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TRÊS ENGATES ESTRUTURAIS DA SOCIOLOGIA DA PUNIÇÃO EM TEMPOS NEOLIBERAIS

Laurindo Dias Minhoto. (2021). Sistemas sociais e regimes punitivos na constelação neoliberal. São Paulo: ESA OAB-SP, 299 p. Minhoto, Laurindo Dias. Sistemas sociais e regimes punitivos na constelação neoliberal São Paulo ESA OAB-SP 299 2021

Sistemas sociais e regimes punitivos na constelação neoliberal , de Laurindo Dias Minhoto, foi apresentado inicialmente como tese de livre docência ao Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (DS-FFLCH-USP). O (agora) livro apresenta oito artigos e três intervenções na imprensa, além de uma introdução e considerações finais, cobrindo parte importante da trajetória do autor, desde seu ingresso no DS-USP, em 2010, até a defesa de tese de livre docência, em 2019. Dessa maneira, o livro apresenta uma rica trajetória composta por pesquisas, diálogos, filiações institucionais e intelectuais e, sobretudo, de reflexões sobre a teoria social, que vão se deslocando, ampliando e ganhando camadas de complexidade e de sofisticação, sem nunca perder do horizonte o compromisso ético com a crítica — e com a teoria crítica.

Se progressões funcionais podem caminhar formal e substantivamente entre a autocelebração do próprio candidato e/ou o despacho administrativo, uma exigência formal do processo, neste caso Minhoto viveu o momento como prática autorreflexiva, de modo que o exercício de articulação de conjunto é notável. E é justamente nessa articulação de conjunto que emerge a grande contribuição do livro, situando os debates atuais sobre o neoliberalismo no âmbito da sociologia da punição, fazendo deste último um domínio privilegiado para a análise do primeiro. Tal tarefa é cumprida de forma absolutamente autoral, abrindo uma agenda de pesquisas instigante nesses dois campos já quase saturados, tamanha a produção a respeito. Segundo o próprio autor a noção de neoliberalismo é um “pântano semântico cujo valor analítico é no mínimo incerto”, dada a sua gigantesca difusão no debate público e acadêmico, que quando aplicada ao tema da punição geralmente ganha contornos alusivos e abusivos, sem as devidas mediações argumentativas e o necessário rigor conceitual. No caso da trajetória de Laurindo Minhoto, isso foi sendo construído com serenidade e persistência, articulando três dimensões:

Dos estudos sobre governamentalidade procura-se indicar que o governo das condutas (do indivíduo e das populações) e do espaço urbano por via da construção e gestão de riscos não se dá sem o reforço da coerção disciplinar e da exceção soberana; do debate sobre a apropriação crítica da teoria dos sistemas sociais, procura-se caracterizar o neoliberalismo como império da cognição econômica em distintos sistemas e organizações sociais; e da tradição de reflexão crítica sobre a experiência brasileira, procura-se flagrar na constelação neoliberal uma dialética de eficiência autoritária (Minhoto, 2021Laurindo Dias Minhoto. (2021). Sistemas sociais e regimes punitivos na constelação neoliberal. São Paulo: ESA OAB-SP, 299 p.: 19).

Talvez o autor me permitisse dizer que esses são os três “engates estruturais” que articulam o conjunto do livro e de sua trajetória, cada qual se referindo a momentos (não puramente cronológicos) de seu percurso intelectual. Por meio da trama desses três engates estruturais o ponto de partida do autor é retomado e requalificado, enriquecendo, desdobrando e aprofundando a reflexão autoral. É como se, no acerto de contas com algumas aporias constitutivas de sua formação, emergisse a necessidade de situá-las tanto nas raízes da modernidade periférica brasileira, como também nas inflexões da nossa desafiadora atualidade.

A entrada do autor no seio da teoria crítica (capítulos 1, 2 e 3), ainda que não restrita, mobiliza de forma mais detida a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann e a dialética negativa de Theodor Adorno. De fato, “a constituição simultânea de sistema e ambiente é — na forma como ela é concebida por Luhmann — dialética negativa em ato ” (Minhoto, 2021Laurindo Dias Minhoto. (2021). Sistemas sociais e regimes punitivos na constelação neoliberal. São Paulo: ESA OAB-SP, 299 p.: 64). De forma específica, o autor explora as “afinidades eletivas” das relações sistema-ambiente e sujeito-objeto, ambos pares concebidos como disjuntivos no sentido da não correspondência, e simultaneamente dependentes de sua relacionalidade. É, portanto, no nível dos pressupostos que essa aproximação entre os autores é realizada. A proposta de Laurindo Minhoto é alinhavar o ferramental de Luhmann, sua modelagem sociológica descritiva, para o entendimento da conhecida tendência causadora de desdiferenciação das distintas esferas da vida pelo avanço da economização da sociedade e a racionalidade irracional da razão instrumental. Isso não é em nada evidente e procura, a meu ver, tensionar descrição e análise do projeto moderno de autonomia das esferas parciais, levando em conta a extensão e profundidade do processo de economização como parte constitutiva do problema a ser investigado.

Tal operação é posta em ressonância com o debate acerca do neoliberalismo que vem sendo conduzido pela leitura de parte dos cursos do Collège de France de Michel Foucault (capítulos 4, 6 e 7). Embora haja diferenças importantes entre a abordagem frankfurtiana e a chamada racionalidade política foucaultiana, às quais Laurindo Minhoto está atento, a aproximação é oportuna porque fecunda. Agora no nível dos mecanismos e efeitos societários, trata-se de articular os diagnósticos da modernidade realizados (em termos de administração da vida e disciplina), e, para o caso da nossa atualidade, compreender como o neoliberalismo afeta o Estado, o Direito e, particularmente, o sistema de justiça criminal. Afinal de contas, se a racionalidade neoliberal foucaultiana lança mão de uma analítica da forma empresa e da competição como indexadores de um regime de veridição econômico aplicado ao que o autor chama de “domínios não econômicos”, estaríamos próximos da desdiferenciação funcional, que é uma espécie de dissolução das diferenças de outras esferas da vida, figuração contemporânea da reificação como conversão da heterogeneidade em identidade, presentes na escola de Frankfurt.

De forma mais situada, o Estado passa a atuar por meio da racionalidade neoliberal, rompendo as fronteiras entre economia, direito e política características das promessas modernas que entrelaçavam o welfarismo penal (capítulos 5 e 6). Nessa interface, o sistema de justiça criminal, cada vez mais desconstitucionalizado e regido pela égide da eficiência, é exemplar. A excelente composição dos principais autores desse debate é esclarecedora do argumento de Laurindo Minhoto. Seguindo David Garland, Loïc Wacquant e Beckett e Western, as linhas de tensão se delineiam no governo atuarial no controle do crime, na securitização da condução de condutas, na avaliação da própria performance dos operadores do sistema de justiça criminal, na punição da pobreza via aumento de gastos com o este em detrimento de programas sociais, no reforço das linhas racializadas dos contornos urbanos do gueto e em sua relação com o cárcere, no retorno do banimento e/ou proibição de circulação em certos espaços e na dissimulação punitiva e penal por meio do direito administrativo. O ponto cego, segundo Laurindo, é a centralidade analítica do espaço urbano, que não é somente fundo de uma figura mais geral, mas constitutiva das tecnologias de governo neoliberais do sistema de justiça criminal (capítulo 7).

A contribuição do livro, sua articulação de conjunto, completa-se por meio do terceiro “engate estrutural”, por meio do qual o todo é complexificado (capítulos 5 e 8). Em países como o Brasil, tematizar a “crise da penalidade moderna” por meio da imagem de um Jano bifronte não faz sentido e é questão resolvida há muitas gerações de pesquisadores brasileiros. Somente em países metropolitanos a volta da vingança como política de estado e a legibilidade atuarial poderiam parecer contraditórias, vetores que apontam para direções distintas ou incompatíveis com a modernidade penal. O fim do ideal reabilitador, tomado como horizonte autoritário na mediação estatal dos conflitos, assim como a sua relação com o neoliberalismo ou a pós-modernidade, parece um argumento igualmente ingênuo. Isso porque a modernidade (e a crítica) na periferia do capitalismo já apontava há tempo que eficiência e autoritarismo são conceitos afins, relacionados e indissociáveis, tendo por base a coexistência relacional entre capitalismo e escravidão. Nesse tipo de capitalismo, a coerção e a violência sempre foram constitutivas de nossa história (e não de uma pré-história); o suplício se articula com dispositivos disciplinares e de segurança, e a racionalidade moderna conviveu de perto com o favor. Por fim, em nossa atualidade, talvez até mesmo a dualidade entre centro-periferia possa ser posta em xeque pela tendência de o antigo centro estar cada vez mais parecido com a periferia.

Desta forma, se o capitalismo e o regime punitivo brasileiro (e “periférico”) são posições privilegiadas para o diagnóstico deste tempo presente híbrido, cabe como tarefa em aberto a genealogia que permitiu uma certa acumulação da violência na qual economia, estado e direito se entrelaçam de forma singular. E, nesta direção, a centralidade dos arranjos extorsivos, coextensivas à história brasileira e cujo ponto culminante talvez sejam as chamadas milícias, apontam para passagens pouco conhecidas de Theodor Adorno e Max Horkheimer na elaboração da chamada racket theory (capítulo 8). Aqui, pensando uma reconfiguração das relações de classe e do regime de acumulação, o sentido e o valor heurístico das práticas de extorsão ganham outra dimensão, na qual sua funcionalidade para as transformações do capitalismo é central. Recomposições dos ilegalismos que apontam para uma vanguarda do atraso? Seguirei atento aos desdobramentos das reflexões de Laurindo Minhoto, e convido o leitor não iniciado a adentrar o livro para seguir de perto este percurso.

Referências

  • Laurindo Dias Minhoto. (2021). Sistemas sociais e regimes punitivos na constelação neoliberal. São Paulo: ESA OAB-SP, 299 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2023
  • Aceito
    03 Abr 2023
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