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O processo de trabalho da enfermeira no cuidado à criança sadia em uma instituição da seguridade social do México

Resumos

O objetivo foi analisar o processo de trabalho da enfermeira orientado ao cuidado no Programa da Vigilância e Controle da Nutrição, Crescimento e Desenvolvimento (VNCD) do menor de cinco anos na Seguridade Social do México. O estudo, de abordagem qualitativa, se fundamentou na categoria trabalho, nas concepções do processo de trabalho em saúde e em enfermagem, na micropolítica do trabalho vivo em saúde assim como na análise institucional. Realizaram-se observações sistemáticas diretas e entrevistas com um grupo de enfermeiras, suas assistentes e as mães que compareceram com seus filhos à consulta de enfermagem. O processo de cuidado identificado foi o procedimento-centrado baseado em protocolos de atenção, com consultas rápidas e pouco espaço de interação entre enfermeira e mãe. No entanto, a enfermeira foi capaz de produzir, em ocasiões, trabalho vivo a partir do seu auto-governo, o que lhe permitiu estabelecer um núcleo de cuidado mãe/filho-centrado.

cuidado da criança; enfermagem materno-infantil; tecnologia biomédica


We aimed to analyze the nursing work process directed at care in the Nutrition, Growth and Development Surveillance and Control Program (VNCD) for children under five years at a social security institution in Mexico. The study adopted a qualitative approach and was based on the work category, on conceptions of the work process in health and on institutional analysis. We carried out direct systematic observations and interviews with a group of nurses and their assistants and with mothers who attended nursing appointments with their children. The care process was identified as procedure-centered and based on care protocols, with rapid appointments and little room for interaction between nurses and mothers. However, on some occasions, nurses were capable of producing live work as a result of their self-government, which allowed them to establish a mother/child-centered care nucleus.

child care; maternal-child nursing; biomedical technology


El objetivo fue analizar el proceso de trabajo de la enfermera en el Programa de Vigilancia y Control de la Nutrición, Crecimiento y Desarrollo (VNCD) del menor de cinco años, en la Seguridad Social de México. El estudio, de aproximación cualitativa, se fundamentó en la categoría trabajo, en los conceptos de proceso de trabajo en salud y en enfermería, en la micropolítica del trabajo vivo en salud, así como en el análisis institucional. Se realizaron observaciones sistemáticas directas y entrevistas a un grupo de enfermeras, sus asistentes y a las madres que acudieron con sus hijos a la consulta de enfermería. El proceso de cuidado identificado fue procedimiento-centrado, basado en protocolos de atención con consultas rápidas y con poco espacio de interacción entre la enfermera y la madre. Sin embargo, la enfermera fue capaz de producir, en ocasiones, trabajo vivo a partir de su autogobierno, permitiéndole establecer un núcleo de cuidado madre/hijo-centrado.

cuidado del niño; enfermería materno-infantil; tecnología biomédica


ARTIGO ORIGINAL

O processo de trabalho da enfermeira no cuidado à criança sadia em uma instituição da seguridade social do México1 1 Trabalho extraído da Tese de Doutorado

Yolanda Flores PeñaI; Maria Cecília Puntel de AlmeidaII; Rafael Luis Castillo DuranzaIII

IDoutor em Enfermagem, Docente da Faculdade de Enfermagem da Universidade Autônoma de Nuevo León, e-mail: yolaflo@hotmail.com

IIDoutor em Saúde Pública, Professor Titular, e-mail: cecilia@eerp.usp.br

IIIDoutorando, e-mail: rcastilloduranza@yahoo.com.br. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem

RESUMO

O objetivo foi analisar o processo de trabalho da enfermeira orientado ao cuidado no Programa da Vigilância e Controle da Nutrição, Crescimento e Desenvolvimento (VNCD) do menor de cinco anos na Seguridade Social do México. O estudo, de abordagem qualitativa, se fundamentou na categoria trabalho, nas concepções do processo de trabalho em saúde e em enfermagem, na micropolítica do trabalho vivo em saúde assim como na análise institucional. Realizaram-se observações sistemáticas diretas e entrevistas com um grupo de enfermeiras, suas assistentes e as mães que compareceram com seus filhos à consulta de enfermagem. O processo de cuidado identificado foi o procedimento-centrado baseado em protocolos de atenção, com consultas rápidas e pouco espaço de interação entre enfermeira e mãe. No entanto, a enfermeira foi capaz de produzir, em ocasiões, trabalho vivo a partir do seu auto-governo, o que lhe permitiu estabelecer um núcleo de cuidado mãe/filho-centrado.

Descritores: cuidado da criança; enfermagem materno-infantil; tecnologia biomédica

INTRODUÇÃO

A população infantil constitui um grupo prioritário nos esforços mundiais de assistência à saúde. Na Cúpula Mundial pela Infância, realizada em 1990, foram adotados uma Declaração e um Plano de Ação que inclui 27 metas para sobrevivência, desenvolvimento e proteção da infância e da adolescência. Entre elas se destacam a assistência ao recém-nascido, a promoção do aleitamento materno, o seguimento do crescimento e desenvolvimento do menor, as imunizações, e também a prevenção e o controle das doenças diarréicas e respiratórias agudas.

O seguimento do crescimento e desenvolvimento do menor, identificado também pelos profissionais da saúde e usuários, como Cuidados à Criança Saudável, é um componente central dos serviços de saúde comunitários. Esses cuidados abrangem três elementos principais: imunização, avaliação do crescimento e desenvolvimento e educação para a saúde. Tal cuidado pode ser realizado por médicos ou por enfermeiras(1). No México, essas ações estão contempladas na Norma Oficial Mexicana para o Controle da Nutrição, Crescimento e Desenvolvimento da Criança e do Adolescente de 1994. O cuidado ao menor implica na implementação de atividades de promoção, diagnóstico, tratamento e manutenção da saúde, que no caso do Seguro Social Mexicano, fazem parte do Programa de Vigilância da Nutrição, Crescimento e Desenvolvimento da criança menor de 5 anos (VNCD). O VCND é uma estratégia para proporcionar assistência integral com o objetivo de incrementar o nível de saúde da população menor de 5 anos, diminuir as taxas de desnutrição na população infantil e pré-escolar e diminuir a morbimortalidade neste grupo(2).

O Seguro Social é o principal componente do Sistema de Saúde Mexicano, atendendo a quase 50% da população. O programa VNCD é desenvolvido nas Unidades de Medicina Familiar (UMF) por uma equipe integrada por um médico familiar, assistente social, psicólogo, dentista, nutricionista, assistente médica da enfermeira materno-infantil (AEMI) e enfermeira materno-infantil (EMI)(2). O recém-nascido é avaliado pelo médico familiar durante os primeiros três meses de vida, e posteriormente encaminhado à EMI para continuar a assistência de VNCD até a idade de 5 anos. As atividades principais da EMI incluem: realizar a assistência de VNCD ao menor de 5 anos, detectar fatores de risco, cumprir as indicações do médico familiar e educar a mãe ou familiar responsável para alcançar hábitos e condutas favoráveis(2).

Foram realizados estudos para avaliar a qualidade da assistência que a EMI proporciona ao menor neste programa, utilizando indicadores quantitativos, tais como número de consultas durante o primeiro ano de vida e imunizações. Porém, esses estudos não efetuaram nenhuma análise qualitativa de como é feita essa assistência, qual é seu objetivo e como as mães acompanhantes a percebem(3).

O objetivo desta pesquisa é analisar o processo de trabalho da enfermeira materno-infantil (EMI) no Programa de Vigilância da Nutrição, Crescimento e Desenvolvimento do menor de 5 anos em uma instituição do Seguro Social no México, enfocando o processo de produção do cuidado de enfermagem.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O desenvolvimento deste estudo foi baseado nas considerações teóricas sobre o trabalho dentro da concepção marxista(4), agregando aquelas que estudam suas especificidades na saúde(5) e na enfermagem(6). Também fundamentou-se nas concepções da micropolítica do trabalho vivo em ato na saúde(7) e nos processos instituintes e instituídos(8).

O trabalho constitui uma categoria essencial para o estudo das práticas sociais, incluindo as de saúde e enfermagem. Os componentes do processo de trabalho são "a atividade adequada para um fim, ou seja, o próprio trabalho; a matéria à qual o trabalho é aplicado, o objeto de trabalho; os meios de trabalho, os instrumentos de trabalho"(4).

Na saúde, para apreender o objeto de trabalho, ou seja, o homem com suas necessidades, é preciso que os agentes utilizem instrumentos de trabalho, tanto na dimensão intelectual (por exemplo os saberes) quanto na material (ferramentas, máquinas, materiais)(5) e também que estabeleçam relações de interação com os usuários, produzindo subjetividades(9).

A concepção teórica que sustenta o conceito de processo instituinte é aquela trazida do Movimento Institucionalista ou Instituinte, que agrega diferentes correntes desenvolvidas por autores franceses e latino-americanos. A literatura latino-americana contem três grandes vertentes: a sócio-psicoanálise de Gérard Mendel, a análise institucional de Georges Lapassade e René Lourau e a esquizoanálise de Félix Guatari e Gilles Deleuze. Este estudo toma alguns conceitos compartilhados por estas correntes, tais como processos instituintes e instituídos e molar e molecular.(8)

Todo processo de produção sempre tem um produto, gera um resultado. Isso se denomina o instituído. "O instituído é o efeito de uma atividade instituinte ( ) o instituinte aparece como um processo, enquanto o instituído aparece como um resultado. O instituinte transmite uma característica dinâmica e o instituído transmite uma característica estática, congelada"(8). O instituído é importante, mas tem que acompanhar a dinâmica de transformação da vida social. Nesse sentido, nem sempre o instituinte é bom e o instituído mau. "O instituinte aparece como atividade revolucionária, criativa, transformadora por excelência. Na verdade, não é exatamente assim, porque o instituinte careceria totalmente de sentido se não se concretizasse, se não se materializasse no instituído. Por outro lado, o instituído não seria útil, não seria funcional, se não estivesse permanentemente aberto às potências instituintes".(8)

Os conceitos de molar e molecular referem-se aos campos de macro e micro que são imanentes. Assim, a vida social é uma rede em que essas dimensões estão presentes. As pequenas conexões locais (moleculares) são o lugar do instituinte(8). Assim, é na micropolítica do trabalho que os processos de produção de subjetividades ocorrem.

A terminologia usada no texto, produção de saúde, produção de cuidado em saúde, ato produtivo, fundamenta-se no institucionalismo, que define produção como "aquilo que processa tudo que existe, natural, técnica, subjetiva e socialmente"(8). Na produção de saúde, significa produzir bens/produtos, subjetividades e relações para atender às necessidades de saúde individuais e coletivas.

A enfermagem, como prática social (como trabalho), permite estudar o seu próprio desempenho, identificando seus momentos, sujeito/objeto de atenção, agentes de trabalho, instrumentos e finalidade, para o qual foi considerado o conceito de organização tecnológica do trabalho(6). Aqui, tecnologia não só tem o significado comum de conjunto de instrumentos materiais, mas também se considera como um conjunto de saberes e meios que se expressam nos processos de produção de serviços, a rede de relações sociais na qual seus agentes articulam sua prática em uma totalidade social(5). Além desta concepção, há a "tipologia das tecnologias" leves (produção de vínculo, autonomização, acolhida), leves-duras (saberes bem-estruturados das áreas e profissões da saúde) e duras (equipamentos tecnológicos do tipo máquina, normas e estruturas organizacionais)(7). É através das tecnologias leves que ocorre o encontro entre profissional de saúde e usuário. Essa classificação das tecnologias em saúde permite compreender a micropolítica do trabalho em saúde, trazendo a discussão do auto-governo do trabalhador e do trabalho vivo em ato(7).

No processo de trabalho em saúde estão presentes tanto o trabalho vivo como o trabalho morto, podendo prevalecer um sobre o outro. Trabalho morto refere-se a todos aqueles produtos-meios que estão nele presentes (ou como ferramenta ou como matéria-prima) e que resultam de um trabalho humano anterior. Trabalho vivo significa trabalho em ação que se produz "dando-se" no ato de sua realização, permitindo processos instituintes. O trabalhador pode ter certo auto-governo, que estará marcado pela ação do seu trabalho vivo sobre o que lhe é oferecido como trabalho morto e o objetivo que persegue. O consumo pelo usuário ocorre imediatamente na produção da ação. Deste modo, no caso da produção/consumo em saúde, temos a construção de um espaço de interação e intervenção entre o usuário e o trabalhador, produtor da ação, no qual o trabalhador estabelece necessidades e modos de captá-las, de atuar, e o usuário também(7). Nos atos de cuidar em saúde, espera-se que prevaleça a dimensão do trabalho vivo, já que este opera com tecnologias de relações, de encontros entre subjetividades, espaços de acolhida e escuta, além dos saberes tecnológicos estruturados e dos equipamentos. Sem dúvida, o trabalho morto inscrito nos materiais, normas, rotinas, protocolos de atenção é importante para a produção de atos de saúde. Porém, esses instrumentos não são suficientes para a produção de cuidado centrado nas necessidades dos usuários.

Consideramos o cuidado como a alma dos serviços de saúde, como a essência da enfermagem, sua característica central, dominante e unificadora. Trata-se de uma intervenção terapêutica que deve estar centrada nas necessidades do usuário. No caso da consulta com a EMI, ela é responsável pela produção de um núcleo cuidador, isto é, um espaço de interação trabalhador-usuário que permita a escuta, e também o estabelecimento de vínculo e confiança, para que a mãe possa expressar suas dúvidas relacionadas ao cuidado da sua própria saúde e do seu filho(7).

METODOLOGIA

A metodologia qualitativa foi considerada apropriada para o desenvolvimento deste estudo, porque permitiu a realização de uma análise crítica e reflexiva do processo de trabalho da EMI. Os participantes do estudo, identificados como pessoal de saúde, foram: 4 enfermeiras (EMI) que realizam consultas da VNCD e 2 assistentes médicas de EMI (AEMI), que são responsáveis pela recepção do usuário, neste caso mãe/filho. Também foram incluídas 25 mães que buscaram as consultas junto com seu filho e se identificaram como tais, pois são considerados como sujeito/objeto do cuidado de enfermagem.

Os dados foram coletados mediante as seguintes técnicas: observação sistemática direta de 87 consultas de EMI e observação da área de recepção atendida pela AEMI, além de seis entrevistas semi-estruturadas com esse pessoal da saúde e entrevistas com as mães (25 entrevistas). As técnicas foram aplicadas até alcançar a saturação dos dados e compreensão do significado do processo de trabalho da EMI. Antes da realização da observação e das entrevistas, os objetivos da pesquisa foram expostos aos participantes, que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Informado.

Foram registrados aspectos relativos à forma como ocorre a produção de cuidados durante a consulta, tais como a duração, as interações, os diálogos estabelecidos entre o pessoal de saúde e o usuário mãe/filho, procedimentos realizados e como foram realizados, instrumentos utilizados, além de aspectos gerais para caracterizar o menor que atende a consulta (idade, sexo, primeira consulta ou subseqüente). Esses dados foram registrados em um instrumento especialmente desenvolvido para este fim.

As entrevistas foram gravadas em fitas de áudio. No caso do pessoal de saúde, a entrevista direcionava-se aos aspectos de produção da assistência, permitindo que os sujeitos expressassem livremente suas opiniões.

As mães foram contatadas ao saírem da consulta de EMI. Foram realizadas 20 entrevistas na sala de espera, distanciadas da área de trabalho da EMI, além de 5 entrevistas nos domicílios, totalizando 25 entrevistas. A técnica contemplava os aspectos da produção do cuidado, permitindo que a mãe expressasse livremente sua percepção sobre a assistência, se teve a oportunidade de manifestar suas preocupações e necessidades durante a consulta, como foi o tratamento e a interação da AEMI e da EMI com ela e seu filho. Os dados foram coletados entre fevereiro e julho de 2004.

Para a análise dos dados, utilizamos a técnica de análise temática. A noção de tema associa-se com uma afirmação relacionada a um determinado assunto, tentando descobrir os núcleos de sentido que fazem parte de uma comunicação, cuja presença ou freqüência significam alguma coisa para o objetivo proposto(10). Em termos qualitativos, a presença de determinados temas indica os valores de referência e os modelos de comportamento presentes.

Dos três temas identificados (configuração institucional, produção do cuidado de EMI e controle da criança saudável), decidimos discutir e analisar a produção do cuidado de enfermagem, já que o próprio processo de trabalho de enfermagem no controle da criança sadia corresponde ao objeto central deste trabalho. Em termos de produção de cuidado de enfermagem, foram analisados os aspectos relacionados à dinâmica do processo de trabalho, o objeto/sujeito do trabalho, os agentes responsáveis, os processos que acontecem no interior do espaço de interação trabalhador/usuário, trabalho vivo/trabalho morto, tecnologias e auto-governo do pessoal de saúde, produção de um núcleo cuidador centrado no procedimento ou centrado no usuário (centrado na mãe/filho).

Na última etapa, foram consideradas as unidades temáticas empíricas identificadas, correlacionando-as com as concepções teóricas. Isso nos permitiu reconstruir os momentos do processo de trabalho de EMI para estabelecer conclusões.

Esta pesquisa foi realizada de acordo com as diretrizes éticas propostas no Regulamento da Lei Geral de Saúde em Assuntos de Pesquisa para a Saúde dos Estados Unidos Mexicanos e foi autorizada pela Coordenação de Pesquisa em Saúde do Estado.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Nos casos sob estudo, é a mãe que assume o papel de cuidadora dos menores. Por isso, é considerada como sujeito/objeto do cuidado da EMI pelo pessoal de saúde: As crianças são totalmente dependentes da mãe (Ent. EMI 3). Esta situação leva o pessoal de saúde a pensar, de modo geral, que quem comparece com o menor para solicitar a consulta é sempre a mãe, motivo pelo qual não faz parte da rotina verificar o parentesco do acompanhante. Durante a consulta, também não são verificados dados como idade do acompanhante, número de filhos, nível de escolaridade, entre outros.

A idade média das mães neste estudo foi de 29 anos; escolaridade de segundo grau (11 anos); do lar (76%) e casadas (76%). A média de idade dos menores foi de 12 meses. O tempo de espera médio para ser atendido foi de 19 minutos, alcançando até 90 minutos em dois casos. Oitenta e quatro por cento das consultas foram subseqüentes.

Tanto o pessoal de saúde quanto as mães mencionaram a situação econômica desfavorável como um aspecto para buscar o serviço. Esta situação está de acordo com a literatura, apontando a condição sócio-econômica como um fator determinante na seleção dos serviços de saúde(11). As mães associaram a questão econômica com a doação de leite, um aspecto que apareceu como orientador/desorientador da assistência: "A maioria das pessoas está interessada no leite devido à situação econômica, quanto custa uma caixa de leite, 60 a 80 pesos e somente dura 3 dias." (Ent. AEMI); "Já não tenho mais leite, estava comprando, mas custa 55 pesos, e às vezes a gente não tem." (Ent. mãe 8)

O pessoal de saúde reconhece o aumento da escolaridade materna, e também da existência de grupos com necessidades especiais de assistência, tais como as mães adolescentes e as mães trabalhadoras. Porém, isso não modifica a forma como é realizada a assistência. Uma das mães entrevistadas indicou que a questão de poder prevalece sobre o nível acadêmico, constituindo um forte impedimento ao diálogo: "Seu nível acadêmico te dá segurança, mas aí, todos acham que têm poder, te diminuem, acham que todo mundo que vai aí é analfabeto." (Ent. mãe 25)

As mães se referiram às tecnologias de relacionamento como um elemento essencial na prestação do serviço, solicitando o reconhecimento do usuário como ser humano com necessidades: "Que nos vejam como seres humanos, se alguém vai aí é porque precisa e que ninguém saia daí e precise ver um psiquiatra, pelo que fazem com você." (Ent. mãe 25)

Outro aspecto relevante detectado foi que as mães identificaram as EMI indistintamente como doutoras ou enfermeiras, indicando que as EMI não gostam de ser identificadas como doutoras. Algumas consideraram adequado o fato de serem enfermeiras, destacando a necessidade de conhecimentos atualizados. Apesar das mães mencionarem que as EMI não gostam de ser identificadas como doutoras, a EMI não percebe que está reproduzindo o modelo médico centrado em parâmetros anátomo-fisiológicos, situação esta já documentada em outros estudos realizados tanto em áreas de assistência ambulatória como hospitalar(12).

Um grande número de oportunidades para identificar e responder às preocupações e perguntas dos acompanhantes do menor é desperdiçado pelas EMI. Pode-se afirmar que a assistência dada no programa de VNCD sob estudo se configura como uma prática de saúde centrada em procedimentos. O modo de produzir cuidado não alcança a integralidade, entendida como o reconhecimento do conjunto completo de necessidades relacionadas à saúde do usuário, o que dificulta o estabelecimento de relações de longo prazo produtoras de vínculo EMI-mãe, o que é um dos princípios da atenção primária(13).

O pessoal de EMI realiza 12 consultas de controle da criança saudável por dia, programadas para 10 minutos. Através da observação de 87 destas consultas, foi identificada uma duração média de 11 minutos, com mínimo de 4 minutos e máximo de 32 minutos. As mães qualificaram as consultas como rápidas, comentando que, às vezes, não compensa o fato de esperar muito tempo para ser atendido de forma rápida e rotineira. Além disso, a questão do tempo programado de consulta foi identificada pelo pessoal de EMI como fator limitante para o estabelecimento do espaço de interação trabalhador/usuário. O tempo de 10 minutos programado para uma consulta e o tempo médio real observado de 11,34 minutos de duração são insuficientes para permitir o estabelecimento de um núcleo cuidador centrado na mãe/filho. Esses dados vão ao encontro dos 11,85 minutos de duração de consultas realizadas por médicas do Programa de Saúde da Família no Brasil, em comparação com os 9 minutos dedicados pelos médicos no mesmo programa. Deve-se indicar que um maior tempo de consulta é associado com uma assistência de qualidade mais alta: melhor entrevista, melhor explicação do problema e verificação do médico sobre a compreensão do paciente(14).

Para identificar se a produção de cuidado era do tipo centrado em procedimentos ou centrado no usuário, foi necessário analisar o espaço de interação trabalhador/usuário. Identificou-se que as consultas de enfermagem seguiam a mesma sistematização dos protocolos, diferenciando-se somente pela idade do menor, como menores de 1 ano e entre 1 e 4 anos. As consultas de EMI a menores de 1 ano caracterizaram-se por verificar o peso; medir a altura; medir o perímetro cefálico, torácico e abdominal; comparar as medidas de peso e altura com as recomendações nas tabelas da instituição; revisar a carteira de vacinação; entregar receita para doação de leite; registrar dados no prontuário; encaminhar o menor para odontologia preventiva; encaminhar o menor à medicina preventiva para vacinação e solicitar à mãe que marcasse o próximo horário com a AEMI. Nos menores de 1 a 4 anos, praticamente são realizados os mesmos procedimentos, exceto a medição de perímetros, e adicionando a verificação de pé chato. Portanto, o trabalho vivo da EMI é capturado pelo trabalho morto, devido à configuração institucional expressa nos protocolos e rotinas do serviço. Os protocolos produzidos na assistência à saúde para garantir os aspectos mínimos necessários do cuidado, para grupos ou patologias específicas, podem provocar um trabalho alienado, quando são utilizados de forma mecânica, e podem dificultar a escuta ou identificação de outras necessidades dos usuários, além daquelas presentes nos protocolos(15).

O padrão de comunicação monossilábico e o modo rápido de realizar a consulta produzem confusão nas mães com relação às indicações que lhes são dadas. Há grande preocupação em obter informações da mãe sobre a alimentação do menor e dados relativos ao crescimento e desenvolvimento, para registrá-los no prontuário, sem o objetivo de permitir através desta entrevista um espaço para que as mães expressem suas dúvidas, seus sentimentos, suas dificuldades e necessidades para proporcionar cuidado a seus filhos. Portanto, o diálogo estabelecido é mais um monólogo da EMI em direção à mãe. Este resultado coincide com outros estudos que indicam que 65% dos pacientes são interrompidos pelos médicos após 15 segundos na explicação do seu problema e que 91,4% das consultas não exploram os medos e ansiedades dos pacientes(13-14).

As informações dadas pela EMI e a AEMI são limitadas e incompletas, motivo pelo qual não podemos considerá-las como educação para a saúde, considerando esta como uma educação para a transformação, buscando romper com os métodos educativos centrados no exercício do poder e promovendo a participação dos indivíduos e do grupo na identificação e análise crítica de seus problemas.

As mães expressaram a necessidade da EMI reafirmar que elas têm autonomia no cuidado da saúde dos filhos. Nenhuma delas considerou o pessoal de saúde (EMI e AEMI) como conselheiras ou educadoras. Isso difere das observações de outros estudos realizados nos Estados Unidos, concluindo que, de modo geral, as enfermeiras são mais ativas em assuntos como aconselhamento e educação em saúde quando comparadas com os médicos(1). Porém, também foi possível identificar que, às vezes, a EMI consegue produzir trabalho vivo, trabalho criativo, principalmente com base no seu auto-governo, o que a permitiu sair da configuração institucional e conseguir o atendimento às necessidades dos usuários, facilitado pela produção do vínculo estabelecido quando a mãe é atendida pela EMI durante a gestação e a subseqüente assistência ao menor no programa de VNCD.

O trabalho da AEMI está reduzido ao controle dos usuários que se consultam com a EMI, orientando seu trabalho para a marcação dos primeiros horários e assim por diante. A atividade é rotineira e a informação está limitada a indicar a localização de alguns serviços aos usuários. Contudo, também foi verificado que, em diferentes momentos e situações, o acesso aos serviços é interceptado por esse pessoal.

As EMI que hoje trabalham no serviço pertencem à categoria de enfermeiras especialistas. Não existe uma oferta de educação que atenda a suas necessidades de capacitação, motivo pelo qual muitos conhecimentos são adquiridos através da experiência cotidiana. Para ocupar o posto de AEMI, não se exige preparação acadêmica relacionada à área da saúde. Esse pessoal é capacitado nas próprias unidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A EMI foi considerada pelas mães como possuidora de conhecimentos. Foi identificado que o trabalho da EMI está centrado em tecnologias duras, quer dizer, pelos protocolos de assistência e a configuração institucional. O tempo destinado à VNCD constitui outro fator que favorece a produção de consultas centrada em procedimentos, deixando pouco espaço para os processos instituintes. Porém, são as tecnologias leves, as de interação, que permitem o estabelecimento de um núcleo cuidador centrado na mãe-filho, já que as mães percebem que a confiança se estabelece e se desenvolve, através da interação com a EMI, abrangendo a atenção a sua gravidez e a subseqüente assistência ao menor.

Dentro da equipe de saúde que realiza a VNCD, a EMI poderia contribuir para uma maior aproximação entre o pessoal de saúde e os usuários, através da escuta e da produção de vínculo, e também para alcançar a integralidade da assistência à saúde do menor. Isso pode ser possível mediante o trabalho vivo de EMI, com base no seu auto-governo, que lhe permite atuar além da configuração institucional. Recomendamos a flexibilização das normas e rotinas e a reflexão educacional com o pessoal de saúde, com vistas a restaurar a relação dos trabalhadores com o objetivo do seu trabalho, que é a integralidade da assistência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 18.3.2005

Aprovado em: 17.7.2006

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  • 1
    Trabalho extraído da Tese de Doutorado
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      Out 2006

    Histórico

    • Aceito
      17 Jul 2006
    • Recebido
      18 Mar 2005
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