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O DEMÔNIO DA CULTURA EM O SEGREDO DAS SENHORAS AMERICANAS

Ridenti, Marcelo. O segredo das senhoras americanas: intelectuais, intercionalização e financiamento na Guerra Fria. . São Paulo: Editora Unesp, 2022. 406

I

O segredo das senhoras americanas: intelectuais, internacionalização e financiamento na Guerra Fria é resultado de longa e minuciosa pesquisa de Marcelo Ridenti registrada em um livro que ultrapassa os limites, por vezes excludentes, do público especializado.

O rigor analítico e a clareza expositiva do texto dão forma a uma investigação complexa sobre a atuação de intelectuais e os efeitos políticos das ideias nas dinâmicas sociais do período da Guerra Fria. As hipóteses de trabalho são sustentadas por uma inventiva costura analítica entre os norteadores conceituais do autor, a variedade de fontes consultadas e os documentos mobilizados.

Assim, tem-se em mãos um livro que tem como ponto de partida a reflexividade, no limite, entre a trajetória de romancistas, poetas, políticos, professores, estudantes, financiadores e a formulação de seus ideais e valores sobre solidariedade, liberdade e igualdade. Em outras palavras, empirias e abstrações são elementos analíticos do mesmo processo de reconstrução dos pactos sociais de um mundo fraturado após a segunda grande guerra, no qual a cultura foi forjada orbitando os blocos capitalista e socialista, Estados Unidos e União Soviética, respectivamente. Ganha, assim, quem estiver em busca de bibliografia especializada sobre o tema ou retornar a um fragmento do processo social que nos trouxe até as encruzilhadas contemporâneas.

Não se pode esperar respostas fáceis, uma vez que as perguntas que Marcelo Ridenti enfrenta são complexas. Todavia, elas oferecem novos elementos para a compreensão dos dilemas e entraves da modernização em sociedades periféricas por meio da exposição que o autor faz de seu objeto sociológico, isto é, o horizonte de possibilidades concretas dos intelectuais e da produção das ideias na periferia do capitalismo, especificamente no contexto dos anos 1950 e 1960, quando “elites” e “contraelites” intelectuais, homens brancos majoritariamente das classes médias nacionais e envoltos com a mercantilização e massificação da cultura, fizeram do antigo diletantismo intelectual um “tipo profissionalizado” — seja na academia ou na literatura, sobretudo por meio da expansão universitária, que possibilitou o intercâmbio de estudantes por meio de financiamentos com capital público e privado yankee, estes intermediados pelas senhoras americanas entre 1962 e 1971 e que dão nome ao texto.

Aqui está a descoberta de pesquisa do livro. Ela é quem arremata a reflexão sobre “o lugar do intelectual e a totalidade do processo que envolvia sua internacionalização […] em meio à rápida modernização da sociedade brasileira” (Ridenti, 2022: 22. Ridenti, Marcelo. (2022). O segredo das senhoras americanas: intelectuais, internacionalização e financiamento na Guerra Fria. São Paulo: Editora Unesp, 406 p.). A criatividade sociológica com que poemas, romances, cartas, processos, jornais e fotografias foram articulados para a compreensão de um problema labiríntico confere unidade e coerência aos três eixos da obra e à temática que os perpassa, ajudando-nos a pensar os dilemas de um “país ao mesmo tempo desenvolvido e subdesenvolvido, moderno e atrasado” (Ridenti, 2022: 22. Ridenti, Marcelo. (2022). O segredo das senhoras americanas: intelectuais, internacionalização e financiamento na Guerra Fria. São Paulo: Editora Unesp, 406 p.).

O primeiro eixo desdobra a experiência de Jorge Amado no circuito cultural Paris-América Latina para pensar os legados da “cultura comunista” para o “terceiro mundo”. Em seguida, os processos de internacionalização da “cultura liberal” foram vistos por meio dos laços entre o Congresso pela Liberdade da Cultura e sua revista Cadernos Brasileiros, focalizando, especialmente, as trajetórias e trabalhos de Mário Pedrosa, Celso Furtado e Florestan Fernandes. Por fim, é apresentado o projeto de “formação, internacionalização e institucionalização de lideranças” nacionais em solo estadunidense, promovido pela Associação Universitária Interamericana entre os anos 1960 e 1970, instituição nascida da “ideia de Mildred Sage de organizar o trabalho voluntário de senhoras do”círculo empresarial multinacional paulista” (Ridenti, 2022: 2712. Ridenti, Marcelo. (2022). O segredo das senhoras americanas: intelectuais, internacionalização e financiamento na Guerra Fria. São Paulo: Editora Unesp, 406 p.).

Interessou a Ridenti observar como os “agentes negociaram com os poderes estabelecidos dentro das constrições da Guerra Fria, que impunham limites e exerciam pressão sobre suas ações”, mantendo sempre em vista, no entanto, que estes sujeitos também “tinham relativa autonomia, às vezes ultrapassando a fronteira do que era possível” (Ridenti, 2022: 3732. Ridenti, Marcelo. (2022). O segredo das senhoras americanas: intelectuais, internacionalização e financiamento na Guerra Fria. São Paulo: Editora Unesp, 406 p.).

O segredo das senhoras americanas é resultado de uma pesquisa longeva, de mais de uma década, que Ridenti desenvolveu em bibliotecas e acervos da Europa e das Américas, onde buscou elementos que lhe permitissem reconstruir analiticamente os caminhos dos investigados em seus trabalhos, sempre em dupla direção: por vezes repetindo-os, ora recalibrando-os a partir da produção intelectual de artistas, professores, militantes etc.

A cultura foi, então, elemento orgânico da construção dos sentidos do possível para esses atores, implicada diretamente na realização truncada da própria estrutura da sociedade de classes na periferia e dos rumos nacionais. Ela é a chave interpretativa de O segredo das senhoras americanas, um recurso heurístico submetido reiteradamente ao escrutínio do autor no decorrer desse texto e de outros trabalhos, sem que para isso fosse necessário sufocá-la em algum modelo teórico por demasiado restritivo. Nesse sentido, é digno de nota que somente o adjetivo “cultural” permaneça das primeiras possibilidades ao título escolhido para a obra.

Parece-me que o argumento geral que atravessa os capítulos do livro diz respeito à capacidade de a cultura orientar as lutas sociais pelos rumos da mudança. No caso do livro, no período imediato pós-1945, por meio da conformação de vínculos que superaram as fronteiras nacionais, seja na elaboração, disputa e contenção dos novos pactos coletivos em substituição àqueles destroçados pelo nazifascismo na Europa ou pelos destinos do capitalismo e da democracia nas Américas.

Comunistas, socialistas, anarquistas, liberais, social-democratas, reformistas, anticapitalistas e anticomunistas reelaborando a matéria social por meio de redes de colaboração e circulação de ideias e pessoas. Assim a cultura é vista por Ridenti: em permanente atuação; como parte imprescindível — e não socialmente desvinculada — da produção de solidariedades fundadas por meio de acordos e dissensos, da formulação de sonhos, angústias e desejos coletivos, e, portanto, como substrato social vivo das dimensões ideológicas e utópicas que colocam as experiências de sujeitos em movimento — como o autor recupera dos trabalhos de Raymond Williams e Michael Löwy.

II

Permito-me sugerir que as dinâmicas culturais observadas por Marcelo Ridenti acabam por conectá-lo, em certo sentido, a Pablo Neruda, Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes, Jorge Amado, Louis Aragon, Zélia Gattai, Graciliano Ramos, Mário Pedrosa, Celso Furtado, Florestan Fernandes, entre outros. O aprendizado social desses personagens sobre seu tempo — esquadrinhados ao longo do trabalho de Ridenti — se reatualizam nas formulações teórico-metodológicas do autor, permitindo-nos pensar nas entrelinhas do texto os desafios que sua própria geração e as subsequentes têm de enfrentar.

Por não ser seu objetivo, é apenas na conclusão do livro que essa impressão se expressa literalmente: “É preciso dizer que enquanto realizava esta pesquisa, o passado ressurgia desfigurado como um fantasma sobre o presente” (Ridenti, 2022: 3792. Ridenti, Marcelo. (2022). O segredo das senhoras americanas: intelectuais, internacionalização e financiamento na Guerra Fria. São Paulo: Editora Unesp, 406 p.).

Texto e contexto articulados, de um lado, pelo arcabouço teórico-metodológico da análise sobre as redes intelectuais na Guerra Fria cultural, e, de outro, como decorrência dos paralelos implícitos com a conjuntura em que o estudo se desenvolve, a qual tende a aparecer no contexto periférico sempre como reatualização das crises de um passado que não é superado.

Trata-se de um trabalho sociológico que internaliza o permanente movimento entre o passado e as frestas do futuro — localizado empiricamente nas entrevistas e documentos para a construção da pesquisa —, sobretudo, preocupando-se em sustentar o que Marcelo Ridenti define no segundo capítulo como significados da experiência intelectual em sociedades de veio patriarcal-escravista. É por esse caminho que transitam as personagens, suas ideologias e utopias, alocando-se no Congresso pela Liberdade da Cultura ou no Conselho Mundial da Paz, em Mundo Nuevo ou na Casa de las Américas, em Cadernos Brasileiros e na Associação Universitária Interamericana.

No caso do percurso autoral, o próprio pensamento do pesquisador é orientado pela trajetória de suas reflexões pregressas e que, por ora, desaguam nas contribuições originais desse livro, marcado por uma conjuntura particular, mas que, ainda assim, não restringiu sob nenhuma hipótese a imaginação sociológica de Ridenti na preparação e feitura das etapas de pesquisa — descritas ao longo de todo o texto.

III

Há um aspecto interessante, porém velado, na constatação de que o passado ressurge desfigurado como um fantasma ao longo do processo de preparação do trabalho. Ele somente pôde ressurgir como assombração do presente porque o livro é parte de um itinerário intelectual mais amplo que vem servindo de alimento aos “demônios” (ver Ortiz, 20081. Ortiz, Renato. (2008). Octávio Ianni: a ironia apaixonada. Sociologias, 10/20.) do sociólogo, estes reunidos ao redor do tema cultura, mas também alimentados por esta, de modo que os fantasmas da História reaparecem instigados pelos demônios do pesquisador, que se mantém engajado e atuante na compreensão do mundo ao formulá-lo.

São os enfrentamentos constantes que o sociólogo empreende com a bibliografia consolidada sobre o período e com trabalhos mais recentes, que lhe permitem abrir novas perspectivas para um objeto clássico das ciências humanas e sociais brasileiras, como apontar empiricamente as impossibilidades de se tomar parte da intelectualidade latino-americana do pós-guerra como “inocentes úteis” (ver Ridenti, 20222. Ridenti, Marcelo. (2022). O segredo das senhoras americanas: intelectuais, internacionalização e financiamento na Guerra Fria. São Paulo: Editora Unesp, 406 p.) ou meros cooptados pelo capital internacional. Em outras palavras, os assombros do processo social pairam sobre o texto em razão do modo como o autor coloca seus problemas de investigação, levando ao limite possível a força de seus demônios. Eles tornam-se “capazes de embaralhar a ordem estabelecida das ideias e rearranjá-las através da linguagem das Ciências Sociais” (Ortiz, 20081. Ortiz, Renato. (2008). Octávio Ianni: a ironia apaixonada. Sociologias, 10/20.), encontrando “um mecanismo que nos projete à frente algo dinâmico que contraste com a inércia das coisas e da vida” (Ortiz, 20081. Ortiz, Renato. (2008). Octávio Ianni: a ironia apaixonada. Sociologias, 10/20.).

O segredo das senhoras americanas é fruto da “inquietação intelectual” de Marcelo Ridenti, o que aparece no texto pela ênfase atribuída à noção de cultura como elemento da “conquista de mentes e corações”. Ela permite conceitualizar a variedade de soluções intelectuais dadas ao conflito e à contradição social pelos agentes mais diversos de uma rede transnacional de ideias, valores e sentimentos, e que não necessariamente foram dialéticas ou emancipatórias, mas que indicam que o jogo estava ali para ser jogado à medida do possível.

No sentido das disputas intelectuais, o sociólogo também toma a Sociologia, que não se encerra em si mesma, como uma ferramenta para a ordenação do mundo social. Se é a cultura que orienta de maneira mais ampla o artesanato intelectual de Marcelo Ridenti, o próximo desafio de O segredo das senhoras americanas será o de revisitá-lo à luz do romance Arrigo (20233. Ridenti, Marcelo. (2023). Arrigo. São Paulo: Boitempo.), uma outra forma de imaginação sobre o social e que surge de um novo enfrentamento com seus demônios.

REFERÊNCIAS

  • 1.
    Ortiz, Renato. (2008). Octávio Ianni: a ironia apaixonada. Sociologias, 10/20.
  • 2.
    Ridenti, Marcelo. (2022). O segredo das senhoras americanas: intelectuais, internacionalização e financiamento na Guerra Fria. São Paulo: Editora Unesp, 406 p.
  • 3.
    Ridenti, Marcelo. (2023). Arrigo. São Paulo: Boitempo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2023
  • Aceito
    26 Jun 2023
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