RESENHAS
Mariluci Guberman
UFRJ
Uma leitura da construção da identidade latino-americana: rios profundos que transbordam nos textos literários
Vera Lucia Teixeira Kauss
Tese de Doutoramento em Ciência da Literatura (Literatura Comparada) Universidade Federal do Rio de Janeiro
Orientador: Eduardo de Faria Coutinho
Co-Orientador: Mariluci Guberman
A pesquisa de Vera Lúcia Teixeira Kauss principia com o rompimento entre Atahualpa e a Igreja Católica, representada pela Bíblia. O imperador Inca, símbolo da cultura oral, desdenha do texto bíblico, referência da cultura escrita. Como um objeto pode ditar as leis divinas? Que povo é este que chega à América ouvindo e adorando um livro e, em nome de Deus, saqueia, prende e domina?
A partir destas reflexões, Vera desenvolve sua tese sobre a obra de José María Arguedas, apoiada em ensaístas e teóricos como Antonio Cornejo Polar e Martin Lienhard e, principalmente, no pensamento e na literatura oral dos povos andinos. A autora vai escribiendo en el aire...
O vôo crítico, reflexivo e imaginativo de Vera Kauss é altaneiro como o do condor, cujo movimento é análogo ao esgueirar-se da serpente, que, para ouvir as vozes soterradas de um povo, se arrasta pelo solo. O condor descendente e a serpente ascendente simbolizam a dinâmica dos contrários. Entre o céu e a terra está o centro, el ombligo del mundo, para onde convergem todas as miradas, inclusive o olhar do leitor.
Entre o condor e a serpente, surge uma crítica profunda e lúcida de Vera Kauss, que principia com a abordagem da festa andina de Yawar Fiesta, início do espetáculo de morte nas arenas de Puquio; depois mergulha nas águas profundas para beber os substratos da cultura incaica de Los ríos profundos; a seguir desvenda o rio de sangue dos olhos de dom Bruno de Todas las sangres, e encerra em uma cidade costeira, quando el zorro de arriba e el zorro de abajo não podem mais conviver.
Percebe-se na tese de Vera Lúcia Kauss um desfile de personagens e mitos, verdadeiros ritos de passagem: primeiro, a subida nas montanhas para trazer o touro mais selvagem para a Festa de Sangue (Yawar Fiesta); depois, a procissão de mulheres (Los ríos profundos); a seguir, os migrantes serranos (Todas las sangres) e por fim a procissão dos pobres de Chimbote, que ao carregarem suas cruzes abrem espaço para os mais ricos (El zorro de arriba y el zorro de abajo). Porém, a cruz sob a liderança de Moncada se transforma em fuzil e revela a revolta do povo andino contra la gran zorra, a costa, a devoradora de homens e costumes.
Voando ou serpeando, a imaginação de José María Arguedas peregrina pelas diversas procissões até chegar ao fim da via crucis: o suicídio. Teria o poeta peregrinado pela escritura para não dar fim à vida? Ou teria chegado à terrível conclusão de que mais valia a pena morrer por não ter encontrado a identidade do mestiço, na qual ele se insere?
Vera Lúcia Teixeira Kauss soube captar a sensibilidade do escritor peruano José María Arguedas e a elaboração poética de seus quatro romances, os quais emergem das lendas e tradições dos povos da Cordilheira Andina, Dioses y hombres de Huarochirí, além das experiências observadas e vividas pelo próprio autor. O resgate da cultura peruana, através do artifício da linguagem inovadora e revolucionária de Arguedas, revela a importância de uma civilização que resistiu ao processo de colonização e que conserva em seus substratos a sabedoria e a memória do povo andino.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
14 Jul 2004 -
Data do Fascículo
Jul 2003