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Atenção à saúde da criança no Brasil: aspectos da vulnerabilidade programática e dos direitos humanos

Resumos

Este estudo tem como objetivo examinar a abordagem epidemiológica nos programas brasileiros de saúde da criança, com vistas à reflexão das atuais diretrizes na perspectiva da vulnerabilidade e dos direitos humanos. Trata-se de estudo descritivo, alicerçado na análise de documentos oficiais veiculados pelo Ministério da Saúde, Brasil. Verificou-se que a ampliação e reorganização das práticas de saúde da família e da atenção integrada às doenças prevalentes na infância preconizam a promoção da saúde e qualidade de vida de crianças e famílias. Os profissionais de saúde, imbuídos de observação e intervenção, podem ser considerados agentes para respeitar, proteger e efetivar direitos humanos.

criança; vulnerabilidade; direitos humanos


This study aimed to examine the epidemiological approach in Brazilian child health programs, towards the reflection on current guidelines from the perspective of program vulnerability and human rights. A descriptive study was carried out, based on the analysis of official documents elaborated by the Brazilian Ministry of Health. The expansion and reorganization of family health practices and integrated care for prevailing childhood diseases are aimed at promoting health and quality of life to children and families. Health professionals, imbued with observation and intervention, can be considered agents to respect, protect and implement human rights.

child; vulnerability; human rights


La finalidad de este estudio es investigar la aproximación epidemiológica en los programas de salud del niño en Brasil, con vistas a la reflexión de las directivas actuales en la perspectiva de la vulnerabilidad programática y de los derechos humanos. Realizamos un estudio descriptivo, basado en el análisis de documentos oficiales elaborados por el Ministerio de la Salud, en Brasil. Verificamos que los objetivos de la amplificación y reorganización de las prácticas de salud de la familia y de la atención integrada a las enfermedades prevalecientes en la infancia son las de promover la salud y cualidad de vida de niños y familias. Los profesionales deben ser agentes públicos imbuidos de observación e intervención para respetar, proteger y efectuar derechos humanos.

niño; vulnerabilidad; derechos humanos


ARTIGOS DE REVISÃO

Atenção à saúde da criança no brasil: aspectos da vulnerabilidade programática e dos direitos humanos

Glória Lúcia Alves FigueiredoI; Débora Falleiros de MelloII

IEnfermeira, Doutoranda

IIProfessor Doutor, e-mail: defmello@eerp.usp.br. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Brasil

RESUMO

Este estudo tem como objetivo examinar a abordagem epidemiológica nos programas brasileiros de saúde da criança, com vistas à reflexão das atuais diretrizes na perspectiva da vulnerabilidade e dos direitos humanos. Trata-se de estudo descritivo, alicerçado na análise de documentos oficiais veiculados pelo Ministério da Saúde, Brasil. Verificou-se que a ampliação e reorganização das práticas de saúde da família e da atenção integrada às doenças prevalentes na infância preconizam a promoção da saúde e qualidade de vida de crianças e famílias. Os profissionais de saúde, imbuídos de observação e intervenção, podem ser considerados agentes para respeitar, proteger e efetivar direitos humanos.

Descritores: criança; vulnerabilidade; direitos humanos

INTRODUÇÃO

A atenção à saúde da criança, no Brasil, vem sofrendo transformações, tendo influências de cada período histórico, dos avanços do conhecimento técnico-científico, das diretrizes das políticas sociais e do envolvimento de vários agentes e segmentos da sociedade.

A área de conhecimento da epidemiologia trouxe entendimentos que os diferenciais de saúde e doença da população são fundamentais para investigações em qualquer sociedade(1-3). Na área materno-infantil, os estudos epidemiológicos sobre problemas de saúde perinatal e neonatal têm sido freqüentes, demonstrando a associação entre processo saúde-doença, saneamento, nutrição, renda, assistência médica entre outros e que esses aspectos estão correlacionados entre si. A disponibilidade de alimentos, a qualidade da moradia e acesso a serviços essenciais como os de saneamento e de assistência à saúde são colocados como dependentes do poder aquisitivo das famílias e que, da escolaridade dos membros da família, particularmente a materna, depende a utilização da renda e dos serviços públicos(4).

A epidemiologia moderna fundamenta-se no conceito de risco e o enfoque de risco é colocado como abordagem importante para a assistência primária à saúde, particularmente quanto às questões de prioridade dos serviços de saúde e de estimativas de necessidades de assistência promotora e preventiva. A aplicação do enfoque de risco na saúde materno-infantil está vinculada à concepção de que mães e crianças são mais suscetíveis e com maiores probabilidades de serem afetadas por variações em sua saúde(5).

Ao olhar para a atenção à saúde e o papel do Estado, a esse tem sido colocado o desafio da reconstrução de modelos de atenção à saúde que sejam capazes de detectar necessidades de médio e longo prazo, garantindo o desenvolvimento da nação com maior igualdade e justiça(6). As diretrizes e as ações implementadas pelo Estado são as políticas sociais e, entre elas, cabe destacar as políticas de saúde, através de programas e oferta de serviços para atender grupos da população.

As diretrizes políticas, conformadas em programas de saúde, despertam questões importantes sobre necessidades de saúde, vulnerabilidades, cidadania e direitos humanos. Assim, este estudo tem como objetivo apresentar aspectos da abordagem epidemiológica nos programas brasileiros de saúde da criança, com vistas à reflexão das atuais diretrizes na perspectiva da vulnerabilidade programática e dos direitos humanos.

A ABORDAGEM EPIDEMIOLÓGICA NAS DIRETRIZES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO À SAÚDE DA CRIANÇA NO BRASIL

Para examinar as atuais diretrizes das políticas públicas de atenção à saúde da criança no Brasil, este estudo retoma alguns aspectos e princípios do sistema de saúde brasileiro, construídos ao longo dos últimos vinte e cinco anos.

Os programas de saúde materno-infantil das décadas de 70 e 80 tinham caráter vertical, pelo fato de suas metas e normas serem decididas em nível central e por critérios técnicos, em consonância com o modelo tecnocrata de administração brasileira da época(7).

Na década de 80, baseado na análise das condições sanitárias e epidemiológicas da população brasileira, foi elaborado o Programa Assistência Integral à Saúde da Criança (PAISC). O objetivo central era assegurar a assistência integral à saúde da criança, através das ações básicas como resposta do setor saúde aos agravos mais freqüentes e de maior peso na mortalidade de crianças de 0 a 5 anos de idade(8). Com enfoque na assistência integral à saúde da criança, cinco ações básicas foram propostas: promoção do aleitamento materno e orientação alimentar no primeiro ano de vida, controle da diarréia, controle das doenças respiratórias na infância, imunização e acompanhamento do crescimento e desenvolvimento como metodologia para organização da assistência nessa faixa etária.

A abordagem epidemiológica nesse programa estava ligada à explicação do binômio desnutrição-infecção na estrutura de morbimortalidade infantil, como sendo extremamente complexa, assim como a definição de seus múltiplos fatores determinantes. O entendimento era de que havia longa e ramificada cadeia de fatores que podiam preceder as altas prevalências da desnutrição e da infecção, e que todos os percursos poderiam conduzir às adversas condições de vida em que crescia e se desenvolvia considerável parcela da população infantil.

Os programas de saúde dos anos 70 e 80 apresentaram ambigüidade, amplitude e interpretação dos conceitos da atenção primária à saúde e da educação em saúde de forma equivocada(7), gerando dificuldades operacionais e um modelo de atenção à saúde que nem sempre correspondia às condições de vida da população.

Os anos 90 trouxeram para o setor saúde a revalorização do tema família, culminando, em 1994, com a criação do Programa de Saúde da Família (PSF). O Ministério da Saúde, na tentativa de reorganizar a atenção básica em saúde, assumiu o desafio da estratégia de saúde da família, embasada nos princípios da universalidade, eqüidade e integralidade da assistência(9). O PSF vem se apresentando como campo propício à incorporação da estratégia Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância (AIDPI). Essa estratégia, adotada no Brasil, em 1996, de acordo com proposição da Organização Mundial da Saúde e do Fundo das Nações Unidas para a Infância, tem como objetivos: a redução da mortalidade de crianças menores de 5 anos de idade, diminuição da incidência e/ou gravidade dos casos de doenças infecciosas, especialmente pneumonia, diarréia, parasitoses intestinais, meningites, tuberculoses, malária, sarampo e, também distúrbios nutricionais, garantia de adequada qualidade da atenção à saúde dos menores de 5 anos, tanto nos serviços de saúde como no domicílio e na comunidade, o fortalecimento da promoção à saúde e de ações preventivas na infância(10-11).

A abordagem epidemiológica nessa estratégia está relacionada ao perfil de saúde infantil do país, destacando proporção relativa de óbitos por afecções originadas no período neonatal, consideradas de difícil intervenção e, por outro lado, a convivência com morbidade elevada das chamadas doenças do subdesenvolvimento como as pneumonias, diarréias, desnutrição e, particularmente, na Região Norte, a malária.

No âmbito da atenção básica à saúde, o Ministério da Saúde lançou, em 2002, o Caderno de Atenção Básica - Saúde da Criança: acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil. O documento expressa a adoção de medidas para o crescimento e desenvolvimento saudáveis, enfocando a garantia de direito da população e cumprimento de dever do Estado(12). Essas medidas não anulam e sim integram aquelas recomendadas pela estratégia AIDPI. As diretrizes políticas reafirmam que o crescimento e o desenvolvimento infantis são referenciais para todas as atividades de atenção à criança e ao adolescente nos aspectos biológico, afetivo, psíquico e social. As normas de acompanhamento do crescimento e desenvolvimento foram sendo gradativamente incorporadas às atividades do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e do PSF(12).

A abordagem epidemiológica desse documento está relacionada à identificação de um ou mais fatores de risco, tais como: baixo peso ao nascer, baixa escolaridade materna, idades maternas extremas (<19 anos e >35 anos), gemelaridade, intervalo intergestacional curto (inferior a dois anos), criança indesejada, desmame precoce, mortalidade em crianças menores de 5 anos na família, condições inadequadas de moradia, baixa renda e desestruturação familiar. Todos esses fatores são colocados como condições que exigem vigilância à saúde, com acompanhamento sistemático do crescimento da criança, alegando o aumento da probabilidade da existência de doença perinatal e infantil. Ainda, há maior ênfase quanto à avaliação e acompanhamento do desenvolvimento infantil, identificando os fatores de risco tanto do ponto de vista orgânico como nos aspectos relacionais à família.

Em 2004, o Ministério da Saúde lançou a Agenda de Compromissos para a Saúde Integral da Criança e Redução da Mortalidade Infantil(13). Nesse documento, os cuidados com a saúde infantil são colocados entre as ações essenciais do Ministério da Saúde, enfatizando o cuidado integral e multiprofissional que dê responde pela compreensão das necessidades e direitos da criança como indivíduo, ressaltando a responsabilidade de disponibilizar assistência à saúde qualificada e humanizada. A mortalidade infantil é apontada como grande desafio para o país. Como princípios norteadores do cuidado da saúde da criança, o documento destaca o planejamento e desenvolvimento de ações intersetoriais, o acesso universal, acolhimento, responsabilização, assistência integral, assistência resolutiva, eqüidade, atuação em equipe, desenvolvimento de ações coletivas com ênfase nas ações de promoção da saúde; participação da família, controle social na gestão local e a avaliação permanente e sistematizada da assistência prestada.

Ao longo das mudanças dessas diretrizes há reconhecimento de que, apesar dos avanços alcançados, os indicadores de saúde revelam longo caminho a percorrer com vistas ao direito integral à saúde, assumido nas leis brasileiras.

OS PROGRAMAS DE SAÚDE DA CRIANÇA, A VULNERABILIDADE PROGRAMÁTICA E OS DIREITOS HUMANOS

Ao olhar para esses programas de saúde da criança e atentar, especificamente, para a situação atual, procura-se, neste ensaio, apreender aspectos da vulnerabilidade programática e social e apontar questões dos direitos humanos.

A noção de vulnerabilidade é, relativamente, recente, e é tratada como grande contribuição para a renovação das práticas de saúde em geral e, particularmente, aquelas de prevenção e promoção da saúde. É considerada originária da advocacia, pelos Direitos Universais do Homem, voltada para grupos ou indivíduos fragilizados quanto aos seus direitos de cidadania. Na saúde vem sendo estudada, primeiramente, em investigações no campo da epidemia de HIV/AIDS, com discussões e respostas à necessidade de avançar para além da abordagem das estratégias de redução de risco(14).

No tocante à vulnerabilidade programática, cabe ressaltar que ela está ligada aos seguintes aspectos: expressão de compromisso, transformação do compromisso em ação, desenvolvimento de coalizão, planejamento e coordenação, gerenciamento, resposta às necessidades de prevenção e de tratamento, obtenção de recursos financeiros, sustentação do esforço, avaliação do progresso e do impacto(15).

Em relação à expressão de compromisso, observa-se empenho do governo em elaborar e sustentar programas de atenção à saúde da criança, desde os anos 70. Nos anos 90, há o reconhecimento da necessidade de mudança do modelo assistencial e compromisso em reacender a atenção primária à saúde. Também se depreende iniciativas de transformação do compromisso em ação, quando adota medidas que são incorporadas na assistência à criança, adequando a estrutura técnico-administrativa, estabelecendo normas técnicas, definindo instrumentos operacionais e promovendo capacitação de recursos humanos e educação para a saúde.

O desenvolvimento da coalizão pode ser visto quando os documentos expressam, desde os anos 70, interligação com a estratégia global de desenvolvimento do país, com política de expansão e consolidação da rede de serviços básicos, cujas atividades prioritárias caracterizavam-se pela resolução de problemas específicos de saúde, baixo custo e complexidade tecnológica adequada para execução nos vários níveis dos serviços. A integração interinstitucional contribuiu para a implantação das ações integradas de saúde, apoiando, no âmbito estadual, as comissões estaduais e regionais de saúde. Também vem sendo enfatizada a intersetorialidade na saúde e entre os setores sociais.

Em termos de planejamento e coordenação, em todos os programas estudados, há definição de objetivos e estratégias. Quanto ao gerenciamento e obtenção de recursos financeiros apreende-se que as ações são propostas com vistas à adequação da oferta de serviços, concentração e priorização de recursos, dimensionados para a solução dos problemas de saúde mais prementes e de maior prevalência na população de crianças menores de 5 anos de idade.

Em relação às respostas às necessidades de prevenção e de tratamento, o conjunto das ações visa a integralidade na assistência prestada pelos serviços de saúde, deslocando o enfoque de uma assistência baseada em patologias para uma modalidade de atenção que contemple a criança no seu processo de desenvolvimento e crescimento, além de propor a garantia da extensão de cobertura de atenção básica à saúde e, simultaneamente, o aumento da capacidade resolutiva. A abordagem anterior enfatizava o controle individual de doenças e, atualmente, passa para a atenção integrada de tratamento e de prevenção de doenças prevalentes na infância. Há ampliação da noção de desenvolvimento infantil, considerando a qualidade de vida e o bem-estar de crianças e famílias.

Quanto à sustentação do esforço, pode-se dizer que o governo vem tendo empenho em oferecer garantias e estratégias de continuidade do programa PSF e AIDPI, com ênfase no acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil. A adaptação da estratégia AIDPI para atender necessidades das regiões do país, capacitações de trabalhadores de saúde, incentivo à incorporação da AIDPI no ensino de graduação, fortalecimento da participação da comunidade no cuidado à criança, alcance de maior acesso à assistência nas ações básicas de saúde da criança e ampliação do número de equipes de saúde da família têm se constituído em medidas importantes.

No tocante à avaliação do progresso e avaliação do impacto, tais especificações não são muito detalhadas, o que tem surgido, em relação à avaliação, são estudos produzidos externamente ao programa. Ao se considerar a noção de avaliação, essa deve começar quando se estabelece o que fazer, um horizonte norteador, que se desdobra em critérios e métodos pormenorizados, com flexibilidade suficiente para absorver a dinâmica de desenvolvimento do projeto e transformar-se quando necessário(16). A racionalidade de um projeto de intervenção deve ser expressa em meios e fins claramente definidos e objetivamente verificáveis, portanto, um protocolo de avaliação deve ser capaz de expressar e retroalimentar constantemente essa racionalidade. Objetivos, metas, estratégias e alguns critérios de avaliação como a racionalidade econômica, principalmente, a eficácia, em geral, e outros resultados fechados foram verificados na elaboração dos programas aqui analisados. Porém, a avaliação de resultados das ações programáticas, não fora viabilizado desde o início, impossibilitando a retroalimentação das racionalidades programáticas, as chances de oferecer um trabalho de intervenção de melhor qualidade e a garantia de processo de avaliação sólida, ou seja, realista, fecunda e operacional(16).

Em termos de direitos humanos, os direitos sociais estão presentes nas diretrizes políticas de atenção à saúde da criança. Os direitos sociais são direitos fundamentais do cidadão, chamados positivos, ou de segunda geração, entre eles estão os direitos à educação, ao trabalho e à saúde, pressupondo iniciativas concretas do Estado para sua garantia(17).

No Brasil, o direito à saúde ganhou força nas últimas décadas do século XX. Inicialmente, em meados dos anos 60, a 3ª Conferência Nacional de Saúde definiu o direito de todos à saúde e as discussões propunham a municipalização como caminho para implantá-lo(18). Nos anos 80, com as propostas da Reforma Sanitária e do Sistema Único de Saúde (SUS), a saúde foi destacada como direito, com ênfase nos princípios de universalidade, equidade, integralidade de ações e promoção da saúde. A Constituição de 1988 e a criação do SUS fizeram ressurgir as discussões de que a saúde é um direito humano fundamental. Nesse processo, também foram destacados os princípios da Atenção Primária à Saúde (APS), que foi retomada e ampliada na década de 90. As idéias da APS vêm ressaltar que os cuidados primários à saúde são os primeiros passos para concretização do direito à saúde e estão ligadas diretamente aos direitos humanos, implicando na equidade, solidariedade, intersetorialidade, participação comunitária, controle social, universalidade de acesso aos serviços de saúde e reorientação do modelo assistencial. A saúde é reafirmada como direito humano que é inviolável, inalienável, irrenunciável, indivisível e universal(18).

Assim, os programas de saúde da criança estão amparados em diretrizes políticas que, em certa medida, contemplam o direito à saúde. Políticas e programas de saúde pública podem promover, ou violar, direitos humanos, trazendo a pesquisadores e profissionais de saúde questões difíceis para reflexão(17).

A garantia de acesso, de boa qualidade de atenção, de atenção integral à saúde, de cuidados preventivos e esquemas de tratamento, postulada nos programas de saúde, tem efeito positivo de ação de saúde pública sobre direitos humanos. A criança tem direitos que se referem, principalmente, à autonomia pública, ou seja, aos direitos sociais, tais como direito ao adequado crescimento e desenvolvimento, aleitamento materno, nutrição, vacinação, higiene, saneamento ambiental, medidas de proteção, prevenção de acidentes, acesso à educação, cuidados à saúde, enfim direito à vida. Aliado a esses aspectos, também é considerado importante a garantia de que os pais conheçam os princípios básicos de saúde, recebendo apoio para aplicação dos conhecimentos no cuidado à criança, de acordo com a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989(19).

No entanto, considerar somente os direitos exclusivos das crianças pode criar situações delicadas e potencialmente danosas se olharmos para os pais e famílias somente como cumpridores de deveres. Assim sendo, haveria a perspectivas de desenvolvimento de políticas públicas autoritárias na saúde(17). Por outro lado, os documentos aqui estudados expressam compromisso não só com a sobrevivência, mas também com a qualidade de vida das crianças, vendo-as como um todo e em relação com seu ambiente, pais e família.

De acordo com a Convenção dos Direitos da Criança, os direitos à vida, à sobrevivência, ao máximo desenvolvimento, ao acesso à saúde e aos serviços de saúde não devem ser tomados apenas como necessidades das crianças e adolescentes, mas também são direitos humanos fundamentais. Ainda, que a proteção e o cumprimento desses direitos fundamentais dependem da realização dos seguintes direitos: à não discriminação educação e acesso à apropriada informação, privacidade, proteção de todas as formas de violência, descanso, lazer e recreação, adequado padrão de vida, não exploração e participação, com direito a ser ouvida(19). O Estado, em concordância com as convenções, declarações e pactos internacionais, deve respeitar, proteger e efetivar os direitos humanos de seus cidadãos. Para tanto, tem o dever de elaborar planos de responsabilização, na tentativa de evitar desrespeitar, desproteger e não efetivar um direito.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é uma das maiores conquistas da sociedade civil organizada na década de 90. O ECA foi capaz de introduzir mudanças significativas em relação à legislação anterior, o chamado Código de Menores, instituído em 1979. Com o ECA, crianças e adolescentes passam a ser considerados cidadãos, com direitos pessoais e sociais garantidos, fazendo com que o poder público implemente políticas públicas especialmente dirigidas a esse segmento. Por outro lado, esse documento estabelece também a responsabilidade da sociedade e dos pais na atenção à criança e ao adolescente. O que rege o ECA é a doutrina da proteção integral da criança e do adolescente, criada pela Organização das Nações Unidas, e não se dirige apenas aos abandonados e infratores. Colocar isso em prática é o grande desafio da sociedade brasileira. A avaliação dos dez anos do ECA(20), em 2000, mostra que é possível aperfeiçoar o tratamento de crianças e adolescentes, com maior envolvimento e responsabilidade de todos os segmentos, garantindo que se tornem cidadãos capazes de construir um país justo e democrático.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É de extrema importância que os profissionais de saúde busquem articular as diretrizes políticas e as práticas de saúde, procurando ampliá-las através de pesquisas e criação de tecnologias que possibilitem a reorganização das práticas de saúde da família e da atenção integrada às doenças prevalentes na infância (AIDPI), promovendo a saúde e qualidade de vida de crianças e famílias. Os profissionais devem ser agentes públicos imbuídos de observação e intervenção para respeitar, proteger e efetivar direitos humanos.

Nesse sentido, é preciso repensar a ação profissional, levando em conta a importância do seu papel transformador, pois o que se espera é que as transformações de si e da realidade, após o encontro com as pessoas, encontrem espaços de cuidado em saúde. Contudo, as dificuldades do cotidiano são inúmeras, visto que muitas lacunas persistem, dificultando a realização de transformações, a execução de um trabalho com qualidade, conhecer e atuar sobre os direitos da criança, especificamente. É nesse contexto que a população apreende a utilização dos serviços de saúde.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • Child health care in Brazil: aspects of program vulnerability and human rights

    Glória Lúcia Alves FigueiredoI; Débora Falleiros de MelloII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Aceito
      11 Jul 2007
    • Recebido
      21 Mar 2006
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