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Violência doméstica: as possibilidades e os limites de enfrentamento

Resumos

O objetivo do presente estudo foi compreender como as mulheres em situação de violência doméstica, atendidas no instituto médico legal, convivem com essa adversidade e identificar as estratégias de proteção no enfrentamento, considerando o apoio/suporte requerido e o obtido no meio relacional e institucional. Trata-se de estudo com abordagem qualitativa. Foram entrevistadas dez mulheres e os dados analisados pela técnica de análise de conteúdo, modalidade temática. A busca por ajuda ocorre no próprio meio social, junto à família e amigos. Posteriormente, recorre-se aos serviços de saúde e judicial. Nessa busca, os vínculos estabelecidos podem se tornar obstáculo ao enfrentamento e, portanto, vulneráveis à violência, ou podem proteger as mulheres e fortalecê-las no enfrentamento. No reconhecimento de suas necessidades sociais e de saúde, os agravantes da violência são apenas tangenciados pelos profissionais, na apreensão das necessidades dessas mulheres. Para o atendimento integral e humanizado devem ser pensadas novas estratégias de ações profissionais.

Violência Doméstica; Saúde da Mulher; Apoio Social


This qualitative study assesses how women, in situations of domestic violence and examined at the Institute of Forensic Medicine, deal with this adversity and identifies protection strategies to cope with it, considering the support required and obtained from their relational and institutional environments. Ten women were interviewed and the data were analyzed using thematic content analysis. Search for help primarily occurs in the women’s social milieu, with family and friends and health and legal services being sought. In such a quest, established bonds may either become an obstacle to coping and make these women vulnerable to violence or protect and strengthen them during coping. In the identification of these women’s social and health needs, the aggravating circumstances of violence are only superficially addressed by professionals. New strategies to implement professional actions should be devised in order to provide integral and humanized care.

Domestic Violence; Women’s Health; Social Support


El objetivo del presente estudio fue comprender como las mujeres en situación de violencia doméstica, atendidas en el Instituto Médico Legal, conviven con esta adversidad e identificar las estrategias de protección en el enfrentamiento, considerando el apoyo/soporte requerido y el obtenido en el medio relacional e institucional. Es un estudio de abordaje cualitativo. Se entrevistaron diez mujeres y los datos fueron analizados por la técnica de análisis de contenido, en la modalidad temática. La búsqueda por ayuda ocurre en el propio medio social, junto a la familia y amigos. Posteriormente, se recurre a los servicios de salud y judicial. En esa búsqueda los vínculos establecidos se pueden tornar un obstáculo al enfrentamiento y, por lo tanto, vulnerables a la violencia, o pueden proteger a las mujeres y fortalecerlas en el enfrentamiento. En el reconocimiento de sus necesidades sociales y de salud, los agravantes de la violencia son tocados apenas tangencialmente por los profesionales en la aprehensión de las necesidades de estas mujeres. Para la atención integral y humanizada deben ser elaboradas nuevas estrategias de acciones profesionales.

Violencia Doméstica; Salud de la Mujer; Apoyo Social


ARTIGO ORIGINAL

Violência doméstica: as possibilidades e os limites de enfrentamento1

Angelina LettiereI ; Ana Márcia Spanó NakanoII

IEnfermeira, Mestranda em Enfermagem, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, SP, Brasil. E-mail: angelinalettiere@yahoo.com.br

IIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Titular, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, SP, Brasil. E-mail: nakano@eerp.usp.br

Endereço para correspondência

RESUMO

O objetivo do presente estudo foi compreender como as mulheres em situação de violência doméstica, atendidas no instituto médico legal, convivem com essa adversidade e identificar as estratégias de proteção no enfrentamento, considerando o apoio/suporte requerido e o obtido no meio relacional e institucional. Trata-se de estudo com abordagem qualitativa. Foram entrevistadas dez mulheres e os dados analisados pela técnica de análise de conteúdo, modalidade temática. A busca por ajuda ocorre no próprio meio social, junto à família e amigos. Posteriormente, recorre-se aos serviços de saúde e judicial. Nessa busca, os vínculos estabelecidos podem se tornar obstáculo ao enfrentamento e, portanto, vulneráveis à violência, ou podem proteger as mulheres e fortalecê-las no enfrentamento. No reconhecimento de suas necessidades sociais e de saúde, os agravantes da violência são apenas tangenciados pelos profissionais, na apreensão das necessidades dessas mulheres. Para o atendimento integral e humanizado devem ser pensadas novas estratégias de ações profissionais.

Descritores: Violência Doméstica; Saúde da Mulher; Apoio Social.

Introdução

O impacto da violência pode ser visto no mundo, pois, todo ano, mais de um milhão de pessoas perdem suas vidas e muitas outras sofrem lesões não fatais, resultantes da violência autoinfligida, interpessoal ou coletiva(1). Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde, a interface entre atos violentos e a saúde ocorre, pois o setor da saúde constitui-se como um ponto de encruzilhada, tanto por ser o local para onde convergem todos os casos resultantes desses atos como pela pressão que suas vítimas exercem sobre os serviços de urgência, serviços especializados, serviços de reabilitação física e psicológica e de assistência social(2).

A violência como um fenômeno complexo deve ser compreendida nas suas distintas formas, particularmente considerando-se os atos agressivos contra a mulher, objeto deste estudo. Em relação a esse fato, a Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1993, aprovou a declaração sobre a eliminação de atos violentos contra a mulher e definiu a ação como: qualquer ato de violência baseado no gênero que resulte, ou tenha probabilidade de resultar, em dano físico, sexual ou psicológico ou sofrimento, incluindo a ameaça de praticar tais atos; coerção ou privação arbitrária da liberdade, tanto na vida pública ou privada(3).

As mulheres têm maior risco de serem violentadas em relações com familiares e pessoas próximas do que com estranhos, observando-se que, na maioria das vezes, o agressor tem sido o próprio cônjuge ou parceiro(4), tendo como causa e consequência a desigualdade de poder nas relações de gênero(5).

A violência doméstica ou de gênero afeta a integridade biopsicossocial da vítima. São diversas as sintomatologias e transtornos do desenvolvimento que podem se manifestar, tais como: doenças nos sistemas digestivo e circulatório, dores e tensões musculares, desordens menstruais, depressão, ansiedade, suicídio, uso de entorpecentes, transtornos de estresse pós-traumático, além de lesões físicas, privações e assassinato da vítima(6-7).

No enfrentamento dessa problemática, o acolhimento das mulheres em situação de violência doméstica, nos serviços de saúde, ocorre de maneira fragmentada e pontual, pois os profissionais não estão preparados para atender, de maneira integral, essa demanda. Frente à prática clínica, em que esses atos tendem a se manter na invisibilidade, a conduta dos profissionais de saúde é de não acolhimento às necessidades das mulheres, restringindo suas ações a encaminhamentos, o que também nem sempre resulta em resposta adequada às demandas das mulheres(8).

Nesse sentido, buscou-se compreender como as mulheres em situação de violência doméstica, atendidas em um instituto médico legal (IML) do interior do Estado de São Paulo, convivem com essa adversidade, identificando-se as estratégias de proteção contra essas ações, considerando-se o apoio/suporte requerido e obtido do meio relacional e institucional, em termos de reconhecer e atender suas necessidades.

O presente estudo se justifica pela insuficiência de respostas, na literatura especializada, sobre quais são os fatores que podem proteger as mulheres do ciclo da violência. Este estudo constitui importante contribuição para a área da saúde e, em especial, para a enfermagem, pois entende-se que compreender essa questão possibilita proporcionar cuidados mais efetivos às mulheres e construir estratégias que incluam atendimento multidisciplinar, somado à conjunção de setores da sociedade, a fim de prestar o atendimento integral e humanizado, além de promover estratégias para a prevenção e redução de ocorrência de episódios de agressão.

Metodologia

Trata-se de estudo descritivo de abordagem qualitativa. O campo de investigação foi um município do interior do Estado de São Paulo, no qual se buscou focalizar os serviços, tanto de saúde como os equipamentos sociais e de segurança pública que compõem a rede institucionalizada de suporte à mulher violentada. O cenário de estudo foi o núcleo de perícias médico-legais, especificamente, o instituto médico legal.

As mulheres que denunciam a violência doméstica na delegacia da mulher são encaminhadas ao instituto médico legal, principalmente no caso de lesão corporal, para a realização do exame de corpo de delito. Portanto, a escolha da referida instituição como o local de coleta de dados justifica-se, por ser o local em que se depara com mulheres com perfil proativo, o que pode revelar a ação frente ao problema e também revelar movimentos anteriores de passividade.

O recorte empírico do estudo foi dado pelo critério de saturação dos dados, ou seja, quando ocorre a reincidência das informações. Participaram do estudo 10 mulheres maiores de 18 anos, que sofreram violência doméstica e foram atendidas na referida instituição.

Por envolver seres humanos, esse estudo atendeu os requisitos propostos estabelecidos pela Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde(9). A coleta de dados iniciou-se após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, sob Protocolo nº1029/2009.

A coleta dos dados foi realizada nas dependências do IML, no período de dezembro de 2009 a agosto de 2010. As mulheres eram convidadas, na sala de espera e pela ordem de chegada ao serviço, a participar do estudo. A coleta ocorria somente após a realização do exame de corpo de delito e em uma sala reservada, para não atrapalhar o fluxo do serviço.

Os sujeitos eram informados dos objetivos da pesquisa, por meio da leitura, feita pela pesquisadora, do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE); frente ao aceite, era solicitada ao sujeito a assinatura do TCLE e. após isso, era iniciada a entrevista. Foi garantida às participantes uma cópia do TCLE, devidamente assinado pela pesquisadora e pela entrevistada. Para assegurar o sigilo das informações e o anonimato das entrevistadas, na apresentação dos resultados, os depoimentos foram codificados pela letra (E) seguidos por algarismos arábicos de um a dez, seguindo a ordem de realização das entrevistas.

Os dados do estudo foram obtidos por meio de entrevista semiestruturada, em que o entrevistado tem a possibilidade de falar sobre o tema em questão, sem ficar preso à indagação formulada(10). No sentido de atender os interesses de produção do material empírico, construiu-se um roteiro de entrevista, com questões abertas, que contemplava informações básicas, como: identificação dos sujeitos e as questões sobre as ações de enfrentamento e a repercussão da violência na sua vida e na sua saúde, contemplando a questão norteadora do estudo, ou seja, quais os fatores que podem protegê-las desse ciclo da violência. Após o término da entrevista, era entregue para cada participante uma relação de serviços de saúde e de apoio às mulheres nessa situação.

Os depoimentos foram gravados e, após cada entrevista, foram transcritos na íntegra. Os dados foram analisados através da modalidade de análise de conteúdo temática(11). Operacionalmente, a análise temática percorreu os seguintes passos: leitura compreensiva, exploração do material e síntese interpretativa(12). Para a análise dos resultados, foram incorporados os conceitos de fator de proteção e integralidade no contexto da rede social de enfrentamento da violência contra a mulher.

Resultados

Como referido anteriormente, o grupo de estudo foi composto por dez mulheres em situação de violência doméstica. As agressões que elas sofreram, em 90% dos casos, foram cometidas pelo atual companheiro, e, em 10%, o agressor foi o ex-companheiro. Em relação ao estado civil, 50% eram solteiras e viviam com o companheiro no momento da entrevista, 20% eram casadas e 30% eram separadas.

Todas as mulheres do estudo sofreram violência física, porém, em alguns casos, ela estava associada a outros tipos de violência. Das entrevistadas, 20% relataram ter vivenciado somente a violência física. Além desse tipo de agressão, 50% sofreram violência psicológica, 20% violência sexual e 10% cárcere privado. Vale destacar que duas participantes do estudo relataram violência patrimonial.

A média de idade das entrevistadas foi de 38 anos, sendo que a idade variou de 24 a 62 anos. Quanto à ocupação, 60% delas exerciam atividade remunerada, 30% eram do lar e 10% estavam desempregadas. Em relação à escolaridade, 50% tinham apenas o ensino fundamental incompleto, 10% tinham completado o ensino fundamental, 30% o ensino médio e 10% havia concluído o ensino superior. Quando se analisou o número de filhos, foi verificada a média de dois filhos por mulher, havendo variação de 1 a 4 filhos. Ao serem indagadas sobre a cor da pele, 50% referiram ser pardas, 40%, brancas e 10% declararam-se negras. Em relação à prática religiosa, 30% eram evangélicas, 40% católicas e 30% não faziam parte de instituição religiosa.

Através da análise das falas das entrevistadas, depreendeu-se a seguinte categoria central: reconhecendo a rede social de apoio de que dispõe e as expectativas quanto ao alcance das necessidades requeridas. Nessa categoria, identificaram-se os seguintes núcleos de sentido: a) a busca por ajuda: do silêncio ao grito de socorro; b) rede de apoio social: proteção e vulnerabilidade e c) reconhecimento de suas necessidades sociais e de saúde.

No primeiro núcleo de sentido, ou seja – a busca por ajuda: do silêncio ao grito de socorro –, identifica-se que a violência é silenciada, até que alguma medida seja tomada, como identificado na fala, a seguir. Eu tinha que esconder do pai, da mãe, dos irmãos, da família. Tinha que esconder tudo. Eu tinha que passar tudo sozinha. Foi muito difícil, muito difícil! (E10).

As mulheres deste estudo quando tomam iniciativas de busca por alguma ajuda, ou seja, quando rompem o silêncio, isso ocorre, a princípio, em seu próprio meio social mais próximo, como a família e os amigos. Então são meus familiares que estão me ajudando atualmente (E6). Olha eu pedia um socorro, vinha me buscar... Na hora aparecia algum amigo e já ia me pegar... Sabe? Então... Nesse ponto todo mundo sempre me ajudou (E3).

Frente às limitações da família para ajudar na resolução do problema, buscam ajuda em outros locais como na instituição religiosa e, mesmo quando a instituição não se mostra presente, a espiritualidade que elas têm ajuda, de algum modo, a suportar ou a enfrentar o problema, como identificado na seguinte fala: ... eu acredito em Deus, acredito na justiça divina que está por vir né. Porque também eu fui decepcionada pelos homens da liderança né. Assim, se não fosse a minha fé de que tudo vai dar certo, de que tudo termina bem... (E6).

A depender das consequências da violência para a saúde e de como percebem o estado da gravidade do caso, a busca por ajuda no serviço de saúde é recurso não só para a resolução dos agravos físicos, mas, principalmente, para a dos psicológicos, como identificado nas falas: Não, primeiro eu fui dá ponto (pronto-socorro) e depois eu fiz o boletim de ocorrência (E7). Eu comecei a fazer tratamento psico... Com psiquiatra e com psicólogo (E3).

As vítimas recorrem a outras instâncias da rede, como o setor da segurança, tais como a delegacia da mulher, como identificado nas falas: ... eu queria justiça. Na hora, minha sede era justiça. Na hora eu liguei no 190 (E6). Eu fui lá na delegacia da mulher (E4).

No segundo núcleo de sentido – rede de apoio social: proteção e vulnerabilidade, ao romperem com a condição de silêncio –, a busca por ajuda, que ocorre inicialmente na família e nos amigos, como já mencionado, pode protegê-las da situação de violência, quando essa ajuda visa o cuidado para com as mulheres e também a ajuda financeira, como identificado nas falas: ...é difícil você enfrentar isso. Mas, ao mesmo tempo não é tão difícil porque você tem o apoio, o cuidado e o carinho (família). Se eu tivesse feito isso na primeira vez, não tinha a segunda (E2). Todo mundo dá força. Você está entendendo. Então eu tenho muito amigo. A gente não está sozinha nesse mundo não. Para que viver apanhando? Uma falou que eu não vou passar fome enquanto isso, que eu te dou uma cesta básica. Outra fala isso. Você está entendendo (E7).

No entanto, se não há coesão familiar, ou vínculo familiar, o impacto produzido é a vulnerabilidade frente à violência, já que os sujeitos se mostram isolados e sem apoio efetivo, como apontado nas falas, a seguir. Minha mãe até agora ainda nem me procurou para falar: filha, vamos conversar (E8). Ah a minha família foi uma vez só. Liguei para a minha tia. Minha tia mora em Leme e falei: "oh eu, eu vou ir para algum lugar longe, vou desaparecer com o meu filho e eu preciso que você fique com a minha mãe. Porque a minha mãe depende de mim. Eu prefiro que você fique com a sua irmã só para poder resolver meu problema. Aí ela falou: "resolve você! Você que tem que ficar com a sua mãe. Se vira" (E1).

Em relação à instituição da igreja, é possível perceber que ela atua oferecendo apoio, principalmente emocional, como observado nas falas:... ajudou a tirar aquela mágoa, aquela tristeza de dentro do meu coração e me dá forças para prosseguir. Porque a igreja ajuda, mas de uma forma interior na gente só. Porque fora mesmo tem que ter uma coisa mais forte para ele, para as pessoas verem que a gente não está tão abandonada assim, à própria sorte da situação (E8).

Nos serviços de saúde, evidencia-se que esses cumprem o papel de tratar o que é aparente. Eu fui ao hospital e para mim eu achei que o hospital tinha feito o boletim (E2). Fui atendida rápida porque estava sangrando né. A faca ainda estava dependurada, porque não podia tirar a faca das costas (E7).

Em relação à intervenção policial, as mulheres utilizam esse recurso devido à possibilidade de autoproteção, como relatado. Espero que o juiz conceda que ele se afaste de mim e que eu consiga ficar com a casa porque eu tenho as minhas filhas para criar (E5). Eu fui procurar porque eu não aguento mais e se acontecer alguma coisa comigo eu quero que alguém sabe. Entendeu... Que ele está envolvido. Eu creio que não vai acontecer nada, mas pelo menos se acontecer já está sabendo que uma pista já tem (E4).

Em alguns momentos, no entanto, diferente do que poderiam esperar, ou seja, que a busca pelos seus direitos fosse um marco de ruptura com sua condição de vítima, essa as coloca frente a uma realidade de desamparo e descrença na justiça. É um processo meio lento. É burocrático, agora a gente é chamada em vários órgãos. Toda vez que precisar eu vou ter que vir aqui. Então para a conclusão dos fatos é muito complicado, mas, assim hoje eu sinto que eu não corro mais perigo em relação a ele não, nem eu e nem a G (E6). Mas como a demora é muita para a Lei da Maria da Penha saí para poder ir buscar ele. Fazer e tirar. Demorou sete meses para entrar em contato comigo. Eu só gostaria de falar que a Lei tem que ser mais rápida. A Lei da Maria da Penha. Mais rápida! (E7).

No último núcleo de sentido – reconhecimento de suas necessidades sociais e de saúde –, dentre as consequências que se mostram mais evidenciadas nas falas destas mulheres estão as de ordem psíquica. No emocional, na alta estima da pessoa, porque a gente pensa que não é nada (E8). Então isso ele mexeu muito mais com o meu emocional, com o meu psiquicossomático da vida. Então ele me deixou extremamente surtada. Ele literalmente me levou à loucura (E6). Afetou sim. Afetou porque eu tenho problema de gastrite nervosa e ele me espancou demais. Eu não gosto... Eu não quero nem lembrar o jeito dele ter pegado a minha cabeça e batido no chão (E4).

Essa realidade pode ser constatada, pois distúrbios psicológicos não são acolhidos pelos profissionais como elas esperam, como identificado nas falas:... porque tem médicos que assim... Que faz o que tem que fazer. Não pensa no psicológico da pessoa (E3). Eu tenho um psiquiatra que faz 15 anos que eu trato com ele. Porque o que eu falo entra aqui (ouvido) e sai aqui para ele (E10).

A violência pode trazer prejuízos à saúde, mas, também, marca as relações interpessoais, as instituições sociais e a sociedade como um todo, na medida em que essas mulheres percebem modificação nas relações sociais, principalmente, em relação aos amigos e aos vizinhos. Eu me afastei de todo mundo. Eu me afastei porque eu achava que seu tivesse amizade com aquele ela vai descobrir ela vai contar, o outro vai saber, o outro vai saber, as noras vão saber (E10). Agora as pessoas que acabam ficando um pouco mais cautelosas de chegar em você, conversar, porque você chega a se afastar por um tempo muito grande, as pessoas ficam assim... aí... então... o que é está acontecendo... aí as pessoas vão meio se afastando um pouco também (E3).

Discussão

Este estudo possibilitou a aproximação das vivências de mulheres em situação de violência e das estratégias e decisões adotadas por elas, que as colocam frente às possibilidades e aos limites de enfretamento dessa adversidade.

Nos caminhos em busca de ajuda, transitam do silêncio para o grito de socorro. Mesmo referido por todas as entrevistadas, este caminhar requer análise cuidadosa, visto que, qualitativamente, evidencia diferenças em termos do processo de transformação pessoal e das condições sociais de cada uma das mulheres. O que permeia, para todas, é o exercício do poder entre os gêneros, mas não como único fator hierarquizante no contexto das relações sociais, o que pode explicar as diferenças no processo de enfrentamento. A violência contra as mulheres é banalizada, minimizada, negada pela cultura machista e sexista, sendo percebida pela sociedade como algo que não poderia ser evitado(13).

Assim, as estratégias de resistência construídas no seu dia a dia significam, na realidade, estratégias de empoderamento, ou seja, pelo conceito feminista, é a contribuição para que a mudança nas relações entre homens e mulheres esteja acompanhada de transformações na linguagem, refletindo novas construções de imaginários sociais(14).

Ao enfrentar esse problema, as mulheres percorrem caminhos que envolvem a interação de processos intrapsíquicos e sociais, como as relações familiares e institucionais, que podem ser de risco ou de proteção à violência. Entende-se que o contexto familiar é fator que pode proteger, uma vez que a família atua com fator externo e que leva à reconstrução diante do sofrimento e é influência que pode modificar, melhorar ou alterar a resposta da pessoa frente à adversidade, ou seja, frente ao ato violento(15).

No entanto, algumas mulheres, geralmente, estão isoladas de seus parentes e da rede social, o que pode facilitar o controle do agressor sobre a vítima e a perpetuação do ciclo de violência. Para que seja rompido esse ciclo, é necessário que exista uma rede articulada de serviços de apoio à mulher nessa situação(16).

Dentre os recursos sociais que são acionados estão a família e instituições de segurança e de saúde, o que constitui sua rede social de apoio. Nessa rota, há diversas portas de entrada, ou seja, diferentes serviços que deveriam trabalhar de forma articulada para prestar assistência qualificada à mulher(17) e também é importante que seja dada continuidade ao atendimento, aspectos esses que não foram identificados por este estudo, nas falas das entrevistas.

É nesse contexto que a Organização Mundial da Saúde passa a recomendar a capacitação dos profissionais de saúde para reconhecer e abordar a violência através do acolhimento, do reconhecimento da integridade das mulheres como sujeitos com direitos humanos, informá-las sobre os recursos disponíveis na sociedade, tais como delegacias de mulheres e casas abrigo, além de reconhecer as situações de risco de vida para protegê-las, trabalhando de forma articulada com outros setores da sociedade(5). No entanto, o acolhimento ocorre de maneira fragmentada e sem compromisso de continuidade da atenção, tanto nos aspectos de reabilitação física e emocional quanto nos de reabilitação social e jurídica(18).

Os vínculos estabelecidos com a rede, que, neste grupo, reduz-se a serviços de saúde (pronto-socorro) e com maior evidência ao tratamento psicoterapêutico, apresentaram-se para elas como cumpridores do papel de tratar o que é aparente, com soluções paliativas e limitantes no atendimento de suas necessidades, o que torna a rede de apoio frágil e desestruturada.

Ainda no que se refere aos profissionais de saúde, o conhecimento sobre o atendimento das mulheres foi abordado por um estudo publicado por esta revista. Tal pesquisa aborda o significado da vivência de profissionais da saúde em cuidar de vítimas de violência sexual. O principal tema emergido do estudo foi o sentimento de impotência para resolver a situação de violência, diante de problemas que emergem da subjetividade do outro, bem como de questões sociais e também por essas mulheres não perceberem os recursos e possibilidades de enfrentamento do problema(19).

Fato marcante é a psicologização do problema da violência, que se revela como forma de não enfrentamento da questão pelos serviços de saúde. Ao medicalizar o corpo da mulher agredida, reafirma-se a ideologia médica de definir a realidade apresentada, aquilo que lhe é aparente, obscurecendo a raiz social, política, cultural do problema(20). Assim, o conhecimento da subjetividade do outro e das questões biopsicossociais não é abordado no modelo biomédico que valoriza os resultados práticos e em curto prazo(19).

Além dos serviços de saúde, há os serviços de segurança pública, principalmente a busca das delegacias de defesa da mulher, o que representa para as mulheres deste grupo marco de ruptura com a condição de vítima da violência, sustentadas na Lei Maria da Penha, que as protegerá do agressor e fará justiça ao seu caso. A Lei Maria da Penha, que altera o Código Penal, permite que agressores sejam presos em flagrante ou tenham a prisão preventiva decretada. Também estipula a criação de um juizado especial para violência doméstica e familiar contra a mulher, visando dar mais agilidade aos processos, assim como medidas de proteção, entre elas, a saída do agressor de casa, a proteção dos filhos e o direito de a mulher reaver seus bens(21). Porém, as mulheres do estudo queixam-se da morosidade dos processos, o que as deixa inseguras diante da situação a que estão expostas.

As necessidades das mulheres deste estudo são percebidas por elas de forma diferenciada, a depender de sua condição histórica, social e do contexto de suporte social recebido. No enfrentamento, as mulheres orientam-se, tendo por base as necessidades que possibilitam ser apreendidas pelas instituições sociais (saúde e segurança), ou seja, as de base normativa, o que é limitante para acessar aspectos de sua integralidade. Os agravantes da violência para a saúde e para a sua condição de vida são apenas tangenciados pelos profissionais, na apreensão de suas necessidades.

No transcorrer dos relatos do grupo de estudo, percebe-se que a rede social configurada e utilizada por elas se conforma com vínculos maiores e outros menores. Isso aponta que a rede ainda se apresenta com vínculos e relações muito frágeis e que a integração entre todos os setores e serviços, formando efetivamente uma rede de proteção, apesar da evolução nesse campo, ainda se mostra distante da realidade dos sujeitos deste estudo.

Acredita-se que, no desenvolvimento e na atuação da rede no enfrentamento da violência, ainda ocorre dicotomia entre aquilo que é preconizado e o que é vivenciado no cotidiano dessas mulheres, e que essas instituições ainda não realizam efetivamente seu papel protetor desses sujeitos. Assim, para cumprir verdadeiramente sua função de proteção, as redes de apoio social têm que trabalhar sob a perspectiva da flexibilização dos sistemas ecológicos(22-23).

Estudo realizado pela Secretaria Especial de Políticas Públicas para as Mulheres constatou que o ato violento, muitas vezes, é cíclico, pois as mulheres encontram diversos obstáculos e falta de medidas protetivas efetivas na busca de proteção, resultando em desgaste emocional e retorno à situação de violência(24).

Conclusão

Os resultados desta pesquisa mostram que, apesar dos avanços obtidos nos últimos anos, ainda persistem "nós críticos" na trajetória de enfrentamento das mulheres para romper o silêncio, denunciar e superar a violência sofrida. Com esta pesquisa, pretende-se dar subsídios para criar e tornar mais efetivas as estratégias de ajuda, visando fortalecer a rede de enfrentamento à violência contra a mulher.

No sentido de contribuir para repensar o modo de cuidar da mulher nessa situação, principalmente no que se refere ao cuidado de enfermagem, é importante que os profissionais de enfermagem, que lidam com essas mulheres, apropriem-se de novos saberes, de diversas áreas do conhecimento, das discussões interdisciplinares e intersetoriais, para subsidiar e aprimorar a prática, a fim de que o princípio da integralidade da assistência à saúde possa ser um produto da prática em saúde, desses profissionais. Isso significa pensar o cuidado em saúde não apenas como um saber instrumental ou técnico, mas sim como um saber que permita a compreensão do fenômeno como um processo dinâmico, relacionado aos diferentes universos de significação e ressignificação.

Assim, é fundamental a incorporação da abordagem do tema violência na disciplina da saúde da mulher, sob o enfoque da perspectiva de gênero, bem como sob o enfoque de sua interdisciplinaridade, nas áreas da saúde pública e da saúde coletiva. Dessa forma, um conhecimento mais ampliado do fenômeno promove reflexão mais crítica a respeito das condições de saúde e de vida das mulheres vítimas de violência doméstica, contribuindo para a realização de planejamentos da assistência de enfermagem, que vão desde a prevenção, atendimento, reabilitação até a reintegração da mulher junto à sociedade.

Na ação intersetorial, é fundamental um trabalho em rede, que inclua setores de saúde, segurança, educação, bem-estar social e jurídico, que trabalhem de forma articulada e responsável, o que amplia as chances de construir estratégias que respondam, de forma integral, às necessidades das mulheres, e que as ajudem na superação dos agravos consequentes dessa violência à saúde e condição de vida delas e de suas famílias.

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  • Corresponding Author:
    Ana Márcia Spanó Nakano
    Universidade de São Paulo. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto
    Departamento Materno-Infantil e Saúde Pública
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    E-mail:
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    Paper extracted from Master’s Thesis “Violência doméstica sob o olhar das mulheres atendidas em um Instituto Médico Legal: as possibilidades e os limites de enfrentamento da violência vivenciada”, presented to Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, WHO Collaborating Centre for Nursing Research Development, SP, Brazil. Supported by Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), process # 130218/2009-0.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Recebido
      03 Dez 2010
    • Aceito
      10 Ago 2011
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