Acessibilidade / Reportar erro

NECROPOLÍTICA TRANS: DIÁLOGOS SOBRE DISPOSITIVOS DE PODER, MORTE E INVISIBILIZAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE

NECROPOLÍTICA TRANS: DIÁLOGOS SOBRE DISPOSITIVOS DE PODER, MUERTE E INVISIBILIZACIÓN EN LA CONTEMPORANEIDAD

RESUMO

Objetivo:

analisar a relação entre as políticas sociais cisnormativas e a invisibilização e morte (física e simbólica) das entidades trans, por meio de suas histórias de vida.

Método:

pesquisa qualitativa e multicêntrica que utiliza as teorias da Necropolítica e Tanopolítica como referencial teórico. Participaram desta pesquisa 70 pessoas trans do Brasil e Costa Rica entrevistadas durante os anos 2014-2015. Os dados foram analisados segundo a análise de conteúdo.

Resultados:

a partir da categoria elencada “Crônica de várias mortes anunciadas” pode-se pensar em muitos dos fenômenos que estão relacionados com a violência estrutural, sistemática e institucional nas sociedades latino-americanas que são “usufruídos” pela população trans. Ditos fenômenos expropriam aos sujeitos do controle da sua vida, e lhes impõe uma vida “nua” e os inscreve em uma macroeconomia geral do terror que torna visível o potencial (im)produtivo e destrutivo do necropoder trans.

Conclusões:

conclui-se que a (i)lógica necropolítica trans é uma prática tecnológica ininterrupta de violência estrutural e institucional contra o dispositivo da transexualidade, que considera a morte não como um fenômeno meramente biológico, mas moral, social e político.

DESCRITORES:
Transexualidade; Necropolítica; Tanatologia; Morte; Saúde coletiva

RESUMEN

Objetivo:

analizar la relación entre las políticas sociales cisnormativas y la invisibilización y muerte (física y simbólica) de las entidades transexuales por medio de sus historias de vida.

Método:

investigación cualitativa y multicéntrica que utiliza las teorías de la Necropolítica y Tanopolítica como referentes teóricos. Participaron de esta investigación 70 personas transexuales de Brasil y Costa Rica, entrevistadas durante los años de 2014-2015. Los datos fueron analizados según el análisis del contenido.

Resultados:

a partir de la categoría incluida “Crónica de varias muertes anunciadas” se puede pensar en muchos de los fenómenos que están relacionados con la violencia estructural, sistemática e institucional en las sociedades latinoamericanas y que son “usufructuados” por la población transexual. Dichos fenómenos expropian a los sujetos del control de su vida, les imponen una vida “desnudo” y los inscribe en una macroeconomía general del terror que hace visible el potencial (in)productivo y destructivo del necropoder transexual.

Conclusiones:

se concluye que la lógica o ilógica necropolítica transexual es una práctica tecnológica ininterrumpida de violencia estructural e institucional contra el dispositivo de la transexualidad que no considera a la muerte como un fenómeno meramente biológico sino moral, social y político.

DESCRIPTORES:
Transexualidad; Necropolítica; Tanatopolítica; Muerte; Salud colectiva

ABSTRACT

Objective:

to analyze the relation between the cisnormative social policies and the invisibility and (physical and symbolic) death of trans entities through their life histories.

Method:

a qualitative and multicenter research that uses the Necropolitics and Thanatopolitics as a theoretical framework. The study participants were 70 trans individuals from Brazil and Costa Rica who were interviewed in 2014 and 2015. The data were analyzed by means of content analysis.

Results:

based on the category “Chronicle of various announced deaths”, one can consider many phenomena related to the structural, systematic and institutional violence in the Latin American society which the trans population “experiences”. Those phenomena expropriate the control of the subjects’ lives and impose a “bare” life, inscribing them into general macroeconomics of terror that reveals the (un)productive and destructive potential of the trans necropower.

Conclusions:

the (un)logical trans necropolitics is an uninterrupted technological practice of structural and institutional violence against the device of transsexuality, which considers death not as a merely biological, but as a moral, social and political phenomenon.

DESCRIPTORS:
Transsexuality; Necropolitics; Thanatology; Death; Collective health

INTRODUÇÃO

Neste artigo recorremos a algumas posturas filosóficas e jurídicas contemporâneas para traçar uma viagem pelos conceitos de necropolítica mbembeniana11 Scanlon K, Travers R, Coleman T, Bauer G, Boyce M. Ontario’s trans communities and suicide: Transphobia is bad for our health. Trans PULSE e-Bulletin [Internet]. 2010 [cited 2017 Jun 30]; 1(2). Available from: http://transpulseproject.ca/wp-content/uploads/2010/11/E2English.pdf
http://transpulseproject.ca/wp-content/u...
e tanopolítica agambeniana,22 Cabral V. Pelos olhos dela: as relações entre espaço, violência e a vivência travesti na cidade de Ponta Grossa - Paraná - Brasil. Anais do 10 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10, 2013 Set 16-20; Florianópolis, Brasil. Florianópolis (SC): Rede Unida; 2013. com o intuito de analisar a relação entre as políticas sociais cisnormativas e a invisibilização e morte (física e simbólica) das entidades trans, por meio de suas histórias de vida.

Especificamente, a questão investigada neste trabalho surge como produto da necessidade de refletir sobre um conjunto de acontecimentos vivenciados pela população trans, os quais foram testemunhados por intermédio da realização da tese doutoral intitulada: “Histórias de vida e representações sociais do sexo, corpo, gênero e sexualidade entre pessoas transexuais do Brasil, Canadá e Costa Rica”, e que denominaremos, genérica e provisoriamente, de violência intransigente, cujas referências mais paradigmáticas são os homicídios, os suicídios,11 Scanlon K, Travers R, Coleman T, Bauer G, Boyce M. Ontario’s trans communities and suicide: Transphobia is bad for our health. Trans PULSE e-Bulletin [Internet]. 2010 [cited 2017 Jun 30]; 1(2). Available from: http://transpulseproject.ca/wp-content/uploads/2010/11/E2English.pdf
http://transpulseproject.ca/wp-content/u...

2 Cabral V. Pelos olhos dela: as relações entre espaço, violência e a vivência travesti na cidade de Ponta Grossa - Paraná - Brasil. Anais do 10 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10, 2013 Set 16-20; Florianópolis, Brasil. Florianópolis (SC): Rede Unida; 2013.
-33 Guimarães C, Meneghel S, Guaranha C, Barnart F, Simões I, Quevedo J. Assassinatos de Travestis e Transexuais no Rio Grande do Sul: crimes pautados em gênero. Athenea Digital. 2013; 13(2): 219-27. os massacres, as mutilações e os deslocamentos forçosos dessa população, promovidos (direta e indiretamente) por diverso marcos legais abstratos, ditatoriais e derivados de dinâmicas de conflito que, de um modo geral, respondem a uma cis-heteronormatividade implantada de forma coercitiva nas atuais sociedades pós-coloniais.

Neste âmbito (e talvez complementarmente), é importante destacar que alguns autores55 Mbembe A. Necropolítica. Sta. Cruz de Tenerife: Melusina; 2011.

6 Agamben G. Beyond Human Rights. Minneapolis (US): University of Minnesota; 2001.

7 Agamben G, Homo Sacer. El poder soberano y la nuda vida. Valencia (ES): Pre-Textos; 2003.
-88 Agamben G. Lo que queda de Auschwitz. Valencia (ES): Pre-textos; 2000. concentram-se na experiência pós-colonial para estudar, em particular, a história recente da África, o caso da Palestina e os fenômenos do nazismo e terrorismo e, se questionam se são suficientes as noções de poder disciplinar e o biopoder foucaultiano para falar das práticas e dos dispositivos necro-tanatológicos da era moderna.

Ainda questionam, se estes conceitos são suficientes para visibilizar esse conjunto de poderes ominosos e paradoxais, que parecem perverter o sentido de governar (os sujeitos, a etnia e as populações) e que deslocam os tempos e espaços disso que chamamos (de modo indefinido) de violência, assim como seus respectivos rituais de afecção e duelo.

Correspondendo a essas indagações, os filósofos anteriormente mencionados valem-se da analítica foucaultiana por intermédio de uma forma singular de interpretação, para indicar que a morte é uma tecnologia (mais ou menos) sofisticada e específica, de origem colonial e de gestão de determinadas populações no mundo.

Embora alguns filósofos falem unicamente da morte em um sentido literal, consideramos pertinente compreender a morte neste artigo em um sentido mais amplo: literal e simbólico-metafórico. Este último, relacionado com o não reconhecimento da cidadania, personificado sob o conceito de cidadanias precárias.1010 Bento B. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Rev Contemporânea. 2014; 4(1):165-82. Consequentemente, consideramos que o ato de matar poderia estar associado ao homicídio, mas também à exposição à morte, à replicação dos riscos de morte, à invisibilização, expulsão, estigmatização e exclusão social de algumas populações (aqui o grupo trans).

Cumulativamente, a despeito desta realidade considera-se que no processo de administração da morte que a necro-tanatopolítica supõe no atual contexto neoliberal, a fórmula foucaultiana de “deixar viver” toma uma nova postura paradoxal vinculada ao “fazer morrer” (ou instigar a morte).99 Grzinic M. Biopolitics and Necropolitics in relation to the Lacanian four discourses. In: Paper presented at the Symposium Art and Research: Shared Methodologies. Politics and Translation, Barcelona, Spain, 6-7 September; 2012.

De fato, essa (i)lógica pode ser apreciada na consolidação de um campo difuso de exclusão e extermínio socioeconômico, nos quais determinados exercícios de necropoder social e federal “empurram” deliberadamente certos grupos humanos (aqui em questão, a população trans) à morte e à invisibilização (conceito adaptado da palavra anglo-saxã erasure).

A partir dessas realidades, vale destacar o paradoxo dicotômico realizado na contemporaneidade entre vidas valiosas vs. vidas descartáveis (ou patológicas), assim como as novas e únicas formas de existência social em que vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes confere a denominação de mortos-vivos, cidadãos sem cidadania ou nas palavras de Agamben de homo-sáceres.66 Agamben G. Beyond Human Rights. Minneapolis (US): University of Minnesota; 2001.

Confinado nesse terreno de brutalidade genérica, concordamos com o pensamento de que o poder em tempos pós-coloniais assume a forma de necropolítica, já que preconiza como estandarte a morte daquele que não é capaz de encaixar-se dentro de suas normativas manipuladoras e prescritivas.55 Mbembe A. Necropolítica. Sta. Cruz de Tenerife: Melusina; 2011.

Considerando a questão sob esses aspectos, objetivamos analisar a relação entre as políticas sociais cisnormativas e a invisibilização e morte (física e simbólica) das entidades trans, por meio de suas histórias de vida. Assim, nossa intenção neste manuscrito não gravita unicamente na problematização sobre a conceptualização da morte nem na sua tipificação. Mas sim em abordá-la no seu sentido mais amplo, isto é, no sentido moral e político, sempre vinculada à realidade trans.

Finalmente, partimos da premissa de que para realizar essa discussão epistemológica devemos considerar que a analítica mbembeniana-agambeniana, tem uma notável potencialidade para compreender múltiplos processos políticos contemporâneos, por intermédio do estudo das práticas que os (co-)instituem sua historicidade e singularidade.

Por extensão lógica, parte-se da necessidade de inscrever esta analítica em uma nova temporalidade discursiva, no horizonte da teorização aberta pelas epistemologias trans, na medida em que lhe dão um novo estilo e um maior potencial para seu uso como caixa de ferramentas conceituais em contextos nos quais subsistem estruturas de dominação colonial, como nos países da América Latina, mas que indubitavelmente poderiam ser estendidos a outras latitudes de origem anglo-saxã.

MÉTODO

Esta é uma pesquisa qualitativa, de cunho sócio-histórico, que utilizou as histórias de vida completas como técnica processual para coletar as informações durante os anos de 2014 a 2015. O universo de participantes escolhidos esteve constituído por 70 participantes trans de dois países diferentes, sendo 35 participantes do Brasil e 35 da Costa Rica: 60 transmulheres e dez trans-homens.

Torna-se importante destacar que no presente estudo, utilizamos o conceito de “transmulher” para fazer referência às pessoas que foram identificadas no nascimento como pertencentes ao “sexo homem”, mas que se identificam com o gênero feminino. Consequentemente, o termo “transhomem”, no âmbito desta pesquisa, faz referência às pessoas que foram identificadas no nascimento como pertencentes ao “sexo mulher” e que se identificam com o gênero masculino.

A escolha do contexto deu-se de forma intencional por corresponder aos países nativos dos dois pesquisadores do estudo, trabalhando, assim, com participantes de dois polos do continente americano (América Central e América do Sul) e com os dois idiomas próprios de cada região (espanhol e português). Para o desenvolvimento desta pesquisa, contamos com a colaboração e autorização explícita para o desenvolvimento do estudo por parte de duas organizações não governamentais: a Associação em Defesa dos Direitos Humanos com enfoque na Sexualidade (ADEH) e a Asociación de Apoyo a la Población Trans (TransVida); a primeira localizada em Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina, Brasil, e a segunda localizada em San José, capital da Costa Rica.

A seleção dos participantes ocorreu por meio da técnica snowball que consistiu em que participantes iniciais vinculadas(os) às instituições anteriormente mencionadas, indicaram novos/as colaboradores/as (pares) que pudessem contribuir com o objeto deste estudo, formando desta maneira, uma rede de indicações.

Os critérios de inclusão selecionados foram: participantes maiores de 18 anos, com cidadania nesses dois países, que se autoidentificassem como pessoas trans (tanto transmulheres, quanto transhomens), que se encontrassem no início, no meio ou no final do processo de transição, ou que não desejassem realizar nenhuma mudança física, mas que lutassem pela reivindicação do uso do seu nome e pronome social, excluindo, unicamente, pessoas intersexuais - consideramos como intersexuais aquelas pessoas que foram designadas no nascimento com condições de ambiguidade genital de acordo com critérios clínicos: anatômicos, histológicos e/ou citológicos.

O projeto foi submetido à respectiva avaliação por parte do Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina, registrada sobe o CAAE 37753414.1.0000.5355 no Brasil. Após as explicações, os esclarecimentos e a sua aceitação, foi solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido traduzido nos dois idiomas. Cumulativamente, as entrevistas foram realizadas pelo pesquisador principal, as quais tiveram uma média de duração de 75 minutos. A data e o lugar para a realização da entrevista foram definidos a priori pela(o) participante. Com a autorização dos sujeitos, as falas foram gravadas e, posteriormente, transcritas e transcriadas. Com o intuito de preservar o anonimato das/dos participantes, os depoimentos foram identificados com a palavra “Transmulher” ou “Transhomem”, seguido por um número arábico e o país de cidadania de cada participante.

A análise de conteúdo de Bardin norteou o processo de análise crítico-reflexiva nesta pesquisa. Este processo se desdobrou em três fases: pré-análise, exploração do material e interpretação. Na fase da pré-análise realizou-se uma leitura flutuante e criteriosa das 70 entrevistas, procurando verificar se a temática da violência, morte, suicídio, estigma, invisibilização/erasure social eram variáveis constantes nas histórias de vida das/dos participantes.

Em seguida, ocorreu a fase de exploração do material que consistiu em uma série de operações de codificação e classificação do que estava sendo narrado através de cada depoimento em função dos significados explicitados. Nesta fase, os dados foram codificados para transformá-los sistematicamente e agregá-los em unidades descritivas do conteúdo.

Após tal organização realizou-se a escolha das unidades de significação e a categorização, as quais foram classificadas e agregadas na categoria elencada: “Crônica de várias mortes anunciadas”. Finalmente, na etapa de inferência e interpretação dos dados, as histórias de vida relatadas foram associadas com as teorias de necropolítica e tanatopolítica, contemplando concomitantemente os conceitos de necropoder, soberania, vida nua, bios, zoé, homo-sacer, dentre outros.

Esta perspectiva analítica multifocal permitiu despir o complexo mapa epistêmico e teórico-metodológico que subjaz na pluralidade do ser, estar, pensar e saber-se trans e sua relação com o necropoder contemporâneo.

RESULTADOS

A apresentação dos resultados que aqui começamos está dirigida a desvelar as práticas que produzem mortes por meio de um exercício sistemático de violência e terror sobre as populações trans. Isso é o necropoder trans, ou seja, a submissão da vida das pessoas que se identificam dentro do espectro trans ao poder da morte e invisibilização.

Os seguintes depoimentos surgidos da análise de conteúdo das entrevistas e que justificam a categoria elencada “Crônica de várias mortes anunciadas”, explicitam a (con)vivência das pessoas trans com o necropoder, a necropolítica, a morte, o suicídio, a transfobia e a invisibilização:

a minha família me chamava, quer dizer ainda me chama de aberração. Quando eles viram como estou hoje com barba e transformado, com uma voz um pouco mais grossa, eles olham e falam: ‘pronto, não dá mais esse show de horrores e essa aberração’. Eles [a família] diziam que preferiam me ver morrer assassinada do que ter que olhar para minha cara. Eles diziam: ‘A gente só pode esperar que alguém faça a gentileza de matá-la, porque a gente não tem como te matar. Jamais que a gente vai te aceitar, jamais que a gente vai engolir essa aberração’. Por isso é que penso todo dia em acabar com minha vida, às vezes não quero mais viver (Transhomem 5, Brasil, 2014);

¿usted sabía que nosotras las trans, morimos muy jóvenes? Si usted comienza a ver en Argentina, Colombia y Chile la esperanza de vida es como de 25 o 30 años, aquí en Costa Rica no nos matan mucho porque de fijo les da miedo ir a la cárcel o algo así, pero si nos maltratan, nos escupen, nos tiran piedras, nos gritan estupideces cuando estamos en la calle, nos ven con ojos feos cuando caminamos durante el día y nos obligan a suicidarnos (Transmulher 17, Costa Rica, 2015).

Os depoimentos acima convergem no sentido da necropolítica trans se constituir como uma tecnologia ininterrupta de violência sistêmica, estrutural e institucional contra o dispositivo da transexualidade, pois permeia a vida social - incluindo as diversas variáveis familiares, escolares e culturais - e, principalmente, a vida política, no seu jogo de opressão cisheterosexista.

Diante dessa complexidade, para falar de necropolítica trans, torna-se necessário realizar uma intersecção entre sexos, corpos, gêneros, sexualidades, violências, (necro/bio)poder, invisibilizacao/erasure, discriminação e precariedade, em um momento de regimes contemporâneos de transfobia, racismo, neo(post)colonialismo, guerras, terrorismos, imigrações, recolonizações, encarceramentos, reforços fronteiriços, capitalismos e neoliberalismos econômicos.

Os depoimentos que se seguem ilustram concretamente tal realidade. Observa-se ademais que alguns das/dos participantes enquanto exploravam suas memórias e narravam suas histórias de vida, lembravam das dores que seus corpos carregavam ao enfrentarem os contínuos golpes recebidos por parte da (i)lógica necropolítica:

eles [a família] diziam que preferiam me ver morrer assassinada do que ter que olhar para minha cara. Lá na rua também já fui chamada de satânica, anormal, todos querem me ver morta como se eu fosse uma barata, querem me ver chicoteada, humilhada porque para eles ser trans é uma maldição (Transmulher 20, Brasil, 2014);

me recuerdo que una vez caminando por la calle me topé un mae [um homem] que murmuraba descaradamente: ‘¡qué rico sería toparse a una de esas travestis malditas que se paran en la esquina del INS y partirles el hocico o agarrarlas a tiros!’ Y el mãe lo dijo sin miedo, sin vergüenza, en medio de un grupo de otros maes que le aplaudían y le reían sus deseos maléficos. Por eso te digo que no puedo parar de sentirme amenazada y con miedo, pensando en todas las veces que quieren matarme y en los momentos en que la muerte camina a mi lado (Transmulher 11, Costa Rica, 2015);

la sociedad nos grita y nos recuerda que somos sucias, perras y malditas. Eso nos mata poquito a poquito, ellos no saben, pero nos están matando, ellos no nos ven como personas trans o como travestis. Ellos no ven como que podemos ser sus hijas, hermanas o tías, ellos prefieren crucificarnos, tirarnos a la hoguera y quemarnos vivas (Transmulher 32, Costa Rica, 2015).

Segundo os depoimentos acima e fundamentando-nos nos conceitos agambenianos e mbembenianos, é possível articular que a vida e a morte se revelam, já não como conceitos científicos ou naturais, senão políticos e morais, e como tais, encontram-se sujeitos a decisões arbitrarias, em que se evidencia o papel da onipresença da normatividade legal e social no processo de exclusão, invisibilização, rejeição, estigmatização e fetichização do corpo trans.

Permitimo-nos então, - a partir da questão nuclear desvelada nas falas anteriores e da experiência adquirida no trabalho de campo - de falar de uma necropolítica trans, não vinculante unicamente aos marcos jurídico-legais ou desde a perspectiva pós-colonial, mas de uma necropolítica que vem sendo gestada desde a normativa social, sexista, classista e heterocisnormativa.

Falamos aqui de decretos, normativas e marcos sociais que impõem obrigações, atuações e performances específicas de acordo com as nossas plásticas e volúveis genitálias e desde nossos gêneros plásticos e artificias. Essa necropolítica tem a capacidade de decretar morte e destruição (simbólica e material) desde as tenras etapas de nossas vidas, desde antes mesmo de havermos nascido por meio do uso de tecnologias impositivas, prescritivas (e não somente descritivas) como a própria ecografia.

Assim, nesse terreno de sutilezas e imposições, deve-se dilucidar a complexa articulação entre as maquinarias de poder cis-heterossexista com as ideologias federais. A bem da verdade, o fantasma do Estado-Nação segue operando como o fez nas antigas colônias, para justificar a conquista do pensamento como modo de aniquilamento: de construir mecanismos de estandardização das mentalidades, dominar o imaginário e apropriar-se dos corpos e das vontades.

Há, no entanto, uma problematização especialmente a saber: esse poder corre paralelo a figuras e dispositivos que transbordam a estrutura do Estado como o são as famílias, as instituições de apoio espiritual não progressistas e as instituições de ensino.

Um aspecto crucial para entender o tipo de dispositivos e tecnologias da necropolítica trans contemporânea é a compreensão de que, embora os marcos que buscam a legitimação da violência sigam fundamentados em noções modernas - como a guerra contra as pessoas trans, a soberania e o inimigo -, já não se pretende que o monopólio da violência se encontre no Estado.

Em decorrência disso, uma série de aparelhos (pessoas e instituições) se entrelaçam e aliam com o intuito de assassinar, gerar o terror necessário, controlar os imaginários e exterminar qualquer tipo de figura que escape dos princípios organizativos (e obsoletos) decretados como “normais” no sentido goffminiano, conforme demonstrado nos seguintes depoimentos:

você sabia que aqui no Brasil a cada 24 horas uma de nós morre espancada? É uma realidade, o povo não gosta da gente e quer nos ver mortas (Transmulher 13, Brasil, 2014).

la única cosa que yo sé es que estamos muriendo a los pocos. En Nicaragua, Guatemala, El Salvador y Honduras es un crimen ser travesti o transexual, por eso la gente se siente en el derecho de matarnos y tirarnos a los “guindos” como si fuéramos perros. Nos matan y nos desechan como si fuéramos una bolsa de basura (Transmulher 28, Costa Rica, 2015).

Note-se em articulação com os depoimentos e a (i)lógica necropolítica trans, que a vulnerabilidade e tortura simbólica do corpo - que representa uma alteridade segundo os paradigmas consolidados como hegemônicos e (supostamente) naturais - são uma questão discursiva e pragmática mediatizada por diferentes pessoas e instituições de ordem social.

Nessa direção, parece ser que existe uma constante vigilância panóptica e estrutural por meio de diversas instituições nos contextos investigados. Ditas instituições são: a família (que replica a política social instaurada e consolidada historicamente), a religião de cunho não progressista (que condena as atitudes que escapem da sua inteligibilidade), a medicina (principalmente desde a psiquiatria), que empregam a ameaça da anormalidade, pecado e patologização para colocar e expor esse corpo sob suspeita e morte. Isto pode ser explicitado nos seguintes depoimentos:

lá o povo é extremamente machista, tu sabes como é que é, o gaúcho, né? [...] Voltando à história eu era a mocinha rejeitada e espancada por todos, sempre fui e continuo sendo. Meus professores me tratavam como um animal, sempre foi difícil, tem sido bem difícil mesmo, de verdade [...] é muito triste ter que encarar essa realidade, ver como te julgam e te batem. É difícil ver como morrem tuas amigas nas mãos dos assassinos, ou por injetarem silicone industrial nos peitos, nas coxas, na bunda, tudo porque não podemos ter acesso aos serviços de saúde... tudo pelo preconceito e por tudo isso (Transmulher 33, Brasil, 2014);

No nos matan directamente, pero nos obligan a matarnos yo tengo tres amigas que ya se suicidaron porque sus familias nunca las entendieron, les dieron las espaldas, las echaron de la casa como si fueran un perro y ellas no aguantaron ese resentimiento y se mataron. Siempre fueron ridiculizadas y golpeadas por los vecinos del barrio [...] Recuerdo que una de ellas se le mandó a un carro y las otras dos se ahorcaron. Pero esos no son suicidios, son asesinatos, todos tienen esa sangre en sus manos, la culpa es de todos, del gobierno, de la sociedad, del país entero (Transmulher 30, Costa Rica, 2015).

A partir dessas declarações, percebe-se que o necropoder trans é uma força de tipo operacional, unidirecional e prescritiva de identidades (sejam estas genéricos ou sexuais do desejo) nas sociedades latino-americanas contemporâneas.

Conforme observado, é justamente uma espécie de rede simbólica que se ramifica por toda a sociedade e que se rege por regras de comportamento heterocispunitivas baseadas no interesse político, estético, econômico e religioso de um grupo hegemônico e historicamente dominante.

Nesse mesmo âmbito e articulados de maneiras e em proporções variadas, consideramos que a performatividade e a impossibilidade de sair do discurso binário da normativa sexual, corporal, genérica e erótica - que engloba os mecanismos restritivos e estandardizadores como métodos de singularização e de classificação entre os seres humanos - são os que permitem compreender e até justificar a necropolítica trans e, consequentemente, os atos de violência, discriminação, suicídios, tortura e morte contra da alteridade.

DISCUSÃO

Alguns autores55 Mbembe A. Necropolítica. Sta. Cruz de Tenerife: Melusina; 2011.,88 Agamben G. Lo que queda de Auschwitz. Valencia (ES): Pre-textos; 2000. nos apontam que a biopolítica não pode ser compreendida sem sua contraparte, a necropolítica, a tanatopolítica e a exceção na colônia. Apoiados nessas ancoragens epistemológicas podemos examinar por um lado, esse espaço fundamental da violência que se encontra em todas as histórias de vida pós-coloniais, e que é necessário sublinhar para entender as condições nas quais se gestou a política atual. Em segundo lugar, nos ajuda a pensar na sociedade em sua condição contemporânea para problematizar como esse paradigma segue operando principalmente nas identidades dissidentes e ininteligíveis.

Na fetichização e fragmentação do corpo trans que a moral, a política e a sociedade diagnosticam, catalogam e condenam como estranho e plausível a homicídios (literais e metafóricos), que na maioria das vezes são caracterizados pela impunidade do agressor, percebe-se o efeito da transfobia e o terrorismo sofrido, através de diversas artimanhas de violência e abandono.1212 Paez-Vacas C. Travestismo urbano: género, sexualidad y política. Ecuador: Ediciones Abya-Yala; 2010.

Ora, o corpo trans que irrompe a aparente normalidade (no sentido goffminiano), desprovido de qualquer direito e liberdade, apresenta-se como indefeso e se torna abjeto para os outros e muitas vezes para si mesmo. Note-se que é nessa implantação da morte naturalizada e decretada para si mesmo que radica - talvez - o nível mais depurado de controle panóptico e castigo da necropolítica trans.

Salta aos olhos que o poder panóptico cria um controle psicológico em que as pessoas trans são obrigadas a autocontrolar-se e fiscalizar-se com a finalidade de cumprir com as vontades e expectativas ético-morais, estético-expressivas e institucionais, expressadas por uma sociedade hegemónica cis-hetero ditatorial e falocêntrica.

Nessa direção, evidenciam-se complexas dicotomias sociais: repressão versus visibilidade, opressão versus direitos, e se ressaltam como as tecnologias e aparatos sociais reforçam os mecanismos de falta de reconhecimento da cidadania e, consequentemente, aceleram os processos de morte prematura nas identidades trans e para aqueles que os regimes sociais, políticos e representacionais consideram como descartáveis.

Falamos de tecnologias e aparatos de controle e domínio sobre diversas e polissêmicas fronteiras (de comportamento) para desvelar os processos de desgaste gradual e de objetificação dos sujeitos e populações que fogem da realidade esperada.

Na mesma linha de raciocínio, concordamos com alguns autores na ideia de que estamos vivendo em um tempo de cadeias e cadáveres, mortes, perdas, luto, fúria e ativismo em resposta de encarceramentos massificados de identidades dissidentes, detenções, criminalizações, transfobia, violência e discriminação trans.44 Gomes A, Dos Reis F, Kurashige K. A violência e o preconceito: as formas da agressão contra a população LGBT em Mato Grosso do Sul. Cad Espaço. 2013; 26(2): 30-43.-55 Mbembe A. Necropolítica. Sta. Cruz de Tenerife: Melusina; 2011.,1313 Tucker H, Haritaworn J, KunstmanA, Posocco S, editors. Queer Necropolitics. London (UK): Routledge; 2014.

Esses encarceramentos (metafóricos e literais) são o resultado da normalização projetada nas telas ideológicas que o pós-colonialismo heterocisnormativo promove. Todo esse remanejamento político, econômico e, consequentemente, social compõe um mosaico de uma necropolítica trans como ferramenta que dá sentido a uma co-presença simbiótica de vida e morte, manifestada nas divisões entre heterossexuais vs. dissidentes (diversos), cis versus. trans, cidadãos vs. cidadãos precários, pessoas cultural, moral e economicamente valiosas vs. aquelas patologizadas pelas diferentes disciplinas, cidadãos queer* convidados a viver vs. aqueles considerados abjetos marcados com o selo da morte.1414 Valencia S. Capitalismo gore y necropolítica en el México contemporáneo. Rev Relaciones Internacionales. 2012; 19: 83-102.

Conexo a esse pensamento, é possível verificar que a necropolítica trans implanta mecanismos de morte que poderiam ser retratados por meio da metáfora da escravidão a que Mbembe faz alusão na sua teoria.55 Mbembe A. Necropolítica. Sta. Cruz de Tenerife: Melusina; 2011.

No entanto, aqui, a condição de escravo será personificada pela pessoa trans permeada por determinantes não só ético-políticas, mas jurídico-morais. Essa metáfora evidencia o resultado de uma tripla perda: perda de um lar, trabalho e educação; perda dos direitos sobre seu corpo e perda do seu status político. Esta tripla perda equivale a uma dominação absoluta, a uma alienação desde o nascimento e a uma morte social - que é a higienização dos espaços públicos.

No entanto, a estrutura político-jurídica, a plantação de escravos - aqui a comunidade trans - é, indubitavelmente, o espaço no qual o escravo-trans pertence ao amo. Articulada de maneiras e em proporções variadas, a figura do amo assumirá diferentes matizes representadas pela figura do Estado e daqueles que reproduzem as normativas sociais de comportamento consideradas como apropriadas ou pseudo normais.

Nesse sentido, importa salientar que a pessoa trans deve obedecer sem questionar as (i)lógicas e os interditos sociais ou do contrário será humilhado, golpeado ou exposto à morte. Por outro lado, nesse cenário de escravidão trans, entendemos que a política heterocisnormativa - por meio da transmissão de seus estatutos e artifícios excludentes, totalitários e autoritários - instaura um pensamento coletivo de normalidade e idoneidade com relação ao que se espera de um homem e de uma mulher, convertendo por um lado àquelas pessoas que escapam desses ideais em seres abjetos, escravos de um pensamento restritivo e cidadãos sem cidadania, e por outro lado converte às pessoas que se encaixam nessa realidade/padrão cis-heterossexual em soberanos, sociopatas, sicários e terroristas moralistas que têm o (necro)poder de reproduzir esses discursos, assinalar, discriminar, estigmatizar e até assassinar a alteridade que não encaixa dentro desses estatutos, sem que aconteça nenhum tipo de punição, pois estes estão simplesmente seguindo as ordenes de uma política social, historicamente instaurada e validada pela religião, sociedade, moral, direito e medicina.

Da mesma forma, unido a essa (i)lógica, aparece o pensamento tanatopolítico de Giorgio Agamben, que retoma a figura romana do homo-sacer para representar o ser não-cidadão que carece de direitos e reconhecimentos por parte do Estado nem por nenhuma instituição de apoio social ou moral.88 Agamben G. Lo que queda de Auschwitz. Valencia (ES): Pre-textos; 2000.

Portanto, é um ser excluído duplamente: pela lei civil e pela lei socio religiosa, cuja exclusão dupla o expõe à violência e morte. Por essa razão, sua morte pode ser realizada e ficar impune. Evidencia-se, então, que o lugar próprio de uma pessoa cuja vida é "nua" (vida que não possui direitos nem reconhecimento de cidadania) está além do direito penal e do sacrifício, em -uma zona de indiferenciação a que tinha sido confinada irremediavelmente por mandato soberano.77 Agamben G, Homo Sacer. El poder soberano y la nuda vida. Valencia (ES): Pre-Textos; 2003.-88 Agamben G. Lo que queda de Auschwitz. Valencia (ES): Pre-textos; 2000.

Nesse ponto, parece-nos que o homo-sacer poderia ser outro dos paradigmas capazes de explicar a essência e o funcionamento do necropoder trans sobre as pessoas dissidentes cuja vida é "nua". Assim, consideramos válido fazer uma comparação semântica entre o homo sacer e as pessoas trans, pois fica evidente que em nossa contemporaneidade essas vidas são reduzidas à sua mera condição biológica (ao conceito de zoé e não ao conceito de bios), sendo que representam a abstrata desnudez de ser simplesmente humano.

Diante dessa realidade, se faz necessário examinar as trajetórias pelas quais a ontologia da exceção e a relação antagônica com as normativas de comportamento cis, têm se convertido na base normativa e justificativa do direito de matar, invisibilizar ou promover os suicídios.

Este parece-nos o ponto-chave, pois fazemos referência às invisibilidades simbólicas, restritivas e complexas como manifestação de um controle panóptico-penal, legislativo e social que ignora e assassina - promove morte, suicídios e invisibiliza - os corpos dissidentes e simultaneamente exclui aqueles que transitam em circuitos desiguais, ininteligíveis, inequitativos e irrecíprocos.

Concordamos também com o fato de que no processo de deixar viver/deixar morrer, viver/morrer se (re)criam espaços e contextos nos quais a morte (e o suicídio) de alguns homo- sáceres é aceitável.66 Agamben G. Beyond Human Rights. Minneapolis (US): University of Minnesota; 2001.

7 Agamben G, Homo Sacer. El poder soberano y la nuda vida. Valencia (ES): Pre-Textos; 2003.
-88 Agamben G. Lo que queda de Auschwitz. Valencia (ES): Pre-textos; 2000. Em consonância com isto, o cruzamento da fronteira do inaceitável justifica a violência, discriminação, fobia, invisibilidade/erasure e morte de algumas identidades, baseado em necropolíticas que se enfocam nas formas em que os corpos precisam ser apagados, banidos e assassinados ao não se ajustarem ao modelo ideológico prefixado socialmente.

Nesse abstrato diagrama de forças necropolíticas, inscrevem-se os jogos do necropoder e tanatopoder por meio de dispositivos organizacionais e artificiais que controlam futuras ações. Seus mecanismos são estratégicos, se apropriam do saber e dos discursos distorcidos de uma época que os considerou como verdadeiros - o necropoder interage com o saber e simultaneamente o constitui.

Na mesma medida, pertencem ao saber e ao poder. Sustentam o visível e o invisível, o que podem enunciar e as estratégias (extra)temporais. Valem-se de um conjunto heterogêneo para implantar seu pensamento que inclui discursos, imaginários, representações, leis, medidas administrativas, enunciados sociais, morais, humanísticos, entre outros.55 Mbembe A. Necropolítica. Sta. Cruz de Tenerife: Melusina; 2011.,1515 Cordeiro Franciele Roberta, Kruse Maria Henriqueta Luce. The right to die and power over life: knowledge to govern the bodies. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2016 [cited 2017 Jun 30]; 25(2): e3980014. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072016003980014
http://dx.doi.org/10.1590/0104-070720160...

16 Haritaworn J Kuntsman A, Posocco S. Murderous Inclusions. Intern Feminist J Politics. 2013; 15(4):445-52
-1717 Bello Ramíres J, Parra Gallego G. Cárceles de la muerte: necropolítica y sistema carcelario en Colombia. Univ humanist. 2016 [cited 2017 Jun 30]; 82: 365-91. Available from: http://dx.doi.org/10.11144/Javeriana.uh82.cmns
http://dx.doi.org/10.11144/Javeriana.uh8...

O poder necropolítico é a rede que se estabelece entre esses elementos que não só declaram morte e invisibilidade nas identidades trans, mas também que perpetuam atos que ajudam a segregar e a obstaculizar o reconhecimento de sua identidade em aquelas pessoas que lutam por sobreviver e recusam a morrer.

Como demonstrado, a necropolítica trans é compreendida como uma engrenagem social, cultural e simbólica que produz outros códigos gramaticais e interações sociais por meio da gestão da morte e a invisibilização. Ditos termos formam parte de uma taxonomia discursiva que busca despir a complexidade do tecido criminal no contexto cisnormativo, e suas conexões com a globalização, a construção binaria do gênero como performance política e a criação de subjetividades capitalistas, recolonizadas pela economia e representadas pelas pessoas trans.

Dito de outro modo, a necropolítica trans é a reinterpretação e execução taxativa do bio/necropoder, baseada em grande parte nas (i)lógicas de enfrentamento das forças da vida e morte, entanto exerce uma pseudoliberdade, mas que somente pode ser compreendida na noção de furta-la aos outros.

De resto, fica explícita a preocupação em propor o enfrentamento dos desafios da necropolítica por meio do desenvolvimento de novas formas de compreensão do sexo, corpo, gênero e sexualidade, não como produtos de essências sociais ou biológicas, senão de práticas discursivas e prescritivas.

Ao desconstruir essas compreensões sociais tradicionais, seremos capazes de, primeiramente, liberar uma população que não se encaixa nessa restrita e asfixiante realidade de seu inevitável desfecho mortífero e, posteriormente, ressignificar a linguagem que estabelece como definitivos esses rasgos e os designa como princípios ordenadores das relações sociais.

Finalmente, tendo apelado à noção de desconstrução, recorremos aos pensamentos expostos ao longo da tese de Caravaca-Morera para propor o início da desmitificação da ordem cis-heteronormativa e lembrar que nossos sexos são protésicos, artificiais, cibernéticos, diversos; que nossos gêneros e sexualidades são desordenados, nômades, mutáveis e voláteis, e que nossos corpos são textos socialmente (des)construídos e (des)naturalizados.

CONCLUSÃO

Por meio desta narrativa, compreendemos que os modelos normativos, sejam estes sociais ou legais, refletem a carente evolução pragmática que tem sido necessária para combater a necropolítica contra as identidades trans. Isso como consequência da frágil e tímida vontade entre os interesses individuais e coletivos inerentes a esta matéria.

Por um lado, existem alguns e tímidos esforços por conseguir uma saída à situação do reconhecimento dos direitos humanos daqueles que se identificam dentro do espectro trans, mas ao mesmo tempo permanece latente o temor de ressignificar estruturas históricas sociais e jurídicas amplamente consolidadas, tais como as instituições do sexo, corpo, gênero, sexualidade.

As topografias de crueldade ambígua descritas pelas/pelos participantes desta pesquisa e interpretadas à luz da teoria de Mbembe e Agamben, desenham um mapa não exclusivo para as identidades trans, senão que existem outras espacialidades identitárias que podem compartilhar as mesmas características.

Vemos no referencial da necropolítica associado à interseccionalidade (articulação e análise dos sistemas de dominação e privilégios históricos em termos de raça, classe, sexualidade e gênero) como uma ferramenta potencial para explorar as possibilidades de acionar o político contra a violência estrutural, sistemática e institucionalizada e, as inequidades atuais, pois nos provê de uma visão da co-presença simbiótica entre vida e morte, expressada de formas muito mais evidentes entre os sulcos da vida pós-colonial contemporânea que classifica entre cidadãos vs. homo-saceres.

Esta articulação é necessária para atender e mitigar os diversos estigmas (estigma público, auto-estigma e estigma estrutural) que vinculam uma pessoa trans com outras variáveis, tais como religião, raça, etnia, deficiência física, imigração, sexo-serviço, homossexualidade, lesbianeidade, bissexualidade, pansexualidade, reclusão penal (ou exclusão penal), pobreza e baixa escolaridade.

À luz desta produção, podemos pensar em muitos fenômenos que podem estar relacionados com a violência em nossas sociedades latino-americanas e que são “usufruídos” pela população trans. Fenômenos que expropriam aos sujeitos do controle da sua vida, lhes impõe uma vida nua e os inscreve em uma macroeconomia geral do terror que torna visível o potencial produtivo e destrutivo do necropoder.

O significativo aporte analítico mbembeneano e agambeneano, particularmente neste estudo relaciona-se com evidenciar que diante do contexto de ex-colônias e no marco da colonialidade/pós-colonialismo podemos tomar as ferramentas foucaultianas para abordar diferentes fenômenos, mas sendo conscientes de que, embora sua metodologia seja apropriada, o conteúdo de suas investigações (tecnologias e dispositivos) não são suficientes para explicar todas as realidades atuais.

Este estudo nos convida a pesquisar e problematizar sobre as tecnologias específicas que operam em nossos contextos, desvelar suas singulares e contingentes racionalidades, inscrevendo-as sempre em uma perspectiva interseccional, inclusiva e progressista (em uma genealogia trans).

Também, nos propõe um grande desafio (tanto no ambiente acadêmico como nas outras instituições Estatais e sociais): produzir categorias abrangentes que tornem social e juridicamente inteligíveis (compreensíveis, claros, decifráveis) as populações consideradas como subalternas e ininteligíveis.

Conexo a esses pensamentos, fica evidente que a institucionalização da fluidez do gênero, da complexa e (talvez) inefável interação entre as identificações identitárias, continuam representando um dos maiores desafios para garantir a equidade e igualdade nos sistemas de saúde, educação e trabalho. Portanto, muitos outros estudos e práticas de justiça social são necessários com o objetivo de combater as mortes (físicas e simbólicas), a invisibilização, o estigma e a despatologização das (i)lógicas, as representações e os imaginários pós-colonizados das pessoas e outras instituições de socialização (e domesticação) de corpos, tais como escolas, famílias, igrejas, lugares de trabalho, ambientes políticos, entre outros.

Finalmente, o presente estudo mostra que embora existam algumas diferenças em termos políticos, étnicos, culturais e linguísticos entre os contextos pesquisados, existem semelhanças significativas entre as histórias de vida e a convivência diária com o estigma, a violência estrutural e as práticas necropolíticas trans. O anterior nasce como resultado da existência de práticas sociais e legais enraizadas em modelos patriarcais e heterocissexistas que não fazem distinção entre contextos latino-americanos ou anglo-saxões.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Scanlon K, Travers R, Coleman T, Bauer G, Boyce M. Ontario’s trans communities and suicide: Transphobia is bad for our health. Trans PULSE e-Bulletin [Internet]. 2010 [cited 2017 Jun 30]; 1(2). Available from: http://transpulseproject.ca/wp-content/uploads/2010/11/E2English.pdf
    » http://transpulseproject.ca/wp-content/uploads/2010/11/E2English.pdf
  • 2
    Cabral V. Pelos olhos dela: as relações entre espaço, violência e a vivência travesti na cidade de Ponta Grossa - Paraná - Brasil. Anais do 10 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10, 2013 Set 16-20; Florianópolis, Brasil. Florianópolis (SC): Rede Unida; 2013.
  • 3
    Guimarães C, Meneghel S, Guaranha C, Barnart F, Simões I, Quevedo J. Assassinatos de Travestis e Transexuais no Rio Grande do Sul: crimes pautados em gênero. Athenea Digital. 2013; 13(2): 219-27.
  • 4
    Gomes A, Dos Reis F, Kurashige K. A violência e o preconceito: as formas da agressão contra a população LGBT em Mato Grosso do Sul. Cad Espaço. 2013; 26(2): 30-43.
  • 5
    Mbembe A. Necropolítica. Sta. Cruz de Tenerife: Melusina; 2011.
  • 6
    Agamben G. Beyond Human Rights. Minneapolis (US): University of Minnesota; 2001.
  • 7
    Agamben G, Homo Sacer. El poder soberano y la nuda vida. Valencia (ES): Pre-Textos; 2003.
  • 8
    Agamben G. Lo que queda de Auschwitz. Valencia (ES): Pre-textos; 2000.
  • 9
    Grzinic M. Biopolitics and Necropolitics in relation to the Lacanian four discourses. In: Paper presented at the Symposium Art and Research: Shared Methodologies. Politics and Translation, Barcelona, Spain, 6-7 September; 2012.
  • 10
    Bento B. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Rev Contemporânea. 2014; 4(1):165-82.
  • 11
    Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa (PT): Edições 70; 2011.
  • 12
    Paez-Vacas C. Travestismo urbano: género, sexualidad y política. Ecuador: Ediciones Abya-Yala; 2010.
  • 13
    Tucker H, Haritaworn J, KunstmanA, Posocco S, editors. Queer Necropolitics. London (UK): Routledge; 2014.
  • 14
    Valencia S. Capitalismo gore y necropolítica en el México contemporáneo. Rev Relaciones Internacionales. 2012; 19: 83-102.
  • 15
    Cordeiro Franciele Roberta, Kruse Maria Henriqueta Luce. The right to die and power over life: knowledge to govern the bodies. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2016 [cited 2017 Jun 30]; 25(2): e3980014. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072016003980014
    » http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072016003980014
  • 16
    Haritaworn J Kuntsman A, Posocco S. Murderous Inclusions. Intern Feminist J Politics. 2013; 15(4):445-52
  • 17
    Bello Ramíres J, Parra Gallego G. Cárceles de la muerte: necropolítica y sistema carcelario en Colombia. Univ humanist. 2016 [cited 2017 Jun 30]; 82: 365-91. Available from: http://dx.doi.org/10.11144/Javeriana.uh82.cmns
    » http://dx.doi.org/10.11144/Javeriana.uh82.cmns
  • 18
    Caravaca-Morera JA. Histórias de vida e representações sociais do sexo, corpo, gênero e sexualidade entre pessoas transexuais do Brasil, Canadá e Costa Rica [tese]. Florianópolis (SC): Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem; 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    02 Dez 2016
  • Aceito
    20 Jul 2017
Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós Graduação em Enfermagem Campus Universitário Trindade, 88040-970 Florianópolis - Santa Catarina - Brasil, Tel.: (55 48) 3721-4915 / (55 48) 3721-9043 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: textoecontexto@contato.ufsc.br