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A vivência de uma trabalhadora de enfermagem portadora de lesão "De Quervain"

Resumos

Trata-se de um estudo de caso qualitativo de abordagem fenomenológica sobre a experiência de uma mulher trabalhadora de enfermagem portadora de Lesão De Quervain, um distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho. Objetivou-se compreender como é ser mulher trabalhadora de enfermagem, estando doente por um distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho, por meio de uma trabalhadora do Centro de Material e Esterilização de um hospital particular. Utilizou-se o referencial filosófico de Martin Heidegger para análise compreensiva do depoimento em questão. A análise revelou que o processo fisiopatológico da Lesão de De Quervain desencadeou mudanças na vida da trabalhadora, caracterizadas pelas manifestações dolorosas e especialmente pelas limitações físicas, gerando, assim, uma multiplicidade de sentimentos. A angústia se fez presente no processo de aceitação da doença, momento em que a trabalhadora percebe a fragilidade de sua existência e se reconhece como responsável pelo seu autocuidado, alcançando a autenticidade e transcendendo a doença.

transtornos traumáticos cumulativos; saúde da mulher; pesquisa cualitativa


This is a case study with a phenomenological approach on the experience of a woman who works in nursing and suffers from the de Quervain's disease, an osteo-muscular disorder related to working conditions. This study aimed to understand what means to be a woman working in nursing and suffering from an osteo-muscular disorder related to working conditions through a worker of the Material and Sterilization Center of a private hospital. The philosophical referential from Martin Heidegger was used for the comprehensive analysis of the statement in question. The analysis revealed that the physiopathological process of the de Quervain's disease caused changes in the worker's life, characterized by painful manifestations and especially by physical limitations, which generate a multiplicity of feelings. Anguish is present in the process of accepting the disease, when the worker perceives the fragility of her existence and recognizes herself as the one responsible for her own care, reaching authenticity and transcending the disease.

cumulative trauma disorders; women's health; qualitative research


El presente es un estudio de caso cualitativo fenomenológico sobre la experiencia de una mujer trabajadora portadora de la Lesión De Quervain, un disturbio osteomuscular relacionado al trabajo. Siendo el objetivo comprender como es el ser una mujer trabajadora de enfermería dentro del Centro de Material y Esterilización de un hospital particular con un disturbio osteo-muscular relacionado al trabajo. Se utilizó el referencial filosófico de Martín Heidegger para el análisis comprensivo de la entrevista. El análisis mostró que el proceso fisiopatológico originó cambios en su vida, caracterizados por las manifestaciones dolorosas y especialmente por limitaciones físicas, lo que generó una multiplicidad de sentimientos. La angustia esta presente dentro del proceso de aceptación de la enfermedad, momento en el cual, la trabajadora percibe la fragilidad de su existencia y se reconoce como responsable de su cuidado, alcanzando la autenticidad y transcendiendo la enfermedad.

trastornos por traumas acumulados; salud de las mujeres; investigación cualitativa


ARTIGO ORIGINAL

A vivência de uma trabalhadora de enfermagem portadora de lesão "De Quervain"

Patricia Campos LeiteI; Miriam Aparecida Barbosa MerighiII; Arlete SilvaIII

IProfessor do Centro Universitário Nove de Julho, Doutoranda, e-mail: patipavan@uninove.br

IILivre-Docente, e-mail: merighi@usp.br. Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo; 3 Enfermeira, Professora Titular I da Universidade Guarulhos, e-mail: arlsilva@uol.com.br

RESUMO

Trata-se de um estudo de caso qualitativo de abordagem fenomenológica sobre a experiência de uma mulher trabalhadora de enfermagem portadora de Lesão De Quervain, um distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho. Objetivou-se compreender como é ser mulher trabalhadora de enfermagem, estando doente por um distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho, por meio de uma trabalhadora do Centro de Material e Esterilização de um hospital particular. Utilizou-se o referencial filosófico de Martin Heidegger para análise compreensiva do depoimento em questão. A análise revelou que o processo fisiopatológico da Lesão de De Quervain desencadeou mudanças na vida da trabalhadora, caracterizadas pelas manifestações dolorosas e especialmente pelas limitações físicas, gerando, assim, uma multiplicidade de sentimentos. A angústia se fez presente no processo de aceitação da doença, momento em que a trabalhadora percebe a fragilidade de sua existência e se reconhece como responsável pelo seu autocuidado, alcançando a autenticidade e transcendendo a doença.

Descritores: transtornos traumáticos cumulativos; saúde da mulher; pesquisa cualitativa

INTRODUÇÃO

Ao longo de experiência profissional, percebeu-se que a realidade das trabalhadoras de enfermagem tem sido marcada por cotidiano repleto de más condições no trabalho, ocasionadas não somente pela escassez de recursos humanos e materiais como pelo estresse inerente à atividade hospitalar.

A maioria das instituições hospitalares possui estrutura de alto nível de complexidade e diversidade de serviços, no entanto, isso não reduz a exposição dos trabalhadores a inúmeros agravos(1).

As condições de trabalho oferecidas pelos hospitais, as pecularidades das tarefas de enfermagem, associadas às dificuldades no setor saúde contextualizam a situação de trabalho dos profissionais de enfermagem em diversos países(2).

Apesar de toda a dimensão benéfica atribuída ao trabalho, sabe-se que, na enfermagem, o desgaste, a desmotivação, frustração e o desejo de abandonar a profissão têm merecido atenção de vários estudiosos(3-5).

Ainda, levando em consideração que a enfermagem é exercida predominantemente por mulheres, é necessário olhar diferenciado para essa trabalhadora que, na maioria das vezes, exerce dupla ou tripla jornada, respondendo não somente pelas tarefas domésticas, mas ainda pelas atividades profissionais.

Esse fato causa-lhes inúmeros problemas de saúde, repercutindo inclusive nas estatísticas oficiais referentes às taxas de mortalidade e morbidade entre os sexos, sendo maior a morbidade entre as mulheres e a mortalidade entre os homens(6).

No contexto do adoecer da mulher trabalhadora de enfermagem, destacam-se os disstúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho (DORT), incluídos nessa nomenclatura um grupo de doenças, as tenossinovites, tendinites, lesão De Quervain, sinovites, síndromes compressivas dos nervos periféricos, além de sintomatologias mais disseminadas, como a síndrome miofascial, fibromialgia e distrofia simpático-reflexa(7).

A lesão De Quervain é conhecida também como a tenossinovite do estilóide radial, que resulta da constrição da bainha comum dos tendões do abdutor longo e do extensor curto do polegar, incidindo predominantemente em mulheres acima de 40 anos de idade. Associa-se a exposições ocupacionais que exigem movimentos repetitivos de polegar, pinça de polegar com flexão, extensão, rotação ou desvio ulnar repetido do carpo e uso prolongado de tesouras. O quadro clínico caracteriza-se por dor em projeção de processo estilóide do rádio com ou sem irradiação em projeção radial até o ombro e que aumenta com abdução radial ativa do polegar, podendo surgir tumorações nas regiões dolorosas(8).

Na maioria dos casos, os sintomas inicialmente apresentam-se de forma insidiosa, predominando mais no término ou em momentos de picos da produção, aliviando com o repouso, no entanto, com o decorrer do tempo, os sintomas podem se tornar freqüentes durante o trabalho, inclusive incidindo nas atividades extralaborativas da trabalhadora(9).

Em razão dos inúmeros quadros sintomáticos incluídos nos DORT, alguns difusos e outros bem delimitados anatômica e/ou fisiologicamente, nem sempre o diagnóstico e comprovação da doença é tarefa fácil, tornando ainda mais lento o processo de busca por tratamento adequado(10).

Assim, as preocupações, aqui, com a elevada incidência de problemas osteomusculares em trabalhadores de enfermagem, associadas à escassez de estudos sobre DORT, especificamente nesse grupo profissional, foram conduzindo a temática do presente estudo que buscou compreender como é ser mulher, estando doente por um distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho - lesão De Quervain, por meio da vivência de uma trabalhadora de enfermagem.

TRAJETÓRIA METODOLÓGICA

Trata-se de estudo de caso com abordagem da fenomenologia existencial sobre a experiência de uma mulher trabalhadora de enfermagem, 40 anos, casada, mãe de dois filhos, com atuação profissional de 12 anos em Central de Material e Esterilização, portadora de lesão De Quervain, um DORT.

Para compreender como é ser mulher estando doente por um distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho, pela vivência de uma trabalhadora de enfermagem, considerou-se, neste estudo, a metodologia qualitativa mais coerente aos propósitos, deste estudo. Assim sendo, utilizou-se a abordagem compreensiva da fenomenologia existencial de Martin Heidegger para analisar o discurso da trabalhadora de enfermagem, aqui trazida em forma de estudo de caso, que representou o fio condutor para a análise do depoimento em questão.

Enquanto método de estudo, a pesquisa fenomenológica possibilita ao pesquisador o acesso à consciência humana, voltar às coisas mesmas, às essências, consiste em um modo de abordar o fenômeno, entendido como tudo que se mostra, se manifesta, surge para uma consciência que o interroga, abandonando preconceitos e pressupostos(11).

O pensamento heideggeriano trata-se de um despertar fundamentado na questão do sentido do ser, buscando desvendar a sua compreensão, considerando a fenomenologia uma via de acesso para a compreensão da existência humana(12-13).

O modo básico do ser humano existir corresponde ao "ser-no-mundo", em que o homem é entendido a partir do mundo em que se encontra e como se relaciona com esse, com objetos e com pessoas, abrindo-se para si mesmo e para o mundo(14).

Nesse contexto, a trabalhadora de enfermagem, vivenciando o processo de doença, pode, à medida que se abre para si e para o mundo, questionar-se em relação à sua própria existência no mundo, percebendo a fragilidade de sua existência, ocasionada pelos sintomas advindos do DORT. Assim, outra característica ontológica definida por Heidegger é a angústia que surge quando o ser humano percebe da sua instabilidade existencial e acrescenta, ainda, o filósofo que, somente ao reconhecer-se como ser-para-a-morte, existe a possibilidade do ser encontrar sua autenticidade, momento em que essa mulher pode transcender a doença(15).

Como descrito anteriormente, apropriou-se, aqui, do referencial existencialista de Heidegger, acreditando que as estruturas propostas pelo autor poderiam servir de baliza na análise compreensiva do depoimento dessa mulher trabalhadora de enfermagem que experiencia distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho (DORT).

A entrevista foi concedida no mês de julho de 2004, na casa da trabalhadora, na cidade de São Paulo, tendo a duração de 42 minutos, gravada em fita cassete, após a sua autorização por meio do termo de consentimento livre e esclarecido. Para a condução da entrevista, utilizou-se a seguinte questão norteadora: como é para você ser mulher trabalhadora de enfermagem e conviver com um DORT? Essa questão teve o intuito de conduzir a pesquisadora ao mundo-vida dessa mulher, com base em suas próprias vivências, considerando que somente a partir do sujeito que experiencia a doença, a dor e o sofrimento, desencadeados pelo DORT, é possível desvelar o fenômeno ser-mulher-trabalhadora de enfermagem convivendo com o DORT.

Vale ressaltar que, antecedendo a realização da entrevista, o presente estudo foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP).

CONSTRUINDO OS RESULTADOS

Após a entrevista, realizou-se a transcrição do discurso colhido na íntegra, a seguir realizou-se a leitura e re-leitura em busca das unidades de sentido, ou seja, dos trechos significativos do discurso, considerando as proposições de Martin Heidegger. A etapa seguinte foi o agrupamento das unidades de sentido por semelhança, o que originou a formação de temas, compondo as Unificações Ontológicas(16).

Apresenta-se as UNIFICAÇÕES ONTOLÓGICAS identificadas no discurso da mulher trabalhadora de enfermagem portadora de lesão De Quervain, as quais revelam o ser mulher trabalhadora de enfermagem convivendo com o DORT.

O ser-no mundo convivendo com o DORT

Considerando que o homem é entendido com base no mundo em que se encontra e como se relaciona com esse mundo, ser mulher no mundo, trabalhar na equipe de enfermagem, convivendo com DORT é muito mais do que experienciar a dor e as dificuldades profissionais, mas conviver com um cotidiano de impossibilidades, inclusive de realizar tarefas simples do seu cotidiano, o que é apresentado no trecho do discurso abaixo.

...e na minha casa também eu não conseguia mais fazer nada, nem puxar o cobertor para me cobrir eu conseguia...(Marília)

Na cotidianidade, o significado de muitas coisas só aparece para o ser quando algo lhe falta, ou seja, a vivência de uma perda ou limitação evidencia os significados até então ocultos ou despercebidos(14).

A mulher trabalhadora de enfermagem inicia um processo de perceber-se no mundo assim como está, convivendo com suas diversas impossibilidades, já que são muitas as modificações em suas habilidades físicas, tornando-a incapacitada não só para o trabalho, como para a realização de atividades mais simples, relacionadas ao seu próprio autocuidado.

O depoimento da trabalhadora de enfermagem revela que, apesar das dores, da limitação, a trabalhadora permanece no trabalho, insistindo consigo mesma, resistindo às dores intensas, esforçando-se para não se afastar das atividades profissionais.

...e depois da lesão aqui estabelecida né, eu já não podia fazer quase nada mais, eu não podia pegar uma caixa, erguer uma caixa, descer caixas de prateleira...eu já não conseguia exercer quase mais nada na Central de Materiais...Então eu chegava, eu escolhia a escala que dava para aquele dia , mas às vezes eu não conseguia chegar até o fim do plantão...(Marília).

Pode-se perceber que o agravamento da doença tende a ocasionar uma série de alterações físicas e psíquicas e a trabalhadora possui a consciência das suas limitações para o trabalho, no entanto, para ela estar afastada do trabalho significa muito mais que admitir sua doença, significa aceitar e tornar público a sua incapacidade, como evidencia o discurso que segue.

...eu não vou voltar para caixa, eu quero ver até onde eu consigo trabalhar né....(Marília).

A trabalhadora de enfermagem continua exercendo suas atividades profissionais, procurando provar para si mesma que ainda é capaz, embora muitas vezes esse represente o fator mais relevante para o agravamento da sua lesão. O ser-no-mundo da trabalhadora de enfermagem modifica-se intensamente com as alterações advindas do DORT, pois, implacavelmente, as manifestações se instalam e essa mulher vê-se obrigada a conviver com as mudanças, pois, embora doente, continua convivendo consigo e com o mundo, estabelecendo relações simples do existir no mundo, sofrendo com a dor e com as suas limitações.

A trabalhadora de enfermagem vivenciando a ambigüidade da solicitude

A mulher trabalhadora de enfermagem, convivendo com o DORT, pode experienciar a preocupação dos outros com ela e com o seu estado de saúde. A preocupação funda-se na constituição ontológica da pre-sença enquanto ser-com, guiada pela consideração e pela tolerância ou paciência em relação ao outro, a chamada solicitude(14).

...nesse ínterim eu encontrei um médico que foi cuidando de mim e falou você tem que se afastar né, esse braço tem que repousar...(Marília).

Ao relatar a solicitude desse profissional, ela revela sua gratidão pelo fato de ele tê-la alertado sobre a sua real situação e a necessidade que ela tinha de dar importância ao seu próprio adoecimento, o que lhe possibilitou a abertura para poder-ser-si própria, convivendo com a verdade.

Infelizmente, a trabalhadora relatou que dificilmente esse apoio partiu dos profissionais, tanto os profissionais engajados no cuidar da saúde do trabalhador como dos próprios colegas profissionais que atuavam junto com essas trabalhadoras na equipe de enfermagem. O sentimento de desprezo ou o des-cuidado muito presente no ambiente de trabalho, configurou o distanciamento do ser-com, já que, conforme Heidegger, nós somos essencialmente relação e, nessa relação, a preocupação com o outro, ou seja, "a solicitude" passa a ser a essência da nossa existência(14).

...na verdade eu não senti é que me levavam a sério... Sentia que ele não acreditava na minha dor, né que era tão intensa...um certo descaso assim...(Marília).

A verbalização de Marília demonstra que ela sentiu que os profissionais do atendimento à saúde do trabalhador não atribuíam a devida importância às queixas por ela apresentadas. Essa impessoalidade, contextualizada na relação médico-paciente acusa a necessidade de solicitude apresentada por essa mulher, já que, nesse momento, o que ela mais precisava era se sentir ouvida quanto à dor, quanto ao sofrimento que experienciava.

O impessoal encontra-se em toda a parte, em que todo mundo é o outro e ninguém é si próprio e esse conviver dissolve inteiramente a própria pre-sença no modo de ser-com os outros e isso de tal maneira que os outros desaparecem ainda mais em sua possibilidade(14).

Somado a essa difícil constatação, existe o preconceito velado dos próprios trabalhadores da enfermagem.

... eu acabei ficando mal vista né, pelos colegas, eu acabei com uma imagem ruim no setor, hoje eu falo para minha psicoterapeuta assim, eu...eu senti o que os negros sentem (choro)...(Marília).

O preconceito e a discriminação estendem-se também aos próprios colegas da equipe de enfermagem, evidenciando o descuidado nas relações do cotidiano. Essa situação tende a gerar ainda mais sofrimento na trabalhadora, pois, embora o mundo seja compartilhado, a experiência de ser portadora de DORT é individual.

A angústia por conviver com o DORT

No contexto do adoecer por DORT, vale ressaltar que são muitas as modificações advindas do processo fisiopatológico. Considerando que, na maioria das vezes, as mulheres respondem pelas atividades domésticas e profissionais, a nova situação, marcada por manifestações dolorosas, diminuição da força muscular e restrições para muitas atividades, obriga-a a tomar consciência de que a vida mudou, as transformações acarretadas pela doença já se instalaram e o seu amanhã é incerto.

Observa-se que as incertezas quanto às habilidades físicas, os comprometimentos e ainda às respostas frente aos tratamentos, fizeram com que vivenciasse a angústia.

...a gente começa assim, quando tem uma lesão assim, na mão, mão direita, quando imobilizava a mão não conseguia fazer nada com a mão esquerda, queria morrer...(Marília).

A verbalização de Marília revela que seu mundo-vida foi intensamente modificado em razão da doença e, quando ao longo do discurso refere "mão direita", evidencia-se que na sua relação com o mundo e com as coisas do mundo, ela percebe sua incapacidade e passa a questionar sua existência, em que o "querer morrer" parece o fim de tudo, o fim de se deparar com uma fragilidade tão íntima, tão sua, explicitando a angústia da trabalhadora que se percebe enquanto ser-para-morte.

A morte é das possibilidades a mais pessoal, mais ímpar do ser-aí e essa é justamente a fonte da angústia. Nesse aspecto, a mulher trabalhadora de enfermagem, convivendo com o DORT, ao pensar em suas limitações, suas restrições para o trabalho, aproxima-se de sua finitude, onde poderá viver de forma autêntica, abrindo-se para si, ou inautêntica, em função do medo de se confrontar consigo mesma e com o seu ser-para o-fim(14).

Além disso, com o agravamento da doença, surge a sensação de que jamais poderia exercer a sua profissão novamente, o que gerou sentimento intenso de incapacidade. Nessa fase da doença, a angústia experimentada pela trabalhadora foi tão forte que repercutiu de forma decisiva em seu tratamento, no qual ela reconheceu a necessidade de investir na psicoterapia, como revela o discurso abaixo.

... em alguns momentos achei que eu não pudesse mais trabalhar mesmo aí comecei a fazer um tratamento intenso com psicoterapia... Eu tava precisando mesmo (choro, silêncio) (Marília).

Ao reconhecer a possibilidade da morte é que o ser humano encontra sua autenticidade já que a morte é uma possibilidade incondicional e insuperável, portanto, para o autor, a angústia é um tipo de náusea ontológica que invade o ser humano quando esse está perto de compreender a incerteza de sua existência(14).

Sob tal aspecto, ao se deparar com a sua realidade, tendo em vista a sua finitude, a mulher resolve enfrentar a nova situação de vida, momento em que passa a viver em sua autenticidade.

A transcendência da trabalhadora de enfermagem convivendo com o DORT

Ao vivenciar as dificuldades inerentes ao processo de adoecimento pelo DORT, a mulher experimentou sentimentos de perda, de revolta, tristeza, mas, no momento em que admitiu a sua doença e a sua nova condição, abraçou novos objetivos, atribuindo novo significado à sua existência.

... aí eu voltei aí eu me dei bem assim, eu consegui me sair assim superbem...assim, hoje eu consegui, não por eles, por mim mesmo eu consegui atingir, chegar onde eu queria...nesse 1 ano ela viu o meu trabalho né , ela tem me elogiado... (Marília)

O seu depoimento evidencia que, dentro da sua nova situação, ela retornou ao trabalho e acredita ter tido êxito, pois recebe elogios de sua chefia e, na verdade, ela mesma estabeleceu para si algumas metas, as quais foram alcançadas, permitindo que ela transcendesse a sua doença, sentindo-se realizada.

A transcendência ocorre, portanto, no instante em que a trabalhadora reconhece sua real situação e, ainda assim, traça metas e encontra sentido no seu existir.

Nesse aspecto, o fenomenólogo descreve que somente com a abertura da pre-sença é que se alcança o fenômeno mais originário da verdade, sendo que a pre-sença é e está na verdade(14).

O caminho trilhado pela trabalhadora de enfermagem fez com que percebesse sua própria participação no processo de recuperação, pois, se num primeiro momento ela solicita o apoio, compartilha suas queixas, esperando muito dos outros, com o passar do tempo ela passa a agir em defesa de si-mesma, investindo em seus tratamentos e no seu autocuidado.

...eu demorei pra perceber, se tá doendo, vai dar um jeito, vai fazer uma compressa...(Marília).

A fala de Marília demonstra que, ao transcender a doença, ela reconhece os sintomas e conhece maneiras para aliviar suas dores, permitindo que estabeleça medidas de autocuidado, ao invés de esperar soluções de outras pessoas.

Tomando consciência de si-mesma, das suas limitações e da fragilidade, é que subsiste a condição ontológico-existencial de possibilidade de ser livre para as possibilidades propriamente existenciárias(14).

Assim sendo, sua experiência de conviver com o DORT permitiu a possibilidade de ser-si-própria, com suas limitações e comprometimentos, enfrentando a sua verdade e a sua história, reconhecendo toda a sua fragilidade assim como as suas possibilidades no mundo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao compreender o fenômeno ser-mulher-trabalhadora de enfermagem, convivendo com a lesão De Quervain, pode-se compreender que, ao se confrontar com o processo de doença, essa mulher vivencia multiplicidade de sentimentos.

A trabalhadora revelou que conviver com o DORT, ou o ser-no-mundo convivendo com DORT, a insere em um cotidiano caracterizado por dor e muitas limitações, o que lhe provoca sofrimento físico e psíquico. O fato de muitas vezes ter que se afastar do trabalho faz emergir nessa mulher a sensação de incapacidade e improdutividade, pois pelo trabalho ela se torna relação, exercita seu saber, sente-se valorizada.

Embora tenha experienciado a solicitude de um profissional da saúde que, como evidenciou o discurso, parece ter sido o responsável por alertá-la da sua real situação,. infelizmente, chama a atenção o descaso referido por ela quanto aos profissionais da saúde do trabalhador e também dos seus próprios colegas de profissão, grupos tão próximos do cotidiano de vida e que, num momento de fragilidade, se revela tão impessoais ao seu sofrimento.

A angústia faz parte dos sentimentos vivenciados pela trabalhadora aqui estudada, em especial por perceber-se em um novo contexto de vida, por ter consciência de sua fragilidade enquanto ser no mundo. No entanto, mesmo vivenciando todas as dificuldades advindas do processo fisiopatológico, evidencia-se, no discurso, que essa mulher enfrentou a nova realidade, descobriu seu papel como cuidadora de si própria, à medida que se aceita com a doença, retorna ao trabalho, reelaborando suas funções, transcendendo a doença, encontrando a si própria no novo contexto de vida, atribuindo real significado à sua existência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 25.5.2006

Aprovado em: 10.11.2006

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2007
  • Data do Fascículo
    Abr 2007

Histórico

  • Aceito
    10 Nov 2006
  • Recebido
    25 Jan 2006
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