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Palavras dos Editores Convidados. Não ser o que (logo) sou: Paradoxos ontológicos na literatura latino-americana contemporânea

Guest Editors’ Words. Not being what I (therefore) am: Ontological paradoxes in modern Latin American literature

Resumo

Com esta proposta busca-se promover um debate teórico-crítico no âmbito dos estudos literários, que tenha como eixo problemático a importância do paradoxo como modo de pensamento e representação/construção do mundo, alternativo às epistemologias hegemônicas associadas à razão instrumental do Ocidente. Considerando, com G. DeleuzeDELEUZE, Gilles. La lógica del sentido. Buenos Aires: Planeta, 1994 [1969]., que toda gramática e todo silogismo são um meio de manter a subordinação das conjunções ao verbo ser, um dos desafios intelectuais que enfrentamos atualmente consiste em pensar o “ser”, simultaneamente, em termos identitários e de devir, termo com uma genealogia que vai de Heráclito via Bergson até Deleuze e que vem sendo resgatado como forma de evitar essencializaçōes imobilizantes. Encontramos, em modos tão diversos como os que chamamos aqui “pensar-marrano”, “pensar-Exu” e nas cosmologias ameríndias, uma exoneração do indivíduo do peso e da obrigatoriedade de uma unidade coerente, disciplinadora hegemônica e homogeneizante. Nelas se desenha um paradoxo ontológico cardinal: aquele segundo o qual o eu só devém si mesmo ao tornar-se outro. Por sua vez, estas, as cosmologias “não ocidentais”, subvertem a linearidade do tempo, na reimaginação do presente, do passado e do futuro, vistos como um todo organizado segundo leis mais sutis e complexas do que a concepção ocidental de tempo histórico. Cada vez mais presentes no cenário das artes e as literaturas contemporâneas, estas cosmologias mostram-se como fontes particularmente ricas de figuras paradoxais, constituindo uma intervenção epistemológica revestida de valor emergencial na situação liminar de um mundo em plena catástrofe, marcado pelas ondas de extinção e desertificação.

Palavras-chave:
paradoxo; devir; cosmologias não ocidentais

Resumen

El objetivo de esta propuesta es promover un debate teórico-crítico en el campo de los estudios literarios, cuyo eje problemático sea la importancia de la paradoja como modo de pensamiento y representación/construcción del mundo, alternativa a las epistemologías hegemónicas asociadas a la razón instrumental occidental. Considerando, con G. Deleuze, que toda gramática y todo silogismo son un medio de mantener la subordinación de las conjunciones al verbo ser, uno de los desafíos intelectuales a los que nos enfrentamos en la actualidad es pensar el “ser” simultáneamente en términos de identidad y de devenir, término con una genealogía que va desde Heráclito pasando por Bergson hasta Deleuze y que ha sido rescatado como una forma de evitar esencializaciones inmovilizadoras. Encontramos, en modos tan diversos como los que aquí llamamos “pensamiento marrano”, “pensamiento exu” y en las cosmologías amerindias, una exoneración del individuo del peso y la obligación de una unidad coherente, disciplinadora, hegemónica y homogeneizadora. Estos modos revelan una paradoja ontológica cardinal: aquella según la cual el yo sólo llega a ser él mismo convirtiéndose en otro. A su vez, estas cosmologías “no occidentales” subvierten la linealidad del tiempo al reimaginar el presente, el pasado y el futuro como un todo organizado según leyes más sutiles y complejas que la concepción occidental del tiempo histórico. Cada vez más presentes en el panorama artístico y literario contemporáneo, estas cosmologías son fuentes especialmente ricas en figuras paradójicas, constituyendo una intervención epistemológica que se muestra urgente en la situación liminar de un mundo en plena catástrofe, marcado por oleadas de extinción y desertización.

Palabras-clave:
paradoja; devenir; cosmologías no-occidentales

Abstract

The aim of this proposal is to promote a theoretical-critical debate in the field of literary studies, with a focus on discussing the importance of paradox as a mode of thought and representation/construction of the world, an alternative to the hegemonic epistemologies associated with Western instrumental reason. Considering, like G. Deleuze, that the whole of grammar and the whole of the syllogism is a way of maintaining the subordination of conjunctions to the verb to be, one of the intellectual challenges we face today is to think of “being” simultaneously in terms of identity and becoming, a term with a genealogy that goes from Heraclitus via Bergson to Deleuze and which has been revived as a way of avoiding immobilizing essentializations. We find, in modes as diverse as those we call here “marrano thinking”, “Yoruba Esu Thinking”, and in Amerindian cosmologies, an exoneration of the individual from the weight and obligation of a coherent, disciplining, hegemonic and homogenizing unity. These modes reveal a cardinal ontological paradox: one according to which the self becomes itself only by becoming other. In turn, these “non-Western” cosmologies subvert the linearity of time by reimagining the present, the past and the future as a whole organized according to more subtle and complex laws than the Western conception of historical time. Increasingly present on the contemporary artistic and literature scene, these cosmologies are particularly rich sources of paradoxical figures, constituting an urgent epistemological intervention in the liminal situation of a world in the throes of catastrophe, marked by waves of extinction and desertification.

Keywords:
paradox; becoming; “non-Western” cosmologies

Y dice Parménides: esto es absurdo; la filosofía de Heráclito es absurda, es ininteligible, no hay quién la entienda porque, ¿cómo puede nadie entender que lo que es no sea, y lo que no es sea? ¡No puede ser! ¡Esto es imposible! […] El ser, es: el no ser, no es. y todo lo que sea salirse de eso es descabellado, es lanzarse, precipitarse en la cima del error. ¿Cómo puede decirse, como dice Heráclito, que las cosas son y no son?

Manuel García Morente, Lecciones preliminares de filosofía

Ao que tudo indica, toda modernidade acolhe na sua gênese e na sua dinâmica interna a contradição de uma simultânea afirmação e negação. Tanto o sujeito moderno como o mundo que ele habita e enfrenta são sempre duplos: se estruturam ao tempo que se desestruturam. “Tudo o que é sólido desmancha no ar”, segundo o famoso dito de Marx retomado por Marshall Berman para caracterizar o conceito da modernidade:

Ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição. [...] Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor - mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. (Berman, 1987BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido se desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1987., p. 15-16).

Se já o nascimento da idade moderna ocidental testifica que não há Dom Quixote sem Sancho Pança, assim como não há Descartes sem Cervantes, também a eclosão do modernismo brasileiro participa do vórtice do redemoinho ativado pela proximidade dos opostos. Se a afirmação da identidade nacional moderna se encarna na figura de Macunaíma, o herói do romance de Mário de Andrade que, como Exú, é múltiplo e ao mesmo tempo não tem “nenhum caráter”, o espírito do paradoxo atinge seu duplo ápice nas escritas, tão diferentes e, porém, quase inseparáveis, de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. “Tudo é e não é” (Rosa, 1988ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988 [1956]., p. 5) - diz Riobaldo no arquirromance rosiano. Por sua vez, no primeiro capítulo de A paixão segundo G.H., a sua narradora confessa: “Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna” - talvez ao mesmo tempo termo oposto e perfeita metáfora da “prótese de origem”, como Derrida (2001DERRIDA, Jacques. O monolinguismo do outro. Ou a prótese de origem. Tradução de Fernando Bernardo. Porto: Campo das Letras, 2001 [1996].) se referiu à língua materna na sua condição espectral -, diz G.H., “eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive” (Lispector, 2000, p. 9).

Parece que a intuição de verdade contida nesse tipo de figuras paradoxais nos impacta hoje com uma nova força, isto é, nos impacta mais uma vez com a mesma força de sempre. Dito de outra forma, ainda, talvez estejamos “voltando (outra vez) aonde nunca estivemos”, “lembrando (de novo) daquilo que nunca aconteceu”, “recuperando aquilo que nunca perdemos pois nunca foi nosso”. Na literatura e outras narrativas culturais contemporâneas, a força e a presença do espírito de paradoxo1 1 Lembremos com Ferrater Mora (1965, p. 365) que o paradoxo (paradoja em espanhol) significa, etimologicamente, algo “contrario a la opinión (δόξα), esto es, «contrario a la opinión recibida y común». Cicerón (De fin., IV, 74) escribe: Haec παράδοξα itti, admirabilia dicamus, «Lo que ellos [los griegos] llaman παράδοξα , lo llamamos nosotros ‘cosas que maravillan’». En efecto, la paradoja maravilla, porque propone algo que parece asombroso que pueda ser tal como se dice que es. A veces se usa 'paradoja' como equivalente a ‘antinomia’. A veces, y más propiamente, se estima que las llamadas “antinomias” son una clase especial de paradojas: las paradojas que engendran contradicciones no obstante haberse usado para defender las formas de razonamiento aceptadas como válidas.” não deixa de aumentar.

O destacado intelectual, poeta e ensaísta espanhol César Antonio Molina deu à segunda entrega das Memorias de ficción, seu projeto de escrita híbrida entre diário, narrativa ficcional e ensaio erudito, o emblemático título Regresar a donde no estuvimos (2003MOLINA, César Antonio. Regresar a donde no estuvimos. Madrid: Ediciones Península, 2003.). A mesma figura aparece 10 anos mais tarde em produções culturais latino-americanas tão diversasn como no álbum do rapper brasileiro Emicida, O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui, de 2013, ou no Volverse palestina, romance publicado no mesmo ano pela escritora chilena Lina Meruane. Na obra, a autora reflete sobre as implicações do ato de “regressar” no contexto da exploração de suas raízes familiares palestinas:

Regresar. Ese es el verbo que me asalta cada vez que pienso en la posibilidad de Palestina. Me digo: no sería un volver sino apenas un visitar una tierra en la que nunca estuve, de la que no tengo ni una sola imagen propia. Lo palestino ha sido siempre para mí un rumor de fondo, un relato al que se acude para salvar un origen compartido de la extinción. No sería un regreso mío, repito. Sería un regreso prestado, en el lugar de otro. (Meruane, 2013MERUANE, Lina. Volverse palestina. México: Literal Publishing, 2013., p. 11).

Volver se articula e confunde, assim, com volverse: tornar-se, virar, devir - termo de importância teórica capital, com uma genealogia que vai de Heráclito, via Bergson, até Deleuze e que há algumas décadas vem sendo resgatado como forma de evitar essencializaçōes imobilizantes -. Como o coloca Zourabichvili, o que estaria em jogo no “devir” deleuziano é a “identificação sem identidade” ou “comunicação sem partilha”, pois trata-se de uma relação que não elimina a heterogeneidade dos dois termos, de uma relação cuja efetividade e exterioridade são afirmadas até o fim” (Zourabichvili, 2019, s/p). Nesse sentido, na figura de volver(se), o movimento em aparência regressivo, na direção do passado, aparece como indissociável do movimento progressivo, com o avanço na direção de um futuro, daquilo que ainda podemos ser. Nesse sentido o cuidado pelo que já foi fica dialeticamente atrelado ao que vem, muitas vezes de formas surpreendentes. Segundo a famosa colocação de uma das personagens do Réquiem por uma freira, de William Faulkner, “the past is never dead. It’s not even past” (Faulkner, 2019FAULKNER, William. Requiem for a nun. Toronto: Penguin Random House, 2019 [1951]., p. 49), o que pode significar não só a persistência espectral do passado que assombra o presente, mas também a potencial reversibilidade da relação que une os dois termos. Dessa forma, em contra da lógica sequencial e causal que rege a nossa ideia mais comum do tempo, não seria impossível cometer no presente atos que tenham consequências no passado, como no caso de Exu, quem, segundo o ditado iorubá, “matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”. Este mitema da retroatividade das ações do orixá foi mobilizado por Emicida, quem colocou a frase como epígrafe do seu trabalho Amar-elo (2019), voltado em grande parte para a reimaginação do presente, do passado e do futuro, vistos como um todo organizado segundo leis mais sutis e complexas do que a velha linearidade do tempo histórico trazida junto com a episteme colonial europeia. O motivo foi retomado pelo filósofo Silvio Almeida, teorizador da categoria do “racismo estrutural”, no seu discurso de posse como ministro dos direitos humanos e da cidadania em janeiro de 2023. Exu, padroeiro da comunicação e da linguagem - mas também das multiplicidades e da indeterminação -, poderoso orixá trickster que preside as conquistas e os enganos, também é definido como aquele que “sentado não cabe numa casa e em pé cabe numa noz” e “com uma peneira leva óleo ao mercado” (Martins, 2022MARTINS, Helena. Pósfacio. In: CAPILÉ, André; GONTIJO FLORES, Guilherme. Uma A outra tempestade [tradução-exu]. Belo Horizonte: Relicário, 2022. , p. 209). Como aponta Leda Maria Martins, trata-se, com efeito, de uma figura que subverte os paradigmas e as polaridades, diluindo os conceitos de oposição (1995MARTINS, Leda Maria. A cena em sombras. São Paulo: Perspectiva, 1995., p. 199), em um gesto semelhante àquele procurado por Roland Barthes em seu curso sobre “o Neutro”, oferecido no Collège de France em 1978, no qual o teórico se debruçava sobre o desejo da suspensão das oposições binárias tão caras ao estruturalismo,2 2 Lembre-se, no entanto, que a desmontagem dos binarismos que o pós-estruturalismo prega deve ser vista mais como desenvolvimento, ou superação dialética, e menos como simples oposição às conquistas dos estruturalistas. Nesse sentido, refletia Viveiros de Castro sobre a sua formação como antropólogo pós-estrutural: “O estruturalismo de Lévi-Strauss não é, mas nem de longe, meu «inimigo». Ao contrário, foi quem me forneceu régua e compasso, estabelecendo as condições de minha interlocução com a etnologia amazônica e com ele mesmo. [...] Mas pensando bem, talvez ele seja, sim, meu inimigo principal, no sentido que tem este conceito nas socialidades amazônicas, onde ele designa algo perfeitamente positivo, isto é, «absolutamente necessário», algo que é preciso afirmar, não negar, para se poder passar adiante” (Castro, 2017, p. 17). Isso pode lembrar outro paradoxo, com frequência mobilizado pelo pensamento heterodoxo judeu: aquele da traição por fidelidade ou fidelidade na traição. Os heresiarcas messiânicos Sabbatai Zevi (s. XVII) e Jacob Frank (s. XVIII) pregaram a necessidade de os judeus da Europa de Leste se converterem ao islã e ao catolicismo, respectivamente, numa espécie de subterfúgio metafísico. Modernamente, se situaria numa linha semelhante grande parte dos pensadores judeus que encontram uma maneira paradoxal de se manter fiéis ao judaísmo na secularização. Veja-se, nesse sentido, o conceito benjaminiano de Tradierbarkeit (‘tradutibilidade’); como explica Agata Bielik-Robson (2019, p. 37), trata-se de: “passing on the tradition through its inevitable betrayal. By opening the traditional «gene pool» to «mixture» and «contamination,» translation simultaneously preserves it and puts it at risk—yet, this very risk is nothing but life itself, which also includes the vital interest of self-preservation”. mobilizando, além de motivos oriundos da cultura europeia, elementos do pensamento Zen como estratégia para buscar formas alternativas e contraintuitivas de discurso.

Pelos motivos apontados, Exu, em tanto “personificação do princípio da transformação” (Augras apudPereira, 2022PEREIRA, Edmilson de Almeida. Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira. São Paulo: Fósforo Editora, 2022., p. 108) vem sendo cada vez mais invocado para abençoar e presidir projetos culturais de emancipação, entendida como tarefa que exige a ruptura de barreiras epistêmicas. Nesse sentido, a sua figura, tornada conceito teórico, funciona como matriz de pensamento no livro de Edmilson de Almeida Pereira, Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira, em que o poeta e professor mineiro propõe uma matriz estética e uma epistemologia afrodiaspórica para pensar a literatura brasileira e, através dela, pensar o mundo de maneira diferente, de modo a colocar “em xeque o ordenamento cartesiano que fundamenta certos pressupostos aos quais fomos habituados em nossa trajetória de formação pessoal no âmbito da família, das instituições de ensino etc” (Pereira, 2022PEREIRA, Edmilson de Almeida. Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira. São Paulo: Fósforo Editora, 2022., p. 108).

Vale sublinhar que os projetos desse gênero, retorcendo paradigmas, obstruindo máquinas de pensamento totalizador, questionando as formas de conhecimento hegemônicas e esterilizantes, se colocam, antes de mais nada, como objetivos éticos. Trata-se de uma procura de justiça e liberdade radicais, voltada para a esperança de fazer jus a todo ser existente ou que já existiu. Subverter a linearidade do tempo - além de poder sugerir o ciclo da eterna renovação do horror e da ruína - também permite articular projetos éticos mais ambiciosos, que contemplem inclusive as gerações passadas, abrindo a possibilidade de imaginar uma redenção verdadeiramente universal, assim como a sonhou Walter Benjamin (1985BENJAMIN, Walter. Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985 [1934]. p. 137-164.), enxergando a luz messiânica entre as linhas da aparentemente desesperada escrita de Kafka.

Em definitiva, pensar através do paradoxo muitas vezes tem exatamente essa caraterística, de se opor ao inevitável e de forçar o impossível. Deviam saber disso os místicos ao fazerem a linguagem torcer-se, assim como a alma se torce “vivendo sem viver em si” (segundo reza o clássico poema da Teresa d’Ávila), tentando forçar as palavras, cotidianamente subjugadas à lógica utilitária, a apontar além do seu escopo referencial e, inclusive, além do (humanamente) possível. Com efeito, o deslumbramento perante a condição paradoxal da existência humana (e a divina) pautou todo o espírito do barroco ibérico, nascido - como vem sendo apontado com cada vez mais força pelos filósofos e filólogos que estudam a herança da heterodoxia judia - da experiência da traumática cisão interna e do nascimento de um novo modelo de subjetividade na figura do marrano: o judeu ibérico obrigado a se converter ao cristianismo e, posteriormente, forçado ao exílio, que, no entanto, encontra na sua trágica posição um elemento de oportunidade: a abertura emancipatória que lhe permite perceber-se em termos de multiplicidade interna, isto é, nem inteiramente cristão, nem inteiramente judeu, mas situando-se numa vivificadora oscilação dialética entre as duas partes da própria constituição e abraçando a dimensão de segredo inscrita na existência de cada indivíduo.

Erin Graff Zivin, no seu ensaio “El pensar-marrano; o, hacia un latinoamericanismo an-arqueológico”, reflete sobre a noção de segredo que Derrida elabora na sua leitura do fenômeno do marranismo, identificando-se ele próprio como “uma espécie de marrano”. A maneira como o filósofo compreende a ideia de segredo nos dá, segundo Zivin,

una pista para abordar una lectura alternativa del marrano que no se base en el ocultamiento o la revelación (a través de la confesión) de la alêtheia: “no sería una cuestión del secreto como representación disimulada por un sujeto consciente, ni del contenido de una representación inconsciente, algún motivo secreto o misterioso que el moralista o el psicoanalista tendría la habilidad de detectar o, como dicen, desmitificar”. En cambio, el secreto derrideano excede el juego del ocultamiento y de la revelación, es decir, subvierte la noción de alêtheia que constituye la lógica inquisitorial, y es ésta la distinción que considero fundamental para una discusión del pensar-marrano. (Zivin, 2015ZIVIN, Erin Graff. El pensar-marrano; o, hacia un latinoamericanismo an-arqueológico. In: ORELLANA, Rodrigo Castro (ed.) Post-hegemonía. El final de un paradigma de la filosofía política contemporánea en América Latina. Madrid: Biblioteca Nueva, 2015. p. 205-216., p. 208).

Num sentido que permitiria unir essa ideia derridiana de segredo com l’enjeu ético do pensar através do paradoxo, Silviano Santiago afirma sobre a escrita de Kafka: “Trabalhar o inverossímil, que é produto não da parcimônia, mas do exagero nos exercícios descritivos, é uma atitude ético-religiosa. É aproximar-se do mistério. Não há enigma, há mistério no universo ficcional de Kafka” (Santiago, 2006SANTIAGO, Silviano. Amerika. In: SANTIAGO, Silviano. Ora (direis) puxar conversa!. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 287-292., p. 289).

É justamente através da aposta pelo mistério que projetos como o “pensar-marrano” ou o “pensar-Exu” confluem na sua liberadora exoneração do indivíduo do peso e obrigatoriedade de uma unidade coerente, disciplinadora hegemônica e homogeneizante, oferecendo-lhe um inestimável impulso vitalizador. Algo semelhante poderia ser dito das figurações da existência humana propostas pelas culturas amazônicas, cuja originalíssima filosofia foi interpretada e integrada no discurso teórico pela antropologia brasileira contemporânea. Segundo Eduardo Viveiros de Castro, por exemplo, os ameríndios colocam no centro dos seus sistemas ontológicos a possibilidade de alteração radical, incluindo a transformação em outro e a aquisição de sua perspectiva. O “ser”, nas suas cosmovisões, é entendido não em termos de identidades, mas como existências modais, o que se verifica na maneira em que a etnografia amazônica usa a noção de “corpo”, que nesse caso “não é sinônimo de fisiologia distintiva ou de anatomia caraterística; é um conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus” (Castro, 2017CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Ubu Editora, 2017 [2002]., p. 330), graças ao que a metamorfose se torna uma possibilidade constantemente atual.

[Os] xamãs, mestres do esquematismo cósmico dedicados a comunicar e administrar as perspectivas cruzadas, estão sempre aí para tornar sensíveis os conceitos ou inteligíveis as instituições. Em suma, os animais são gente, ou se veem como pessoas. Tal concepção está quase sempre associada à ideia de que a forma manifesta de cada espécie é um envoltório (uma “roupa”) a esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs. [...] A noção de “roupa” é, com efeito uma das expressões privilegiadas da metamorfose - espíritos, mortos e xamãs que assumem formas animais, bichos que viram outros bichos, humanos que são inadvertidamente mudados em animais -, processo onipresente no “mundo altamente transformacional” proposto pelas culturas amazônicas. (Castro, 2017CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Ubu Editora, 2017 [2002]., p. 304-305).

Nesse mundo, em que a transespecificidade própria dos xamãs, num sentido mais amplo, pode ser atribuída a todos os seres, a diferença humano/animal se torna “um limite facilmente transponível”, como aponta Aparecida Vilaça (2018VILAÇA, Aparecida. Paletó e eu. Memórias de meu pai indígena. São Paulo: Todavia, 2018., p. 96). Ela propõe uma convincente explicação do fenômeno das conversões dos Wari’ ao cristianismo não como casos de aculturação sofrida pelos indígenas, mas como instâncias dessa apropriação do outro que sempre foi constitutiva do seu modo de existir. Vilaça chama a atenção, nesse contexto, ao

fato de os Wari’, assim como outros grupos amazônicos, reproduzirem-se por meio de alterações radicais sucessivas, que envolvem a transformação em outro e a aquisição de sua perspectiva. Sendo assim, a adoção do cristianismo como algo novo e externo não contradiz a afirmação de continuidade entre essa religião e a cultura nativa, se tomarmos como ponto de partida a premissa básica do interesse deles e de outros povos ameríndios na captura da perspectiva do outro, seja ele animal, inimigo ou branco. A adoção do ponto de vista dos missionários é mais um movimento nessa direção da captura de uma perspectiva externa. (Vilaça, 2008VILAÇA, Aparecida. Conversão, predação, perspectiva. MANA, v. 14, n. 1, p. 173-204, 2008., p. 177).

A lógica da conversão, vista nesses termos, parece próxima daquela que se pode ver no ser marrano, o converso, que tendo sido vítima de uma operação violenta de transformação imposta desde fora pelo inimigo, apropria-se da identidade dele, assombrando-a doravante desde dentro, possibilitando a sua reconfiguração. Em ambos os casos se nota o paradoxo ontológico cardinal: aquele segundo o qual o eu devém eu mesmo só tornando-se outro, ao tempo que a máxima fidelidade com respeito àquilo que sou é atingida num gesto de aparente traição.

Nesse contexto, é exatamente o paradoxo - entendido como aquilo que maravilha pois aparentemente não pode ser - que se insurge contra a lógica aristotélica e mesmo contra o senso comum que não concebe a coexistência dos contrários, pois, como aponta Gilles Deleuze, “toda gramática, todo o silogismo, são um meio de manter a subordinação das conjunções ao verbo ser, de as fazer gravitar em torno do verbo ser. É preciso ir mais longe: fazer com que o encontro com as relações penetre e corrompa tudo, mine o ser, o faça oscilar. Substituir o é pelo e. A e B” (1996DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Lisboa: Relógio d’Água, 2004 [1996]., p. 75).

Na mesma linha - pautada pela intuição da possibilidade de um resultado maravilhoso, surpreendente, imprevisível e dinâmico, sempre inconcluso, do relacionamento de dois termos ou seres diferentes ou até opostos - poderiam ser colocadas as interpretações contemporâneas do conceito tão fundamental para pensar América Latina como mestiçagem. Retomando a proposta de François Laplantine e Alexis Nouss, Alejandra Mailhe reforça a possibilidade de pensar a categoria de miscigenação cultural em outros termos do que aqueles de uma síntese estável de dois elementos, em que A+B daria um C.

En contraste con esa compulsión por la amalgama, Laplantine y Nouss conciben un modelo ideal de mestizaje, en ruptura con el pensamiento binario occidental, en base al encuentro y el intercambio entre dos términos, sin que uno se someta a −o fusione con− el otro, sino manteniendo la diferencia, siendo uno y el otro alternativamente. Esa ambigüedad rechaza la conciliación de los opuestos, planteando en cambio su alternancia como resistencia a la síntesis integradora; ya no implica caer en la tentación de la trascendencia; no aspira a la homogeneidad sino a las metamorfosis, como parte de un paradigma epistemológico que rompe con la ilusión del progreso, renunciando a un saber absoluto y definitivo, en favor de un reconocimiento de la incertidumbre. (Mailhe, 2021MAILHE, Alejandra. Mestizaje. In: COLOMBI, Beatriz (ed.). Diccionario de términos críticos de la literatura y la cultura en América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2021. p. 317-326., p. 318).

Em uma linha semelhante, o teórico da história brasileiro Hugo R. Merlo propõe pensar a mestiçagem como um fenômeno paradoxal, passível de ser descrito à luz dos termos derridianos de différance (diferença e constante adiamento da solução ao mesmo tempo) e traço:

O paradoxo temporal da ideia de mestiçagem se expressa em sua etimologia: o radical da palavra vem do particípio passado do verbo latino miscēre [mixticius], indicando um processo completo ou simultâneo, seguido da terminação ambígua que indica processo e efeito. O sentido de suspensão expresso pelo conceito de mestiçagem origina-se desse paradoxo e ambiguidade. [...] Derrida nomeia o que excede a alternativa de presença e ausência provisoriamente como traço, ou vestígio. O traço é aquilo que existe no signo e que ele nega. [...] O traço não é presença nem ausência; é as duas coisas: ausência enquanto negação do que se afirma [...] e presença na medida em que está presente no que se afirma. (Merlo, 2023MERLO, Hugo R. A mestiçagem como conceito histórico. Uma descrição teórica. Revista de Teoria da História. v. 26, n. 1, p. 100-119, 2023., p. 109-110).

Coerentemente com essa ideia de mestiçagem, se percebe aqui uma prometedora aliança das vertentes subversivas e indóceis do pensamento ocidental com as metafísicas “não-ocidentais” (nomeadamente ameríndias e afro-americanas) que podem ser hoje fontes particularmente ricas de figuras paradoxais que talvez possam propor categorias mais produtivas para pensarmos o mundo contemporâneo.

As figuras paradoxais acima elencadas se oferecem como ferramentas emancipatórias, cujas funções se estendem no escopo entre o sutil subterfúgio das normas constrangedoras e a radical esperança de poder desejar e exigir justiça utópica total, mesmo apesar da sua aparente impossibilidade. Muitas vezes o paradoxo se apresenta, assim, revestido de valor emergencial, constituindo uma intervenção epistemológica urgente na situação liminar de um mundo em plena catástrofe, um mundo cheio de ruínas, marcado pelas ondas de extinção e desertificação. Isso torna-se tanto mais relevante, quanto o contexto catastrófico-apocalíptico em que vivemos nos impõe a tarefa de imaginar futuros eles mesmos paradoxais: ora futuros sem nós, que nós mesmos preparamos, ora futuros em que teremos de viver em um mundo após o fim do mundo.

À luz dessas propostas, não deve estranhar que o protagonista do primeiro dos artigos deste dossiê seja Jorge Luis Borges, um autor especialmente propício ao maravilhamento dos paradoxos e fascinado pelas ciladas da silogística mente humana, prestes a provar que, bem examinado, o perfeito herói seria traidor e o traidor mais vil - máximo herói. No seu texto “Otras inquisiciones contra la crisis de la imaginación: juego deleuziano y patafísico en Borges”, Zofia Grzesiak propõe examinar a obra do escritor argentino, nesse espaço indeterminado entre literatura, ciência e filosofia, como um antídoto diante da crise de imaginação proclamada como problema central dos “tempos pós-normais” por Ziauddin Sardar (2010). Grzesiak lê Borges à luz da patafísica, “una ciencia que somete los modos dominantes de racionalidad a un pensamiento divergente de lo absurdo y que propone formas lúdicas de razonamiento” (Gasparin, 2020, p. 385), conceituada por Deleuze como o único termo geral que corresponde a todas as tentativas de superação da metafísica. Em Diferença e repetição e posteriormente em Lógica do sentido, o filósofo exemplifica seu conceito de “jogo ideal”, isto é, o pensamento antimetafísico que conceitualiza a diferença e o sem-sentido, a partir de Borges e especialmente da leitura do conto “A loteria em Babilônia”. Nesse jogo, o número de sorteios é literalmente infinito e o acaso decide tudo, inclusive a existência dos jogadores. Na Babilônia do conto, os moradores tentam atuar de acordo com a doutrina da loteria, de “interpolación del azar en el orden del mundo” e de aceitar os erros para corroborar o acaso. Segundo a lógica da loteria (que rege a vida na Babilônia), não existe o princípio de causa e efeito. A causalidade é uma questão de crença e influência dos costumes na imaginação. Por isso, Grzesiak afirma que as outras inquisições de Borges podem ser pensadas como tentativas de liberar “la producción de conocimiento, reflexión y comunicación de las trampas de la racionalidad/modernidad europea” (Quijano, 2010, p. 31).

Também o texto de João Carlos Pinho Pereira, “Adentrar o deserto: a jornada utópica de Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño”, faz uma leitura do romance do escritor chileno em termos de uma crítica à modernidade, “pautada por uma representação do paradoxal cenário cultural latino-americano”. O deserto, lugar de peregrinação de uma jornada utópica dos protagonistas Ulises Lima e Arturo Belano em busca da poeta Cesárea Tinajero, é um espaço ao mesmo tempo “vazio” e povoado de significações na história do continente. Se, desde os tempos remotos, o deserto é um significante dúbio que remete simultaneamente ao inóspito e a um lugar de provações que, nas religiões abraâmicas, propicia o encontro com Deus, na modernidade a ideia de desertificação funciona de maneira metafórica como imagem da devastação propagada pela produção industrializada, a exploração e o consumo de recursos naturais. Essa imagem desértica “sinaliza para o fim de todas essas coisas”, mas também para “uma possibilidade de novo começo a partir do que se pode construir desse vazio”, como afirma o autor. Daí a possibilidade de ele propor que “é no vazio do deserto, alheio às imagens já contaminadas com o pessimismo moderno que se pode imaginar e extrair ainda o desejo pela utopia”.

O deserto retorna no texto de Leo Cherri, “Bordar el archivo, intervenir el desierto: #InakayalVuelve, de Sebastián Hacher”, sobre a intervenção feita pelo artista e ativista argentino no arquivo das fotografias da Conquista do Deserto (como se conhece o grande massacre indígena perpetrado pelo exército argentino no final do século XIX). Inacayal foi um cacique que estava entre os presos tehuelches, sobreviventes do massacre, que o exército levou ao Museu de Ciências Naturais de La Plata, onde acabaram morrendo. O projeto #InakayalVuelve é uma série de materiais que inclui crônicas que o Hacher foi publicando entre 2017 e 2018 na Revista Anfibia, fragmentos audiovisuais realizados por Mariana Corral e uma intervenção sobre as fotografias dos presos arquivadas no Museu, desenvolvida junto com a comunidade de descendentes desse povo indígena. Assim, o projeto, de autoria múltipla, é também um exercício de restituição que tem uma potência paradoxal, pois o registro fotográfico feito pelos agressores e transformado em “documentação” (que inclusive serviu como fonte para um estudo antropométrico nos moldes do positivismo de finais de século), é “des-arquivado”, recuperado (inclusive materialmente a partir da edição digital), devolvido à comunidade e insuflado de vida a partir de um saber popular e comunitário (o bordado). Estas operações retiram a fotografia de sua dimensão documental e da lógica de uma epistemologia colonial, que implica coisificação e domínio, para transformá-las num artifício afetivo sem, no entanto, anular sua dimensão histórica.

O texto de Mónica Bernabé e Renata Defelice, “Neobarroco y plantación. Escalas del Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar”, se refere a outro tópico da paisagem geoeconômica latino-americana, propondo uma releitura do clássico livro do antropólogo cubano Fernando Ortiz, considerado pelas autoras uma “extraordinária e inesgotável fabulação especulativa”, conectando as humanidades com uma história natural aberta ao estudo da interação dos povos com as plantas, os animais, a terra e as águas sob situações de colonialidade. À luz do que Anna Tsing e Donna Haraway (entre outros) chamaram de “plantacionoceno”, as autoras retomam o trabalho de Ortiz na medida em que questionava as narrativas eurocêntricas propondo uma modernidade de tempos múltiplos e desenvolvimentos desiguais. “Perturbando as fronteiras” disciplinares, Ortiz produz “um contraponto entre as notas do linguista e os arquivos do criminólogo positivista, a erudição do geógrafo com o ouvido do musicólogo, as fontes do historiador com as ficções do etnógrafo”. “Contrapunteo é dissonância e concordância, acordo e desacordo”: o paradoxo se inscreve no “emprego da irrisão barroca para descrever com rigor crítico o drama da sujeição de um mundo a uma maquinária de controle total, como é a da plantação”.

Em “Vida ajetreada y materia vibrante en Siete casas vacías, de Samanta Schweblin”, Wiosna Szukala também propõe uma epistemologia alternativa, que parte dos pressupostos do assim chamado “novo materialismo”, e especificamente do conceito de “matéria vibrante”, de Jane Bennett, e de “trajín de cada día” (“trabalho diário”), de Jolanta Brach-Czaina. Na leitura de Szukala, há uma coerência nos diversos relatos que compõem o livro da escritora argentina, que se dá a partir de uma constelação de cenas e imagens paradoxais em torno da vida cotidiana, das atividades e dos objetos banais do dia a dia. O próprio estudo da matéria se apresenta como paradoxal, uma vez que, ao se aproximar dela, surgem uma multidão de aspectos imateriais a ela relacionados: linguagem, consciência, subjetividade, agência, emoções, valores e significados. Os objetos do cotidiano são percebidos pelos novos materialismos não como entidades isoladas, mas componentes interconectados em constante interação, têm agência e veiculam relações. Assim, a “despercebida e despreciada” banalidade da vida cotidiana encerra também o “absoluto da existência”, sua “duração infinita”.

Em sua diversidade, todos os artigos que compõem esse dossiê apontam para as potências que surgem da literatura, da filosofia e do pensamento latino-americanos a partir de epistemologias alternativas à tradição da lógica silogística ocidental, apostando na construção de mundos e cosmovisōes que aceitam a heterogeneidade e a multiplicidade sem anseios de síntese ou totalidade, que abraçam a contradição como inerente à complexidade da existência e que apostam na abertura para o outro e a diferença como modo de entendimento de um eu em constante devir.

Referências

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  • 1
    Lembremos com Ferrater Mora (1965FERRATER MORA, José. “Paradoja”. In: FERRATER MORA, José. Diccionario de filosofia. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1965. v. II., p. 365) que o paradoxo (paradoja em espanhol) significa, etimologicamente, algo “contrario a la opinión (δόξα), esto es, «contrario a la opinión recibida y común». Cicerón (De fin., IV, 74) escribe: Haec παράδοξα itti, admirabilia dicamus, «Lo que ellos [los griegos] llaman παράδοξα , lo llamamos nosotros ‘cosas que maravillan’». En efecto, la paradoja maravilla, porque propone algo que parece asombroso que pueda ser tal como se dice que es. A veces se usa 'paradoja' como equivalente a ‘antinomia’. A veces, y más propiamente, se estima que las llamadas “antinomias” son una clase especial de paradojas: las paradojas que engendran contradicciones no obstante haberse usado para defender las formas de razonamiento aceptadas como válidas.”
  • 2
    Lembre-se, no entanto, que a desmontagem dos binarismos que o pós-estruturalismo prega deve ser vista mais como desenvolvimento, ou superação dialética, e menos como simples oposição às conquistas dos estruturalistas. Nesse sentido, refletia Viveiros de Castro sobre a sua formação como antropólogo pós-estrutural: “O estruturalismo de Lévi-Strauss não é, mas nem de longe, meu «inimigo». Ao contrário, foi quem me forneceu régua e compasso, estabelecendo as condições de minha interlocução com a etnologia amazônica e com ele mesmo. [...] Mas pensando bem, talvez ele seja, sim, meu inimigo principal, no sentido que tem este conceito nas socialidades amazônicas, onde ele designa algo perfeitamente positivo, isto é, «absolutamente necessário», algo que é preciso afirmar, não negar, para se poder passar adiante” (Castro, 2017CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Ubu Editora, 2017 [2002]., p. 17). Isso pode lembrar outro paradoxo, com frequência mobilizado pelo pensamento heterodoxo judeu: aquele da traição por fidelidade ou fidelidade na traição. Os heresiarcas messiânicos Sabbatai Zevi (s. XVII) e Jacob Frank (s. XVIII) pregaram a necessidade de os judeus da Europa de Leste se converterem ao islã e ao catolicismo, respectivamente, numa espécie de subterfúgio metafísico. Modernamente, se situaria numa linha semelhante grande parte dos pensadores judeus que encontram uma maneira paradoxal de se manter fiéis ao judaísmo na secularização. Veja-se, nesse sentido, o conceito benjaminiano de Tradierbarkeit (‘tradutibilidade’); como explica Agata Bielik-Robson (2019BIELIK-ROBSON, Agata. Marrano Universalism: Benjamin, Derrida, and Buck-Morss on the Condition of Universal Exile. Telos, n. 186, p. 25-44, Spring 2019., p. 37), trata-se de: “passing on the tradition through its inevitable betrayal. By opening the traditional «gene pool» to «mixture» and «contamination,» translation simultaneously preserves it and puts it at risk—yet, this very risk is nothing but life itself, which also includes the vital interest of self-preservation”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024
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