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LÍNGUA E EXÍLIO

RESUMO:

O presente trabalho dedica-se às incidências do exílio sobre a prática da língua. Com o intuito de manter aberta a interrogação sobre a escrita, adota a perspectiva da questão-resposta a propósito do território que se tece pela via da escrita. Parte da língua enquanto ela coloniza os falantes para abordar os efeitos de linguagem documentados na escrita daqueles que atravessam a experiência do exílio. Remonta à acepção de exílio intrínseca à inexistência da relação sexual e procede à aproximação entre desejo e escrita.

Palavras-chave:
psicanálise; exílio; prática da língua; escrita

ABSTRACT:

The present work is dedicated to the effects of exile on the practice of the language. In order to keep the question about writing open, it adopts the perspective of the question-answer regarding the territory woven through writing. It starts from language as it colonizes speakers to address the effects of language documented in the writing of those going through the experience of exile. It goes back to the meaning of exile intrinsic to the non-existence of the sexual relation and brings together desire and writing.

Keywords:
psychoanalysis; exile; language practice; writing

Meu bem... As pessoas se odeiam tanto quanto antes. Matam de novo. Isso para mim é o mais incompreensível... E quem são? Nós... Somos nós... (ALEKSIÉVITCH, 2016ALEKSIÉVITCH, S. A guerra não tem rosto de mulher. 1ª ed.São Paulo: Companhia das Letras, 2016., p. 390).

FRONTEIRAS DA LÍNGUA

Um viajante brasileiro, nascido no Ceará, chega ao aeroporto de Argel em 2019. Pela primeira vez na vida, não precisa soletrar seu nome, é entendido de primeira: naquela terra, Aïnouz é um sobrenome familiar. No filme Marinheiro das Montanhas, de Karim Aïnouz (2021AÏNOUZ, K. O Marinheiro das Montanhas, direção de Karim Aïnouz. Globo Filmes, 2021.), navegamos pela história do cineasta que é costurada por contrastes, memórias e política. No diário de viagem filmado na primeira ida do diretor à cidade de seu pai, acompanhamos a forma pela qual Fortaleza e Cabília, região montanhosa situada no norte da Argélia, se conectam.

Apesar de distantes, vimos a Guerra da Argélia se aproximar do Brasil dos anos 60, de uma ditadura que se anuncia, exílios que se desenham. Afinal, algo se repete na história; colonização, colonialismo e segregação são nomes da pulsão na cultura. Para além de uma discussão sobre o coletivo e sobre o modo de laço que se estabelece entre os humanos, que parte ou lugar cabe à psicanálise no debate atual sobre os modos de dominação que se exercem sobre os corpos no contemporâneo? É preciso considerar cada experiência no singular que ela implica, recolhendo os efeitos que podem ser escutados no um a um.

A decolonialidade interroga inicialmente a colonização da linguagem e seus efeitos na língua. Adotaremos a perspectiva da questão-resposta em contraposição ao par problema-solução (MILNER, 2003MILNER, J.-C. Les penchants criminels de l’Europe démocratique. Paris: Ed. Verdier, 2003.). As questões-respostas não visam ao fechamento da interrogação, ao passo que o segundo par articula um encaminhamento suscetível de desembocar ou fracassar na resolução do problema. O par questão-resposta caracteriza-se por relançar o questionamento. Não por acaso, a fala pede resposta (LACAN, 1953LACAN, J. Função e campo da linguagem em psicanálise (1953). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998. p. 238-324.), ainda que esta seja o silêncio. Este dá lugar à palavra do sujeito e à enunciação, distinguindo-se de uma política de silenciamento. A questão do decolonial ou da decolonialidade comporta respostas que se equacionam de modo diferenciado, segundo os termos que se elegem. Aqui, privilegiaremos três termos que sofrem incidência da prática de lalíngua: o exílio, a língua e o tratamento que esta dispensa ao gozo. A experiência do exílio nos servirá como eixo para pensar um modo de se ancorar na vida, a escrita como prática de lalíngua, funcionando como pátria, ancoragem que faz borda.

A escrita como território

É o seguinte: eu nasci na Ucrânia, mas já em fuga. Meus pais pararam numa aldeia que nem tem no mapa chamada Tchetchelnik para eu nascer e vieram pro Brasil. Eu cheguei ao Brasil com dois meses de idade, de modo que me chamar de estrangeira é bobagem - eu sou mais brasileira do que russa, obviamente.

- Quer dizer, as pessoas te chamam de estrangeira por causa do seu sotaque?

Por causa do R, meu R... pensam que é sotaque mas não é, é língua presa! Aurora... é língua presa. Podiam cortar, mas dizem que é muito difícil... (LISPECTOR, 1976/2023LISPECTOR, C. A voz e o silêncio de Clarice Lispector no podcast 451MHz. Conversa da escritora com Afonso Romano de Sant’anna, Marina Colasanti e João Salgueiro, gravada em 1976 e remasterizada em 2023 [online]. 2023. Disponível em:Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=hCB8mmYjxHk . Acesso em: 01 de setembro de 2023.
https://www.youtube.com/watch?v=hCB8mmYj...
).

Chaya Pinkhasivna Lispector nasceu em Tchetchelnik, na Ucrânia, em 10 de dezembro de 1920. Época de uma guerra civil e de pogroms contra a população judaica. Uma das estratégias utilizadas pelos invasores russos - utilizada até os dias de hoje, conforme aponta a recente publicação da entrevista com a escritora - era o estupro de mulheres, tendo sido Mania Lispector, mãe de Chaya, uma dentre as tantas vítimas. Chegando no Brasil, terra do “pretuguês”, Chaya vira Clarice.

Em 2022, a mesma região da Ucrânia foi invadida pela Rússia, iniciando-se uma nova guerra, com a reedição de uma política que utiliza a guerra como meio para alcançar a soberania, poder exercido sobre os corpos, as vidas e as mortes (MBEMBE, 2018MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.). Colonização, colonialismo e imperialismo são modos de se exercer um tipo de dominação que visa o apagamento da diferença em função de um projeto de poder político. Na tradução de Chaya para Clarice, fica para trás a língua na qual um nome é cunhado. E, quando se perde uma língua, perde-se uma leitura de mundo (MUNDURUKU, 2019MUNDURUKU, D. Entrevista concedida ao Podcast Mekukradjá. [online]. 2019. Disponível em:https://open.spotify.com/episode/7ug82kQU89sPpQrCqahDvq?si=HLh4z-ZhwRmKeb2fQIff8xA&utm_source=copy-link. Acesso em: 20 jul. 2023.
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).

Kalaf Epalanga, em Minha pátria é a língua pretuguesa (2023EPALANGA, K. Minha pátria é a língua pretuguesa: crônicas. 1ª ed. São Paulo: Todavia, 2023.), homenageia Lélia Gonzalez e problematiza o legado colonial de um português estranhamente nomeado como língua materna, já que a partilha da África marcada pela Conferência de Berlim desconsidera a farta diversidade étnico-linguística da região, estabelecendo fronteiras físicas implacáveis entre povos irmãos. No entanto, conta ter sido com sua mãe que aprendera as primeiras palavras desse idioma que, embora imposto, desempenha um papel crucial no pós-independência, na construção de uma identidade nacional possível ao longo dos penosos e duradouros anos da guerra civil angolana. Neste caso, Epalanga destaca que a língua do colono fora ensinada como uma poderosa ferramenta política. Voltaremos a este ponto mais adiante.

Apesar de ter nascido na Ucrânia, Lispector se descreve como tendo nascido na Rússia, o que poderia ser explicado pelo fato de esta região específica ter feito parte do Império Russo naquela época. Os judeus da Ucrânia, como os judeus de outras regiões dominadas pela Rússia pré-revolução, geralmente se descrevem como judeus-russos, mas não como russos ou ucranianos. De modo que a pergunta “Are you Russian?” [Você é russa?] era respondida mais ou menos assim: “I was born in Russia, but I’m not Russian” [Nasci na Rússia, mas não sou russa]. Paradoxos. Começamos daí a entender o lugar do ídiche, língua que é então falada em casa pela maioria dos judeus que se encontram vivendo em regiões de fronteira. Língua errante, como nomeia o pesquisador J. Guinsburg (2022GUINSBURG, J.Aventuras de uma língua errante: ensaios de literatura e teatro ídiche. 2ª ed., rev. São Paulo: Perspectiva, 2022.) em seu livro sobre as aventuras dessa língua que, apesar de não possuir uma pátria oficial, sobrevive na cultura.

Franz Kafka (1912KAFKA, F. Discurso sobre a Língua Ídiche, apresentado em 18 de fevereiro de 1912.) apresenta o ídiche ao público burguês de Praga, de antemão pouco simpatizante do idioma, como a mais jovem língua europeia, que não tem gramática, “é cambiante, instável, confusa, cheia de vocábulos estrangeiros incorporados despreocupadamente e por curiosidade”. Conserva, assim, a vivacidade e a pressa com que os termos foram tomados de empréstimo. Ademais, está tão próxima do alemão em que nasceu que, se for traduzida para essa língua, fica esvaziada. Só se pode compreender o ídiche “sentindo-o”, e com o coração, assinala, indicando que usufruam dele como puderem (KAFKA, 1912KAFKA, F. Discurso sobre a Língua Ídiche, apresentado em 18 de fevereiro de 1912.). Língua de desterrados que fizeram da desterritorialização seu próprio território, como assinala Guinsburg (2022GUINSBURG, J.Aventuras de uma língua errante: ensaios de literatura e teatro ídiche. 2ª ed., rev. São Paulo: Perspectiva, 2022.).

Gilles Deleuze e Félix Guattari (1975/2003) destacam que Kafka absorveu traços do ídiche na elaboração de sua escritura, permanecendo em sua própria língua como estrangeiro, desterritorializando a língua; tornando-se nômade, imigrado e cigano de sua própria língua; encontrando nela seu próprio ponto de subdesenvolvimento, seu próprio patoá, seu próprio terceiro mundo, seu próprio deserto (DELEUZE; GUATTARI, 1975/2003). Língua e política colonialista estão intimamente associadas.

Epalanga (2023EPALANGA, K. Minha pátria é a língua pretuguesa: crônicas. 1ª ed. São Paulo: Todavia, 2023.) vai em cheio neste ponto. Ao passar a viver no hemisfério norte - ainda que a palavra estrangeiro ditasse a forma como se relacionava com a palavra liberdade -, foi com o uso diário e exclusivo das línguas europeias que o autor se apercebera da dificuldade que seria se livrar “dessa ressaca colonial”. Considerando as contradições do neocolonialismo, traz a complexidade do problema:

“Ao transformar a literatura no meu ofício, tenho feito uso do pretuguês e do inglês como um par de ferramentas nas mãos de um mecânico para desenroscar parafusos culturais, aceitando sem muito questionar o rótulo de ‘literatura lusófona’ que me é empregue” (EPALANGA, 2023EPALANGA, K. Minha pátria é a língua pretuguesa: crônicas. 1ª ed. São Paulo: Todavia, 2023., p. 14). Rótulo que faz com que se sinta entre incompleto e envergonhado por afinal não estar contribuindo para a “construção de uma literatura angolana descolonizada” (EPALANGA, 2023EPALANGA, K. Minha pátria é a língua pretuguesa: crônicas. 1ª ed. São Paulo: Todavia, 2023., p. 14). Longe de chegar a uma solução, conclui neste ponto com a conhecida frase de Frantz Fanon que situa a língua como uma tecnologia de poder1 Docente no Programa de pós-graduação em Teoria Psicanalítica na Universidade Federal do Rio de Janeiro .

O escritor russo Joseph Brodsky deixou São Petersburgo em 1972 para viver em Nova York. Sem nunca ter retornado ao seu país natal, escreve sobre o exílio especialmente em dois discursos que têm um lugar importante em sua obra: ambos são discursos sobre o exílio e do exílio (BRODSKY, 1988BRODSKY, J. Sobre o exílio(1988). Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2022./2022). Publicados no livro Sobre o exílio, Brodsky discorre sobre essa condição que pode vir a produzir um certo tipo de literatura, conforme veremos. No início da sua fala, o escritor pede antes que paremos um instante para pensar naqueles que não podem ou não puderam estar ali presentes. Enumera: “Imaginemos [...] os Gastarbeiters [trabalhadores convidados] turcos vagueando pelas ruas da Alemanha Oriental, sem entender ou invejando a realidade a seu redor. Ou [...] os refugiados vietnamitas nos botes enfrentando o alto-mar ou já assentados em algum lugar do interior australiano. Imaginemos os imigrantes mexicanos se arrastando pelas ravinas do sul da Califórnia, passando pela polícia de fronteira e entrando no território dos Estados Unidos. Ou imaginemos [...]” - a lista é longa. Já o era em 1987, imaginemos em 2023.

Brodsky vai articulando as experiências de refúgio, desenraizamento e escrita. Ao apontar que o lugar-comum deste século são o desenraizamento e a inadequação, indica que tanto no caso do escritor exilado quanto no de um refugiado político, trata-se de alguém que buscaria fugir “do pior para o melhor” (BRODSKY, 1988BRODSKY, J. Sobre o exílio(1988). Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2022./2022, p. 13). “A verdade é que só é possível se exilar de uma tirania numa democracia”; isso porque “a velha questão do exílio não é mais o que costumava ser. Não é mais sair de Roma civilizada e ir para a Sarmácia inculta” - o exílio envolve a ideia de que o pior estaria sendo deixado para trás, seja lá sob que forma ele tenha se apresentado.

Desde Freud, admitimos que as experiências traumáticas ressoam, reaparecendo inclusive em sonhos que se repetem apesar da angústia que carregam, no afã de produzir a angústia que faltou. Afinal, não é à toa que Brodsky chega à conclusão de que, a despeito da segurança física obtida na “nova sociedade”, a causa do exílio não se apaga e acaba por vezes constituindo a própria carreira do escritor, pois é aí que ele se (re)encontra com a significância de sua existência. Brodsky evoca o falso profeta do Inferno de Dante, que tem a cabeça sempre voltada para trás e lágrimas que escorrem entre as escápulas: pois, ainda que se tenha a possibilidade de viajar, ou que se tenha de fato viajado, segue-se escrevendo sobre esse “material familiar de seu passado”, em uma espécie de continuação permanente da obra. Se consultado a esse respeito, diz Brodsky, “o escritor exilado muito provavelmente evocará a Roma de Ovídio, a Florença de Dante e - após uma breve pausa - a Dublin de Joyce. De fato, temos uma linhagem, e muito mais longa do que esta” (BRODSKY, 1988BRODSKY, J. Sobre o exílio(1988). Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2022./2022, p. 20-21).

Na trajetória que nos leva à Irlanda e aos dublinenses, uma pequena parada descoberta no caminho:

- O título Perto do coração selvagem é tirado de Joyce, se não me engano...?

- É de Joyce, mas eu não tinha lido Joyce. Eu vi essa frase que serviu como epígrafe... (LISPECTOR, 1976/2023).

“Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida” (LISPECTOR, 1944/1998LISPECTOR, C. Perto do coração selvagem (1944). Rio de Janeiro: Rocco, 1998., p. 10). Essa é a frase de James Joyce que Clarice escolhe para abrir seu romance de estreia. Apesar de não ter lido Joyce, chama a atenção uma certa semelhança entre as escritas que privilegiam a sonoridade das palavras nas aberturas dos livros de estreia dos dois escritores - Perto do coração selvagem, de 1944, e Um retrato do artista quando jovem, de 1914. Tomemos brevemente o primeiro trecho de cada.

A máquina do papai batia tac-tac... tac-tac-tac... O relógio acordou em tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se zzzzzz. O guarda-roupa dizia o quê? roupa-roupa-roupa. Não não. Entre o relógio, a máquina e o silêncio havia uma orelha à escuta, grande, cor-de-rosa e morta. Os três sons estavam ligados pela luz do dia e pelo ranger das folhinhas da árvore que se esfregavam umas nas outras radiantes. (LISPECTOR, 1944/1998LISPECTOR, C. Perto do coração selvagem (1944). Rio de Janeiro: Rocco, 1998., p. 13).

Agora Joyce:

Era uma vez e era uma vez muito feliz uma vacamuu que vinha descendo pela estrada e essa vacamuu que vinha descendo pela estrada encontrou um mininho bunitinho chamado baby tuckoo. (JOYCE, 1914/2018, p. 9).

A obra de Joyce é recheada de brincadeiras sonoras: “Os guardas iam de um lado para o outro abrindo, fechando, trancando, destrancando as portas. Eram homens vestidos de azul-escuro e prata; tinham apitos prateados e suas chaves tocavam uma música curta: clic, clic: clic, clic” (JOYCE, 1914/2018, p. 21).

A escrita de Joyce chama a atenção de Lacan por alguns aspectos: trata-se de uma obra que tem efeito sobre a própria vida do autor, é uma prática com a letra que, conforme veremos, circunscreve uma borda ao gozo. As questões da língua e do exílio são essenciais em Joyce e, afinal, não é à toa que ele escreve um livro de contos chamado Dublinenses e uma peça de teatro intitulada Exílios. Ulysses, aliás, se passa em 1904, ano em que Joyce e sua esposa, Nora, saem de Dublin. Se os aspectos políticos da obra joyciana costumavam ser desconsiderados pelos comentadores da obra, Amarante (2009AMARANTE, D. W. James Joyce e a política. Sibilia, Revista de Poesia e Cultura, ano 24, 18 abr. 2009. Disponível em:Disponível em:https://sibila.com.br/novos-e-criticos/james-joyce-e-a-politica/2289#sdfootnote6sym . Acesso em:30 ago. 2023.
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) nos faz notar que estes começam a ganhar destaque a partir dos anos 1970, especialmente na França. A tradutora e pesquisadora cita o trabalho de Phillipe Sollers a este respeito:

Acreditou-se ingenuamente que Joyce não tinha nenhuma preocupação política porque nunca disse ou escreveu nada sobre o assunto numa língua franca. A mesma velha estória: arte de um lado, opiniões políticas de outro, como se houvesse um lugar para opiniões políticas - ou para qualquer coisa que diga respeito a esse assunto. (AMARANTE, 2009AMARANTE, D. W. James Joyce e a política. Sibilia, Revista de Poesia e Cultura, ano 24, 18 abr. 2009. Disponível em:Disponível em:https://sibila.com.br/novos-e-criticos/james-joyce-e-a-politica/2289#sdfootnote6sym . Acesso em:30 ago. 2023.
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, grifo nosso).

Outro ponto interessante que Amarante destaca é a opinião do irlandês Seamus Deane, que sublinha a relação íntima entre escrita e política na Irlanda de então: “na Irlanda, ser um escritor era, num sentido muito específico, um problema linguístico. Mas era também um problema político” (AMARANTE, 2009AMARANTE, D. W. James Joyce e a política. Sibilia, Revista de Poesia e Cultura, ano 24, 18 abr. 2009. Disponível em:Disponível em:https://sibila.com.br/novos-e-criticos/james-joyce-e-a-politica/2289#sdfootnote6sym . Acesso em:30 ago. 2023.
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). Afinal, a “questão irlandesa” como nomeia Jacques Aubert (2001), é indissociável da obra de Joyce. Pois justamente nesse caso, “mais do que a literatura, o que está em questão é a língua” (AUBERT, 2001aAUBERT, J. Introdução ao Ulisses de James Joyce. A Jornada de Ulisses - Revista da Escola Letra Freudiana, ano XX, n. 28, p. 65-108, 2001a., p. 85).

Ser habitado pela linguagem - experiência de colonização que faz de um corpo, humano, com marcas de afeto cunhados em uma língua dita materna - diferencia-se da experiência de colonização política que força uma língua, visando domar uma suposta selvageria a ser deixada para trás, como aponta Anzaldúa, em Como domar uma língua selvagem (2009).

Joyce traz no texto a tensão da língua, brinca com o equívoco desafiando aquele que tenta ler no inglês conforme o conhecemos. Os puns joycianos incluem com frequência os jogos homofônicos relativos ao mal-entendido da pronúncia, já que o sotaque anglo-irlandês transforma o modo de utilizar a língua inglesa imposta pelo colonizador. Em um breve parêntese a respeito da colonização do país, considerando suas consequências para seu povo e sua língua, vale notar que a língua inglesa foi imposta na Irlanda a um povo que falava a língua gaélica: é essa a língua irlandesa que se tornara a língua comum na época de Joyce (AUBERT, 2001aAUBERT, J. Introdução ao Ulisses de James Joyce. A Jornada de Ulisses - Revista da Escola Letra Freudiana, ano XX, n. 28, p. 65-108, 2001a.). Como em determinadas regiões, esta permaneceu sendo a língua local. A entrada forçada do inglês da Inglaterra produz uma transformação inevitável da língua, que faz com que lalíngua, para o irlandês, tenha “uma dimensão específica que inclui muitas vezes o equívoco, o mal-entendido” (AUBERT, 2001bAUBERT, J. Joyce com Lacan. A Jornada de Ulisses - Revista da Escola Letra Freudiana, ano XX, n. 28, p. 117-126, 2001b., p. 120). É ness’alíngua que Joyce tensiona a dominação inglesa, critica a Igreja ao mesmo tempo que mapeia a sua terra, a Dublin que pode ser reconstituída a partir da sua escrita. “Ao mesmo tempo que se exila, Joyce faz trabalhar na língua sua origem, a questão da filiação, dos laços, do amor (TENENBAUM, 2022TENENBAUM, D. Desdobrar alíngua: inconsciente, gozo, escrita. Tese de doutorado. PPGTP/UFRJ, Rio de Janeiro. 2022., p. 102).

DA ESCRITA DO EXÍLIO À CONDIÇÃO DE EXILADO DA RELAÇÃO SEXUAL

A experiência de escrita indexa um gozo que se exerce para além do sentido. No campo do sentido, o princípio do prazer se compraz. Por estrutura, o programa do princípio do prazer encerra, no entanto, o fracasso, posto que a felicidade não se realiza em sua vertente positiva de vivências de prazer, tampouco em sua versão negativa de evitação do desprazer. Este programa não está destinado à prevalência no microcosmo, nem no macrocosmo, conforme a psicanálise explicita desde Freud.

Por sua vez, o programa do gozo é suscetível de arrastar a vida na direção mortífera da violência e da segregação, não raro determinantes e resultantes do exílio. O programa do gozo realiza esta vocação, ao lançar o sujeito no mal-estar intrínseco à cultura e, em especial, na culpabilidade que se manifesta nos mais atormentadores sofrimentos e renitentes sintomas, os quais, entretanto, não constituem as únicas formas de o mal-estar.

No âmbito da psicanálise em intensão, vale dizer, nas experiências de análise propriamente dita, situa-se o programa do desejo, irredutível tanto ao programa do princípio do prazer, quanto ao programa do gozo enquanto satisfação pulsional além do princípio do prazer. O programa do desejo, conforme coloca Lacan, não envolve promessa de felicidade, desafiando a homeostase da vida. Assim sendo, a escrita mostra-se mais compatível com o forçamento que o desejo implica, com a ultrapassagem que é exigida daquele que percorre seus circuitos.

A linguagem deixa rastros sob a forma de um efeito distinto do efeito de significado. A escrita é um vestígio no qual se lê um efeito de linguagem (LACAN, 1972LACAN, J.Ainda (1972-1973). Rio de Janeiro, Zahar, 2008. (O seminário, 20)-73, p. 109). Diante da relação que não se pode escrever, o falante fica às voltas com sua solidão. Esta, sim, é passível de inscrever-se, correspondendo justamente àquilo que se escreve e que, consequentemente, não é da ordem da expressão, mas da impressão.

“Não é por acaso que Lacan escreve seu significante como S1. Esse-um, que fala do vivente desde seus primórdios, provoca um zum zum zum, enxame que ressoa. Ressoa e ecoa embalando o corpo” (TENENBAUM, 2022TENENBAUM, D. Desdobrar alíngua: inconsciente, gozo, escrita. Tese de doutorado. PPGTP/UFRJ, Rio de Janeiro. 2022.), apontando que a inscrição do sujeito no campo do Outro imprime marcas afetivas. Essas marcas não resultam da comunicação; ao contrário, provêm da mais pura algaravia e são base para o mal-entendido. Elas se precipitam no encontro entre lalíngua e o corpo, por meio do qual o simbólico se ata ao real da vida, isto é, à dimensão pulsional.

Submetido ao banho da linguagem desde que vem ao mundo, o sujeito é falado pelo Outro em alguma língua, mas a língua que vem a falar realmente, com tudo o que isso envolve de gozo, é única. Por isso Lacan indica que uma língua entre outras se estabeleceria pela integral de equívocos que nela insistem, pelo que persiste na história (LACAN, 1972LACAN, J.Ainda (1972-1973). Rio de Janeiro, Zahar, 2008. (O seminário, 20)). Lalíngua é o nome cunhado por Lacan para designar esse aluvião que anima o corpo a partir das marcas de gozo instiladas no falante desde que é falado pelo Outro. Em si, lalíngua, como integral dos equívocos, é morta, dependendo de afetar o corpo para ganhar vida e se diferenciar para cada um.

A escrita literária distingue-se da prática da letra, embora não se excluam. Tal como formulado por Lacan, o trabalho com lalíngua aponta para um trabalho que circunscreve o gozo. Se Freud e Lacan debruçaram-se sobre obras literárias ao longo dos tempos, o objetivo não era o de realizar uma interpretação do texto ou do autor, tampouco sua psicobiografia. Pelo contrário, fizeram uso de textos para assinalar um trabalho com o que resiste à interpretação, o que insiste enquanto letra, pedaço de real. Das Memórias de Schreber aos contos fantásticos de Hoffman, Freud destaca questões que interrogam a prática do psicanalista. Se, na fundação da psicanálise, o artista é aquele que antecipa o que o psicanalista descobre na experiência do inconsciente, com Lacan, a ênfase recai naquilo que o escritor sabe independentemente do que a psicanálise ensina. A prática de lalíngua encerra um saber fazer sempre único que se presta a indexar o gozo. Este escapa ao significante e à imagem, exigindo tratamento que as escritas do exílio testemunham, seja em relação ao trauma, seja em relação à radicalização da solidão intrínseca ao gozo. É assim que se pode ler Duras e Joyce, em um percurso que vai da literatura à lituraterra. Nesse trançamento entre letra e língua (LACANLACAN, J. Função e campo da linguagem em psicanálise (1953). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998. p. 238-324., 1975-76/2007), fica marcado que a escrita se refere a um aparelhamento do gozo.

Ainda segundo Lacan, a única coisa que podemos pegar do texto de Joyce é a relação com o gozo escrita na “lalangue que é a inglesa” (LACAN, 1975-76/2007LACAN, J. Função e campo da linguagem em psicanálise (1953). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998. p. 238-324., p. 162-163). Trata-se de um processo que, ao desarticular a língua, desmontando som e sentido, aponta para um outro uso - e é este o valor notável que Lacan atribui à arte de Joyce.

Lacan (1972LACAN, J.Ainda (1972-1973). Rio de Janeiro, Zahar, 2008. (O seminário, 20)-1973, p. 156) também avança uma concepção acerca do exílio, o qual se remete à relação sexual. O gozo sexual é, para os falantes, marcado por uma falha, sofre de um impasse pelo fato de estar submetido à linguagem. Tal impasse não concerne simplesmente ao sujeito, nesta ou naquela constituição psíquica, mas a todo e qualquer falante. A falha imanente à sexualidade humana não pode ser remediada pelo encontro dos parceiros sexuais. Não há complementaridade entre sujeito e objeto, a relação sexual entre os parceiros não se escreve. Em se tratando do falante, a falha na dimensão do gozo sexual se revela inelutável. Exilado de um lugar no qual nunca se esteve (BASTOS, 2020BASTOS, A. Exílios e avesso do habeas corpus: rumo a um porto. Latusa- Rio de Janeiro: Escola Brasileira de Psicanálise Seção Rio, n. 25, dez. 2020.), posto não haver comunhão perdida, o falante é um falado por habitar o campo do Outro, no qual está parasitado pela linguagem. Com palavras, em algum’alíngua, constrói-se uma morada - e com ela “inventa-se um arranjo singular para remendar o impossível da relação” (TENENBAUM, 2022TENENBAUM, D. Desdobrar alíngua: inconsciente, gozo, escrita. Tese de doutorado. PPGTP/UFRJ, Rio de Janeiro. 2022.).

PARA CONCLUIR

Submeter uma interrogação ao funcionamento da questão-resposta implica acolher a pergunta como demanda, para aceder ao dizer que a anima, algo bem diferente de abordá-la como um problema que pede solução. A questão do exílio e das línguas assim tratada passa pelo tratamento do gozo e abre para o desejo na prática de lalíngua. Para os autores aqui abordados, a escrita circunscreve o trabalho com a letra, realizado entre línguas, de uma a outra língua.

Nessa direção, a questão que interessa para o avanço da psicanálise é menos a do conteúdo de um texto e mais o modo como uma escrita se engendra. Trata-se antes da prática de lalíngua, do que do status artístico da obra. Ao psicanalista, importa como alguém pode vir a funcionar como escritor, ou seja, de que maneira a articulação entre letra e língua constrói uma borda sobre o gozo. O que se lê daí é a possibilidade de se desenhar, de um modo único, uma ancoragem no mundo, tal como documentam os escritores cujas vidas viram o exílio próprio à inexistência da relação sexual duplicado pela experiência de exílio, no sentido aqui explorado da migração e do desterro. O texto ganha nessa leitura uma outra textura que permite a Lacan estabelecer uma diferença entre ler uma letra e ler.

Em um sentido específico à psicanálise, o exílio resulta da impossibilidade de escrever a relação sexual, que não existe no dizer e que nada pode dizer. Há um passo a ser franqueado do impossível ao contingente, de acordo com o qual o real da relação sexual cessa de não se escrever, vale dizer, se submete ao regime do encontro. O amor é a maneira por excelência de passagem do real impossível - que não se confunde com o necessário - à contingência do que cessa de não se escrever. A escrita enquanto prática de lalíngua se alinha a ele.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2023
  • Aceito
    16 Nov 2023
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