Acessibilidade / Reportar erro

Fibrose Miocárdica na Cardiomiopatia Hipertrófica: O que ainda Falta Provar?

Palavras-chave
Cardiomiopatia Hipertrófica; Prevalência; Fibrose Endo miocárdica; Morte Súbita/prevenção & controle; Insuficiência Cardíaca; Espectroscopia de Ressonância Magnética

A cardiomiopatia hipertrófica (CMH) é uma doença complexa e bastante estigmatizada por estar muito relacionada com desfechos negativos. Sua prevalência na população geral é de 1 caso a cada 500 pessoas, com alguns dados sugerindo prevalência ainda maior quando se utiliza critérios genéticos associadamente.11 Maron BJ. Clinical Course and Management of Hypertrophic Cardiomyopathy. N Engl J Med. 2018;379(7):655-68. Isso significa que, numa estimativa conservadora, cidades como Goiânia-GO ou Recife-PE apresentam algo acima de 3 mil pessoas com a doença, número que pode atingir mais de 25 mil pessoas em uma metrópole como São Paulo.

Apesar de a CMH ser percebida como uma doença rara e em geral muito grave, relacionada a episódios dramáticos de morte súbita (MS) em indivíduos jovens e atletas, trata-se de uma doença de baixa mortalidade. Devido a avanços no diagnóstico, tratamento e prevenção de MS, estimativas atuais apontam para uma mortalidade de 0,5% ao ano, similar à taxa da população geral, sendo que a grande maioria dos portadores da doença é assintomática ou minimamente sintomática.22 Maron BJ, Maron MS, Rowin EJ. Perspectives on the Overall Risks of Living with Hypertrophic Cardiomyopathy. Circulation. 2017;135:2317-9. Neste cenário, é de fundamental importância a correta identificação de subgrupos de indivíduos com maior risco de evolução desfavorável e, portanto, com maior chance de benefício com estratégias terapêuticas específicas, como por exemplo, a utilização de cardiodesfibriladores implantáveis (CDI).

Porém, a CMH é uma doença extremamente desafiadora, com apresentações clínicas variáveis e história natural muitas vezes imprevisível. A MS, sua manifestação clínica mais devastadora, ocorre na maioria das vezes em indivíduos previamente saudáveis e desacompanhada de sintomas premonitórios. Uma série de marcadores clínicos derivados de estudos observacionais foram organizados em modelos de estratificação de risco, dando origem aos algoritmos adotados pelas sociedades americana e europeia de Cardiologia.33 Gersh BJ, Maron BJ, Bonow RO, Dearani JA, Fifer MA, Link MS, et al. 2011 ACCF/AHA guideline for the diagnosis and treatment of hypertrophic cardiomyopathy: A report of the American College of Cardiology Foundation/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines Developed in Collaboration with the American Ass. J Am Coll Cardiol. 2011;58(25):212-60.,44 Zamorano JL, Anastasakis A, Borger MA, Borggrefe M, Cecchi F, Charron P, et al. 2014 ESC guidelines on diagnosis and management of hypertrophic cardiomyopathy: The task force for the diagnosis and management of hypertrophic cardiomyopathy of the European Society of Cardiology (ESC). Vol. 35, European Heart Journal. 2014. p. 2733-79.

No entanto, a utilização de tais ferramentas apresenta várias limitações. A escassez de estudos randomizados faz com que as recomendações se baseiem principalmente em registros, estudos retrospectivos ou prospectivos de pequena escala. A acurácia destes modelos para predição de MS, de acordo com análises de validação, foi moderada (área sob a curva ROC variando de 0,60 a 0,69), com especificidade e valor preditivo positivo baixos e desempenho subótimo quando utilizados a nível individual. Além disso, os marcadores de risco tradicionais, individualmente, apresentam baixa sensibilidade e especificidade, e a ausência destes não exclui de maneira segura a chance de MS.55 Sen-Chowdhry S, Jacoby D, Moon JC, McKenna WJ. Update on hypertrophic cardiomyopathy and a guide to the guidelines. Nat Rev Cardiol. 2016;13(11):651-75. Desta forma, as ferramentas atuais de estratificação de risco na CMH são imperfeitas e imprecisas, tornando crucial a investigação de novos marcadores de risco.

A ressonância magnética cardíaca (RMC) possibilita, pela técnica do realce tardio, a identificação das áreas de fibrose miocárdica de substituição de maneira bastante precisa.66 Moon JCC, McKenna WJ, McCrohon JA, Elliott PM, Smith GC, Pennell DJ. Toward clinical risk assessment in hypertrophic cardiomyopathy with gadolinium cardiovascular magnetic resonance. J Am Coll Cardiol. 2003;41(9):1561-7.,77 Choudhury L, Mahrholdt H, Wagner A, Choi KM, Elliott MD, Klocke FJ, et al. Myocardial scarring in asymptomatic or mildly symptomatic patients with hypertrophic cardiomyopathy. J Am Coll Cardiol.2002;40(12):2156-64. Análises de prevalência e padrão de distribuição do realce tardio na CMH já foram amplamente descritas. Há um grande conjunto de evidências demonstrando que o mecanismo arritmogênico que levaria à MS nos portadores de CMH estar diretamente ligado à fibrose miocárdica e, da mesma forma, vários estudos em pacientes com CMH avaliados pela ressonância demonstraram pior prognóstico naqueles que apresentavam realce tardio (eventos arrítmicos, insuficiência cardíaca, MS, morte cardíaca e morte por qualquer causa).88 Quarta G, Aquaro GD, Pedrotti P, Pontone G, Dellegrottaglie S, Iacovoni A, et al. Cardiovascular magnetic resonance imaging in hypertrophic cardiomyopathy: The importance of clinical context. Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2018;19:601-10.

No presente artigo desta edição,99 Bittencourt MI, Cader SA, Araújo DV, Salles ALF, Albuquerque FN, Spineti PPM, et al. Papel da fibrose miocárdica na cardiomiopatia hipertrófica: Revisão sistemática e metanálise atualizada de marcadores de risco para morte súbita. Arq Bras Cardiol. 2019;112(3):281-289. os autores apresentaram uma revisão sistemática e metanálise que incluiu 21 estudos avaliando a associação de marcadores de risco com a ocorrência de MS. Os autores demonstraram forte correlação entre a presença de fibrose miocárdica detectada pela RMC e a ocorrência de desfechos arrítmicos, com risco relativo claramente maior desta quando comparado aos demais marcadores de risco identificados (RR 3,43; IC95%: 1,95-6,03). Este resultado está alinhado a outra metanálise avaliando a CMH e fibrose miocárdica, totalizando 1.063 pacientes (seguimento médio de 43±14 meses), na qual a presença de realce tardio nesses pacientes resultou em chance 9 vezes maior de fibrilação/taquicardia ventricular e 3,3 vezes maior de MS.1010 Reddy ST, Tito A, Filho P, Silva NJ, Doyle M, Yamrozik J, et al. A Systematic review for sudden cardiac death in hyoetrophic cardiomyopathy patients with myocardial fibrosi: a CMR LGE Study. J Am Coll Cardiol. 2012;59(13):E1228. Tais resultados sugerem que o realce tardio possa ter grande utilidade como marcador prognóstico de alto risco.

A este respeito, é preciso tecer que algumas considerações são importantes. A fibrose miocárdica detectada pela RMC é muito frequente na CMH, sendo observada em cerca de 2/3 dos pacientes.88 Quarta G, Aquaro GD, Pedrotti P, Pontone G, Dellegrottaglie S, Iacovoni A, et al. Cardiovascular magnetic resonance imaging in hypertrophic cardiomyopathy: The importance of clinical context. Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2018;19:601-10. Portanto, sua simples presença por si só não possibilita a seleção adequada de pacientes candidatos ao CDI.

Recentemente, foram publicados estudos estabelecendo uma relação positiva e linear entre a extensão do realce tardio e pior prognóstico, com presença de mais de 15% de massa de fibrose miocárdica, conferindo chance aproximada 2 vezes maior de MS quando comparada a indivíduos sem realce tardio, de maneira independente de outros marcadores de risco.1111 Chan RH, Maron BJ, Olivotto I, Pencina MJ, Assenza GE, Haas T, et al. Prognostic value of quantitative contrast-enhanced cardiovascular magnetic resonance for the evaluation of sudden death risk in patients with hypertrophic cardiomyopathy. Circulation. 2014;130(6):484-95.,1212 Weng Z, Yao J, Chan RH, He J, Yang X, Zhou Y, et al. Prognostic Value of LGE-CMR in HCM: A Meta-Analysis. JACC Cardiovasc Imaging. 2016;9(12):1392-402. Porém, esta abordagem também apresenta limitações significativas. Primeiramente, não existe uma padronização universal da técnica de quantificação do realce tardio, levando à grande heterogeneidade dos resultados (atualmente, as técnicas mais utilizadas são o método de 6 desvios-padrão, a técnica de full-with half maximum e o método da curva de Raileigh).88 Quarta G, Aquaro GD, Pedrotti P, Pontone G, Dellegrottaglie S, Iacovoni A, et al. Cardiovascular magnetic resonance imaging in hypertrophic cardiomyopathy: The importance of clinical context. Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2018;19:601-10.

Além disso, ainda existe alguma controvérsia sobre se o realce tardio fornece informações incrementais aos fatores de risco tradicionais de maneira clinicamente relevante, muito em virtude do pequeno número de desfechos primários observados nos estudos. Soma-se a isso o fato de ainda não haver estudos prospectivos de larga escala avaliando a quantificação do realce tardio incorporado aos algoritmos da ACC/AHA e da Sociedade Europeia de Cardiologia para a predição de MS na CMH.

A RMC é uma ferramenta extremamente valiosa na avaliação da CMH e sua aplicação para fins diagnósticos é muito bem demonstrada. Da mesma maneira, a avaliação da fibrose miocárdica pela técnica do realce tardio comprovadamente é um forte marcador prognóstico da doença e muito provavelmente terá grande impacto como ferramenta de estratificação de risco. Apesar disso, de acordo com as principais diretrizes sobre CMH, atualmente a utilização clínica da técnica para profilaxia primária de MS se restringe a casos ambíguos, quando a indicação de CDI apresenta-se duvidosa pelos algoritmos tradicionais.33 Gersh BJ, Maron BJ, Bonow RO, Dearani JA, Fifer MA, Link MS, et al. 2011 ACCF/AHA guideline for the diagnosis and treatment of hypertrophic cardiomyopathy: A report of the American College of Cardiology Foundation/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines Developed in Collaboration with the American Ass. J Am Coll Cardiol. 2011;58(25):212-60.,44 Zamorano JL, Anastasakis A, Borger MA, Borggrefe M, Cecchi F, Charron P, et al. 2014 ESC guidelines on diagnosis and management of hypertrophic cardiomyopathy: The task force for the diagnosis and management of hypertrophic cardiomyopathy of the European Society of Cardiology (ESC). Vol. 35, European Heart Journal. 2014. p. 2733-79. Portanto, para se dar um passo adiante e a pesquisa fibrose miocárdica ser formalmente incorporada na rotina de estratificação de risco na CMH, algumas lacunas ainda precisam ser preenchidas.

Penso ser uma questão de tempo!

  • Minieditorial referente ao artigo: Papel da Fibrose Miocárdica na Cardiomiopatia Hipertrófica: Revisão Sistemática e Metanálise Atualizada de Marcadores de Risco para Morte Súbita

References

  • 1
    Maron BJ. Clinical Course and Management of Hypertrophic Cardiomyopathy. N Engl J Med. 2018;379(7):655-68.
  • 2
    Maron BJ, Maron MS, Rowin EJ. Perspectives on the Overall Risks of Living with Hypertrophic Cardiomyopathy. Circulation. 2017;135:2317-9.
  • 3
    Gersh BJ, Maron BJ, Bonow RO, Dearani JA, Fifer MA, Link MS, et al. 2011 ACCF/AHA guideline for the diagnosis and treatment of hypertrophic cardiomyopathy: A report of the American College of Cardiology Foundation/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines Developed in Collaboration with the American Ass. J Am Coll Cardiol. 2011;58(25):212-60.
  • 4
    Zamorano JL, Anastasakis A, Borger MA, Borggrefe M, Cecchi F, Charron P, et al. 2014 ESC guidelines on diagnosis and management of hypertrophic cardiomyopathy: The task force for the diagnosis and management of hypertrophic cardiomyopathy of the European Society of Cardiology (ESC). Vol. 35, European Heart Journal. 2014. p. 2733-79.
  • 5
    Sen-Chowdhry S, Jacoby D, Moon JC, McKenna WJ. Update on hypertrophic cardiomyopathy and a guide to the guidelines. Nat Rev Cardiol. 2016;13(11):651-75.
  • 6
    Moon JCC, McKenna WJ, McCrohon JA, Elliott PM, Smith GC, Pennell DJ. Toward clinical risk assessment in hypertrophic cardiomyopathy with gadolinium cardiovascular magnetic resonance. J Am Coll Cardiol. 2003;41(9):1561-7.
  • 7
    Choudhury L, Mahrholdt H, Wagner A, Choi KM, Elliott MD, Klocke FJ, et al. Myocardial scarring in asymptomatic or mildly symptomatic patients with hypertrophic cardiomyopathy. J Am Coll Cardiol.2002;40(12):2156-64.
  • 8
    Quarta G, Aquaro GD, Pedrotti P, Pontone G, Dellegrottaglie S, Iacovoni A, et al. Cardiovascular magnetic resonance imaging in hypertrophic cardiomyopathy: The importance of clinical context. Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2018;19:601-10.
  • 9
    Bittencourt MI, Cader SA, Araújo DV, Salles ALF, Albuquerque FN, Spineti PPM, et al. Papel da fibrose miocárdica na cardiomiopatia hipertrófica: Revisão sistemática e metanálise atualizada de marcadores de risco para morte súbita. Arq Bras Cardiol. 2019;112(3):281-289.
  • 10
    Reddy ST, Tito A, Filho P, Silva NJ, Doyle M, Yamrozik J, et al. A Systematic review for sudden cardiac death in hyoetrophic cardiomyopathy patients with myocardial fibrosi: a CMR LGE Study. J Am Coll Cardiol. 2012;59(13):E1228.
  • 11
    Chan RH, Maron BJ, Olivotto I, Pencina MJ, Assenza GE, Haas T, et al. Prognostic value of quantitative contrast-enhanced cardiovascular magnetic resonance for the evaluation of sudden death risk in patients with hypertrophic cardiomyopathy. Circulation. 2014;130(6):484-95.
  • 12
    Weng Z, Yao J, Chan RH, He J, Yang X, Zhou Y, et al. Prognostic Value of LGE-CMR in HCM: A Meta-Analysis. JACC Cardiovasc Imaging. 2016;9(12):1392-402.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2019
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br