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OS VALORES MORAIS DA GRADUAÇÃO DE ENFERMAGEM: PERCEPÇÃO DE PROFESSORES E ESTUDANTES

RESUMO

Objetivo:

comparar os valores morais que professores e estudantes de enfermagem consideram importantes para a formação profissional com aqueles que eles acreditam que são promovidos ao longo da graduação.

Método:

pesquisa qualitativa; um estudo etnográfico realizado em uma faculdade pública de enfermagem do estado do Rio de Janeiro, em 2018, envolvendo 40 entrevistas com professores e estudantes e uma fase de observação participante.

Resultados:

os valores morais que os professores e estudantes avaliam ser importantes para a formação profissional, bem como aqueles que são promovidos, convergem para a prudência, o respeito, a responsabilidade e a empatia. Vale destacar que o conhecimento foi muito citado pelos entrevistados e, este artigo, interpretou-o como prudência. Todavia, em relação aos valores promovidos ao longo da graduação, os estudantes alertam que estes são estimulados quando referem-se ao binômio estudante-usuário de saúde, pois não sentem na mesma intensidade a presença desses valores morais na relação professor-estudante.

Conclusão:

uma potente estratégia para ensinar sobre os valores morais é promover o cuidado dos seus próprios estudantes, professores e funcionários. Dessa maneira, evitam-se desencontros entre o que se diz e o que se faz ao vivenciar os valores como a prudência, o respeito, a responsabilidade e a empatia dentro das relações interpessoais e no cotidiano da faculdade.

DESCRITORES:
Educação em enfermagem; Ética; Ética deontológica; Ética em enfermagem; Moral

ABSTRACT

Objective:

to compare the moral values that nursing teachers and students consider important for vocational training with those they believe are promoted throughout undergraduate study.

Method:

a qualitative research; an ethnographic study conducted at a public nursing school in the state of Rio de Janeiro, in 2018, involving 40 interviews with teachers and students and a participant observation phase.

Results:

the moral values that teachers and students consider important for vocational training, as well as those that are promoted, converge on prudence, respect, responsibility, and empathy. It is noteworthy that the knowledge was much cited by the respondents and this article interpreted it as prudence. However, in relation to the values promoted during undergraduation, students warn that these are stimulated when referring to the binomial student-user of health, because they do not feel to the same intensity the presence of these moral values in the teacher-student relationship.

Conclusion:

a powerful strategy for teaching about moral values is to promote the care of their own students, teachers and staff. In this way, mismatches are avoided between what is said and what is done by experiencing values such as prudence, respect, responsibility and empathy within interpersonal relationships and in the daily life of the school.

DESCRIPTORS:
Nursing education; Ethics; Deontological ethics; Ethics, nursing; Moral

RESUMEN

Objetivo:

comparar los valores morales que los profesores y estudiantes de enfermería consideran importantes para la formación profesional con los que creen que se promueven a lo largo de la carrera de grado.

Método:

investigación cualitativa; un estudio etnográfico realizado en el año 2018 en una facultad pública de enfermería del estado de Río de Janeiro, por medio de 40 entrevistas con profesores y estudiantes y una fase de observación de los participantes.

Resultados:

los valores morales que los profesores y estudiantes evalúan como importantes para la formación profesional, al igual como los que se promueven, convergen en la prudencia, el respeto, la responsabilidad y la empatía. Cabe destacar que el conocimiento fue muy citado por los entrevistados y, en este artículo, se lo interpretó como prudencia. Pese a ello, en relación con los valores promovidos a lo largo de la carrera de grado, los estudiantes manifiestan que se los fomenta cuando se refieren al binomio estudiante-usuario de servicios de salud, puesto que no sienten con la misma intensidad la presencia de estos valores en la relación profesor-estudiante.

Conclusión:

estamos frente a una poderosa estrategia para enseñar sobre los valores morales y promover el cuidado de sus propios estudiantes, profesores y personal administrativo. De esta manera, se evitan desencuentros entre lo que se dice y lo que se hace al respetar valores como la prudencia, el respeto, la responsabilidad y la empatía dentro de las relaciones interpersonales y en la vida cotidiana de la facultad.

DESCRIPTORES:
Educación en enfermería; Ética; Ética deontológica; Ética en enfermería; Moral

INTRODUÇÃO

A finalidade da educação, desde o ensino básico até o ensino superior, é formar pessoas que saibam, além de governar sua própria vida, viver em sociedade. Ou seja, educação não se trata somente de realizar um bem individual - a formação profissional, por exemplo -, mas também de formar pessoas capazes de almejar um bem coletivo. Portanto, a educação deve ser responsável por promover valores democráticos. Para isso, faz-se necessária uma educação pautada em valores morais que leve ao desenvolvimento ético do sujeito.11. Macintyre A. After virtue: a study in moral theory. 3rd ed. Indiana (US): University of Notre Dame Press; 2007. -22. Casado M, Martínez M, Neves MCP. eds. Declaration on ethics and integrity in university teaching. Barcelona (ES): University of Barcelona; 2018.

A educação moral nas universidades brasileiras é frequentemente associada ao ensino do código de ética, através da mera inclusão de disciplinas deontológicas, favorecendo o conhecimento das leis profissionais, porém, geralmente sem as reflexões necessárias para a promoção da autonomia moral. Não obstante, a dimensão ética do ensino superior não se restringe as questões deontológicas.33. Finker M, Ramos FRS. The ethical dimension f Higher Education in Dentistry: a study in Brazil. Bordón [Internet]. 2017 [cited 2019 Aug 10]; 69(4):35-49. Available from: https://dx.doi.org/10.13042/bordon.2017.690403
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Lamentavelmente, nas universidades brasileiras ainda se nota a valorização do saber técnico e científico, ajustando a formação profissional conforme a lógica do mercado de trabalho, o que provoca uma marginalização das discussões de caráter moral.44. Finker M, Negreiros DP. Training x education, Deontology x ethics: rethinking concepts and repositioning professors. Rev ABENO [Internet]. 2018 [cited 2019 Apr 29];18(2):37-44. Available from: https://doi.org/10.30979/rev.abeno.v18i1.516
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Assim, a enfermagem, mesmo tendo como princípio da profissão o cuidado do outro sob a perspectiva da integralidade, muitas vezes deixa suas ações aquém das expectativas. Em vista disso, o Ministério da Educação instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN)55. Brasil. Resolução CNE/CES nº 3, 7 de novembro de 2001: Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem. Diário Oficial da União, Brasília, DF(BR), 7 set. 2001. http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/ces03.pdf
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definindo as competências e habilidades esperadas para os profissionais de enfermagem, com a finalidade de propor mudanças curriculares que aproximem o perfil do egresso aos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). Uma das mudanças centra-se em formar um profissional humanista, crítico e reflexivo, o que exige um investimento no ensino da dimensão ética.

Considerando o forte elo da enfermagem com a ética, devido às relações de cuidado inerentes à profissão, a formação moral na graduação permeia os mais diversos cenários de aprendizagem, de maneira planejada ou não. Cabe aos professores conscientizarem-se da grandiosidade do caráter social de seu papel, não só pela formação de profissionais que façam bem as suas funções, mas também pela formação de cidadãos que façam o bem.44. Finker M, Negreiros DP. Training x education, Deontology x ethics: rethinking concepts and repositioning professors. Rev ABENO [Internet]. 2018 [cited 2019 Apr 29];18(2):37-44. Available from: https://doi.org/10.30979/rev.abeno.v18i1.516
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A educação moral supõe uma tarefa construtiva tendo em vista que ela não se dá pela imposição de valores, não advém apenas do processo de socialização ou do desenvolvimento moral e tampouco reduz-se à aquisição de hábitos virtuosos. Puig66. Puig JM. La construcción de la personalidad moral. Barcelona (ES): Paidós; 1996. acredita que essas teorias, de forma isolada, são incompletas, que elas devem ser pensadas de maneira complementar; portanto, considera educação moral como um processo de construção da personalidade moral. Segundo o autor, a construção da personalidade moral depende da experiência que o meio é capaz de proporcionar, do uso dos instrumentos da consciência moral e deve contar com um guia de valores que auxilie no direcionamento moral da ação.

Para que os professores possam facilitar o processo de construção da personalidade moral dos seus estudantes, devem, juntamente com a instituição, ter claros os valores morais que pretendem promover. Quais seriam os valores morais desejados para a formação de enfermeiros? Qual o perfil profissional que se almeja formar? Será que os valores morais que julgamos importantes para a formação são os mesmos que conseguimos promover em nossas práticas docentes? Esses foram alguns questionamentos que impulsionaram essa pesquisa e, ao buscarmos respostas na literatura, observamos uma escassez de investigações envolvendo essa temática. Considera-se que os valores morais são trabalhados de maneira implícita e não planejada nos currículos de enfermagem, o que gera margem para a dissonância entre o dito e o praticado.

Assim, o objetivo deste artigo foi comparar os valores morais que professores e estudantes de enfermagem consideram importantes para a formação profissional com aqueles que eles acreditam que são promovidos ao longo da graduação.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa. Foi realizada uma etnografia, ou seja, uma imersão com contato direto e prolongado com o objeto de pesquisa, conduzida com uma sensibilidade reflexiva e composta através do olhar, do ouvir e do escrever.77. Geertz C. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, RJ(BR): LTC Editora; 1989. p.13-41. O olhar constituiu-se por meio da observação participante, o ouvir com as entrevistas individuais a professores e estudantes de enfermagem e o escrever foi sendo construído a partir dos registros do diário de campo. Os dados foram coletados no ano de 2018.

O convite para a participação na pesquisa foi feito a todos os docentes da faculdade, pessoalmente, durante as reuniões de departamento. O convite para todos os discentes foi realizado em sala de aula, com autorização prévia dos professores das disciplinas. Os participantes da pesquisa foram aqueles que manifestaram interesse, respeitando-se os critérios de inclusão: discentes matriculados do primeiro ao quarto ano da graduação em enfermagem e que cursaram todos os períodos anteriores ao atual na instituição pesquisada; e docentes com contrato efetivo que lecionavam do primeiro ao quarto ano de enfermagem, com carga horária igual ou superior a vinte horas e que estavam na instituição há mais de quatro anos.

O estudo envolveu 40 participantes de pesquisa, dos quais 20 eram docentes e 20 eram discentes. Entre os docentes, havia 17 mulheres e 3 homens, com tempo médio de trabalho na instituição de 16,3 anos e a seguinte distribuição: quatro professores lecionavam no primeiro ano da graduação, seis no segundo ano, seis no terceiro ano e quatro no quarto ano. Havia, no mínimo, dois professores de cada período letivo. A maioria dos professores (18) era de enfermeiros.

A população de discentes foi composta de 17 mulheres e 3 homens, de 18 a 29 anos, com predomínio na faixa de 20 a 23 anos. Cinco estudantes estavam no primeiro ano, quatro cursavam o segundo ano, sete o terceiro ano e quatro já estavam no último ano. Um deles participava do centro acadêmico.

A observação participante ocorreu nas disciplinas dos professores que participaram das entrevistas, quer em atividades teóricas ou práticas, e também nos espaços de convivência da universidade, como corredores, salas de espera e coordenação. Alguns exemplos de pontos observados foram: se havia respeito e diálogo entre professores e estudantes; se o professor problematizava situações reais para discussão de valores morais e se havia espaços que proporcionavam a vivência de valores morais.

As entrevistas foram gravadas sem a identificação dos participantes e, depois de transcritos, os áudios foram apagados para que não houvesse identificação da voz dos mesmos, guardando-se apenas as transcrições, identificadas com as siglas DO1, DO2 (...), para as entrevistas com os docentes, e DI1, DI2 (...), para as entrevistas com os discentes.

As perguntas norteadoras das entrevistas foram quais os valores morais que os participantes consideravam importantes para a formação do enfermeiro e quais eles acreditavam que eram promovidos ao longo do curso. Também foi perguntado qual era o perfil de profissional de enfermagem que eles idealizavam. Vale sinalizar que em alguns momentos, tantos os estudantes quanto os professores demonstraram dificuldade em responder algumas perguntas. Como forma de amenizar a situação, certas palavras e/ou frases foram reformuladas com uma linguagem mais simples.

O tratamento dos dados deu-se através da análise temática do conteúdo, segundo Minayo,88. Minayo MCS. Fase de análise do material qualitativo. In: Minayo MCS, editor. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. Rio de Janeiro, RJ(BR): HUCITEC; 2014. p. 303-60. obedecendo às etapas: 1) pré-análise dos resultados, que determina uma leitura flutuante e apropriação exaustiva dos dados alcançados; 2) exploração do material, que consiste em encontrar as categorias que expressam o conteúdo das falas e registros do diário de campo, para então classificar e agregar os dados; e 3) tratamento e interpretação dos dados obtidos, correlacionando com referenciais teóricos.

A pesquisa foi conduzida de acordo com os padrões éticos exigidos segundo a Resolução n 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde.

RESULTADOS

Antes de adentrar na análise das falas dos entrevistados, cabe esclarecer como os valores são construídos pelos indivíduos, para compreender por que um ser humano se apropria de certo valor e de outros não. Segundo Piaget,99. Piaget J. La relación del afecto con la inteligencia en el desarrollo mental del niño. In: Delahanty G, Perrés J, editors. Piaget y el psicoanálisis. Xochimilco (MX): Universidad Autónoma Metropolitana; 1994. p. 181-289. os valores são construídos de acordo com as trocas afetivas que o sujeito realiza com o mundo, ou seja, são aquilo que ele valora a partir da sua interação, podendo ser morais ou não. Todos os seres humanos constroem valores não morais, pois é inerente à natureza humana valorar coisas, pessoas ou situações. Entretanto, a construção de um valor moral depende da qualidade das interações, portanto seu processo não é natural e simples. Aqui entra o papel da educação em valores, no estabelecimento de estratégias que visem à promoção dos valores morais socialmente desejáveis nas atividades escolares.1010. Arantes VA. Educação e valores. 2nd ed. São Paulo, SP(BR): Summus Editorial; 2007.

Os valores emergidos das falas dos professores e estudantes são aqueles que de alguma maneira foram se constituindo como significativos ao longo de sua vida. Observou-se que nem todos os valores citados eram morais, mesmo quando a pergunta conduzia especificamente para esse campo.

Os valores morais importantes

Os docentes, quando interrogados sobre quais os valores morais que devem ser trabalhados na graduação de enfermagem, centraram-se em alguns como: empatia, respeito, responsabilidade, ter conhecimento científico, se atualizar, ser ético, ter compaixão, solidariedade, ser verdadeiro, honesto, ter autonomia e sensibilidade. Uma amostra da menção aos valores morais pode ser observada no exemplo abaixo:

Empatia para mim é o principal. Você se colocar no lugar do outro para você ter noção do cuidado que você quer prestar, porque sem empatia, sem dedicação... mas também não basta ter empatia sem ter dedicação para se aprofundar nos conhecimentos (DO19).

Já os discentes, de maneira muito semelhante, apontaram a empatia, o respeito, a responsabilidade, o conhecimento científico, a ética profissional, a honestidade, a lealdade e a sensibilidade como valores morais importantes para sua formação. A citação abaixo também é ilustrativa:

Acho que o principal é o respeito, porque a gente precisa do respeito do professor para com a gente, da gente com os enfermeiros com os quais nós atuamos na prática [...] respeito com a nossa profissão; respeito com a coordenação. Então eu acho que é ele que norteia o nosso cuidado e a nossa atenção (DI17).

Durante a observação participante, foi possível vivenciar diversas situações que abrangiam os valores morais. A aula inaugural e a aula magna, que são conferências para iniciar o ano letivo da faculdade, apresentaram um discurso esperançoso sobre a educação para a cidadania, em que foram mencionados valores como amor, empatia, sensibilidade, responsabilidade, solidariedade, liberdade, respeito e igualdade. Já em disciplinas específicas, além dos valores citados, as falas aludiam a valores como confiança, honestidade, simpatia, paciência, vínculo, diálogo, justiça e coerência com o código profissional. Andar pelos corredores da universidade também é, inevitavelmente, conviver com a diversidade. A heterogeneidade convida a promover uma convivência mais harmoniosa entre todos através de cartazes sobre empoderamento negro, contra a homofobia, há poesias, recados de autoajuda e convites a grupos de oração, um rico e vasto pluralismo moral.

Outra maneira de obter respostas acerca dos valores morais que os participantes da pesquisa julgam ser importantes para a graduação foi perguntar sobre o perfil profissional que eles idealizam como o de um bom profissional. Essa questão remete aos valores morais, pois para respondê-la selecionamos as características que mais admiramos, revelando se em nossas prioridades há conteúdos morais ou não. Com relação às respostas, o valor evocado com maior intensidade foi o conhecimento:

Reflexivo, crítico, articula teoria e prática, empático, humano, que tenha conhecimento científico e que saiba trabalhar em equipe (DO1).

Primeiramente, ter conhecimento científico, porque tem que ter muita pesquisa, muita sabedoria, muito estudo. Também saber lidar com os problemas dos outros, ser criativo, ter empatia, ser educado com o paciente (DI5).

Os valores morais promovidos

Quando questionados sobre quais valores morais conseguem promover dentro da graduação de enfermagem, os docentes reconhecem de forma mais unânime o respeito, a empatia, a responsabilidade, a humanização, a honestidade, o diálogo, a autonomia e a verdade.

Segue a fala de um professor a respeito dos valores morais promovidos por ele: Eu não trabalho todos [os valores morais] em todas as aulas, mas nas minhas aulas eu trabalho sempre algum, como o diálogo, o compartilhamento de saberes, a horizontalidade na relação profissional-usuário. E eu trabalho para além do discurso teórico, eu trabalho no exemplo; faz parte da minha postura enquanto professora a pontualidade, por exemplo (DO4).

Em relação aos valores morais que os discentes consideram que estão sendo promovidos na graduação de enfermagem, eles demonstram-se mais otimistas que os docentes, pois identificam mais circunstâncias em que ocorre a educação em valores. A maioria afirma que os valores morais citados têm sido trabalhados ao longo do curso, fato representado na citação: Eu acho que empatia foi muito estimulada. Ensinam a me posicionar, a me colocar no lugar do paciente, ver se eu gostaria daquele tratamento para mim ou para minha família (DI1).

No entanto, alguns estudantes também alertam que o estímulo dos valores morais nem sempre extrapola a relação estudante-usuário de saúde, como refere o discente D19:

Eu acho que a hipocrisia está bem alta, porque ao mesmo tempo que a gente ouve que nós temos que ser empáticos, nós não vemos isso por parte de alguns profissionais que nos instruem, sabe? (DI19).

Durante a observação participante, foram vivenciadas situações com foco nos valores morais. Por exemplo, nas atividades práticas em um colégio, um grupo de estudantes de enfermagem trabalhava a prevenção de bullying com jovens e propôs uma dinâmica com o intuito de elevar a autoestima dos indivíduos e promover a valorização do outro. Cada estudante do colégio deixava um bilhete motivacional ou um elogio em uma caixa, sem direcioná-lo a um destinatário específico, e pegava outro bilhete. A atividade incluía discursos de paz, cooperação, solidariedade e empatia. Outro caso observado foi em ambiente hospitalar, onde notei uma aluna pedindo desculpas para o professor por demonstrar que estava emocionada com o caso do paciente. O professor acolheu sua angústia e disse: “Que bom que você se emociona, é sinal de que tem empatia.”

DISCUSSÃO

Em função da extensa lista de valores morais citados na pesquisa, e tendo em vista uma discussão eficiente das informações, será dado foco naqueles mais evidenciados pelos professores e estudantes: a prudência, o respeito, a responsabilidade e a empatia. Não que os demais valores apresentados não serão apontados neste artigo, dado que os limites conceituais entre eles não são rígidos, permitindo assim que se entrelacem durante a discussão. A escolha desses quatro valores é para poder aprofundar a análise sem cair na superficialidade da tentativa de explicar todos.

Vale destacar que o conhecimento foi muito citado pelos entrevistados e, este artigo, interpretou-o como prudência. O conhecimento científico foi referido em muitas falas como um valor moral, o que de início causou surpresa, uma vez que não se encontra entre as virtudes clássicas, como a humildade, a generosidade ou a coragem.1111. Aristóteles, -. Ética a Nicômaco. 4th ed. São Paulo, SP(BR): Edipro; 2014. Por esse motivo, merece realce nessa discussão.

O lugar de fala de onde emergiu o destaque para o conhecimento científico como um valor moral é a universidade, espaço reconhecido como o berço da ciência; consequentemente, sua exaltação nas falas torna-se inevitável. Contudo, o conhecimento, compreendido como informação, não tem um valor moral por si só, pois, sozinho, não contribui para que o indivíduo melhore moralmente enquanto pessoa. Pelo contrário, o conhecimento pode até ser utilizado para usos perversos, como aconteceu na 2ª Guerra Mundial, como por exemplo os testes de hipotermia realizados em cobaias humanas por médicos nazistas.1212. Spitz V. Doctors from hell. Boulder (US): Sentient Publications; 2005. Portanto, pensando assim, seria um equívoco enquadrá-lo como um valor moral. Ao mesmo tempo, podemos vê-lo como um elemento constitutivo das virtudes intelectuais, fato que o aproximaria da esfera moral.

Aristóteles1111. Aristóteles, -. Ética a Nicômaco. 4th ed. São Paulo, SP(BR): Edipro; 2014. classifica as virtudes em dois tipos, virtudes morais e virtudes intelectuais. As primeiras são aquelas que capacitam os homens a realizarem ações nobres, como a generosidade; já as virtudes intelectuais são aquelas que ampliam os nossos conhecimentos, como a sabedoria, o entendimento e a prudência. Esta última atua como uma ponte entre as virtudes morais e as virtudes intelectuais, dado que ela habilita o homem a fazer as escolhas certas sobre a justa medida das virtudes. Dessa maneira, as virtudes morais não podem existir sem as virtudes intelectuais, sobretudo a prudência.1313. Roedel CC. As virtudes intelectuais em Sto. Tomás de Aquino. Anais do III Congresso de Pesquisa e Extensão da Faculdade da Serra Gaúcha [Internet]. 2015 Sept 15-17 [cited 2019 Feb 10]: 308-18. Available from: http://ojs.fsg.br/index.php/pesquisaextensao/article/view/1564
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À vista disso, a valorização do conhecimento científico pelos participantes da pesquisa agregaria relevância na formação moral dos estudantes, desde que este valor estivesse associado às virtudes intelectuais, especialmente a prudência. Ou seja, seria recomendável trabalhar com foco na qualidade do conteúdo, estimulando a compreensão, o discernimento sobre os fatos e a tomada de decisões éticas, em vez de priorizar a quantidade de informações apresentadas.

Ao observar o currículo da instituição pesquisada, nota-se que a quantidade de conteúdo é privilegiada, fato que pôde ser comprovado presencialmente em aulas de algumas disciplinas. Por exemplo, uma delas tinha carga horária de 15 horas, e o professor trabalhou 17 temas distintos, entre eles aborto e eutanásia, o que evidencia a falta de reflexão na abordagem de temas controvertidos.

Outra situação que comprova o enraizamento do perfil conteudista ocorreu durante as atividades práticas hospitalares. Foi observado que os estudantes passavam cinco dias em cada setor do hospital. O professor esclareceu que tanto a equipe docente quanto os próprios discentes preferem passar poucos dias em muitas alas a passar mais dias em uma só ala, pois têm oportunidade de conhecer mais casos clínicos. No entanto, muitos pontos da formação se mostram deficientes com essa justificativa:

  1. Os poucos dias de estágio em um mesmo local não favorecem a formação de vínculos, seja entre estudante e paciente, seja entre estudante e equipe de saúde. Da mesma maneira que só se aprende a realizar um curativo praticando, também só se aprende a construir vínculos vivendo em ambientes que o favoreçam.

  2. Também não propicia um bom acompanhamento clínico dos usuários de saúde. Com frequência observava-se os estudantes se empenharem no planejamento e implementação do plano de cuidado, para no dia seguinte já se deslocarem a outro setor, interrompendo a continuação da sistematização do cuidado e prejudicando a formação de responsabilidade por suas prescrições, afinal, não mais estão ali para avaliá-las.

  3. O fato de cuidarem todos os dias de usuários com casos clínicos distintos (quantidade) não permite que os estudantes tenham tempo hábil para realizarem estudos mais profundos sobre cada situação (qualidade). Tampouco torna possível promover a reflexão na e sobre a ação como elementos potencializadores do ensino da integralidade.1414. Lima MM, Reibnitz KS, Kloh D, Silva KL, Ferraz F. The pedagogical relationship in practical-reflexive education: characteristic elements of teaching integrality in nurse education. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2018 [cited 2019 Mar 11];27(2):1-10. Available from: https://dx.doi.org/10.1590/0104-070720180001810016
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  4. O professor, com esses poucos dias, apresenta dificuldades para avaliar a evolução do estudante, o que limita a construção de uma avaliação formativa.

Tendo sido esclarecida a relação do conhecimento com a prudência, será apresentada a seguir a análise dos demais valores morais citados pelos participantes da pesquisa: o respeito, a responsabilidade e a empatia.

O respeito, segundo Sennett,1515. Sennett R. El respeto. Sobre la dignidad del hombre en un mundo de desigualdad. Barcelona (ES): Editorial Anagrama; 2003. compreende o modo como o indivíduo visualiza e trata o outro; em função disso, ele constitui-se de um aspecto relacional. É a capacidade de comunicar-se com outrem e de implicar-se no mundo, inclusive com aqueles mais distantes. Kant,1616. Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa (PT): Edições 70; 2005. ao reconhecer o valor da dignidade da pessoa humana, em seu imperativo categórico de que todo indivíduo deve ser considerado como um fim em si mesmo, também oferece suporte para a defesa do respeito mútuo, uma vez que não instrumentalizar os indivíduos é reconhecer que cada um merece respeito. O respeito mútuo deve transcender as relações com os mais próximos, bem como abarcar os mais vulneráveis.

O respeito ao usuário de saúde sempre está entre as competências que um estudante deve assegurar durante o estágio, porém nem sempre é cobrada de maneira explícita e expressa nos formatos de avaliação. É o temido item que avalia as atitudes dos estudantes, que, por não compreenderem a importância de valorá-las nas atividades acadêmicas, geralmente acabam tornando-as invisíveis, com a justificativa de que elas se referem ao mundo “subjetivo” e “incontável” de uma avaliação.44. Finker M, Negreiros DP. Training x education, Deontology x ethics: rethinking concepts and repositioning professors. Rev ABENO [Internet]. 2018 [cited 2019 Apr 29];18(2):37-44. Available from: https://doi.org/10.30979/rev.abeno.v18i1.516
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Por esse motivo, fazem-se necessárias mais discussões sobre avaliações formativas e processuais que possam ir para além da memorização e das competências técnicas.

A noção de responsabilidade se entrelaça com o conceito de respeito na medida em que também se constitui com base no outro. A universidade evoca o ensino da responsabilidade profissional moderando a relação existente entre enfermeiros e usuários de saúde, mediante o código de ética da profissão, e requerendo que os enfermeiros exerçam seu oficio com competência, comprometimento, resolutividade e dignidade.55. Brasil. Resolução CNE/CES nº 3, 7 de novembro de 2001: Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem. Diário Oficial da União, Brasília, DF(BR), 7 set. 2001. http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/ces03.pdf
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Deontologia, legislação profissional e exercício da profissão são disciplinas da instituição pesquisada, o que demonstra que o ensino da responsabilidade profissional está entre as suas prioridades educacionais. O conhecimento da lei é importante para a formação da personalidade moral, ajudando a compor a autorregulação do indivíduo. Considerando todos os conflitos de valores existentes no cotidiano da enfermagem, a responsabilidade profissional tem relação direta com a tomada de decisões. Portanto, a responsabilidade não pode restringir-se ao conhecimento e obediência das normas, uma vez que os dilemas morais não são solucionados somente com base nas leis.

A escassez de reflexões frente aos temas controversos em uma instituição de ensino pode ser explicada pela falta da disciplina bioética na matriz curricular. Não significa que a universidade não trabalhe com os temas relacionados à bioética; no entanto, diferenciar a disciplina de bioética de outras que apresentam temas correlatos faz-se necessário para criar e fortalecer espaços que permitam a discussão e a reflexão sobre a tomada de decisão frente aos conflitos morais.1717. Neves Júnior WA, Araújo LZS, Rego S. The teaching of bioethics in medical schools in Brazil. Rev Bioét [Internet]. 2016 [cited 2019 Jan 20];24(1):98-107. Available from: https://dx.doi.org/10.1590/1983-80422016241111
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A responsabilidade também é estimulada ao inserir os estudantes na prática profissional desde o início da graduação, conforme orientação das DCN.55. Brasil. Resolução CNE/CES nº 3, 7 de novembro de 2001: Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem. Diário Oficial da União, Brasília, DF(BR), 7 set. 2001. http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/ces03.pdf
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Estas vivências propiciam o cuidado de enfermagem, o que demanda algum grau de intervenção, estimulando a responsabilidade para com a saúde daqueles usuários.

O respeito e a responsabilidade preparam o terreno para a empatia. A empatia é definida como a capacidade de se colocar no lugar do outro e, através desse processo, poder gerar reações afetivas adequadas em relação ao outro.1818. Hoffman ML. Desarrollo moral y empatía. Barcelona (ES): Idea Books; 2002. O desenvolvimento da empatia não é somente defendido para a formação de enfermeiros, que terão como foco da profissão o cuidado do outro, é desejado para a construção da personalidade moral de todos os indivíduos da sociedade.

O docente deve ter em mente que elaborar práticas pedagógicas que proporcionem o florescimento da empatia é alinhar-se aos fins da educação: formar um cidadão comprometido com a coletividade1919. Jami PY, Mansouri B, Thoma SJ, Han H. An investigation of the divergences and convergences of trait empathy across two cultures. J Moral Educ [Internet]. 2019 [cited 2019 Aug 10];48(2):214-29. Available from: https://dx.doi.org/10.1080/03057240.2018.1482531
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e com um mundo melhor. E o indivíduo só se compromete de fato com a superação das desigualdades emergentes da sociedade se, durante o processo formativo, for estimulado a desenvolver a sensibilidade moral e, consequentemente, a empatia. A empatia é o motor da ação moral, e ela não atua sem que haja o respeito e a responsabilidade.1818. Hoffman ML. Desarrollo moral y empatía. Barcelona (ES): Idea Books; 2002.

Inserir os estudantes em realidades onde haja contraste social potencializa o estímulo da empatia, além de fomentar valores orientados para a cidadania e a solidariedade, preconizados pelas DCN.55. Brasil. Resolução CNE/CES nº 3, 7 de novembro de 2001: Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem. Diário Oficial da União, Brasília, DF(BR), 7 set. 2001. http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/ces03.pdf
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Essa experiência assegura que os estudantes de enfermagem aprendam a viver, pois proporciona atividades que englobam o saber, o saber fazer e o saber conviver, atributos importantes para a construção sólida da personalidade moral e indispensáveis para a formação do enfermeiro.55. Brasil. Resolução CNE/CES nº 3, 7 de novembro de 2001: Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem. Diário Oficial da União, Brasília, DF(BR), 7 set. 2001. http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/ces03.pdf
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A empatia é uma habilidade socialmente aprendida essencial para a construção e manutenção de vínculos afetivos, tão preconizados na relação de cuidado, por isso se ajusta facilmente aos discursos da enfermagem. Todavia, há falas no meio acadêmico que reforçam a crença de que as técnicas se sobrepõem à empatia, desvalorizando a parte afetiva do cuidado. O cuidado não é somente uma maneira afetiva com o outro, é também reflexivo e racional. Assim, ao se referir ao cuidado de enfermagem, não há como dissociar a parte afetiva da parte cognitiva, ambas se complementam.2020. Mayano LG. La ética del cuidado y su implicación en la profesión enfermera. Acta Bioethica [Internet]. 2015 [cited 2019 Jan 20];21(2):311-7. Available from: https://dx.doi.org/10.4067/S1726-569X2015000200017
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Algumas falas de discentes e observações permitiram constatar que o estímulo da empatia se mostra direcionado somente ao binômio estudante (futuro profissional)-usuário de saúde, sugerindo que não havia esse mesmo cuidado entre os professores e estudantes, o que demonstra que há uma dissonância entre o que é dito pelos professores sobre o cuidado de enfermagem e o que é promovido na relação destes com os estudantes. O viver coerentemente de acordo com seus valores também faz parte da educação em valores. O desafio é começar a ensinar os valores morais vivendo-os no cotidiano da escola, trabalhando-os desde o micro (grupos, sala de aula e/ou instituição de ensino), para que possam ser incorporados no macroentorno (mercado de trabalho e sociedade).

Nota-se que os valores morais estão presentes nos discursos institucionais, bem como pelos seus corredores, assim sendo, questionou-se por que trabalhar a empatia entre os membros da faculdade parecia mais difícil que trabalhá-la com os usuários de saúde nas atividades práticas, já que, segundo Hoffman,1818. Hoffman ML. Desarrollo moral y empatía. Barcelona (ES): Idea Books; 2002. a reação empática ocorre primeiramente com pessoas conhecidas e posteriormente com indivíduos distantes. Portanto, teoricamente seria mais fácil criar empatia para com os estudantes do que com terceiros, que estão fora do ambiente escolar, ou seja, fora do círculo de convívio.

Para essa indagação, foram obtidas três respostas. A primeira está ligada à vulnerabilidade emergente dos pacientes, que faz aflorar com mais intensidade as reações empáticas do que em relação aos estudantes, aparentemente saudáveis, em uma sala de aula. A segunda é que os professores, muitas vezes, têm um distanciamento dos estudantes que não permite conhecer suas emoções e angústias e, consequentemente, produzir sentimentos de empatia. E a terceira resposta surgiu das observações realizadas, nas quais perceberam-se relações empáticas entre docentes e pacientes; no entanto, esses mesmos docentes tinham relações frias e apáticas com os estudantes. Presumiu-se que as relações de cuidado entre estes professores e os pacientes, permeadas pela empatia, estão no âmbito profissional, orientando o agir tanto técnica como humanamente, enquanto as relações entre os docentes e os seus estudantes situam-se no âmbito do cuidado de maneira geral, aquele esperado entre todos os indivíduos, independentemente da profissão, ou seja, não há uma normatização deontológica que o obrigue a manter relações de cuidado, deixando que a casualidade e a vinculação da postura empática estejam associadas a uma inclinação pessoal do professor.

O próximo item de discussão tem como objetivo ajudar a (re)pensar as práticas docentes, construindo relações de cuidado para além do âmbito profissional.

Educar para cuidar

O título “educar para cuidar” se adequaria às discussões nas mais diversas áreas da educação. Considerando que somos seres interdependentes2121. Puig JM, Martínez M. Educación moral y democracia. Barcelona (ES): Laertes; 1989. -2222. Cortina A. Ética mínima: introducción a la filosofía práctica. Madrid (ES): Tecnos; 2009. e que todos necessitamos de cuidado, trabalhar essa prática como um valor social potencializaria a tarefa de ensinar a viver, em todas as esferas educacionais, desde o ensino básico até o universitário. Quando convergimos essa frase para a área de enfermagem, soa quase como um pleonasmo. Enfermagem se define como a excelência do cuidado, portanto educar para cuidar poderia ser o slogan de qualquer uma de suas faculdades.

Historicamente, a enfermagem sistematizou o cuidado em prol da assistência de qualidade. Assim, o outro é a finalidade da profissão, e o olhar para o outro faz-se presente na sua rotina de trabalho. E como ensinar a cuidar do outro?

É sabido que somente aulas carregadas de conteúdos teóricos e que valorizam as competências técnicas não garantem o ensino e aprendizado do cuidado. Dessa forma, agregam-se ao currículo distintas práticas a fim de ensinar a cuidar cuidando de outros, seja em ambientes reais ou simulados, seja com pessoas enfermas ou não. E a pergunta continua: aulas teóricas e práticas garantem o aprendizado do cuidado?

Aparentemente sim. De fato, não podemos negar a importância da soma dessas duas estratégias de ensino, desde que trabalhadas de maneira significativa, ou seja, considerando os conhecimentos prévios do estudante, articulando os conhecimentos teórico-práticos e incentivando seu protagonismo.2323. Marques LMNS. Active methodologies as strategies to develop education in values in nursing graduation. Esc Anna Nery Rev Enferm [Internet]. 2018 [cited 2019 Jan 20]; 22(3):1-6. Available from: https://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2018-0023 .
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Entretanto, podemos potencializar o aprendizado do cuidado promovendo, como missão institucional, o cuidar dos próprios estudantes (bem como o cuidado dos professores e funcionários). Quer dizer, a faculdade pode, além de oportunizar espaços para que o estudante desenvolva as habilidades e competências para cuidar do outro, construir espaços para que ambos cuidem um do outro, envolvendo o sentido amplo do cuidado enquanto bem-estar biopsicossocial.

O processo de aprendizagem do cuidado não é linear. O estudante universitário precisa continuar a aprender a receber cuidados, trabalho esse iniciado pela família e pelas escolas, pois aprendendo a ser cuidado também aprende como cuidar. À medida que cuida dos outros, mais aprende sobre o que significa cuidar. E à medida que aprende a cuidar de si mesmo, mais valora os esforços de quem cuida.2424. Noddings N. La educación moral: propuesta alternativa para la educación del carácter. Buenos Aires (AR): Amorrortu; 2009.

Parece redundante ressaltar a importância do cuidado entre estudantes, bem como entre os professores e os funcionários, dentro da graduação de enfermagem, afinal a essência daquele ambiente é o cuidado. Porém, na prática isso não é tão óbvio quanto parece. As falas apresentadas sobre os valores promovidos sugerem que os professores acreditam que a prudência, o respeito, a responsabilidade e a empatia estão entre suas práticas de ensino, valores esses que compõem o cuidado. Ao mesmo tempo, os estudantes relatam que esses valores são estimulados na relação estudante-usuário de saúde, mas eles próprios não se sentem cuidados por esses docentes em todas as situações de convívio escolar. Nessas circunstâncias, quando o receptor não reconhece o cuidado oferecido, podemos admitir que houve fracasso em cuidar. Por conseguinte, o cuidado necessita ser entendido como uma via de mão dupla, e só será efetivo na troca quando os dois, cuidador e receptor, forem favorecidos com a relação, o que implica o reconhecimento da interdependência moral.2424. Noddings N. La educación moral: propuesta alternativa para la educación del carácter. Buenos Aires (AR): Amorrortu; 2009.

Portanto, qual seria a maneira mais significativa e coerente de ensinar a cuidar em uma graduação de enfermagem? Cuidando dos próprios estudantes, professores e funcionários, vivendo os valores como a prudência, o respeito, a responsabilidade e a empatia dentro das relações interpessoais e no cotidiano da faculdade. É nas relações interpessoais que a educação se concretiza e que as competências e habilidades planejadas para os estudantes ganham vida. É nesse espaço a dois que se edificam os valores morais. É no encontro face a face que o professor estabelece um ambiente propício para o desenvolvimento cognitivo e moral do estudante. A relação professor-estudante não é neutra e, portanto, adquire relevância se compreendida como o menor e o mais potente espaço para trabalhar a educação em valores.2525. Martínez M, Esteban F, Gonzalo J, Payà M. Con buenas intenciones solo, no basta. In: Martínez M, Esteban F, Gonzalo J, Payà M. La educación, en teoría. Madrid (ES): Editorial Síntesis; 2016. p. 47-67.

O professor tem um papel fundamental na formação moral dos seus estudantes, porém a tarefa docente supõe um trabalho em conjunto para que os fins da educação sejam alcançados. A esse trabalho compartilhado e alinhado à missão institucional dá-se o nome de cultura moral. Uma maneira de avançar na implementação de uma cultura moral na escola é proporcionar espaços de reflexão sobre a própria prática docente. Vale destacar que o professor e a escola podem somente facilitar a construção da personalidade moral, já que esta é uma tarefa pessoal e intransferível.2525. Martínez M, Esteban F, Gonzalo J, Payà M. Con buenas intenciones solo, no basta. In: Martínez M, Esteban F, Gonzalo J, Payà M. La educación, en teoría. Madrid (ES): Editorial Síntesis; 2016. p. 47-67.

A questão apresentada é válida para endossar a discussão sobre a formação moral na graduação de enfermagem, auxiliando no processo de reflexão do corpo docente, para que este possa repensar suas práticas e consiga planejar atividades coerentes com os valores morais nos quais acredita. O uso da etnografia permitiu vivenciar situações que nem sempre estão explícitas nas falas dos participantes, trazendo mais riqueza para a análise dos dados. No entanto, como limitação deste estudo, aponta-se que os resultados não podem ser generalizados às demais faculdades, uma vez que se referem à realidade de uma única instituição.

CONCLUSÃO

Os valores morais que professores e estudantes consideram importantes, bem como aqueles que eles acreditam que são promovidos durante a graduação, convergem para: a prudência, o respeito, a responsabilidade e a empatia. E, felizmente, eles não caracterizam somente o perfil de um bom enfermeiro, mas também se referem à descrição de uma pessoa boa.

Todavia, em relação aos valores morais que os participantes da pesquisa consideram que são promovidos, nota-se que há uma discrepância. Os estudantes avaliam que os valores morais são estimulados quando dizem respeito à relação estudante-usuário de saúde. No entanto, alertam que não vivenciam os mesmos valores dentro da relação estudante-professor, o que gera um desencontro no ensino e aprendizado do que é cuidar.

Portanto, defende-se que uma potente estratégia institucional para ensinar a cuidar é promover o cuidado dos próprios estudantes, professores e funcionários. Para isso, é necessário criar espaços de convivência em que os valores morais estejam presentes de forma habitual, rotineira e natural, sendo vividos no cotidiano escolar.

AGRADECIMENTO

À Xus Martín Garcia e aos demais professores do Grupo de Pesquisa em Educação Moral (Grup de Recerca en Educació Moral - GREM) da Universidade de Barcelona por disponibilizarem seu tempo para realizarem sugestões pertinentes durante a construção deste artigo.

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NOTAS

  • ORIGEM DO ARTIGO

    Extraído da tese - A formação moral na graduação de enfermagem, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva, das instituições associadas: Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Estadual do Rio de Janeiro e Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), em 2019.
  • FINANCIAMENTO

    Bolsista CAPES / Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior/ Processo nº 88881.189647/2018-01.
  • APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA

    Aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery, parecer n. 2.469.585/ 2019. Certificado de Apresentação para Apreciação Ética CAAE 73677917.7.3001.5238.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2019
  • Aceito
    29 Ago 2019
Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós Graduação em Enfermagem Campus Universitário Trindade, 88040-970 Florianópolis - Santa Catarina - Brasil, Tel.: (55 48) 3721-4915 / (55 48) 3721-9043 - Florianópolis - SC - Brazil
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