, carried out through a semi-structured interview, with 15 immigrants living in Brasília-Brazil and 20 in Medellín-Colombia, analyzed by the IRAMUTEQ software, in the Descending Hierarchical Classification and Similitude Analysis modalities.

Results:

The first thematic axis dealt with the reasons for immigrating, above all, difficulties in accessing food and health services. The second axis revealed the trajectory of the migration process, especially the adversities faced before arriving in the countries. The third axis highlighted the challenges of integration in the destination countries, with emphasis on the processes of exclusion and discrimination faced.

Conclusion:

It was observed that both Brazil and Colombia need, as proposed by Bioethics of Intervention, to develop policies to reduce the vulnerabilities of immigrants to guarantee a dignified life without discrimination against them.

DESCRIPTORS
Emigrants and Immigrants; Bioethics; Humans; Social Vulnerability

RESUMEN

Objetivo:

Comprender las vulnerabilidades a las que están expuestos los inmigrantes venezolanos que viven en Brasil y Colombia, bajo la perspectiva de la Bioética de la Intervención.

Método:

Se trata de un estudio cualitativo, llevado a cabo mediante entrevista semiestructurada, entre 15 inmigrantes que viven en Brasilia, Brasil y entre otros 20 en Medellín, Colombia. Los datos se analizaron con el programa IRAMUTEQ, según las modalidades Clasificación Jerárquica Descendente y Análisis de Similitud.

Resultados:

El primer eje temático abordó las razones para emigrar, especialmente las dificultades para acceder a la alimentación y a los servicios sanitarios. El segundo eje reveló la trayectoria del proceso migratorio, principalmente lo relacionado a las adversidades afrontadas hasta la llegada a los países de destino. El tercer eje destacó los retos de la integración en dichos países, haciendo hincapié en los procesos de exclusión y discriminación a los que se enfrentan los inmigrantes.

Conclusión:

Se observó que tanto Brasil como Colombia necesitan, conforme la Intervención Bioética, desarrollar políticas para reducir las vulnerabilidades de los inmigrantes con el fin de garantizarles una vida digna y sin discriminación.

DESCRIPTORES
Emigrantes e Inmigrantes; Bioética; Humanos; Vulnerabilidad Social

INTRODUÇÃO

Atualmente, a Venezuela enfrenta uma crise política, social e econômica que levou à deterioração das condições e da qualidade de vida da população. Essa instabilidade tem gerado vários desarranjos sociais, entre eles, a violação dos direitos humanos(11. Paz Noguera B, Alpala Ramos O, Villota Vivas E. Análisis de la migración venezolana en la ciudad de Pasto: características y percepciones de los migrantes. Tendencias. 2021;22(1):71–94. doi: http://dx.doi.org/10.22267/rtend.202102.155
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).

Segundo a Organização Internacional das Migrações (OIM), estima-se que 5,6 milhões de venezuelanos migraram em todo o mundo(22. International Organization for Migration. Migration and migrants: regional dimensions and developments. In: McAuliffe M, Triandafyllidou A, editors. World Migration Report 2022. Geneval: IOM; 2001. p. 59–127.). Sua migração começou há vários anos de forma interna, dentro do próprio país. Mas, com o passar do tempo e dadas as condições desumanas em que os vivem, especialmente relacionadas à alimentação, saúde e educação(33. OIM Brasil. Dados e Informações [Internet]. 2007 [cited 2007 May 30]. Available from: https://brazil.iom.int/pt-br/dados-e-informacoes
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), os processos imigratórios têm apresentado ascensão com destinos diversos, com preferência para os países vizinhos. Assim, a migração para a Colômbia representa 1,7 milhões de venezuelanos, sendo este país o destino principal para a migração(22. International Organization for Migration. Migration and migrants: regional dimensions and developments. In: McAuliffe M, Triandafyllidou A, editors. World Migration Report 2022. Geneval: IOM; 2001. p. 59–127.). No Brasil se encontram hoje 345 mil venezuelanos(33. OIM Brasil. Dados e Informações [Internet]. 2007 [cited 2007 May 30]. Available from: https://brazil.iom.int/pt-br/dados-e-informacoes
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).

Entre os motivos para isso, encontram-se os determinantes econômicos como um dos principais fatores de imigração(44. Crasto TC, Álvarez MR. Percepciones sobre la migración venezolana: causas, España como destino, expectativas de retorno. Migr Publ Inst Univ Estud Sobre Migr. 2017;41:133–63. doi: http://dx.doi.org/10.14422/mig.i41.y2017.006
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), resultados do desequilíbrio financeiro, devido à queda dos preços internacionais do petróleo, principal produto de exportação da Venezuela, e às duras sanções impostas pelos Estados Unidos, que bloqueiam as importações, além da inflação, que dificulta a aquisição de itens de necessidades básicas(44. Crasto TC, Álvarez MR. Percepciones sobre la migración venezolana: causas, España como destino, expectativas de retorno. Migr Publ Inst Univ Estud Sobre Migr. 2017;41:133–63. doi: http://dx.doi.org/10.14422/mig.i41.y2017.006
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).

Outras situações que os imigrantes venezuelanos enfrentam e que motivam a saída do país são as dificuldades de acesso aos serviços de saúde e de aquisição de medicamentos essenciais. Além disso, a saída massiva de profissionais da área da saúde faz com que a atenção seja mais difícil(55. Arruda-Barbosa L, Sales AFG, Torres MEM. Impacto da migração venezuelana na rotina de um hospital de referência em Roraima, Brasil. Interface Comunicacao Saude Educ. 2020;24(1):1–16. doi: http://dx.doi.org/10.1590/interface.190807
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).

Da mesma forma acontece com a educação, uma vez que as baixas condições salariais do pessoal docente, tanto das escolas como das universidades, resultam em escassez de mão de obra capacitada(66. Pinto LA, Amaya PB, Sáez FA. La integración de los venezolanos en Colombia en los ámbitos de la salud y la educación. Espacio Abierto. 2019;28(1):199–223. doi: http://dx.doi.org/10.29260/dfyt.2019.46
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). Dada essa conjuntura, a procura constante pela melhoria das condições de vida individual e familiar é a principal motivação da migração venezuelana, que, como já foi dito, vivencia diversas insuficiências de acesso às necessidades básicas, além do gás doméstico, a água potável e a energia(44. Crasto TC, Álvarez MR. Percepciones sobre la migración venezolana: causas, España como destino, expectativas de retorno. Migr Publ Inst Univ Estud Sobre Migr. 2017;41:133–63. doi: http://dx.doi.org/10.14422/mig.i41.y2017.006
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).

Essas situações têm levado os venezuelanos a vivenciarem situações de vulnerabilidade extrema. Esse conceito deriva de Valnus, que significa “ferida”, em latim, ou seja, a vulnerabilidade pode ser compreendida como a susceptibilidade de ser ferido(77. Carvalho L, Velásquez J. Vulnerabilidade e controle social como desafios do Sistema CEP/Conep: um ensaio à luz da Bioética de Intervenção. Bios Pap. 2022;1(2):1–8. doi: http://dx.doi.org/10.18270/bp.v1i2.3926
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). Para a Bioética de Intervenção (BI), somos vulneráveis diante de algo que nos retira o poder, que pode ser uma outra pessoa, uma instituição ou o Estado(88. Castro CV. Analisando os princípios e garantias de direitos humanos aplicados à migração. Rev Eletrônica Fac Direito Franca. 2019;14(1):29–52. doi: http://dx.doi.org/10.21207/1983.4225.720
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). Os interesses políticos e econômicos impõem a hierarquização das relações sociais que levam à exclusão e à vulnerabilidade(88. Castro CV. Analisando os princípios e garantias de direitos humanos aplicados à migração. Rev Eletrônica Fac Direito Franca. 2019;14(1):29–52. doi: http://dx.doi.org/10.21207/1983.4225.720
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). Os imigrantes venezuelanos são vítimas de situações persistentes de discriminação, xenofobia, exploração laboral e crescente desrespeito à dignidade da pessoa humana(99. Cabieses B, Gálvez P, Ajraz N. Migración internacional y salud: el aporte de las teorías sociales migratorias a las decisiones en salud pública. Rev Peru Med Exp Salud Publica. 2018;35(2):285–91. doi: http://dx.doi.org/10.17843/rpmesp.2018.352.3102. PubMed PMID: 30183922.
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). Essas situações fazem com que demonstrem elevados níveis de vulnerabilidade, tornando a migração relevante do ponto de vista político, social e econômico(1010. Garrafa V, Porto D. Bioética de intervención. In: Tealdi JC, editor. Diccionario Latino-Americano de Bioética. Bogotá: Unesco; 2008. p. 161–4.).

É nessa perspectiva que o fenômeno migratório requer ser analisado pelas lentes da BI, uma proposta epistemológica anti-hegemônica, ampliada e politizada, que considera a dimensão social, propondo-se a contribuir com a luta contra a exclusão social, especialmente em defesa dos indivíduos mais frágeis, na busca da justiça social e da equidade. Ademais, a partir da perspectiva transdisciplinar, a BI permite ampliar a visão das questões conflituosas vivenciadas pelos sujeitos vulnerabilizados, como no caso dos imigrantes venezuelanos(1111. Garrafa V, Cruz E. Bioética de intervención – una agenda latinoamericana de re-territorialización epistemológica para la bioética. In: Universidad Nacional Autónoma de México / UNESCO. Manual de Educación en Bioética UNESCO. Ciudad de México, México: Universidad Nacional Autónoma de México; 2022. vol. 2, p. 37–65). Para a BI, a vulnerabilidade é um princípio chave da bioética, já que estabelece um diálogo entre diversas perspectivas, a partir da promoção de ações que favorecem a superação das condições que mantenham, nesse caso, os imigrantes em situação de vulnerabilidade frente ao outro(1111. Garrafa V, Cruz E. Bioética de intervención – una agenda latinoamericana de re-territorialización epistemológica para la bioética. In: Universidad Nacional Autónoma de México / UNESCO. Manual de Educación en Bioética UNESCO. Ciudad de México, México: Universidad Nacional Autónoma de México; 2022. vol. 2, p. 37–65).

Este estudo tem como objetivo compreender as vulnerabilidades a que estão expostos os imigrantes venezuelanos, radicados no Brasil e na Colômbia, na perspectiva da Bioética de Intervenção.

MÉTODO

Utilizou-se a abordagem qualitativa, que permite compreender, interpretar e dialetizar as experiências e as vivencias dos imigrantes venezuelanos, que ocorre no âmbito da história coletiva, permitindo conhecer suas subjetividades, que são contextualizadas e envolvidas pela cultura do grupo no qual eles estão inseridos(1212. Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Cien Saude Colet. 2012;17(3):621–6. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232012000300007. PubMed PMID: 22450402.
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).

Coleta dos Dados

Foi realizado na cidade de Brasília-Brasil e Medellín-Colômbia, que têm recebido número significativo de imigrantes venezuelanos.

Para fazer a escolha dos participantes, utilizou-se a técnica de “bola de neve” ou “cadeia”; essa técnica consiste em identificar um indivíduo que apresenta as características em estudo e essa relação com outros indivíduos que têm a mesma situação, solicitando aos participantes referências de novos informantes(1313. Costa BRL. Bola de neve virtual: o uso das redes sociais virtuais no processo de coleta de dados de uma pesquisa científica. Rev Interdiscip Gest Soc. 2018;7(1):15–37. doi: http://dx.doi.org/10.9771/23172428rigs.v7i1.24649
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).

Foram considerados para a escolha dos participantes os seguintes critérios de inclusão:
  • – Venezuelano com 18 anos ou mais de idade, de ambos os sexos;

  • – Imigrante venezuelano que resida nas cidades de Brasília e Medellín há pelo menos seis meses;

  • – Venezuelano com condições físicas e mentais adequadas para responder à entrevista;

Entre os critérios de exclusão que o estudo levará em conta estão:
  • – Pessoas com dificuldade de comunicação;

  • – Pessoas com doenças terminais ou acamadas.

  • – Utilizou-se um roteiro de entrevista semiestruturada.

Os contatos de venezuelanos em Medellín e Brasília foram realizados por telefone, e-mail e WhatsApp. As entrevistas foram realizadas em seus próprios contextos, tanto local de trabalho quanto em domicílio.

No Brasil foram entrevistadas 15 pessoas, sendo 6 homens e 9 mulheres, já na Colômbia, 20, dos quais 9 homens e 11 mulheres, totalizando 35 entrevistas. Quando se observou a saturação das informações, as entrevistas foram interrompidas, definindo-se o conjunto final de participantes(1414. Nascimento LCN, Souza TV, Oliveira ICS, Moraes JRMM, Aguiar RCB, Silva LF. Theoretical saturation in qualitative research: an experience report in interview with schoolchildren. Rev Bras Enferm. 2018;71(1):228–33. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0616. PubMed PMID: 29324967.
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). As entrevistas ocorreram no primeiro semestre do ano 2022.

Análise dos Dados

Os dados foram processados por meio do software IRAMUTEQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires) versão 0.7 alpha 2(1515. Souza MAR, Wall ML, Thuler ACMC, Lowen IMV, Peres AM. O uso do software IRAMUTEQ na análise de dados em pesquisas qualitativas. Rev Esc Enferm USP. 2018;52(0):1–7. doi: http://dx.doi.org/10.1590/s1980-220x2017015003353.
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). Para este estudo, realizou-se a Classificação Hierárquica Descendente (CHD), na qual se destacam as palavras que aparecem com maior frequência e suas associações em classes de palavras, permitindo destacar o campo comum. As classes geradas a partir da CHD representam o contexto de sentido das palavras e podem demonstrar as representações ou os elementos de representações(1616. Shimizu HE, Cruz MS, Bretas Jr N, Schierholt SR, Ramalho WM, Ramos MC, et al. O protagonismo dos Conselhos de Secretários Municipais no processo de governança regional. Cien Saude Colet. 2017;22(4):1131–40. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017224.28232016. PubMed PMID: 28444040.
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).

Complementarmente, realizou-se a análise de similitude, que permite identificar a concorrência entre as palavras mencionadas pelos entrevistados, e seu resultado traz à tona a conexão entre as mesmas palavras, identificando estruturas da representação(1515. Souza MAR, Wall ML, Thuler ACMC, Lowen IMV, Peres AM. O uso do software IRAMUTEQ na análise de dados em pesquisas qualitativas. Rev Esc Enferm USP. 2018;52(0):1–7. doi: http://dx.doi.org/10.1590/s1980-220x2017015003353.
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).

Elegeu-se como referencial teórico para análise dos dados a BI, uma vertente comprometida com a discussão da inclusão social dos sujeitos em situação de vulnerabilidade, conjuntamente com a igualdade e a justiça como referências para a agenda das discussões éticas, visando ao alcance da equidade(1010. Garrafa V, Porto D. Bioética de intervención. In: Tealdi JC, editor. Diccionario Latino-Americano de Bioética. Bogotá: Unesco; 2008. p. 161–4.). Para a BI, a vulnerabilidade ocorre quando o poder é retirado (por outra pessoa, por uma instituição ou o pelo Estado). A categoria alteridade permitirá compreender o outro, considerando-se o princípio da responsabilidade e da solidariedade(1010. Garrafa V, Porto D. Bioética de intervención. In: Tealdi JC, editor. Diccionario Latino-Americano de Bioética. Bogotá: Unesco; 2008. p. 161–4.,1111. Garrafa V, Cruz E. Bioética de intervención – una agenda latinoamericana de re-territorialización epistemológica para la bioética. In: Universidad Nacional Autónoma de México / UNESCO. Manual de Educación en Bioética UNESCO. Ciudad de México, México: Universidad Nacional Autónoma de México; 2022. vol. 2, p. 37–65). É nessa perspectiva que serão analisadas as situações de vulnerabilidades a que estão expostos os imigrantes venezuelanos, bem como as estratégias para a garantia da dignidade e dos direitos humanos(1010. Garrafa V, Porto D. Bioética de intervención. In: Tealdi JC, editor. Diccionario Latino-Americano de Bioética. Bogotá: Unesco; 2008. p. 161–4.,1111. Garrafa V, Cruz E. Bioética de intervención – una agenda latinoamericana de re-territorialización epistemológica para la bioética. In: Universidad Nacional Autónoma de México / UNESCO. Manual de Educación en Bioética UNESCO. Ciudad de México, México: Universidad Nacional Autónoma de México; 2022. vol. 2, p. 37–65).

Aspectos Éticos

O estudo cumpriu os princípios éticos descritos nas resoluções 466/12 e 510/16, além de que se utilizou o consentimento informado para a coleta das informações. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Saúde da Universidade de Brasília, n°: 5.164.716, do ano 2021, para os dados coletados no Brasil, e, para os dados coletados em Colômbia, pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Antioquia n°: 22-43-971, do ano 2022.

RESULTADOS

Em relação ao perfil dos participantes, verificou-se que, tanto no Brasil como na Colômbia, a maioria era de mulheres. A idade prevalente era entre 25 e 35 anos, de solteiros, e a escolaridade era de nível técnico e superior. A maioria dos imigrantes na Colômbia não tinha filhos, enquanto, no Brasil, tinha filhos. Todos, de ambos os países, já estavam com a situação legal regularizada. A religião predominante era católica, conforme Tabela 1.

Tabela 1
Caraterísticas sociodemográficas dos participantes – Brasília, DF, Brasil, 2022; Medellín, Antioquia, Colômbia, 2022.

O corpus com todas as entrevistas transcritas, do Brasil e da Colômbia, teve um aproveitamento de 81.51%, pelo software IRAMUTEQ, considerado satisfatório.

O dendrograma da Figura 1 sintetiza os eixos e as classes de palavras destacados. O primeiro eixo temático contém as classes 1 e 5 e trata dos fatores que motivaram a imigração: a classe 1 (34,4%) aborda as dificuldades de acesso aos alimentos, e a classe 5 (16,1%), as barreiras de acesso aos serviços de saúde. O segundo eixo temático revela a trajetória do processo imigratório, com a classe 4 (13,9%), que mostra os caminhos percorridos, as adversidades enfrentadas nas fronteiras. O último e terceiro eixo evidencia as dificuldades de integração nos países, contém a classe 3 (19,6%), que demonstra os obstáculos encontrados na chegada ao país de destino, e a classe 2 (16%,1%) descreve os processos de exclusão e discriminação enfrentados nos países.

Figura 1
Dendrograma das entrevistas da Colômbia e do Brasil.

Do primeiro eixo temático, a Classe 1 trata da das dificuldades de acesso aos alimentos. As entrevistas trazem à tona a situação de fome sentida pelas famílias. Foi relevante nas falas dos participantes o alto custo dos alimentos, as longas filas para ter acesso a eles e a dolarização ilegal no comércio informal da Venezuela para poder acessar itens de primeira necessidade. Os entrevistados mostraram também que a imigração, tanto para o Brasil como para a Colômbia, permitiu superar esse problema devido à suficiência de alimentos e à possiblidade de comprar produtos para suprir as suas necessidades. Entretanto, foram recorrentes as lembranças de familiares que continuam na Venezuela possivelmente passando necessidades alimentares.

A classe 5 descreve as barreiras de acesso aos serviços de saúde na Venezuela e como essa situação fez parte das motivações para imigrar. A falta de pessoal qualificado para atenção, de insumos médicos, de medicamentos, somado à dolarização, tornaram a assistência médica na Venezuela deficiente, precária e de alto custo.

Os entrevistados relataram que, em ambos os países: Brasil e Colômbia, o acesso aos serviços de saúde é bom, com atendimento de qualidade, além de encontrarem os medicamentos necessários para alguma doença transitória que apresentassem, como dor de cabeça, gripe, entre outras.

A única diferença encontrada foi no Brasil, que apresentou algumas situações de discriminações decorrentes da língua, já que os profissionais da saúde não compreendiam bem o espanhol.

O eixo 2 contém a classe 4, que descreve como foi o processo migratório, os caminhos percorridos, as dificuldades vividas nas fronteiras, os altos custos das passagens, as longas viagens de ônibus para chegar aos países destino. Em relação ao processo migratório, uma diferença que merece destaque é a forma com que alguns dos migrantes venezuelanos que estavam na fronteira, mais especificamente, chegaram ao Brasil, por meio da ajuda da ONG Caritas internacional, junto com o governo do Brasil e as forças armadas, no projeto Acolhida.

O eixo 3 contém a classe 3, que descreve o processo de adaptação no Brasil e na Colômbia. O ponto mais relevante achado nas entrevistas foi a procura de emprego nos dois países, já que ele assegura os recursos econômicos para garantir uma boa qualidade de vida. Essa procura de emprego para os imigrantes, tanto do Brasil como na Colômbia, não foi fácil. No Brasil, merecem destaque as dificuldades em torno a língua, que foram limitantes importantes para arrumar emprego e, portanto, transformaram o Brasil em um país mais desafiador para os migrantes venezuelanos.

A classe 2 descreve o processo de integração ao país destino. Sua chegada representou para a maioria dos participantes uma mudança em seu modo de viver, especialmente para garantir uma qualidade de vida que satisfaça suas necessidades. Relataram que as ajudas recebidas – como moradia, alimentação, doações de roupas, entre outras, como parte do acolhimento e recepção por brasileiros e colombianos – foram fundamentais para ajudar na superação das condições de vulnerabilidade.

Contudo, entre as principais relevâncias encontradas nas entrevistas, de ambos os países, foram referentes às situações de discriminação e xenofobia vividas pelos migrantes venezuelanos. Essas situações discriminatórias foram percebidas na busca de emprego, no acesso aos serviços de saúde, na rua, entre outras.

A partir da análise de similitude efetuada das entrevistas dos imigrantes venezuelanos em Brasília- Brasil, podem-se identificar os termos e as respectivas ligações entre si. Na Figura 2, observa-se que ocorreu uma semântica de palavras mais frequentes: o “não” é termo central, seguidos das palavras: “Venezuela”, “muito”, “comida”, “chegar”, “aqui”.

Figura 2
Análise de similitude oriunda das entrevistas com imigrantes da Venezuela, em Brasília-Brasil.

Os ramos de palavras explicam os motivos da saída do país, sobretudo a fome, a falta de dinheiro, a falta de emprego e o dólar alto, que não permitiam o acesso aos bens básicos para a pessoa e a sua família viverem. Outros ramos de palavras mostram as possibilidades representadas quando conseguiram chegar ao Brasil, que, apesar da barreira da língua, contou com a ajuda no processo de moradia em Brasília/Brasil. Observa-se que as palavras destacam o acesso ao trabalho, aos serviços de saúde e à comida. Todavia, evidenciam o processo de discriminação vivenciado.

Em relação à análise das entrevistas feitas com imigrantes venezuelanos em Medellín-Colômbia, observa-se, na Figura 3, a centralidade da palavra “não” e “por quê”. Trata-se de justificativas semelhantes para a saída do país para o Brasil. Os termos revelam as dificuldades para adentrar ao país, que são reguladas pelo governo. Além disso, mostram as dificuldades para acessar os serviços de saúde, porque são privados (saúde, econômico, horrível, comprar, hospital). Os termos mostram, ainda, as possiblidades de acesso à comida, ao trabalho, à moradia, ao medicamento para a pessoa e sua família.

Figura 3
Análise de similitude oriunda das entrevistas com imigrantes da Venezuela, em Medellín-Colômbia.

DISCUSSÃO

Verificou-se que os imigrantes venezuelanos estavam expostos a condições de extrema vulnerabilidade em seu país. Como resultado desse cenário, a impossibilidade de uma vida digna e com qualidade condicionou-os à imigração; um movimento cíclico e pendular, seja ele de imigração temporária, seja definitiva, colocou as pessoas em deslocamento em situação de dependência dos países receptores e, consequentemente, em estado de vulnerabilidade e significativa perda de autonomia(1717. Oliveira ATR. A Migração Venezuelana no Brasil: crise humanitária, desinformação e os aspectos normativos. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas. 2019;13(1):219–44. doi: http://dx.doi.org/10.21057/10.21057/repamv13n1.2019.24297
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).

Nesse sentido, é importante destacar que os venezuelanos revelaram que foram determinantes na tomada de decisão para a imigração: as dificuldades de acesso a alimentos básicos, por diversos motivos, como a superinflação do preço, a falta ou o racionamento dos alimentos, que comprometeram a dignidade humana, visto a necessidade de satisfazer as suas necessidades biológicas, culturais e sociais e, sobretudo, para evitar a insegurança alimentar(1818. Wendling KCS, Nascimento FL, Senhoras EM. A crise migratória Venezuelana. Bol Conjunt BOCA. 2021;8(24):1–14. doi: http://dx.doi.org/10.5281/zenodo.5651479
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).

Algumas pesquisas mostraram a fome como uma das principais motivações para a imigração, seguida da inflação, do desabastecimento de produtos básicos, da falta de emprego, de medicamentos, entre outras situações sociais(1919. Lira JR, Ramos M, Almeida T, Rodrigues F. Migração, mobilidade e refúgio de venezuelanos no Brasil: o caso do município de Pacaraima (RR). Pap NAEA. 2021;28(2):111–31. doi: http://dx.doi.org/10.18542/papersnaea.v28i2.8112
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). Nesse sentido, o Programa Mundial de Alimentos (PMA) confirmou, no início de 2020, que cerca de 2,3 milhões da população venezuelana vive sob a insegurança alimentar, constatando que 55% dos lares estavam em situação de insegurança alimentar severa ou moderada(2020. Programa Mundial de Alimentos. Evaluación de Seguridad Alimentaria ver Emergencias (ESAE) para Población Migrante de Venezuela y Hogares de Acogida ver Departamentos Fronterizos. Colombia: United Nations World Food Programme; 2020.).

A BI reconhece que as vulnerabilidades vivenciadas por esses imigrantes se caracterizam como situações persistentes, que requerem a atuação do Estado, por meio de construção de políticas de equidade que garantam respeito à dignidade humana(1111. Garrafa V, Cruz E. Bioética de intervención – una agenda latinoamericana de re-territorialización epistemológica para la bioética. In: Universidad Nacional Autónoma de México / UNESCO. Manual de Educación en Bioética UNESCO. Ciudad de México, México: Universidad Nacional Autónoma de México; 2022. vol. 2, p. 37–65). A equidade pressupõe a necessidade de reconhecer a igualdade de direitos de cada sujeito em função de suas diferenças(2121. Cini R, Rosaneli C, Cunha T. Soberanía alimentaria ver la intersección entre bioética y derechos humanos: ver revisión integrada de literatura. Ver Bioet Derecho. 2018;42:51–69. doi: http://dx.doi.org/10.1344/rbd2018.1.19395
https://doi.org/10.1344/rbd2018.1.19395...
). Nesse caso, a aplicação do princípio da justiça implica tratar de maneira diferente as pessoas que não são iguais, de maneira que se entende igualdade como o resultado desejado da equidade(1111. Garrafa V, Cruz E. Bioética de intervención – una agenda latinoamericana de re-territorialización epistemológica para la bioética. In: Universidad Nacional Autónoma de México / UNESCO. Manual de Educación en Bioética UNESCO. Ciudad de México, México: Universidad Nacional Autónoma de México; 2022. vol. 2, p. 37–65).

Ademais, a BI defende que a promoção da dignidade humana seja alcançada por meio da promoção ao direito à alimentação adequada – tanto em qualidade quanto em quantidade – como condição essencial para a existência dos indivíduos(2222. Carvalho LRT, Shimizu HE, Garrafa V. Geografía y geopolítica del hambre: bioética en la obra de Josué de Castro. Rev Bioet. 2019;27(1):143–52. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422019271297
https://doi.org/10.1590/1983-80422019271...
). O acesso à alimentação e nutrição é essencial para a promoção e proteção da saúde da população imigrante venezuelana, permitindo a integração na sociedade com cidadania, que ainda requer ser garantido por meio de políticas de equidade, tanto no Brasil como na Colômbia.

A finalidade das ações frente ao combate da fome e insegurança alimentar vivenciadas pelos imigrantes venezuelanos deve ser orientada na perspectiva de evitar os danos ao desenvolvimento humano e à agressão à dignidade das pessoas que chegam em situação de vulnerabilidade social a outros países(2323. Orsatto GCS, Marques LB, Renk VE, Corradi-Perini C. Insegurança alimentar entre beneficiarios de um programa de transferência de renda brasileiro: uma análise na perspectiva da bioética. Rev Iberoam Bioet. 2020;14(14):1–13. doi: http://dx.doi.org/10.14422/rib.i14.y2020.003
https://doi.org/10.14422/rib.i14.y2020.0...
). Ressalta-se que não tem sido incomum a persistência de situação de insegurança alimentar nos lares dos imigrantes.

Esse quadro é multifatorial e multicausal, estando associado à violação de muitos dos direitos sociais. É assim que a BI, por sua natureza interdisciplinar, sugere que diferentes políticas e ações devem abarcar esses direitos para possibilitar a integração desses imigrantes à sociedade, garantindo-lhes os direitos dos quais estão sendo vulnerados, ou seja, retirados(2323. Orsatto GCS, Marques LB, Renk VE, Corradi-Perini C. Insegurança alimentar entre beneficiarios de um programa de transferência de renda brasileiro: uma análise na perspectiva da bioética. Rev Iberoam Bioet. 2020;14(14):1–13. doi: http://dx.doi.org/10.14422/rib.i14.y2020.003
https://doi.org/10.14422/rib.i14.y2020.0...
).

Constatou-se que a dificuldade de acesso aos serviços de saúde também figurou como outro fator relevante para a imigração, pois se sentiam absolutamente desprotegidos na Venezuela. Nesse sentido, os imigrantes avaliaram satisfatoriamente o acesso aos serviços, tanto na Colômbia, que possui um sistema de seguro privado e subsidiado, como no Brasil, que tem um sistema público e universal. Observou-se que se torna indispensável a adoção de ações e práticas institucionais nos serviços de saúde que considerem as vulnerabilidades e atendam às necessidades específicas dos venezuelanos, de forma a garantir o direito ao acesso à saúde(2424. Guerra K, Ventura M. Bioética, imigração e assistência à saúde: tensões e convergências sobre o direito humano à saúde no Brasil na integração regional dos países. Cad Saude Colet. 2017;25(1):123–9. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x201700010185
https://doi.org/10.1590/1414-462x2017000...
).

Em um estudo feito em um hospital de Roraima, cujo objetivo era analisar o impacto da imigração na assistência, foi identificado que os serviços de saúde estavam superlotados, desde os serviços da atenção primária até os de maior complexidade(2525. Arruda-Barbosa L, Sales AFG, Souza ILL. Reflexos da imigração venezuelana na assistência em saúde no maior hospital de Roraima: análise qualitativa. Saude Soc. 2020;29(2):2–11. doi: http://dx.doi.org/10.1590/s0104-12902020190730
https://doi.org/10.1590/s0104-1290202019...
). Outro achado importante do estudo foram as barreiras idiomática e cultural, já que a língua representa o vínculo e a resposta do paciente frente a ações clínicas. Verificou que os técnicos de enfermagem possuíam resistência ao uso do espanhol, o que fez com que os imigrantes venezuelanos vivenciassem sentimento de frustração, tornando-os ainda mais vulneráveis. No mesmo estudo, também se evidenciou que muitos dos imigrantes viviam, além da situação de vulnerabilidade social, com diversas doenças(2525. Arruda-Barbosa L, Sales AFG, Souza ILL. Reflexos da imigração venezuelana na assistência em saúde no maior hospital de Roraima: análise qualitativa. Saude Soc. 2020;29(2):2–11. doi: http://dx.doi.org/10.1590/s0104-12902020190730
https://doi.org/10.1590/s0104-1290202019...
). A falta de assistência à saúde a essas pessoas caracteriza-se como violação aos direitos humanos(55. Arruda-Barbosa L, Sales AFG, Torres MEM. Impacto da migração venezuelana na rotina de um hospital de referência em Roraima, Brasil. Interface Comunicacao Saude Educ. 2020;24(1):1–16. doi: http://dx.doi.org/10.1590/interface.190807
https://doi.org/10.1590/interface.190807...
).

A BI propõe nessas situações analisar e criticar racionalmente o agir humano e oferecer soluções pragmáticas que possam ser positivas do ponto de vista do bem-estar e da saúde dos imigrantes, tornando a assistência à saúde coletiva necessária e a criação de ações de inclusão não discriminatórias e estruturadas em bases éticas, para que se alcancem resultados eficazes(2424. Guerra K, Ventura M. Bioética, imigração e assistência à saúde: tensões e convergências sobre o direito humano à saúde no Brasil na integração regional dos países. Cad Saude Colet. 2017;25(1):123–9. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x201700010185
https://doi.org/10.1590/1414-462x2017000...
).

O direito à saúde, como direito coletivo, depende do estágio de desenvolvimento do Estado, o único que pode reconhecer a saúde como direito, como no SUS, que poderá garantir as medidas de proteção e cuidados para a recuperação da saúde para todo o povo(2626. Dallari SG. O direito à saúde. Rev Saude Publica. 1988;22(1):57–63. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89101988000100008. PubMed PMID: 3217720.
https://doi.org/10.1590/S0034-8910198800...
). Dessa maneira, o sistema de saúde tem o desafio de concretizar a universalização do acesso à saúde de qualidade aos imigrantes(55. Arruda-Barbosa L, Sales AFG, Torres MEM. Impacto da migração venezuelana na rotina de um hospital de referência em Roraima, Brasil. Interface Comunicacao Saude Educ. 2020;24(1):1–16. doi: http://dx.doi.org/10.1590/interface.190807
https://doi.org/10.1590/interface.190807...
). A BI sugere que se inclua na avaliação de programas e ações – que já estejam sendo executados – a inclusão da dimensão ética para garantir a integralidade no acesso aos serviços de saúde(2323. Orsatto GCS, Marques LB, Renk VE, Corradi-Perini C. Insegurança alimentar entre beneficiarios de um programa de transferência de renda brasileiro: uma análise na perspectiva da bioética. Rev Iberoam Bioet. 2020;14(14):1–13. doi: http://dx.doi.org/10.14422/rib.i14.y2020.003
https://doi.org/10.14422/rib.i14.y2020.0...
).

Para a garantia do direito ao acesso integral e universal aos serviços de saúde nos países receptores dos imigrantes, é preciso a realização de acordos de colaboração e de ações conjuntas que consolidem as políticas de integração dos imigrantes nos serviços de saúde(2424. Guerra K, Ventura M. Bioética, imigração e assistência à saúde: tensões e convergências sobre o direito humano à saúde no Brasil na integração regional dos países. Cad Saude Colet. 2017;25(1):123–9. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x201700010185
https://doi.org/10.1590/1414-462x2017000...
). Nesse sentido, a BI reclama politicamente pelos direitos e pela possibilidade de equidade, igualdade e justiça dos imigrantes frente ao aceso aos serviços de saúde(2727. Vieira ABD, Monteiro PS. Comunidade quilombola: análise do problema persistente do acesso à saúde, sob o enfoque da Bioética de Intervenção. Saúde Debate. 2013;37(99):610–8. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-11042013000400008
https://doi.org/10.1590/S0103-1104201300...
).

Considerando o direito ao acesso à saúde e o processo de inclusão da população imigrante, a BI traz à tona a discussão dos chamados quatro “pês” para o exercício de uma prática sanitária ética e responsável, especialmente em situações de vulnerabilidade como às que estão expostos os imigrantes: prevenção, proteção, precaução e prudência. A prevenção dos possíveis danos e riscos iatrogênicos nos serviços de saúde; a precaução nas situações de riscos que não estão devidamente considerados na atenção; a prudência e a proteção devem ser norteadoras da assistência dos serviços de saúde, considerando-se a vulnerabilidade social presente nos imigrantes(1111. Garrafa V, Cruz E. Bioética de intervención – una agenda latinoamericana de re-territorialización epistemológica para la bioética. In: Universidad Nacional Autónoma de México / UNESCO. Manual de Educación en Bioética UNESCO. Ciudad de México, México: Universidad Nacional Autónoma de México; 2022. vol. 2, p. 37–65).

Observou-se neste estudo que a discriminação social vivenciada pelos venezuelanos no Brasil e na Colômbia constitui também um ponto de partida para a violação dos direitos humanos, pois envolve a transgressão da dignidade das pessoas. Essa discriminação social ocorre quando determinado grupo recebe tratamento inferior, depreciativo e, em muitos casos, ofensivo em relação a outros, devido à sua origem ou conexão com determinado grupo de pessoas(2828. Niño EAL. Migração, cidades e fronteiras: a migração venezuelana nas cidades fronteiriças do Brasil e da Colômbia. Espacio Abierto. 2020;10(1):51–67. doi: http://dx.doi.org/10.36403/espacoaberto.2020.29956
https://doi.org/10.36403/espacoaberto.20...
).

A BI promove uma discussão sobre discriminação e estigma, no sentido de impedir que essas práticas sejam persistentes pelos grupos dominantes em detrimento dos menos valorizados dentro da sociedade. É assim que defende a diversidade, em uma perspectiva anti-hegemônica, na qual as pessoas podem simplesmente viver de acordo com seus valores, crenças, orientação sexual, cultura e nacionalidade, mesmo que esse sistema de valores, crenças e cultura discorde dos padrões morais dominantes(2929. Godoi AMM, Garrafa V. Leitura bioética do princípio de não discriminação e não estigmatização. Saude Soc. 2014;23(1):157–66. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902014000100012
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201400...
).

Assim, propõe a ideia de tolerância e respeito pelo diferente, mas, ao mesmo tempo, que se baseia na igualdade dos seres humanos, reconhecendo o outro em sua diferença e singularidade como um igual. Através da integração do reconhecimento da pluralidade do outro é que há a ruptura das desigualdades que existem devido à discriminação e à estigmatização, uma vez que é essa a visão que dificulta o usufruto dos direitos humanos(2929. Godoi AMM, Garrafa V. Leitura bioética do princípio de não discriminação e não estigmatização. Saude Soc. 2014;23(1):157–66. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902014000100012
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201400...
).

Os resultados deste estudo revelaram que a integração dos imigrantes, no Brasil e na Colômbia, precisa ser melhorada a fim de oferecer uma assistência que inclua: recepção adequada, identificação e registro, fiscalização sanitária, imunização, regulação migratória, entre outras. Avanços jurídicos igualmente são necessários para garantir o adequado acolhimento dos imigrantes, bem como sua inserção laboral, social e cultural. É ainda importante o processo de formação de um espaço de convivência, que envolva tanto ações públicas de atendimento de emergência quanto estratégias para reduzir as dificuldades de natureza intercultural(3030. Martin D, Goldberg A, Silveira C. Imigração, refúgio e saúde: perspectivas de análise sociocultural. Saude Soc. 2018;27(2):26–36. doi: http://dx.doi.org/10.1590/s0104-12902018170870
https://doi.org/10.1590/s0104-1290201817...
).

Como limitações metodológicas, aponta-se o fato de as entrevistas terem sido realizadas on-line devido ao contexto da pandemia da covid-19, todavia se tentou superá-las por meio do conjunto de procedimentos metodológicos adotados, entre elas, a transcrição das entrevistas pelo próprio pesquisador. A outra foi o uso do software IRAMUEQ, que permite apreender os discursos consensuais desse grupo.

Na perspectiva da BI, os profissionais de saúde que prestam atendimento aos imigrantes necessitam compreender as diversas vulnerabilidades à que estão expostos os venezuelanos. Para tanto, os exercícios cotidianos da alteridade(1010. Garrafa V, Porto D. Bioética de intervención. In: Tealdi JC, editor. Diccionario Latino-Americano de Bioética. Bogotá: Unesco; 2008. p. 161–4.,1111. Garrafa V, Cruz E. Bioética de intervención – una agenda latinoamericana de re-territorialización epistemológica para la bioética. In: Universidad Nacional Autónoma de México / UNESCO. Manual de Educación en Bioética UNESCO. Ciudad de México, México: Universidad Nacional Autónoma de México; 2022. vol. 2, p. 37–65) e da empatia poderão contribuir para melhor acolhimento das necessidades cotidianas nos serviços de saúde. Além disso, colocam-se como desafios: os reposicionamentos epistemológicos, metodológicos e éticos para a construção dos cuidados de saúde culturalmente adaptados(3030. Martin D, Goldberg A, Silveira C. Imigração, refúgio e saúde: perspectivas de análise sociocultural. Saude Soc. 2018;27(2):26–36. doi: http://dx.doi.org/10.1590/s0104-12902018170870
https://doi.org/10.1590/s0104-1290201817...
).

CONCLUSÃO

Verificou-se que os imigrantes venezuelanos apresentavam diversas vulnerabilidades, sobretudo devido a dificuldades de acesso a alimentos e aos serviços de saúde. Todavia, buscaram superá-los por meio do processo migratório, que também apresentou diversas barreiras, colocando-os em situação de vulnerabilidade. Nesse sentido, observou-se que tanto o Brasil como a Colômbia precisam, como propõe a Bioética de Intervenção, atuar para desenvolver políticas de integração desses imigrantes para lhes garantir uma vida digna e sem discriminação.

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Editado por

EDITOR ASSOCIADO

José Manuel Peixoto Caldas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Mar 2023
  • Aceito
    16 Jun 2023
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