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O que se pode fazer com a solidão? Da injunção ao isolamento, a produção de um enlaçamento singular

What can be done about solitude? From injunction to isolation, the production of a singular link

(...) nesse encontro entre essas palavras e seu corpo (...) alguma coisa se esboça.

(Lacan)

(...) uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de.

(Clarice Lispector)

Esta coletânea, prefaciada por Laéria Fontenele, traz em seu corpo uma introdução escrita pela organizadora e textos da autoria das quatro analistas participantes de um cartel, a saber, Ana Lucia Carvalho (João Pessoa), Elizabeth C. Landi (Goiânia), Márcia Smolka (Cuiabá) e Sonia Leite (Rio de Janeiro), finalizando com a transcrição dos comentários realizados por Marco Antônio Coutinho Jorge, Diretor da Seção Rio e fundador do Corpo Freudiano.

Seus autores, quatro psicanalistas, e mais um comentador vinculados a diversas seções e núcleos do Corpo Freudiano - Escola de Psicanálise e provenientes de diferentes partes de nosso país, nos oferecem, não apenas suas concepções sobre o fim da análise, como também testemunham a potência de produções singulares, efeito de um trabalho de cartel. As autoras sinalizam que se o discurso pode ser fonte de sofrimento, é também de onde parte o tratamento possível para as dores da existência.

A leitura dos textos que compõem a coletânea nos faz lembrar que se Freud apontou que se a sociedade cerceia nossas pretensões de satisfação, nossas possibilidades de gozo, Lacan, de forma mais radical, adverte que tal perda de gozo é decorrente de sermos falantes. Assim, gestada durante o isolamento social imposto pela grave crise sanitária provocada pela COVID-19, essa coletânea é um exemplo vivo de certo “saber fazer com o real”. No tratamento do tema - o final da análise - cada autora oferece, com seu estilo próprio, um recorte singular da temática proposta que fez operar efeitos de transmissão no coletivo, a partir de uma transferência de trabalho.

“Final de análise e a Escola de Lacan”, texto de Ana Lucia Carvalho, abre a instigante coletânea. Elaborando questões atinentes ao desenlace da análise em sua relação com o real, interroga o lugar ocupado pelo fim da análise no estabelecimento do desejo do analista. Com rigor, acentua o quanto o desejo do analista se manifesta no caso a caso dos atendimentos acolhidos em nossos consultórios, estendendo-se também à Causa psicanalítica, no laço de trabalho com outros analistas, visando à transmissão que se passa no espaço institucional, ao qual se convencionou nomear de Escola.

A seguir, Elisabeth Cristina Landi, em “Do sintoma ao sinthoma: dos restos a inventar” interroga-se sobre o que se esperar de uma análise levada ao seu fim, enfatizando o importante trabalho de luto que “exige um trabalho de desinvestimento no que antes sustentava sua velha posição sintomática” (p. 34). Apoiando-se em Lacan, demonstra o quanto é preciso que o analista tombe da idealização, enfatizando que a operação de separação do sujeito torna-se imprescindível para que o final da análise conduza a outro tipo de identificação: a identificação com o sintoma. Sintoma que de maldito, no início, passa a ser bendito, ao fim.

Na sequência, Márcia Smolka, em “Apontamentos sobre o finito e o infinito”, visando cernir como o final de uma análise incidiria sobre a economia de gozo e a especificidade da mudança subjetiva que se processa naqueles que se submetem a uma análise, ocupou-se primordialmente da relação da pulsão com o final de análise. Dialogando com Freud, Lacan e com outros psicanalistas contemporâneos, evidencia a temporalidade lógica própria à nossa experiência. Processo cujo fim, longe de um momento de conhecimento, aborda o impossível de ser dito. Abordagem que somente pode ser efetivada por aquele que, em sua destituição narcísica, esteja advertido de sua divisão por um processo lento e de longo prazo que se dá “entre o finito e o infinito” (p. 52).

Por sua vez, Sonia Leite, em “Pontuações sobre o final de análise e passe”, busca trazer o que denominou como a “travessia do impasse ao passe na experiência analítica” (p. 55), acentuando que se, no que tange ao final de análise, Freud nos legou um impasse, Lacan, ao avançar sobre o tema, abriu-nos a possibilidade de um passe. A autora retoma os problemas colocados pela introdução do dispositivo do passe, articulando-o com o final de análise e indicando a necessidade de, permanentemente, nos colocarmos a questão sobre como sustentar as condições que possibilitam a articulação entre a psicanálise em intensão e a psicanálise em extensão, enfatizando a importância da Escola como um “lugar de renovação do retornar-se psicanalista” (p. 65).

Ao final da coletânea, encontramos os comentários de Marco Antonio Coutinho Jorge, ressaltando a originalidade e as questões subjetivadas presentes nos quatro trabalhos, enlaçando-as com suas próprias elaborações. Dentre as contribuições introduzidas por Marco Antonio às “Conversações”, ressaltamos a dimensão de retomada, introduzida pelo fim da análise: “esse passo se repete, ele não é o porto de chegada, é o ponto de partida, e, a partir do momento que se produz, ele pode se repetir, ele vai se repetir. Logo, não se conclui no fim da análise, começa-se a partir do fim da análise” (p. 70)

Nessa direção, destaca as saídas possíveis, que advém ao fim de uma análise, a partir do deparar-se com o pulsional para além da fantasia: a abertura para a sublimação; a satisfação direta da pulsão e a deliberação que, como efeito do “juízo de condenação” (Freud), nos confere a alegria de poder dispor de certa margem de liberdade para poder dizer sim ou não à pulsão.

Em todos os trabalhos, do prefácio aos comentários, ainda que de maneira implícita, comparece a perspectiva de que sempre haverá um resto e, especialmente no último texto, a constatação de que se delibera a partir das demandas pulsionais que, enquanto “konstant Kraft” (Freud, 1915/1974Freud, S. (1974). As pulsões e suas vicissitudes. In Edição Standard Brasileira da Obras Completas Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Imago: (Trabalho original publicado em 1915).), não cessam jamais...

Assim sendo, surgindo como deliberação possível no tratamento da angústia desencadeada pela grave crise sanitária, a coletânea cumpriu seu papel, tendo efeitos de passe. Testemunhou que, ao final de uma análise, não se conclui uma hipótese, nem se finaliza uma história, mas se opera com fragmentos, com o que sempre “resta a concluir” (Lacan, 1964/1985Lacan, J. (1985). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964).). Operar com o resto foi o que fizeram as quatro autoras (e seu mais-um?), no enlace possível de suas singulares solidões, na invenção de modos possíveis de, com Eros, continuar insistindo na transmissão da psicanálise: um discurso que concede lugar ao feminino, às brechas possibilitadoras de que o novo venha a emergir em sua diferença.

Referências

  • Freud, S. (1974). As pulsões e suas vicissitudes. In Edição Standard Brasileira da Obras Completas Psicológicas Completas de Sigmund Freud Imago: (Trabalho original publicado em 1915).
  • Lacan, J. (1985). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964).
  • Lacan, J. (1985). Conférences à Généve sur le symptôme. In Le Bloc-notes de la psychanalyse, 5, 5-23. (Trabalho original publicado em 1975).
  • Leite, S. (Org.) (2023). Conversações sobre final de análise 7 Letras.
  • Lispector, C. (1986). Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres Rocco.(Trabalho original publicado em 1969).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2023
  • Aceito
    23 Ago 2023
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