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Vulnerabilidade cumulativa: Estudo de um Caso de Violência Doméstica, Toxicodependência e Gravidez na Adolescência

Resumos

A vulnerabilidade da adolescente grávida potencializa-se ao ser vítima de violência doméstica e toxicodependente, causando danos físicos e biopsicossociais para si e para o bebê.

Objectivo

Apresentar e analisar o caso de uma adolescente toxicodependente, grávida e vítima de violência doméstica ao longo da vida.

Método

“estudo de caso” baseado numa entrevista semi-estruturada, realizada no Pronto Atendimento de Obstetrícia do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo. Os dados foram interpretados e analisados segundo a Análise de Conteúdo.

Resultados

A violência doméstica vivenciada no início das relações primordiais afetou gravemente o amadurecimento emocional da adolescente, desencadeando o desenvolvimento de psicopatologias e ficando mais suscetível ao uso e abuso de álcool e outras drogas. A adolescente repete sua história com sua filha, reproduzindo o ciclo da violência.

Conclusão

A gravidez na adolescência somada a violência doméstica e a toxicodependência potencializou a vulnerabilidade psicossocial da adolescente.

gravidez na adolescência; violência doméstica; toxicodependência


A pregnant adolescent’s vulnerability increases when she is a victim of intrafamilial violence and drug addiction, which cause physical and biopsychosocial damage to the mother and her baby.

Objective

Present and analyze the case of an adolescent who is addicted to drugs, pregnant and the victim of lifelong intrafamilial violence.

Method

A case study based on a semi-structured interview conducted in the Obstetrics Emergency Unit at the Teaching Hospital of the University of São Paulo. The data were interpreted and analyzed using Content Analysis.

Results

intrafamilial violence experienced at the beginning of the adolescent’s early relationships seriously affected her emotional maturity, triggering the development of psychopathologies and leaving her more susceptible to the use and abuse of alcohol and other drugs. The adolescent is repeating her history with her daughter, reproducing the cycle of violence.

Conclusion

Adolescent pregnancy combined with intrafamilial violence and drug addiction and multiplies the adolescent’s psychosocial vulnerability increased the adolescent’s vulnerability.

adolescent pregnancy; Domestic violence; drug addiction


La vulnerabilidad de la adolescente embarazada se acentúa mucho más cuando la misma es víctima de la violencia doméstica y es adicta a las drogas, provocando daño físico y biopsicosocial para ella y su bebé.

Objetivo

presentar y analizar el caso de una adolescente adicta a las drogas, embarazada y víctima de violencia doméstica durante el transcurso de su vida.

Método

Se trata de un estudio de caso, basado en una entrevista semi-estructurada, realizada en el Servicio de Emergencia de Obstetricia de un Hospital Universitario en la ciudad de Sao Paulo. Los datos fueron recolectados, procesados y analizados mediante el Análisis de Contenido.

Resultados

la violencia doméstica vivida al inicio de las primeras relaciones afectivas comprometió seriamente la madurez emocional de la adolescente, lo que provocó el desarrollo de psicopatologías dejándola más vulnerable al uso y abuso de alcohol y otras drogas. Fue constatado también que la adolescente repitió su historia con su propia hija, reproduciendo el ciclo de la violencia.

Conclusión

El embarazo durante la adolescencia, las experiencias de violencia doméstica y adicción a las drogas han potencializado la vulnerabilidad psicosocial de la adolescente.

embarazo en la adolescencia; violencia doméstica; adicción a las drogas


Introdução

O presente artigo apresenta e analisa o caso de uma adolescente grávida vítima de violência doméstica e toxicodependente, com intuito de aprofundar dados de pesquisa(11. Salcedo-Barrientos DM. Estudo de violência doméstica contra adolescentes grávidas atendidas no Hospital Universitário de São Paulo: bases para intervenção. Relatório Final Projeto de Pesquisa. Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, Brasil. 2013.).

GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA

A gravidez na adolescência constitui-se uma gestação de risco, com múltiplas repercussões possíveis em termos de danos psicossociais e de saúde materno-fetal. No que se refere ao ponto de vista biológico, os riscos que mais se destacam são: hemorragias, trabalho de parto prolongado, complicações a longo prazo, prematuridade, lesões durante o parto, morte perinatal e baixo peso ao nascer. Do ponto de vista psicossocial, encontram-se: abandono dos estudos, inserção precoce na vida laboral, descompasso na integração psicossocial e pouco preparo para o desenvolvimento de uma relação satisfatória com os filhos(22. Barbón Pérez OG. Algunas consideraciones sobre comunicación, gênero y prevención del embarazo adolescente. Cienc. enferm. [online]. 2011;17(1):19-25. Disponível em: http://www.scielo.cl/pdf/cienf/v17n1/art_03.pdf
http://www.scielo.cl/pdf/cienf/v...
).

Um estudo apontou que a população de adolescentes mães de 2001 para 2008, no Brasil, diminuiu, contudo esse percentual tem aumentado consideravelmente, nas famílias com até um salário mínimo, o que indica uma correlação entre a gravidez na adolescência e renda familiar. Esse estudo também evidenciou que a gravidez na adolescência afeta a escolarização, especialmente àquelas de classe social mais baixa (menos de 30%) e concluiu que o abandono escolar e a falta de participação no mercado de trabalho se associam decorrem tanto à maternidade na adolescência quanto à condição socioeconômica em que viviam previamente(33. Novellino MSF. Um estudo sobre as mães adolescentes brasileiras. Physis Revista de Saúde Coletiva. 2011;21(1):299-318.).

Com relação aos aspectos psicodinâmicos da gravidez na adolescência, a gravidez e a maternidade na adolescência pode ser entendida como dificuldades no desenvolvimento psicossexual da menina em decorrência de conflitos infantis não solucionados que impedem a elaboração dos lutos da adolescência(44. Blos P. Adolescência. uma interpretação psicanalítica. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 1998(1962).,55. Deutsch H. Problemas psicológicos da adolescência. com ênfase especial na formação de grupos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar. 1983(1967).).

A gravidez precoce decorre de uma fixação ao período pré-edípico, mais especificamente à mãe pré-edípica, devido tanto por privação, quanto pela superestimulação. A gestação na adolescência pode ser entendida como uma atuação, relacionada ao desejo da menina vingar-se da mãe por sentir que ela a rejeita. Nesse sentido, a razão pela qual muitas adolescentes engravidam é a identificação com a mãe fálica (daí decorre o caráter de exibição da pseudo-heterossexualidade)(44. Blos P. Adolescência. uma interpretação psicanalítica. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 1998(1962).).

O relacionamento com as figuras parentais pode afetar a escolha objetal das adolescentes. Foi demonstrado neste estudo o quanto a falta da mãe pode dificultar o estabelecimento de novas relações, pois as necessidades emocionais decorrentes desta, expressas por expectativas elevadas e excesso de idealização impedem o estabelecimento de uma relação baseada na realidade e assim, as frustrações com o objeto real são inevitáveis e tornam a relação insustentável(44. Blos P. Adolescência. uma interpretação psicanalítica. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 1998(1962).).

A gravidez precoce seria então uma atuação que estaria relacionada a uma fixação de caráter oral e pré-edipiano à mãe. A menina frente à exigência de amadurecimento, buscou reviver a união mãe-filha por meio de uma gestação. Nesse contexto, no nível de realização da fantasia, o parceiro sexual da menina corresponderia ao lugar da mãe na relação primitiva e o ato sexual em si, e a consequente fecundação, o restabelecimento da unidade mãe-filha(44. Blos P. Adolescência. uma interpretação psicanalítica. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 1998(1962).,55. Deutsch H. Problemas psicológicos da adolescência. com ênfase especial na formação de grupos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar. 1983(1967).).

Para além disso, como esse impulso para engravidar não se origina de um desejo edipiano de ter um filho, tampouco em um modelo de maternidade assistente (como uma assistente da mãe para cuidar do filho), muito menos de um desejo de mulher em ser mãe e por isso, constitui-se mais como uma atuação com característica compulsiva, que pode persistir e tender a se repetir. Nesse sentido, não adiantaria controlar tal fenômeno por meio de instruções ou pílulas anticoncepcionais em decorrência do caráter compulsivo da atuação(55. Deutsch H. Problemas psicológicos da adolescência. com ênfase especial na formação de grupos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar. 1983(1967).).

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

A violência doméstica não é apenas uma problemática da realidade brasileira, pesquisas bibliográficas revelam que a violência contra a criança e adolescente está presente em todo o mundo, tanto em países desenvolvidos, como em desenvolvimento(66. Finkelhor D, Ormrod R, Turner H, Hamby SL. The victimization of children and youth: a comprehensive national survey. Child Maltreatment. 2005;10(1):5-25.

7. Turner HA, Finkelhor D, Ormrod R, Hamby S, Leeb RT, Mercy JA, Holt M. Family context, victimization and child trauma symptoms: variations in safe, stable and nurturing relationships during early and middle childhood. American Journal of Orthopsychiatry. 2012;82(2):209-219.
-88. Fontaine D, Nolin P. Personality disorders in a sample of parents acused of physical abuse or neglect. J. Fam. 2012;27:23-31.).

Pesquisa sobre a vida sexual de adolescentes que haviam sido maltratados antes dos 12 anos verificou correlações entre a vivência de maus tratos na infância com a iniciação sexual precoce, o relacionamento sexual estabelecido com múltiplos parceiros, não utilização de métodos contraceptivos e prevenção de doenças venéreas, bem como com a ocorrência de gravidez na adolescência(99. Black MM, Oberlander SE, Lewis T, Knight ED, Zolotor AJ, Litrownik AJ, Thompson R, Dubowitz H, English DE. Sexual intercourse among adolescents maltreated before age 12: a prospective investigation. Pediatrics. 2009;124(3):941-950.).

O abuso infantil (físico, sexual e emocional) torna-se um fator de risco para as vítimas ao longo de toda a vida. No âmbito da saúde física, observou-se que aqueles que foram vitimados tendem a desenvolver comportamentos prejudiciais à mesma, como fumar, beber, usar drogas, comer em excesso; além de terem maior dificuldade em mudar e manter hábitos mais saudáveis(1010. Sachs-Ericsson N, Medley AN, Kendall-Tacknett K, Taylor J. Childhood abuse and current health problems among older adults: the mediating role of self-efficaccy. Psychology of Violence. 2011;1(2):106-120.).

Estudos também demonstram a relação ao trauma (violência física e/ou sexual) com a personalidade bordeline, constatou-se em uma pesquisa desenvolvida com 41 pacientes com personalidade borderline, que 76% desses pacientes relataram terem sido vítimas de violência sexual na infância e 50% afirmaram terem sofrido o abuso de forma contínua(1111. Silk K, Lee S, Hill E, Hohr N. Borderline personality disrder symptons and severity of sexual abuse. The American Journal of Psychiatry. 1995;152 (7):1059–1064.). Outro estudo apontou que os pacientes borderline relataram significativamente as falhas nos cuidados maternos e paternos durante sua infância, diante disso, apontou para a importância das teorias psicodinâmicas sobre a infância de pacientes borderline e para a teoria da falha biparental no desenvolvimento desta psicopatologia(1212. Hallie Z, Paris J. Parents emotional neglect and overprotection according to the recollections of patients with borderline personality disorder. American Journal of Psychiatry. 1991;148:648-651.).

No Brasil, uma pesquisa evidenciou que o sexo feminino é a principal vítima das violências doméstica e sexual, tendo 69.83% dos casos de violência doméstica, sexual e outros tipos cometida contra mulheres(1313. Brasil. Ministério da Saúde. Sistema de Vigilância de Violência e Acidentes. [Internet]. Brasília; 2011. [citado 2013 set. 29]. Disponível em http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/arquivos/pdf/2013/Mar/22/viva_2011.pdf
http://portalsaude.saude.gov.br/...
).

A violência doméstica desencadeia sofrimento, uma vez que a experiência abusiva à qual a criança ou o adolescente foi submetido provoca um desequilíbrio psíquico, à medida que não pode ser representada ou simbolizada pela vítima(1414. Pinto Jr AA, Vieira FC, Santos MR, Fróis NMR, Tardivo LSLPC. Vitimização e Violência: Atendimentos clínicos a partir de enquadres diferenciados. In: Tardivo LSLPC, Gil CA, organizadores. Apoiar: novas propostas em psicologia clínica. São Paulo: Savier; 2008. p.513-22.). Outro estudo também apontou que a violência doméstica é um fator de risco para o desenvolvimento de crianças e adolescentes, produzindo efeitos na identidade, distúrbios de personalidade e adaptação social(1515. PintoJr AA, Tardivo LSLPC. IFVD: Inventário de frases no diagnóstico de violência doméstica contra crianças e adolescentes. São Paulo: Vetor; 2010.).

TOXICODEPENDÊNCIA E A GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA

O jovem, na ânsia pela identidade e diante da angústia de não saber “quem é”, pode se identificar com figuras negativas (criminosos, drogadictos...) ou ainda iniciar uma vida sexual precocemente como uma defesa maníaca, como uma possibilidade real de existir e adquirir uma identidade adulta ao invés de “não ser” ninguém(1616. Knobel M. A síndrome normal da adolescência. In: Aberastury A, Knobel M, organizadores Adolescência normal: um enfoque psicanalítico. Porto Alegre: Artmed; 2011(1970). p.24-62.). Uma pesquisa desenvolvida junto a mulheres dependentes de cocaína tipo crack evidenciou que as usuárias expostas a traumas durante a infância ou a adolescência iniciam o uso de drogas em idades mais precoces que aquelas cujo trauma ocorreu na vida adulta(1717. Tractenberg SG, Viola TW, Rosa CSO, Donati JM, Francke LD’A, Pezzi JC, Grassi-Oliveira R. Exposição a trauma e transtorno de estresse pós-traumático em usuárias de crack. J Bras Psiquiatr. 2012;61(4):206-13.).

Estudos apontaram que fatores como famílias disfuncionais, evasão escolar, desemprego e baixa capacitação profissional contribuem para a manutenção de uma situação socioeconômica desfavorável, bem como para a alta prevalência do uso de cocaína e maconha pelas adolescentes grávidas e de transtornos psiquiátricos(1818. Mitsuhiro SS, Chalem E, Barros MM, Guinsburg R, Laranjeira R. Teenage pregnancy: use of drugs in the third trimester and prevalence of psychiatric disorders. Rev Bras Psiquiatr. 2006;28(2):122-5.,1919. Barnes M, Ismail KMK, Crome LB. Triply troubled: criminal behaviour and mental health in a cohort of teenage pregnant substance misusers in treatment. Criminal Behaviour and Mental Health. 2010;(20):335–48.). Outra pesquisa que corrobora com esses resultados, apontou que o uso de substâncias químicas, como maconha e álcool, apresenta uma correlação com o fenômeno da gravidez na adolescência, uma vez que em muitos casos, a experiência com drogas antecede a gravidez na adolescência. Desse modo, é mais frequente o uso de tais substâncias entre adolescentes que engravidaram se comparado a adolescentes que nunca engravidaram(2020. Cavazos-Rehg PA, Krauss MJ, Spitznagel EL, Schootman M, Cottler LB, Bierut LJ. Brief report: pregnant by age 15 years and substance use initiation among US adolescent girls. Journal of Adolescence. 2012;(35):1393-97.).

Diante do exposto, o presente artigo teve como objetivo apresentar e analisar o caso de uma adolescente grávida vítima de violência doméstica e toxicodependente.

Método

Este trabalho trata-se de um estudo de caso, este método deverá ser utilizado quando: “a) as questões “como” e “por que” são propostas; b) o investigador tem pouco controle sobre os eventos; c) o enfoque está sobre um fenômeno contemporâneo no contexto da vida real”(2121. Yin RK. Estudo de Caso. Planejamento e métodos. 4ª ed. Porto Alegre: Bookman; 2009.). Dessa forma o autor define que essa investigação empírica se aplica quando há a pretensão de compreender, de forma aprofundada, um fenômeno da vida real e atual, cujo entendimento está atrelado a “importantes condições contextuais”(2121. Yin RK. Estudo de Caso. Planejamento e métodos. 4ª ed. Porto Alegre: Bookman; 2009.). Com isso, o estudo de caso serve para explicar, descrever, ilustrar e explorar situações demasiadamente complexas, que não podem ser explicadas por um raciocínio simples de causa e efeito.

Esta pesquisa foi realizada junto a adolescente grávida que compareceu ao Pronto Atendimento (PA) da obstetrícia do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (HUUSP), situado no Campus da Universidade de São Paulo(11. Salcedo-Barrientos DM. Estudo de violência doméstica contra adolescentes grávidas atendidas no Hospital Universitário de São Paulo: bases para intervenção. Relatório Final Projeto de Pesquisa. Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, Brasil. 2013.). Foi utilizado como instrumento a entrevista semi-estruturada, a qual foi gravada e transcrita, garantindo o anonimato e o sigilo; o respeito à privacidade e à intimidade e ainda garantindo-lhe a liberdade de participar ou declinar desse processo no momento em que desejasse, respeitando as recomendações do Conselho Nacional de Saúde, conforme resolução nº 466/2012).

O responsável pela adolescente participante assinou o Termo de Consentimento e a adolescente assinou o Termo de Assentimento. Todos os preceitos éticos foram observados e o estudo aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (Parecer nº 1214/12 e Registro SISNEP-CAAE: 0043.0.196.198-11).

Os dados obtidos na entrevista semi-estruturada foram interpretados e analisados segundo a Análise de Conteúdo(2222. Bardin L. Análise de Conteúdo. Lisboa, Portugal: Edições 70; 2013.).

Resultados

Taís1 1 Nome fictício, atendida com consentimento. tem 18 anos e está grávida. Na infância foi abandonada pela mãe e pelo pai. Sua mãe é usuária de droga (crack) e moradora de rua. Foi criada pela avó materna, que é alcoolista, maltratou fisicamente e foi negligente com a neta. A adolescente descreve sua vida como um sofrimento, ela prefere ficar na rua do que em casa com a avó, devido aos maus tratos inflingidos por esta.

Aos 12 anos Taís conta que se casou e que se separou aos 16. Logo após a separação conheceu seu atual companheiro, pai do filho que está esperando, Wagner (30 anos). Quando ele tinha 24 anos, sofreu uma lesão medular devido a ter tomar uma “injeção de maneira errada” (sic) e ficou paraplégico. Ele já foi usuário de drogas, mas quando ela o conheceu, já não usava mais drogas ilícitas, apenas consumia álcool. Taís o acha muito “cabeça” (sic), considera-o uma pessoa que a ajuda sempre que precisa, conversando, acolhendo.

Taís começou a fumar maconha aos 15 anos, inflluenciada pelo ex-marido, e por volta dos 16 anos iniciou o uso de cocaína, incentivada por uma amiga. Mesmo não conseguindo parar de usar drogas, nega que seja drogadicta. Para ela viciado em drogas é aquele que começa a roubar dentro e fora de casa para comprar drogas, mas como ela não tem essa atitude não se considera uma drogadicta.

Com relação as condições socioeconômicas, Taís é uma adolescente grávida de classe social baixa, parou os estudos na 8ª série e não trabalha. Ela vive com o companheiro na casa da sogra em uma residência de três cômodos e moram nesta casa quatro adultos (Taís, Wagner, sogra e cunhado), onde apenas a sogra trabalha e o companheiro recebe aposentaria por invalidez.

Discussão

Com base nos aspectos psicodinâmicos, percebe-se pela sua história de vida, que Tais não teve oportunidade de experienciar sua espontaneidade, seu processo de continuar-a-ser(2323. Winnicott DW. Da dependência à independência no desenvolvimento do indivíduo. In: Winnicott DW. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas; 1990(1963). p.79-87.), ou melhor, seu processo de continuar se desenvolvendo foi interrompido. Logo nos primeiros momentos de vida, a adolescente não pôde agir conforme suas necessidades, ela teve que reagir se defendendo do ambiente ameaçador e, a consequência disso, parece ter sido o desenvolvimento de um falso self patológico, constituindo-se com a função de defender e proteger o verdadeiro self.

O processo de amadurecimento do ego caminha naturalmente em direção a constituição de um self integrado, mas isso depende se a criança sentiu na relação com sua mãe que seu ego estava protegido. Quando as falhas ambientais são contínuas, inúmeras agonias impensáveis são sentidas, constituindo, assim, um padrão de descontinuidade e fragmentação do ser. O desenvolvimento do ego fica sobrecarregado no sentido da psicopatologia. E é isso o que muitas vezes pode acontecer nos casos de violência doméstica. A não proteção que foi sentida desde o início da vida impede o amadurecimento egoico e a possibilidade de estabelecer uma relação vincular de forma saudável(2424. Winnicott DW. A integração do ego no desenvolvimento da criança. In: Winnicott DW. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas; 1990(1962), p.55-61.).

Ainda com relação a constituição do self, todos os indivíduos constituirão um verdadeiro e um falso self, o que modifica em cada um é como se dá este processo de constituição e organização do self. O verdadeiro self diz respeito à espontaneidade; se o bebê teve a possibilidade de experienciar seus impulsos de maneira espontânea, constituirá um verdadeiro self com capacidade para continuar amadurecendo e um falso self que aqui teria apenas a função de fazer uma ponte entre o verdadeiro self e a realidade exterior. Mas isso só é possível quando a mãe atende às necessidades do bebê, ou seja, possibilita que o bebê experiencie a ilusão de onipotência. Alimentar essa ilusão é fundamental para o fortalecimento do ego frágil do bebê, pois é dessa maneira que ele pode experimentar seus próprios impulsos, e ir se apropriando do que é seu. Todo esse processo resulta na capacidade de imaginar, de brincar, de criar, constituindo a base da simbolização(2525. Winnicott DW. Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self. In: Winnicott DW. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas; 1990(1960), p.128-39.).

Mas se a mãe não consegue satisfazer as necessidades do bebê, ficando este sucetível às necessidades materna ou a instabilidade do ambiente, inicia-se a constituição de um falso self defensivo e patológico, devido ao ambiente ser ameaçador e inóspito. Assim, o falso self se constitui para defender o verdadeiro self Os indivíduos que tiveram uma falha no desenvolvimento do self, em que o self verdadeiro é a única parte viva, mas não explorada, podem passar boa parte de suas vidas mimetizando o ambiente, evidenciando na aparência estar tudo bem. Porém, a máscara do disfarce pode cair a qualquer momento, ou melhor, em algum momento que demanda emocionalmente.

A ausência de um ambiente acolhedor, de uma “mãe suficientemente boa”, de boas experiências iniciais, impediram o amadurecimento emocional de Taís. Na adolescência a imaturidade já é característica da própria fase da vida(2626. Winnicott DW. A imaturidade do adolescente. In: Winnicott DW. Tudo começa em casa. São Paulo. Martins Fontes; 2005(1968), p.145-63.), mas neste caso, a reedição e ressignificação das relações endogâmicas são experienciadas de maneira ainda mais turbulenta e angustiante devido aos fracassos das suas relações primordiais.

A análise de uma personagem que é um “caso-limite”, demonstra que “sua condição subjetiva parece imersa na morte psíquica da desconfiança e do desespero, expressa paradoxalmente em agitação”(2727. Figueiredo LC. Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo: Escuta; 2008.). “Ela é desconfiada, se adapta facilmente ao ambiente (tipo falso self) e apresenta comportamento antissocial e predatório (ela rouba uma loja de roupas e explora as melhores amizades)”(2727. Figueiredo LC. Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo: Escuta; 2008.). Esta personagem está a todo momento num processo de desobjetalização “devido ao fracasso essencial do objeto primário, que não pôde ser bem encontrado, os eventuais e possíveis bons objetos são submetidos à ação predatória, à indiferença e ao denegrimento, tendem a virar pó, pouca coisa, nada”(2727. Figueiredo LC. Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo: Escuta; 2008.). Contudo, a personagem tenta contrapor esse movimento e vai em busca de relações objetais, reais…, porém em seu caso, o que se objetaliza é um objeto não confiável, tal como fora seu objeto primário. Desta forma, ela acaba se engajando de maneira obsessiva numa relação amorosa com um cafajeste, que a usou e abandonou.

Comparando a personagem descrita acima com Taís, percebe-se o quanto esta última acaba por escolher de maneira inconsciente pessoas não confiáveis assim como a sua mãe. Desta forma, sem conseguir simbolizar suas angústias e sentimentos, Taís continua reproduzindo e repetindo as feridas e falhas de sua história. A adolescente acaba por estabelecer relações com pessoas não confiáveis, ou seja, ela se relaciona com pessoas que usam e traficam drogas, roubam, matam. Ela considera essas “pessoas erradas” (sic) próxima de si. Taís se relaciona com as pessoas, num ambiente parecido ao que sua mãe vive, na rua com pessoas usuárias de drogas. Desta forma, na busca inconsciente por sentir-se real nas relações, a adolescente se relaciona com objetos não confiáveis como fora seu objeto primário.

Conforme a análise de uma paciente, para ela a única coisa real nas relações era “a falta ou lacuna, isto é, a morte, a ausência ou a amnésia”(2828. Winnicott DW. A criatividade e suas origens. In: DW Winnicott. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975(1971), p.95-120.). Neste caso, o negativo é o único sentido como real, por isso positivo. Assim, como para Taís o que é sentido como real, são as relações vivenciadas similarmente àquelas de sua relação primordial.

Taís também se adapta facilmente ao ambiente em que se encontra, por exemplo, conta que iniciou o uso da maconha, pois seu primeiro marido usava, de maneira parecida iniciou o uso da cocaína, vendo sua amiga usar, disse ter ficado curiosa. Mas sua primeira experiência com o uso da cocaína, já foi devastadora, Taís conta que usou durante oito dias seguidos, chegando a emagrecer 10 kilos. Vale apontar que esses oito dias, foram os mesmos dias que Wagner teve que ficar internado devido a uma úlcera.

Aqui parece que Taís mimetiza o ambiente, ação que o falso self patológico desenvolve muito bem. Ou seja, ela passa a ser o ambiente onde está se relacionando, quando está com Wagner, ela é o mundo em que vive com ele, e quando está com seus amigos, ela passa a ser o mundo dos amigos.

Ainda com relação às drogas, esta assume uma função importante para Taís, ela amortiza a angústia, tampona a falta, mascara o vazio e; por alguns instantes tudo é sentido como belo, pleno e bom… O uso de excitantes e de anestésicos entre pacientes borderline é comum. “Os excitantes tentam recuperar uma sensação de vida que se contrapõe à morte por esvaziamento. Já os anestésicos protegem as fronteiras das feridas narcísicas e oferecem um sucedâneo artificial do que seria a satisfação e a calma do Nirvana. Ambos contribuem para manter um estado de indiferenciação quase simbiótico entre o eu e seu entorno”(2727. Figueiredo LC. Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo: Escuta; 2008.).

Os pacientes borderline numa perspectiva mais psicanalítica seriam aqueles que por situações não favoráveis ao amadurecimente emocional constituiram um falso self patológico com a função de proteger o verdadeiro self completamente imaturo e frágil, assim como no caso de Taís(2525. Winnicott DW. Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self. In: Winnicott DW. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas; 1990(1960), p.128-39.). Similarmente, o termo borderline numa perspectiva psicodinâmica designa uma estrutura singular de personalidade, a qual se caracteriza por uma dinâmica extremamente instável, oscilante, repleta de transições abruptas, avanços e recuos que revelariam as duas grandes angústias presentes em uma fase do processo de separação-individuação. Nestes casos, os mecanismos de defesa mais identificados são a clivagem e as defesas de baixo nível: idealização primitiva, identificação projetiva, denegação, onipotência, desvalorização. As drogas, principalmente cocaína e heroína, ativam esse ideal do eu primitivo (mágico e omnipotente) que defende o Eu do mau objeto (realidade persecutória)(3030. Kernberg O. Borderline conditions and pathological narcissism. New York: Jason Aronson; 1976.).

Na perpectiva psiquiátrica as características essenciais de uma pessoa com Transtorno de Personalidade Borderline são as lesões na personalidade e no funcionamento (auto e interpessoal) e a presença de traços de personalidade patológica. Seguem alguns critérios descritos no manual da American Psychiatric Association(2929. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition. Arlington VA: American Psychiatric Association; 2013.) para a realização de um diagnóstico psiquiátrico: prejuízos no funcionamento do ego (auto-imagem marcadamente pobre, sentimentos crônicos de vazio, instabilidade nos objetivos e aspirações); prejuízos no funcionamento interpessoal (capacidade comprometida para reconhecer os sentimentos e necessidades dos outros, com tendência a se sentir menosprezado; relações íntimas intensas, instáveis e conflituosas, marcadas pela desconfiança, carência, e preocupação ansiosa com o abandono real ou imaginado); traços de personalidade patológica (afetividade negativa: experiências emocionais instáveis e mudanças frequentes de humor; se preocupa com os efeitos negativos de experiências desagradáveis do passado e possibilidades futuras negativas; sentimentos de auto-estima inferior. Desinibição: age no calor do momento; dificuldade de estabelecer ou seguir planos, engaja-se em situações perigosas, de risco, e potencialmente prejudiciais à própria pessoa, falta de preocupação com suas limitações e negação da realidade do perigo pessoal).

Em diversos momentos, percebe-se a identificação projetiva de Taís. Como neste caso não houve integração do self, os objetos bons e maus estão organizados no mundo interno de forma cindida, a dinâmica psíquica dos pacientes borderline é calcada nas cisões, diferentemente dos neuróticos que é marcada pelos conflitos(2727. Figueiredo LC. Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo: Escuta; 2008.).

As fronteiras do mundo interno e externo nestes pacientes não são demarcadas, são frouxas, porosas, daí o prolongamento do mundo interno no externo. A identificação projetiva é um dos mecanismos de defesa que demonstra isso, desta forma, esses pacientes se confundem com seu meio, ou então, sentem-se perseguidos. Taís acha que não é uma pessoa boa, isso é fruto de sua história, onde não teve experiência boas o suficiente que possibilitasse a internalização de bons objetos. Ela diz “todo mundo falava mal de mim, sempre falou” (sic).

“Quando estudava, ela também acreditou que era o “terror da escola” (sic), pois todo mundo só conseguia vê-la dessa forma, sua avó, seu ambiente escolar... A ausência de bons objetos introjetados magicamente(2828. Winnicott DW. A criatividade e suas origens. In: DW Winnicott. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975(1971), p.95-120.) pode ser observado na fala de Taís, “Minha filha vai trazer muita felicidade! Com certeza não vai ser que nem eu fui, vai ser uma mulher responsável, uma pessoa responsável, com carinho, com educação pra ser diferente né” (sic). Para Taís, sua filha, o Wagner parece representar os objetos bons de seu mundo interno cindido, e ela é a representação do objeto mau, o mundo externo parece ser a extensão do interno. Isto pode ser definido como campos clivados da experiência mental. Usualmente estas vivências podem/devem dominar o mundo psíquico por padrões mais usuais, mas podem ser invertidas, passando os bons a maus e os maus a bons. Isto porque as experiências estão fragmentadas em representações (umas boas e outras más).

Com relação à gravidez, para Taís realmente atua e apresenta defesas primitivas ao se referir à filha, e isso acontece geralmente nos casos onde houve a falta da mãe na primeira infância(44. Blos P. Adolescência. uma interpretação psicanalítica. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes. 1998(1962).,55. Deutsch H. Problemas psicológicos da adolescência. com ênfase especial na formação de grupos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar. 1983(1967).). Por exemplo, a adolescente idealiza vivenciar situações familiares que nunca teve. Imagina uma maravilhosa relação de maternagem e que quer conscientemente proporcionar a sua filha, mas demonstra insegurança e baixa auto-estima para realizá-la, provavelmente por nunca ter tido uma “mãe suficientemente boa”. Para Taís o bom objeto projetado é a filha e o mau objeto é ela própria, nestes casos a gravidez precoce não contribui para o desenvolvimento da verdadeira maternidade, provoca “um efeito inibidor ainda maior”(55. Deutsch H. Problemas psicológicos da adolescência. com ênfase especial na formação de grupos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar. 1983(1967).).

A idealização se choca com a realidade e detona uma frustração ainda maior. Taís idealiza que sua relação com sua filha será diferente da sua com sua mãe, e observamos atitudes contrárias ao que a adolescente diz, pois ela mesmo grávida continua fazendo uso de drogas lícitas e ilícitas.

Com relação à maternagem, o desenvolvimento da capacidade de ser mãe só acontece pelo fato da mulher ter experienciado enquanto bebê os cuidados de uma mãe suficientemente boa, pois essa experiência e vivência de conforto e segurança ficam registradas psíquica e corporalmente(2323. Winnicott DW. Da dependência à independência no desenvolvimento do indivíduo. In: Winnicott DW. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas; 1990(1963). p.79-87.). Diante dos profundos registros de violência vivenciada ao longo de sua vida, Taís mesmo dizendo querer ser diferente de sua mãe, acaba por repetir sua experiência de negligência e maus tratos, agora com sua filha, por meio do uso de drogas.

No caso de Taís, pôde-se observar também a falta de percepção que a adolescente tem sobre seu próprio corpo, Taís parece não perceber a filha dentro de si. Vale aqui resgatar o conceito de despersonalização, perda da união entre o ego e o corpo, incluindo impulsos e satisfações do id. Essa dinâmica acontece em pacientes com falso self patológico(2424. Winnicott DW. A integração do ego no desenvolvimento da criança. In: Winnicott DW. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas; 1990(1962), p.55-61.). No caso de Taís, como não houve essa integração, a soma e a psiquê também não se encontram integradas e, assim, seus impulsos não puderam ser sentidos como seus, daí a despersonalização presenciada na adolescente.

Além disso, observa-se neste caso as duas características paradoxais de pacientes borderline, “são tanto impulsivos quanto excelentes observadores dos outros e de si mesmos”(2727. Figueiredo LC. Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo: Escuta; 2008.). Quando estão em momentos profundamente esquizóides, são capazes de fazerem relatos de auto-observação impressionantes, porém quando estão em momentos expansivos, atuam ignorando completamente aspectos da realidade externa.

Em um momento Taís é capaz de se auto perceber como uma pessoa triste, sofrendo. “Estou pensando nas coisas. Sofrendo, chorando, pensando em tudo né. Muitas coisas ruins, né. Críticas, pessoas falando mal, é... Ex-colegas, ex-amigos, família…” (sic). E num outro momento é capaz de passar 8 dias usando drogas. A única tarefa para os pacientes borderline é existir, “existir penosamente”(2727. Figueiredo LC. Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo: Escuta; 2008.), e Taís descreve sua vida como um sofrimento. “É um sofrimento, porque eu não convivi com mãe, não convivi com pai, minha avó sempre bebia. Vivia mais na rua do que em casa, não tinha família, não tinha ninguém. Foi um sofrimento. Ela (avó) me batia muito e eu preferia ficar na rua do que em casa porque pelo menos na rua ela não ia me bater. Então toda vez que ela bebia eu ia pra rua, ficava na rua”(sic).

Em um momento Taís é capaz de se auto perceber como uma pessoa triste, sofrendo. “Estou pensando nas coisas. Sofrendo, chorando, pensando em tudo né. Muitas coisas ruins, né. Críticas, pessoas falando mal, é... Ex-colegas, ex-amigos, família…” (sic). E num outro momento é capaz de passar 8 dias usando drogas. A única tarefa para os pacientes borderline é existir, “existir penosamente”(2727. Figueiredo LC. Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo: Escuta; 2008.), e Taís descreve sua vida como um sofrimento. “É um sofrimento, porque eu não convivi com mãe, não convivi com pai, minha avó sempre bebia. Vivia mais na rua do que em casa, não tinha família, não tinha ninguém. Foi um sofrimento. Ela (avó) me batia muito e eu preferia ficar na rua do que em casa porque pelo menos na rua ela não ia me bater. Então toda vez que ela bebia eu ia pra rua, ficava na rua”(sic).

Conclusão

No presente artigo pôde-se perceber o quanto a violência doméstica vivenciada nas relações primordiais acabaram por prejudicar o processo de amadurecimento emocional de Taís, a qual acabou por desenvolver graves problemas psicopatológicos.

Sendo a adolescência, momento intenso e turbulento, que depende de como cada um vivenciou esse processo, no caso apresentado, Taís revive e ressignifica suas relações afetivas com base nas experiências anteriores, ou seja, com base na desconfiança, na instabilidade, nos maus tratos, culminando no uso abusivo de drogas lícitas e ilícitas e na gravidez na adolescência.

A situação instalada não contribui em nada para o processo de amadurecimento de Taís, pelo contrário, a adolescente já apresenta indícios de que repetirá sua história agora com sua filha, mesmo não querendo que isso aconteça conscientemente suas atitudes apontam para a repetição.

Diante disso, a violência doméstica, a toxicodependência e a gravidez precoce funcionam cumulativamente como fatores de risco e de vulnerabilidade da adolescente e são um forte impeditivo para o amadurecimento saudável da adolescente e do seu bebê, devendo constituir um foco fundamental de pesquisas e de ações preventivas e interventivas.

Agradecimentos

Agradecimento à FAPESP pela concessão de uma bolsa de pós-doutorado para realização desta pesquisa e a CAPES, por conceder uma bolsa de mestrado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2014
  • Aceito
    16 Jul 2014
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