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Epidemiologia do câncer da tiróide no Brasil: apontando direções na política de saúde do país

EDITORIAL

Epidemiologia do câncer da tiróide no Brasil: apontando direções na política de saúde do país

Laura S. Ward

Professora Livre-Docente, Chefe do Laboratório de Genética Molecular do Câncer - Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Laura S. Ward Laboratório de Genética Molecular do Câncer Med. Interna, Clínica Médica - FCM Rua Tessália Vieira de Camargo 161 Cid. Universitária Zeferino Vaz 13081-970 Campinas, SP Tel/Fax: (19) 3788-7878 E-mail: ward@unicamp.br

DADOS EPIDEMIOLÓGICOS SÃO FUNDAMENTAIS para a prática de políticas de saúde, para a implementação de estratégias diagnósticas e terapêuticas e, em última análise, para a compreensão da causa das doenças e, a partir daí, da melhor forma de prevenir sua ocorrência. Registros, como o programa de vigilância e epidemiologia (Surveillance, Epidemiology, and End Results – SEER), uma rede de nove registros de câncer de base populacional com área de cobertura de aproximadamente 10% da população norte-americana, têm sido fundamentais para uma série de análises a partir das quais vêm se delineando estratégias diagnósticas, terapêuticas e preventivas em relação ao câncer nos Estados Unidos. No Brasil, a preocupação de se conhecer a extensão da mortalidade e incidência do câncer data de muitos anos. O Anuário Estatístico do Estado de São Paulo, inicialmente denominado Relatório e Resumo Anual, possui registros de mortalidade por câncer datados de 1898 (1). Dados nacionais do período de 1929 a 1932 constam do Anuário de Bioestatística publicado pelo que se chamava em 1944 de Ministério de Educação e Saúde (1). Mas a importância de tais dados vem sendo reconhecida há muito mais tempo. Ainda em 1904, numa revista chamada Brasil-Médico, um artigo assinado por Sodré estudava o período de 1894 a 1898 procurando relacionar o clima com uma maior presença do câncer no extremo sul do país (1).

Nesta edição dos ABE&M, Coeli e cols. (2) utilizaram os Registros de Câncer de Base Populacional (RCBP) juntamente com dados populacionais e de mortalidade acessíveis no Datasus do Ministério da Saúde (http://www.datasus.gov.br) para mostrar que a incidência do câncer da tiróide (CT) no Brasil se assemelha à descrita em outros países, embora varie consideravelmente nas diversas regiões pesquisadas. Mostraram também que as taxas de mortalidade vêm diminuindo ao longo dos anos e são comparáveis às taxas de outros países (2). Este trabalho insere os dados brasileiros de incidência e de mortalidade na epidemiologia mundial do CT, permitindo comparações com outras nações e sugerindo ações estratégicas para o nosso país, como uma melhor distribuição dos recursos diagnósticos e terapêuticos entre as diversas regiões do Brasil. No entanto, o trabalho também evidencia grandes limitações nacionais já que apenas os registros de São Paulo e de Goiânia preenchem os critérios mínimos para serem considerados de cobertura adequada dos casos de câncer (2). Enquanto esperamos que as diferenças regionais sejam corrigidas, tais limitações não podem nos impedir de analisar dois aspectos muito interessantes que se destacam do artigo de Coeli e cols. (2). Primeiro, o fato de que a incidência de CT não é desprezível no Brasil, levando-nos a especular sobre suas causas e, segundo, o fato de que a mortalidade por esta neoplasia vem diminuindo nos últimos anos.

Uma tendência de elevação na incidência do CT tem sido reconhecida em várias partes do mundo (3). Estudos recentes mostram que esta tendência tem se mantido nas últimas décadas nos EUA (4), no Canadá (5), na Europa (6) e na Austrália (7). Certamente um importante fator para esta elevação é a melhoria em nossa capacidade de rastrear malignidade em nódulos, proporcionada principalmente pela ampla disponibilidade de exames ultra-sonográficos e pela facilidade da realização de citologias em material obtido por punção aspirativa com agulha fina. No Brasil, o fato de que as maiores taxas de incidência apareceram justamente nos RCBP com melhores indicadores de qualidade mostra que a coleta de dados influenciou as maiores incidências observadas em São Paulo, no Distrito Federal e em Goiânia (2). No entanto, outros fatores podem estar implicados na grande variação geográfica observada. Assim, a incidência de CT é bem mais elevada em alguns países do Oriente Médio, chegando a ser o 2º câncer mais freqüente entre mulheres do Kuwait; no Sudoeste da Índia existe um cinturão que abrange distritos costeiros onde a incidência de CT é bem mais elevada do que em outros distritos (8,9). Não será a diversidade observada por Coeli e cols. no Brasil também fruto de variações similares? O que nos leva à questão principal: o porque de tal variação em diferentes espaços geográficos e/ou diferentes populações? Entre os fatores epidemiológicos ligados ao CT, o mais importante é a exposição à radiação ionizante. Além das populações submetidas à irradiação proveniente das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, durante a 2ª guerra mundial, ou aos acidentes nucleares como o de Chernobyl, na Bielorússia, evidências experimentais in vivo e in vitro mostram que a irradiação ionizante transforma folículos tiroidianos, em particular aqueles em crescimento, explicando a maior incidência de CT em crianças e jovens expostos à radiação. Seria o aumento da incidência do CT relacionado a uma maior exposição à irradiação ionizante, nesses nossos tempos modernos? Tal fato não foi cientificamente demonstrado e, mesmo que contribua, não deve ser o único a explicar a elevação da taxa de CT e de outras neoplasias que se tem observado em diferentes continentes (3). Outros fatores, genéticos e ambientais, podem estar contribuindo para este aumento: talvez outros fatores físicos outros, como a radiação ultravioleta? Talvez fatores químicos, como os milhares de compostos que ingerimos, inalamos ou com os quais entramos em contato graças ao modo de vida atual? Talvez fatores biológicos como a crescente lista de vírus, bactérias e microorganismos que cada vez mais vêm sendo relacionados a câncer, como o HPV e o câncer de colo de útero, o vírus da Hepatite C e o câncer hepático entre tantos outros? E a ingestão de iodo, poderia estar contribuindo para a diversidade observada? A significativa diminuição do número de casos de CT de tipo folicular tem sido ligada de maneira bastante estreita ao aumento na quantidade de iodo que ingerimos em nossa alimentação (10), mas será tal aumento responsável pela elevação do número de casos de CT de tipo papilífero? Em nenhum lugar das várias regiões do mundo onde a iodação do sal de cozinha ou outras medidas elevaram a ingestão do iodo da população, este pode ser demonstrado como fator independente para a elevação da incidência de CT ou de qualquer outro câncer. Nenhum estudo epidemiológico ou experimental tampouco demonstrou tal efeito, embora a ação do iodo sobre o folículo tiroidiano seja inegável e vários estudos epidemiológicos indiquem hiperplasia ou bócio nodular como fatores de risco para CT. Ingestão de hormônios ou fatores relacionados ao estado hormonal ou reprodutivo, como paridade, idade de desenvolvimento da puberdade ou da menopausa, tampouco puderam ser relacionados firmemente com a incidência do CT, embora seja fato que ela é maior em mulheres do que em homens e a maioria dos registros populacionais sugira que o aumento de sua taxa de incidência seja maior em mulheres do que em homens.

Finalmente, a queda de mortalidade por CT no Brasil, a exemplo do que se verifica em todo mundo é, sem dúvida, uma bem acolhida conclusão do trabalho e Coeli e cols. (2). Não podemos deixar de imputar tal queda à nossa ação como médicos, à divulgação e observação de protocolos de conduta no nódulo e no câncer da tiróide; à maior disponibilidade de recursos possibilitando detecção mais precoce, seguimento mais eficaz e maior chance de rápido tratamento das recidivas e metástases.

Enquanto às regiões notoriamente deficitárias, claramente evidenciadas neste trabalho, esperamos que a sua divulgação sensibilize mentes e corações, apontando direções na implantação de novos projetos e na distribuição equilibrada de recursos para a saúde em nosso país.

REFERÊNCIAS

1. Mirra AP. Registros de câncer no Brasil e sua história. Tomgraf Editora:São Paulo; 2005.

2. Coeli CM, Brito AS, Barbosa FS, Ribeiro MG, Sieiro APAV, Vaisman M. Incidência e mortalidade por câncer de tireóide no Brasil. Arq Bras Endocrinol Metab 2005;49(4):503-509

3. Parkin D, Whwlan S, Ferlay J, Raymond L, Young J. Cancer incidence in five continents. Volume VII. IARC Sci Publ; 1997.

4. Haselkorn T, Bernstein L, Preston-Martin S, Cozen W, Mack WJ. Descriptive epidemiology of thyroid cancer in Los Angeles County, 1972-1995. Cancer Causes Control 2000;11:163-70.

5. Liu S, Semenciw R, Ugnat AM, Mao Y. Increasing thyroid cancer incidence in Canada, 1970-1996: time trends and age-period-cohort effects. Br J Cancer 2001;85:1335-9.

6. Reynolds RM, Weir J, Stockton DL, Brewster DH, Sandeep TC, Strachan MW. Changing trends in incidence and mortality of thyroid cancer in Scotland. Clin Endocrinol 2005;62:156-62.

7. Burgess JR. Temporal trends for thyroid carcinoma in Australia: an increasing incidence of papillary thyroid carcinoma (1982-1997). Thyroid 2002;12:141-9.

8. Memon A, Darif M, Al-Saleh K, Suresh A. Epidemiology of reproductive and hormonal factors in thyroid cancer: evidence from a case-control study in the Middle East. Int J Cancer 2002;97:82-9.

9. Nandakumar A, Gupta PC, Gangadharan P, Visweswara RN, Parkin DM. Geographic pathology revisited: development of an atlas of cancer in India. 1: Int J Cancer 2005;116:740-54.

10. Burgess JR, Dwyer T, McArdle K, Tucker P, Shugg D. The changing incidence and spectrum of thyroid carcinoma in Tasmania (1978-1998) during a transition from iodine sufficiency to iodine deficiency. J Clin Endocrinol Metab 2000;85:1513-7.

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    Laboratório de Genética Molecular do Câncer
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Out 2005
    • Data do Fascículo
      Ago 2005
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